O sentido da vida e o pecado contra o Espírito Santo

Albert Camus afirmou uma vez: “Há um só problema verdadeiramente sério e é … estabelecer se vale ou não a pena viver…”. O grande problema, o grande causador das neuroses e depressões, é o vazio existencial.

Dom Fernando Rifan, “O sentido da vida”.

Eu já cansei de citar Santo Agostinho com o seu “Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós”. Feciste nos ad Te, Domine, et inquietum est cor nostrum donec requiescat in Te. A sentença é d’As Confissões, obra que li há uns dez anos. Sempre conservei na memória, contudo, algumas passagens para mim assustadoramente marcantes dessa grande obra do Santo de Hipona.

Uma delas é essa frase a respeito do “vazio existencial” que existe no homem. Santo Agostinho escreveu-a em sua forma lapidar: Deus nos criou para Ele e, portanto, a nossa existência não está ainda tranqüila enquanto não Lhe estamos devotados integralmente. Falta-nos algo; ou melhor dizendo, falta-nos Alguém. Nos círculos da Renovação Carismática falava-se exatamente a mesma coisa, só que com outras palavras: no nosso coração existe um buraco infinito que só Deus, Infinito, é capaz de preencher. Enquanto Ele não o faz – ou, melhor dizendo, enquanto nós não O deixamos fazer -, a sensação de vazio interior é inevitável.

A menos, claro, que alguém tente enganar-se a si mesmo; esta, no meu entender, é a principal razão do crescimento do proselitismo ateu nos dias de hoje. A fanática sanha “apologética” dos Arautos da Irreligião sempre se me afigurou como uma tentativa desesperada de auto-negação, um mecanismo psicológico que leva os descrentes a tentarem sufocar a voz da própria consciência por meio da repetição frenética e desesperada, quase que em caricata oração, de um único versículo bíblico com a exclusão de todos os outros: non est Deus.

E volto às Confissões, com uma segunda passagem que eu nunca esqueci mesmo após todos esses anos: “Senti e experimentei não ser para saber que o pão, amável ao paladar sadio, é repugnante ao doente, e a luz, adorável aos olhos sãos, é odiosa aos [olhos] enfermos”. Perdoem-me qualquer imprecisão, pois cito tudo de memória. Mas se aplica perfeitamente: os que não querem que Deus exista (não lembro agora quem foi que disse que ninguém jamais falou “Deus não existe” sem ter antes desejado secretamente que Ele não existisse…) assustam-se com a mera possibilidade de dúvida acerca da Sua existência, fogem das evidências que apontam para Ele com a mesma devotada repugnância com que um estômago doente põe para fora o alimento que lhe seria salutar.

Há pecados que não têm perdão, os famosos “pecados contra o Espírito Santo” que a tradição católica enumerou e explicitou. Explica a Igreja que eles não são propriamente pecados imperdoáveis, mas sim aqueles pecados que, por sua própria natureza, repelem o perdão divino. Um deles é exatamente a negação da Verdade conhecida como tal: trata-se, p.ex., exatamente do orgulho de recusar-se a enxergar que Deus existe ou a achegar-se-Lhe suplicando a misericórdia da qual o homem tem a mais absoluta necessidade. O perdão de Deus é graça gratuita, claro está, mas não é exatamente um dom “incondicional”. Como tudo que está sob o império da economia da salvação, o perdão divino está condicionado ao livre-arbítrio humano, que precisa desejá-lo como conditio sine qua non para o receber.

Mas o orgulho é próprio da natureza humana decaída, e este vício – mormente o intelectual – é difícil de ser arrancado uma vez que finca as suas raízes no coração. Se o paladar enfermo rejeita o remédio, o que se pode fazer? Se a Anti-Fé atéia postula como o mais inquestionável dos dogmas que não há Deus, como aqueles que tiveram a infelicidade de abraçá-la um dia poderão se libertar de suas garras se não podem sequer suplicar ao Deus no Qual não crêem que Se digne conceder-lhes o dom da Fé?

A situação é sem dúvidas terrível, e é justamente por isso que ela mereceu ser chamada de “Pecado contra o Espírito Santo”, aquele que não será perdoado nem neste século e nem no vindouro: não, repitamos, porque não possa absolutamente ser perdoado, mas porque – na expressão do Catecismo Romano que cito também de memória – “só a muito custo se lhe obtém o perdão”, uma vez que este pecado específico (ao contrário de outros) fecha deliberadamente as portas do coração humano à ação santificante de Deus.

Convém, contudo, que não nos desesperemos. Na nossa recitação diária do Santo Rosário, nós acrescentamos a jaculatória de Fátima e pedimos que o bom Jesus possa socorrer “principalmente aqueles que mais precisarem”. “Da Vossa misericórdia”, em alguns lugares se costuma acrescentar. E a força de tantas orações pode aproveitar aos nossos queridos irmãos que não têm Fé; não nos esqueçamos de que Deus concede a todos os homens graças suficientes para que se salvem, e os misteriosos caminhos da liberdade humana são tais que, em princípio, até o último suspiro um homem pode decidir voltar-se para Deus. Rezemos, portanto, por aqueles que não querem ou não podem rezar por si próprios! Ó Deus, pedimo-Vos “por aqueles que não crêem, não adoram, não esperam e não Vos amam”. Orações são umas das pouquíssimas coisas (senão as únicas) das quais se pode com a mais absoluta certeza dizer que não são em vão.

Porque a apologética é sem dúvidas necessária, mas muito mais necessária é a oração, esta que é a alma de todo apostolado. A decisão de crer é uma decisão pessoal e interior, que pode perfeitamente (permita-o Deus!) ser ensejada à força de nossos arrazoados, mas que ninguém é capaz de produzir em si ou em outrem por virtude própria. São importantíssimas as discussões sobre Deus, sem dúvidas, mas o acumulado de todas elas levadas a cabo ao longo dos séculos pelas mais brilhantes mentes que já passaram pela Terra não é capaz, por si mesmo, de produzir a virtude da Fé em uma única alma. Mais do que ser convencido acerca de Deus, o homem precisa crer. E termino com uma terceira lembrança d’As Confissões que sempre me acompanhou ao longo dos anos, e que resume perfeitamente isto que estou querendo dizer, de um modo até muito melhor do que eu próprio consigo: “prefira [o homem] encontrar a Deus sem O conhecer a, conhecendo-O, não O encontrar”. Que Santo Agostinho possa rogar por todos nós.

Feliz espera!, por Claudemir Júnior

Publico, com um pouco de atraso, o bonito texto que o caríssimo Claudemir escreveu por ocasião do meu casamento, pelo qual já o agradeci particularmente mas faço questão de repetir, aqui em público, meu muito obrigado. Foi publicado, durante a minha viagem de Lua de Mel, pelo Wagner Moura, a quem também agradeço; li-o ainda em viagem e, desde já, pude tornar aqueles momentos mais agradáveis com a beleza das palavras dos amigos. Como não sei se todos o leram, fica aqui o registro. Nossos mais sinceros agradecimentos a todos.

* * *

Feliz espera!

por Claudemir Júnior

Adriana atrasou. Aliás, noivas sempre atrasam e não é de hoje. Mas, desta vez, o fato corriqueiro me fez refletir um pouco. O Matrimônio, afinal, gira em torno da espera. E esperar, não raro, consiste em mantermo-nos firmes em nossos propósitos mesmo depois de passada a hora que havíamos estabelecido por nossa própria conta.

Tudo no tempo certo. Primeiro espera-se pelo Chamado, pela Vocatio – sem a qual ninguém deveria ousar embarcar nesta aventura, sob pena de colocar em sério risco a própria Salvação Eterna. É o Senhor quem chama e, sabemos todos, mais felizes seremos quanto mais nos assemelharmos àquilo de Ele quer que sejamos.

Em seguida, espera-se pelo outro, por aquele ao lado de quem se vai realizar a própria vocação. Uma vez que os dois se encontram – a si mesmos e um ao outro -, espera-se o momento certo de colocar em prática aquilo que o Altíssimo determinou. Chegada a data, espera-se a hora marcada. Chegada a hora, espera-se a noiva diante do Altar do Senhor.

Sacramentada a união, esperam-se os frutos do amor fértil; esperam-se as surpresas que a Providência reserva aos que resolveram embarcar na aventura do amor conjugal; esperam-se as forças do alto para suportar e, quiçá, superar os diversos obstáculos que surgirão pelo caminho; e espera-se, por fim, o termo ao qual conduz toda vocação bem vivida: a Bem-Aventurança Eterna, onde Nosso Senhor nos espera.

Eu esperei. Desta vez, não foram apenas os nubentes que esperaram ansiosos por este último sábado, 29 de setembro de 2012. Eu também esperei muito por este dia. O dia mais importante, até o presente momento, na vida dos meus amigos Adriana e Jorge, o dia da realização da vocação dos dois.

Esperei por este momento por ter tido, por graça de Deus, a honra de ter presenciado ao longo de muitos anos alguns dos grandes passos e transformações na vida deste meu grande amigo. Mas, faltava algo. Eu não conhecia ao certo a vocação de Jorge, mas, em oração, pedia à Virgem Santíssima que não o deixasse esperar por muito mais tempo por esta fundamental decisão.

E Ela não tardou em atender as minhas – e não só minhas, certamente – preces, pois, eis que, de forma inesperada, surge aquela que Deus escolheu para ser com Jorge uma só carne, aquela que o Altíssimo reservou dentre tantas outras para mudar de forma drástica a vida dele, aquela que o Senhor de nossas vidas escolheu para ser o auxílio e a companhia constante na conversão diária do meu amigo.

Adriana veio e mudou tudo. Aquele a quem, em brincadeiras, eu costumava alcunhar de “avocacionado” agora tinha uma vocação muito clara. Jorge estava resoluto desde o princípio, mas eu demorei a me dar conta de que, agora, realmente Nosso Senhor havia decretado no tempo aquilo que já havia decretado desde toda a eternidade: a salvação da alma do meu amigo deveria passar pelo doce e árduo caminho do Santo Matrimônio.

E, nos dizeres de Chesterton, “o casamento é um duelo mortal que nenhum homem honrado deve rejeitar”. E meu amigo é um homem honrado, e jamais declinaria um duelo mortal ao qual fora por Deus chamado!

Eu chorei. Emocionei-me neste casamento como jamais havia me emocionado em qualquer outro. Não que eu já não tenha honrosamente presenciado as núpcias de outros grandes amigos, mas, desta vez era diferente. Desta vez estava para acontecer diante do altar algo que muito esperei. Desta vez Jorge era o noivo! Quem esperava?! E um noivo sorridente. Brilho no olhar e a felicidade estampada em seu rosto, mormente quando avistou, de longe, a bela noiva adentrar a Igreja.

A espera acabou. Adriana, enfim, apareceu. Jorge sorriu com ainda mais vigor. Ela, emocionada, seguiu ao encontro de seu escolhido. Ambos, de braços dados, subiram ao altar d’Aquele que os havia convocado, o altar do Deus que é a Alegria a nossa juventude! Depositaram ali mesmo as suas vidas, entregando-as um ao outro. Deram o consentimento sacramental diante de Deus e dos homens.

Enfim, casados! Parabéns, amigos! Sejam santos! Que Jorge possa na vida de Adriana ser aquilo que Cristo é para a Igreja. Que ele saiba amá-la e conduzi-la à Glória Eterna, apresentando-a sem ruga nem mancha, mas santa e irrepreensível diante do Altíssimo (cf. Ef 5, 27).

Que Adriana possa retribuir amando-o e respeitando-o, cumprindo dignamente o seu papel de esposa e mãe, tal qual a Virgem Santíssima na Sagrada Família de Nazaré. Enfim, que “animados pela força do Evangelho sejam, entre todos, verdadeiras testemunhas de Cristo; sejam eles fecundos em filhos, pais de comprovada virtude, e possam ver os filhos de seus filhos; e que após uma vida longa e feliz, alcancem o reino do céu e o convívio dos santos” (cf. Benção Nupcial). Assim seja!

Hoje à noite eu vou ser Cristo

Muitas vezes é banalizada a força daquela expressão bíblica onde, após a narrativa da Criação do Homem, diz-se de Deus que “homem e mulher Ele os criou”. E esta sagrada união natural entre os sexos – destinatária da única bênção que não foi abolida nem pelo Pecado Original e nem pelo castigo do Dilúvio, como se diz em uma das orações do Ritual do Matrimônio – é talvez aquilo de mais sublime que, na ordem da natureza, faz parte da Criação do Altíssimo. Porque foi precisamente esta união entre o homem e a mulher que o próprio Deus escolheu para simbolizar a Sua relação com o Seu povo e, como diz Dietrich Von Hildebrand, aquilo que não fosse já naturalmente sublime não seria digno de ser usado para representar a sublimíssima união entre Cristo e a Sua Igreja. Se esta união mística e sobrenatural é excelsa em grau máximo, quão digna de honra e louvor não é a relação humana que – dentre todas as existentes! – foi elegida pelo próprio Deus para ser sinal da Sua relação com a humanidade?

Hoje é o dia mais importante da minha vida. Logo mais, à noite, subirei ao altar do Senhor para tomar por esposa aquela que escolhi por companheira, para me completar e me auxiliar nesta caminhada da minha existência terrena, para estar a meu lado na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, por todos os dias da minha vida. A responsabilidade chega a ser assustadora, porque “todos os dias da minha vida” é um intervalo de tempo bastante difícil de se abranger de um lance de vista! No entanto, preciso fazê-lo. Talvez o valor de um homem seja medido menos por aquilo que ele faz com as coisas que estão sob seu controle do que pelos seus esforços para obter controle sobre as coisas que ele precisa fazer. Não sei se me faço claro: oferecer os dias passados é simples, porque estes já está feitos. Oferecer os dias futuros, aqueles que você não sabe como serão… isto, sim, é desafiador. E o Matrimônio, assim, afigura-se-me não meramente como uma entrega daquilo que é seu, mas como – a partir de então – uma luta ferrenha e perpétua para conquistar a cada dia aquilo que, diante de Deus, foi um dia entregue. Conquistar para entregar. O Matrimônio consuma-se na noite de núpcias, claro, mas é aí que ele começa. A entrega da própria vida foi feita, mas – justamente por ter sido um feita um dia – precisa ser consumada a cada dia. Por todos os dias da vida. Sim, é o que eu quero.

E esta doação generosa de si é, como eu dizia, figura d’Aquela união mística entre Cristo e a Sua Igreja. Uma entrega total e permanente, pessoal e exclusiva, amorosa e fecunda: a mera consideração do significado teológico do Matrimônio bastaria (permito-me o ligeiro parêntese) para fazer com que todos os fantasmas que andam à ronda da Família ávidos por Lhe destruir (do divórcio ao sexo livre, da poligamia à união gay) desvanecessem-se como as trevas ao alvorecer. E importa multiplicar pelo mundo estes reflexos do Amor de Deus pelo Seu Povo, estas pequenas Igrejas Domésticas, estas instituições que perpetuam na terra um pouco da glória d’Aquela Sagrada Família de Nazaré: importa fazê-lo, para que Deus seja mais louvado e para que as pessoas, relacionando-se ordenadamente nesta terra através das coisas que vêem, possam mais facilmente relacionar-se com o Deus Invisível com o Qual se relacionam mediante a Fé. E assim, subindo das coisas visíveis para as invisíveis, dos sinais para a realidade, possam consumar um dia as Núpcias para a qual foram criadas. Em cada homem e em cada mulher que se unem pelos sagrados liames do Matrimônio, está presente a união mística entre Cristo e a Sua Igreja Santa.

Hoje à noite eu vou ser Cristo. De pé à porta da Igreja, esperando a minha amada noiva chegar – como o Senhor esperando o Seu povo -, oferecendo-lhe o braço para conduzi-la ao altar de Deus, tornando-me depois uma só carne com ela! Senhor, eu não sou digno de desempenhar tão sublime papel; mas, como disse um personagem de Chesterton, o Matrimônio é um duelo de uma vida inteira que, uma vez apresentado, os homens honrados não têm o direito de recusar. Sim, este papel é assustador! E só ouso fazê-lo por estar convencido de que sois Vós, Senhor, quem me chamais a ele. E, se Vós chamais, Senhor, adsum. Se Vós chamais, tenho certeza de que fareis com que eu o possa realizar.

Aos que por aqui passarem, peço uma Ave Maria por esta nova etapa da minha vida. Para que eu seja fiel, e corresponda às graças que Deus quer me conceder. Para que eu seja um bom marido e, amando a minha esposa, possa uma dia chegar com ela – junto a ela! – ao Banquete Nupcial do Cordeiro, às Bodas Eternas cujo sinal eu celebrarei logo mais.

Lembranças da igreja da Penha

Eu ouvira que a igreja da Penha, aqui em Recife, depois de mais de quatro anos fechada para reformas, havia – enfim! – aberto as portas para expôr aos fiéis a parte concluída das suas obras de restauração. Hoje estive casualmente no centro da cidade, e aproveitei para passar na igreja. Infelizmente, ela não estava aberta; conversando com alguém, soube que a visitação noticiada aconteceu somente na sexta-feira, 01 de setembro. O templo segue fechado para reformas.

Diante da fachada do templo, na praça Dom Vital, vi a placa que noticiava o início das obras de reparo. Conclusão prevista para agosto de 2008; isso mesmo, quatro anos atrás! E, hoje, em 2012, a grande igreja – uma das mais bonitas, senão a mais bonita da cidade – permanece com as portas trancadas. É inevitável deixar-se abater por uma sombra de desânimo. Eu gosto daquela igreja.

Quando trabalhava no centro da cidade, costumava correr à Penha nas sextas-feiras: os capuchinhos confessavam. Hoje eles ainda confessam, mas é diferente: fazem-no nos corredores internos do convento, em cadeiras plásticas improvisadas próximas às quais formam-se morosas filas. Antigamente, as filas formavam-se dos dois lados dos confessionários antigos que havia no interior da igreja, e que eram utilizados pelos padres. Chego a pensar que elas eram até maiores; mas eram também indiscutivelmente mais rápidas. Era possível confessar-se com mais freqüência, mesmo de supetão, animado talvez por um amigo que de repente dissesse “ei, bora ali na Penha”. A praticidade da coisa proposta por si só já afastava as desculpas que a nossa malícia talvez tentasse fazer surgir. Se a procrastinação é um dos males dos nossos tempos, deixá-la embaraçosamente sem justificativas é uma forma amiúde eficaz de a exorcizar.

Passei hoje pela frente da Penha, e fui tomado por uma doce nostalgia. Senti vontade de entrar, mas as portas estavam cerradas; fechei os olhos e entrei na velha igreja pelas portas da memória, que estas costumam-se ainda abrir quando eu nelas bato. Por detrás das pesadas portas do templo, vislumbrei os antigos confessionários de madeira que eu nem sei se ainda lá estão depois de tantos anos, corroídos talvez que tenham sido à conta dos tantos pecados que eu neles tantas vezes despejei. Eram a primeira coisa em que eu punha os olhos…! Mas, ao levantar-me, filho de Deus, cabeça erguida, eu podia contemplar a imensidão da Basílica, a ampla nave, as grossas colunas, as cúpulas quase tão altas quanto a própria abóbada celeste, o presbitério e o altar, os mortos em seus túmulos a sussurrar-nos “memento mori” pelo caminho, os afrescos pelas paredes, a capela do Santíssimo, as imagens dos santos e, sobre todos eles, a Virgem Santíssima, Nossa Senhora da Penha, no antigo altar central da Basílica a interceder por nós. E tudo fazia sentido. E havia paz.

E era tudo tão simples e corriqueiro e, ao mesmo tempo, tão sobrenaturalmente eficiente. Tão gratificante! Abri os olhos e estava de novo na praça. A Basílica, continuava fechada; mas eu estava grato pela visita. Valera a pena, apesar das portas fechadas. Que Dom Vital – cujo túmulo se encontra justamente nesta igreja – olhe com cuidado pela Sé que um dia foi dele. E que estas obras de restauração da Basílica onde respousam os seus restos mortais sejam o quanto antes levadas a bom termo. A cidade merece. E os fiéis precisam.

O rosto feio de Satanás

Ao mesmo tempo em que uma pesquisa científica descobre a pólvora ao anunciar que a música piorou nas últimas décadas, dezenas de milhares de pessoas acompanham no Líbano esta execução do Panis Angelicus diante do Romano Pontífice:

A escolha desta peça para ser cantada diante do Papa mostra-nos que ainda há esperança. Indica-nos (mais uma vez) que as pessoas mantêm a capacidade de reconhecer a beleza, mesmo apesar do mau gosto generalizado que se tenta impôr como se fosse a norma estética do nosso tempo. As pessoas têm sede de beleza, e – como eu já disse aqui – o Belo conduz a Deus.

Sufoca-se o Bonum por meio do incentivo à imoralidade e, o Verum, pelo relativismo atroz. Mas, curiosamente, hoje me parece que o Pulchrum é mais resistente do que se poderia julgar à primeira vista. Não sei, talvez porque o mal revista-se facilmente de prazer e, a mentira, de atalho fácil para evitar o sofrimento; mas o feio não me parece ter nenhum atrativo próprio que o torne particularmente agradável aos homens.

É como o Demônio travestido de anjo de luz: a maldade e a falsidade podem ser “escondidas” sob uma casca de “beleza”, sob algum reflexo de Pulcritude que engana os incautos; mas o rosto feio de Satanás não tem como se apresentar agradável fingindo-se Bom ou Verdadeiro e então, “despojado” de transcendentais, provoca mais facilmente a repulsa e a fuga das pessoas.

E isso nos dá esperanças. Talvez os russos estejam certos. Talvez, afinal, a Beleza vá mesmo salvar o mundo.

Graças ao bom Deus

Eu “me reprovei” na minha primeira catequese de Crisma. Graças ao bom Deus. Ainda envolto nos liames de uma adolescência pouco virtuosa e da qual não tenho muito orgulho, entrei para a catequese já quase homem feito, com os meus dezessete carnavais. O curso, levei-o como quem não quer nada, oscilando entre o desinteresse e a displicência. Após ter perdido muito mais aulas do que permitiriam as mais generosas e tolerantes cargas horárias mínimas, ainda assim a minha catequista me chamou no final do curso e perguntou se eu queria me crismar. Eu disse que não. Ela insistiu: “amanhã pode ser tarde”. Eu fui resistente. “Não posso me crismar, não estou preparado”. Graças ao bom Deus, entre todas as minhas falhas de caráter nunca se pôde contar a hipocrisia. Não me crismei. Disse que voltaria no ano seguinte.

Era óbvio que eu não podia me crismar: graças ao bom Deus eu pude ver isto com clareza. Sem perceber, eu corria então o terrível risco de relegar o meu Sacramento à irrelevância das coisas que se fazem “só por fazer”, como (mais) uma das matérias do colégio que a gente só cumpre porque está no quadro de disciplinas mas que, para a nossa vida, não serve de nada. Que passa e depois a gente esquece. Mas eu aprendera que receber o Sacramento da Crisma era se transformar em soldado de Cristo com a missão permanente de defender a Santa Igreja, e o meu gosto de então por romances épicos me fazia levar demasiadamente a sério esta metáfora.

E eu não podia defender a Santa Igreja, eu que sequer pronunciava o “[Creio] na Santa Igreja Católica” do Credo dominical! Eu estava ainda enojado com a corrupção da Igreja evidente após séculos e séculos de opressão e de busca imoral por poder e por controle, e com todas as outras coisas que a gente aprende nas aulas de história do Ensino Médio. Com a perseguição à ciência. Com a carnificina das cruzadas. Com o genocídio indígena. Com o terror da Inquisição. O quadro era por demais tétrico e, a instituição nele retratada, por demais repulsiva para merecer o meu juramento de vassalagem. Graças ao bom Deus, eu não podia me crismar.

Eu não sei entrar em detalhes sobre como esta imagem se desvaneceu por completo da minha mente; eu mesmo não o sei ao certo. A curiosidade e a honestidade tiveram um importante papel neste processo: as incansáveis leituras e as infindáveis discussões (mormente pela internet) me levaram a abandonar – graças ao bom Deus! – o legado anti-clerical da minha adolescência. Depois, olhando para trás, pude fazer minhas estas palavras de Chesterton que retratam a sua perplexidade com as críticas ao Cristianismo. Graças ao bom Deus, eu sempre mantive a virtude da coerência.

E no ano seguinte eu voltei. Graças ao bom Deus, eu voltei. E, numa noite de sábado do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2002, com quase dezenove anos, eu recebia na fronte o óleo do Crisma e, na alma, o caráter da Confirmação. Este ano faz uma década. De lá para cá muitas coisas aconteceram, muita água rolou sob a ponte; mas graças ao bom Deus eu sempre consigo voltar àquela noite em que, jovem e entusiasmado cruzado com a testa rescindindo a bálsamo, depus a minha alma aos pés de Nosso Senhor. Graças ao bom Deus, ainda estou na luta. E permita-me Ele que neste combate eu possa viver e morrer.

Feliz dia do amigo!

Ouvi certa vez uma definição de “amizade” segundo a qual os amigos eram aqueles que queriam as mesmas coisas e não queriam as mesmas coisas. Amizade, assim compreendida, não tem nada a ver com emotividades ou sentimentalismos; não está assentada sobre os frágeis alicerces das emoções humanas, que mudam junto com o tempo. Que mudam mais que o tempo, até.

Amizade verdadeira, assim, é uma convergência de objetivos de vida, de valores, de ideais pelos quais se acredita valer a pena lutar. São amigos os professores que têm em comum o amor pela escola, são amigos os soldados que compartilham a admiração pela pátria, são amigos os cristãos que amam a Deus e querem propagar o Evangelho pelo mundo. No entanto, há várias facetas na personalidade humana e, assim, os gostos e desgostos podem se mesclar: os professores podem querer coisas diferentes para a escola onde trabalham, os soldados podem estar lutando por pátrias inimigas e há entre os que se dizem cristãos concepções bem diversas sobre os exatos significado e alcance daquela frase de Cristo sobre pregar o Evangelho a toda criatura. Tudo isto é natural e inevitável, e o que caracteriza uma amizade verdadeira é a harmonia entre estes diferentes conjuntos de valores individuais. Naturalmente, não se trata de buscar uma impossível identidade entre várias pessoas, mas de trabalhar por uma integração orgânica de anseios complexos em uma relação que todas as partes consideram positiva.

Pode parecer complicado dito assim, mas não é. Todo mundo faz este julgamento o tempo inteiro, até inconscientemente: a frase de efeito sobre os amigos serem os irmãos que a gente escolhe diz exatamente isso. Uma amizade é uma escolha, mas é um tipo curioso de escolha às avessas, porque o mais importante é escolher recebê-la. Não é à toa que se diz que a amizade é uma dádiva. Dificilmente morrerá sem amigos um sujeito introvertido que não saiba aproximar-se de ninguém: é muito mais provável que termine sozinho o sujeito que adquiriu o hábito de repelir os que se aproximam dele. Entre oferecer a própria amizade e ter de fato um amigo vai uma distância infinita como a liberdade humana. Apenas quando eu aceito a mão que me é estendida é que eu posso me pôr a caminho com alguém, é que é possível falar em ter um amigo.

Amigos são preciosos e, hoje, parece ser o Dia do Amigo. Para celebrá-lo, nada melhor do que participar desta promoção das Camisetas Chesterton: compre uma camiseta e ganhe mais uma para contemplar um amigo. Funciona assim:

Dia do Amigo é nesta sexta-feira, 20, e nós vamos comemorar. Se você já curtiu a fan page e mora no Brasil, então responda: “Por que o seu amigo merece ganhar uma camiseta Chesterton Brasil?” Atenção: é preciso que seu amigo esteja no Facebook e você precisa citar o nome dele na resposta. Os autores das três melhores respostas (uma por pessoa) ganham uma camiseta na compra de outra. Resultado nesta sexta-feira, 20, às 21h30. Participe!!!

Não sabe que camisetas são essas? Clique aqui para saber mais. E não perca tempo, que a promoção vale somente hoje. E um feliz Dia do Amigo para todos os meus amigos! Aos que eu vejo todos os dias, aos com quem eu falo com relativa freqüência e àqueles junto aos quais eu estou bem menos do que gostaria. Que a Virgem Mãe de Deus nos reúna a todos em torno da Cruz do Seu Divino Filho. Que sob os Seus braços abertos formemos uma grande Família. Que alimentando-nos do Seu Corpo e do Seu Sangue possamos – um dia…! – nos tornar todos um só Corpo com Ele e n’Ele.

Filhos: o verdadeiro direito de escolher

Almocei hoje com um amigo que gosta de dissertar sobre a defesa da Família: mais particularmente sobre a necessária generosa abertura que os casais devem ter aos filhos que a Divina Providência achar por bem lhes confiar. Em uma palavra, sobre a importância – mesmo nos nossos dias! – de uma prole numerosa.

Naturalmente (e antes de qualquer outra coisa), ninguém deve ser a isso obrigado pelo Estado, de modo que a sadia liberdade humana deve ser respeitada inclusive nas questões de fato que precisam ser tratadas caso-a-caso pelos casais concretos que estiverem nelas envolvidos. Não é este o ponto. Trata-se muito mais de apresentar uma proposta positiva, que vai certamente na contramão da cultura moderna – mas o Papa não falou recentemente que devíamos dizer “não” a «um tipo de cultura, de um way of life, de um modo de viver, no qual não conta a verdade, mas a aparência, não se busca a verdade, mas o efeito, a sensação, e, sob o pretexto da verdade, na realidade, se destroem homens»? -, que foi praticamente proscrita do cenário atual mas que por séculos foi abraçada alegremente pela virtual totalidade dos homens, tendo dado indiscutíveis bons (e santos) frutos tanto para os indivíduos quanto para as sociedades. Trata-se de uma proposta à qual deveria – quando menos por respeito às suas cãs – ser garantido, no mínimo, o direito à cidadania.

É possível referir-se a ela pela tradicional expressão “família numerosa” com a qual ela foi canonizada pela doutrina e pela praxis católicas ao longo dos séculos, como também é possível falar sobre ela com termos metonímicos mais líricos do tipo “uma mesa cheia de crianças”. Mas aqui não importa tanto o nome da rosa e sim o seu perfume: quero dizer, o ponto aqui é defender que é viável – mais ainda, que é profícuo e feliz – um modelo de família erigido, digamos, em função dos filhos.

A primeira coisa que salta aos olhos neste modelo de família (e talvez seja este um dos motivos pelos quais ele é tão odiado e perseguido nos dias de hoje) é a profunda desigualdade instaurada entre o homem e a mulher que ele revela. Talvez o aspecto desta desigualdade que mais salta aos olhos seja quanto à fertilidade de ambos os sexos: o homem é fértil o tempo inteiro e, a mulher, apenas durante alguns dias do mês. A fertilidade masculina é menos sensível ao passar dos anos: enquanto que os homens podem em princípio ter filhos “mais tarde” na vida, as mulheres precisam necessariamente tê-los em algum momento entre a adolescência e os quarenta e poucos anos. Corolário imediato deste “descompasso biológico” é a idade com a qual podem contrair núpcias o homem e a mulher: se desejam filhos, ela não pode esperar tanto quanto ele.

Há mais desigualdades. Sem dúvidas existem casos e casos, mas as defensoras dos “direitos da mulher” hão de certamente concordar comigo que os filhos costumam afetar a vida profissional da mulher bem mais do que a do homem – e isto por razões que não têm, absolutamente, nada a ver com “papéis socialmente construídos” nem nenhuma bobagem do tipo. Tal ocorre pelo fato concreto de que uma mulher grávida ou lactante demanda alguns cuidados diferenciados, dos quais não precisam os homens ou as mulheres que não têm filhos. Tal decorre do fato objetivo de que ter um filho no ventre ou (principalmente) nos braços provoca uma certa influência na capacidade de trabalho (tanto físico quanto intelectual) da mulher.

Não foi o capitalismo quem inventou a especialização ou a divisão do trabalho. Séculos antes, Platão já enunciava o princípio lapidar (e, aliás, cristalino) de que o melhor sapateiro é aquele que produz apenas sapatos. Na sociedade familiar, portanto, foi historicamente natural que os papéis se diferenciassem e coubesse principalmente ao homem a função de “provedor”, enquanto que a mulher assumia o cuidado quotidiano do lar e da prole. Não me atirem pedras ainda as feministas de plantão, que isto não tem nada a ver com a mulher não ter “direito a trabalhar” nem com nenhuma outra cantilena idiota que as incendiárias de soutiens implantaram no inconsciente coletivo. Está-se aqui apenas constatando o fato de que coisas como tempo e energia são “recursos limitados”, e portanto empregá-los na carreira profissional ou em uma (nova) gravidez são não raro opções conflitantes entre si.

De tudo isto decorre que a hoje tão alardeada “igualdade entre o homem e a mulher” é uma grandíssima falácia que não resiste à análise dos fatos, e que só se sustenta se apoiada por um gigantesco ethos imoral que inclui, entre outras coisas,

i) a contracepção, uma vez que as “conseqüências” do ato sexual não são iguais para ambos os sexos, pois somente a mulher “arca” com uma gravidez e todas as suas conseqüências físicas e psicológicas (o homem precisa “assumir” o filho, claro está, mas isto é menos do que os efeitos provocados na mulher pela gravidez);

ii) o aborto, uma vez que a contracepção é falha e, portanto, em um cenário de “liberdade sexual”, ocasionalmente uma gravidez indesejada vai ocorrer; e, last but not least,

iii) a ubíqua mentalidade anti-natalista, revelada por uma infinidade de meios: seja através de um terrorismo sociológico neo-malthusiano (não apenas extemporâneo mas também já anacrônico) que desabrocha em violentas campanhas de controle de natalidade, seja por meio do divórcio e da pregação em favor da necessária “independência” feminina (afinal, a mulher não pode depender de um marido do qual ela pode muito bem se divorciar amanhã…), seja pela criação de empecilhos (principalmente sociológicos) às mulheres se casarem cedo (com pressões sociais do tipo “precisa-terminar-a-faculdade-para-não-ser-uma-amélia”), seja pelos maus salários pagos aos trabalhadores e que são insuficientes para o sustento do lar (empurrando assim as mulheres para o mercado de trabalho com o fito de complementar a renda familiar), seja pela idealização da mulher bem-sucedida profissionalmente (com conseqüente marginalização da “dona-de-casa”), seja por quaisquer outros meios.

Contra esta cultura moderna (e, por que não dizê-lo, anti-cristã) é imperativo o resgate do “modelo tradicional”. Não (como aliás já dissemos) como uma obrigatoriedade, mas como uma opção legítima à qual as pessoas do nosso século precisam ter direito: se a mulher deseja uma descendência numerosa, ela precisa ter o direito de construir a sua vida com vistas a este fim, e isto com todas as exigências que ela julgar necessárias – ainda que isto inclua atitudes impopulares hoje em dia como casar-se cedo ou renunciar à sua vida profissional.

Afinal de contas, se nos provoca pena uma garota que se case aos 16 anos (por ela não conseguir talvez, digamos, terminar os estudos ou trabalhar), e se julgamos (quiçá até inconscientemente) que ela está desperdiçando a sua vida, há algo de muito estranho e errado conosco. Tragédia muito maior me parece ser uma mulher casar aos 30 anos e talvez não conseguir, por conta disso, constituir uma família grande – e, estranhamente, este tipo de perda que é muito mais grave não nos provoca compaixão. Deveria ser óbvio que ter uma carreira não é mais importante do que ter filhos; na pior das hipóteses, para os que não têm Fé, as duas coisas deveriam ser consideradas como se tivessem o mesmo valor. Não se entende, portanto, por qual misterioso motivo seria degradante renunciar a uma carreira profissional mas renunciar à própria prole não mereceria [nem ao menos] igual censura. Os que não têm Fé deveriam, pelo menos por coerência, lutar para que cada qual pudesse elencar as suas próprias prioridades de vida livre de pressões sociais sem sentido.

Isto é amar, isto é ser mãe!

Eu vi esta notícia há um mês atrás e tinha deixado para comentar depois. O tempo foi passando e, hoje, sábado véspera do Dia das Mães, parece-me uma ocasião propícia. É a história de uma garota inglesa que resolveu adiar o próprio tratamento contra câncer porque estava grávida e queria salvar a vida da filha; e, depois que a menina nasceu, ela descobriu que não tinha mais cura.

O bebê nasceu saudável com 27 semanas (um pouco mais de 6 meses) de gestação, por cesárea, pesando 900 gramas. Mas Sarah foi informada de que não tinha muito tempo de vida. O câncer já havia se espalhado para o pâncreas, pulmões, pescoço e tomado conta dos intestinos.

O nome da mãe é Sarah Brook; o da filha, Polly Jean. A história adquire contornos de particular heroísmo quando é situada no século em que vivemos: num mundo onde o egoísmo se disseminou de tal maneira que é visto como a norma do comportamento socialmente aceitável.

Lembro-me de que a primeira vez em que contei a história de Santa Gianna para uma amiga, a primeira reação dela foi a de espanto. “Mas como assim, ela só fez dar a vida pelo seu filho? Qualquer mãe faria isso!”. E eu até concordo que qualquer mãe deveria fazer isto, mas tal não é infelizmente a regra nos tempos que hoje correm. E é exatamente por isso que provoca admiração a história de Sarah.

Vejam, a rigor ninguém está mesmo obrigado a se deixar morrer em favor de ninguém. O “primeiro próximo” que estamos obrigados a amar somos nós mesmos, pois ensina Santo Tomás que ninguém é mais próximo do homem do que ele próprio. Antes de qualquer coisa nós estamos obrigados a cuidar da nossa própria vida, uma vez que ela é o nosso bem maior e a manutenção dela é condição necessária para a realização de quaisquer outras obras meritórias. Assim, a rigor ninguém está obrigado a morrer nem mesmo por um filho: um tratamento de câncer durante a gravidez é um caso clássico de causa com duplo efeito e, portanto, é perfeitamente legítimo, ainda que isto acarrete a morte do bebê que se carrega no ventre. Mas eu não consigo nem imaginar como seria estar na pele de uma mulher nesta situação.

No meu Facebook eu encontro uma frase atribuída a Chesterton; eu detesto essas imagens do FB que têm somente uma foto ou uma pintura, uma frase entre aspas e um genérico “fulano de tal”, sem referência, sem nada. Mas neste caso serve para exemplificar o que estou falando, porque o dito é bem verdadeiro independente do autor. A frase é “você não pode amar uma coisa sem querer lutar por ela”. E penso como não deve ser terrível para uma mãe pensar que, talvez, não tenha lutado o suficiente por sua prole… É uma situação difícil! Em um caso mais ou menos análogo, um pai que chegasse em casa e encontrasse sua família vítima de um marginal armado também não teria, a rigor, a obrigação moral de se atracar com o meliante para salvar os seus. Mas me provoca arrepios imaginar como seriam os restos dos dias deste pai, caso ele sobrevivesse sem haver tentado reagir ao assassino.

Se não é possível amar uma coisa sem querer lutar por ela, portanto, nossas mais sinceras homenagens à britânica que não apenas quis lutar como de fato lutou – e lutou até a morte! – pela vida de sua pequena filha. Isto é amar, isto é ser mãe. E se é verdade que toda mãe verdadeira tem ao menos esta disposição in voto de consumir-se pelos seus filhos, é belíssimo quando nós a encontramos realizada concretamente em um caso extremo que, justamente por ser extremo, é de uma admirável eloqüência. No dia de hoje, nós queremos saudar a todas as mães que participam, pelo fato mesmo de serem mães, desta grandiosa missão e desta sublime vocação expressas de maneira tão magnífica nesta história de sacrifício. Quando à Sarah Brook, eu não sei o que aconteceu com ela (já faz um mês da notícia); se ela já tiver partido para as Moradas Celestes, que seja lá recebida com glória. E, onde quer que ela se encontre, que receba as justas homenagens pelo dia de amanhã. Que o exemplo dela possa despertar – ou fazer florescer – este instinto materno nas mães de que o mundo de hoje precisa.

A união entre Cristo e a Igreja

E Deus criou a mulher para ser companheira do homem, pois não era bom que este estivesse só. Embora esta complementaridade entre os sexos aponte indubitavelmente para a transcendência humana (aqui entendida como a sua capacidade de relacionar-se com um outro diferente de si mesmo) em seu sentido latu, é também indiscutível que este plano divino realiza-se com maior perfeição e particular eloqüência dentro do Sagrado Matrimônio, por meio do qual o homem e a mulher se unem diante de Deus; tornando-se assim uma só carne e iniciando uma nova família no mundo.

Um casamento, como dizia o Carlos Ramalhete outro dia, deve sempre ser comemorado. Porque se trata de uma etapa da vida que é deixada para trás, ao mesmo tempo em que se tem diante de si a grande aventura da vida, a aventura verdadeiramente importante da vida. Eu já escrevi sobre isto aqui há mais de três anos, quando voltava da festa de casamento de pessoas que me são particularmente caras. Todo casamento é um drama que cumpre ser bem representado, um drama único e irrepetível como únicas e irrepetíveis são as pessoas – cada uma das pessoas – criadas por Deus. Todo casamento é chamado a ser santo como santos devem ser os seus protagonistas, e eu diria ainda mais: os que se unem nos laços do Sagrado Matrimônio têm uma responsabilidade ainda maior do que os solteiros, pois devem acrescentar ao testemunho de si próprios o testemunho público da sua família. Em um certo sentido, o marido deve ser melhor do que era até o dia em que tomou a sua mulher por esposa, e a esposa deve ser melhor do que foi até o momento em que subiu ao altar de Deus; de certo modo, os esposos estão obrigados a serem bons esposos mais ainda do que os filhos ou irmãos devem ser bons filhos ou bons irmãos.

Porque o Matrimônio tem esta gravíssima prerrogativa de ser, como disse o Apóstolo, sinal da união entre Cristo e a Igreja. Se já é naturalmente nobre a união dos esposos, nobilíssima é a missão dos que se unem sob o signo da Cruz e, banhados no Sangue do Cordeiro, ousam aproximar-se deste Sacramento que torna palpável e visível a relação entre Deus e o Seu povo, entre Cristo e Sua Igreja. É o único Sacramento que tem esta finalidade. À união entre os esposos foi concedida esta incomensurável honra de servir como metáfora para o deleite da visão beatífica, para o encontro definitivo com Deus: são as próprias Escrituras Sagradas que nos falam nas “núpcias do Cordeiro” (cf. Ap 19, 7). Eis a que estão obrigados os que se unem em Matrimônio! A amizade é nobre. O amor natural entre o homem e a mulher é sublime. O Matrimônio elevado sobrenaturalmente a Sacramento chega aos limites do Céu, aos umbrais da Jerusalém Celeste: é divino.

Dentro em breve vou pegar um avião. Amanhã, se o bom Deus assim permitir, estarei presente à cerimônia religiosa onde um amigo e uma amiga irão selar a sua união diante do Todo-Poderoso, e isto é belíssimo porque semelhante entrega ultrapassa os limites humanos e só é possível porque o amor de Deus é maior do que as misérias humanas. Sim, o amor de Deus é maior do que as nossas fraquezas, e isto se torna visível cada vez que um Matrimônio é celebrado; cada vez que, a despeito de nossas muitas faltas, Deus insiste em fazer do barro que somos um vaso de precioso conteúdo. Amanhã este milagre acontecerá mais uma vez. Amanhã Marcio e Cristina darão continuidade a esta tradição que remonta às Bodas de Caná e, ainda mais além, remonta aos próprios Primeiros Pais, ao Primeiro Homem e à Primeira Mulher que Deus criou para que fossem um do outro e, precisamente sendo um do outro, refletissem no mundo um pouco do amor que Deus tem por Seus filhos. Amanhã – isto é certo! – eu terei um vislumbre de Cristo Se unindo à Sua Igreja. E o que desejo sinceramente aos amigos que embarcam em tão grandiosa empreitada é que sejam fiéis e felizes: que esta família possa ser no mundo um reflexo tão límpido e fulgurante d’Aquela Família Sagrada de Nazaré, d’Aquela União Mística entre Cristo e Sua Igreja, que arraste mais e mais almas a Deus; e que assim eles possam um dia consumar plenamente a união que amanhã irão simbolizar.

Parabéns aos noivos! Que sejam santos. Que por meio deles o amor de Deus se difunda sobre o mundo – e se encontre nesta terra. Que o Sacramento do Matrimônio os leve a Deus.