As questões dos cardeais sobre a Amoris Laetitia

Foi hoje tornada pública uma carta ao Papa Francisco onde um grupo de cardeais interpela Sua Santidade a respeito de algumas interpretações contraditórias que estão circulando no orbe católico sobre o Cap. VIII da Amoris Laetitia. Trata-se de uma atitude duplamente excelente, no conteúdo e na forma. No conteúdo, porque o seu objetivo é pôr freios à loucura generalizada que se apossou de muitos ambientes católicos; na forma porque tudo se fez de maneira exemplar, com toda a deferência exigida ao Soberano Pontífice.

Um simples olhar sobre o caso mostra a diferença gritante, estratosférica, entre ele e a histeria virtual generalizada que, aqui no blog, tanto me censuram por combater.

Em primeiro lugar a carta é, toda, de uma elegância exemplar. No lugar dos xingamentos, os preitos de submissão; no lugar das acusações vagas, as questões formuladas com todo o rigor acadêmico. Em nenhum momento o Papa é diminuído em qualquer das suas prerrogativas, em nenhum parágrafo as suas intenções ocultas são perscrutadas e censuradas. Não se encontra na carta — nem mesmo! — uma afirmação taxativa de que tal ou qual passagem da exortação apostólica esteja em desacordo com a doutrina da Igreja; simplesmente se pergunta se as disposições antigas ainda estão válidas e, se sim, de que modo.

Depois: a carta foi redigida por quatro cardeais da Santa Igreja, não pelo Zé das Couves da esquina. Foi entregue ao Santo Padre e não divulgada no Facebook. É total a diferença entre os Príncipes da Igreja, membros da cúria pontifícia, e o leigo brasileiro que mal ajuda a sua paróquia territorial. É absoluta a dessemelhança entre o documento formal, cerimoniosamente entregue ao próprio Soberano Pontífice, e o panfleto passional espalhado aos quatro ventos internet afora e cuja leitura só provoca a indisposição dos espíritos para com o Cristo-na-terra.

Finalmente, o modo de proceder dos cardeais foi aquele estabelecido por Nosso Senhor nos Evangelhos: primeiro o Papa foi procurado privadamente, e somente depois — quando tomaram consciência de que a resposta pontifícia não viria — os autores da carta decidiram ampliar a discussão, tornando-a pública. Não está, portanto, em questão aqui a pessoa do Romano Pontífice, o juízo moral sobre as suas atitudes, nada disso: o que se objetiva é, tão-somente, o esclarecimento dos fiéis católicos a respeito de algumas questões morais surgidas a partir da leitura de um capítulo da última exortação apostólica publicada pelo Papa Francisco.

As dubia enviadas ao Santo Padre são as seguintes:

  1. Se é agora possível (AL 305 c/c nota 351) conferir a absolvição sacramental, e consequentemente a Comunhão Eucarística, a uma pessoa que, conquanto possua um anterior vínculo matrimonial válido, viva more uxorio com alguém que não é o(a) legítimo(a) esposo(a).

  2. Se, após o n. 304 da Amoris Laetitia, ainda existem normas morais absolutas que proíbem incondicionalmente atos intrinsecamente maus e que são obrigatórias a todos, sem exceções.

  3. Se após o n. 301 da Amoris Laetitia ainda é possível afirmar que uma pessoa que habitualmente viva em contradição com um mandamento da Lei de Deus (e.g. o que proíbe o adultério) encontra-se em uma situação objetiva de pecado grave habitual.

  4. Se, à luz das “circunstâncias que mitigam a responsabilidade moral” (AL 302), permanecem válidos os ensinamentos de S. João Paulo II de acordo com os quais as circunstâncias, ou as intenções, não podem jamais transformar um ato intrinsecamente mau em algo subjetivamente bom ou defensável como uma escolha.

  5. Se, após o n. 303 da Amoris Laetitia, permanece válido o ensinamento segundo o qual a consciência nunca pode legitimar exceções a normas morais absolutas que proíbem atos intrinsecamente maus em virtude do seu objeto.

O debate franco, aberto e desapaixonado a respeito dessas questões é da mais alta importância, e em muito boa hora os eminentíssimos cardeais as trazem a lume. Que a clareza das perguntas possa dar uma exata dimensão daquilo que atualmente se está discutindo; que elas propiciem respostas cada vez mais claras, a fim de fazer cessar a confusão instaurada no seio da Igreja Santa de Deus.

P.S.: Após escrever este texto descobri já haver uma tradução para o português no Sandro Magister do apelo feito pelos cardeais — leiam lá. As perguntas que transcrevi acima foram feitas em tradução livre por mim mesmo a partir do texto do Rorate Caeli.

Sobre a ocupação da Faculdade de Direito do Recife

Alguns amigos me perguntam se não me solidarizo com os estudantes — muitos dos quais colegas meus, com os quais estudo ou já estudei, que eu vejo praticamente todos os dias — que invadiram ontem à noite o prédio da Faculdade de Direito do Recife. Dizem-me que eles fazem isso porque estão convencidos de estar agindo de maneira correta; só chegaram a este extremo porque não vêem outra alternativa. Em assim sendo o momento é de “dialogar” e não de acirrar animosidades.

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Bom, a questão absolutamente não é essa. Claro que eles, internamente, estão convencidos de estarem fazendo a coisa certa. Isso é óbvio, todo mundo só faz aquilo que acredita ser correto. Gostaria muitíssimo, aliás, de ver essa capacidade de empatia dos meus interlocutores aplicada a tudo — porque, para ficar só em um exemplo, os portugueses que aqui chegaram há quinhentos anos certamente acreditavam estar fazendo a coisa certa ao catequizar os índios, e eu não estou acostumado a ver muita condescendência histórica com a colonização ibérica. Exigir para si mesmo aquilo que costumeiramente se nega aos outros, portanto, não é lá uma disposição dialógica sincera; ao contrário, tem forte sabor de hipocrisia.

O ponto não é que os estudantes acreditem estar fazendo o certo. O que interessa aqui é saber qual o juízo público que deve ser feito de suas atitudes. Quais as consequências exteriores e objetivas de suas ações, se eles devem ser por elas responsabilizados e de que maneira. Esta é a discussão que interessa. Estou plenamente convencido de que aqueles jovens acreditam estar fazendo a coisa certa quando invadem uma propriedade pública na calada de noite e impedem que os cidadãos — muitos dos quais alunos hipossuficientes, beneficiários de assistência estudantil — tenham acesso à prestação de serviços a que aquele prédio público se destina. Não tenho a menor dúvida disso, como — mutatis mutandis — não tenho a menor dúvida de que um homem-bomba muçulmano acredite estar fazendo a coisa certa quando um explode um metrô no ocidente. Não cabe cogitar das intenções do homem-bomba. O que interessa é dizer que não é socialmente aceitável que uma pessoa exploda as outras, por melhores que sejam as suas intenções.

Vão me dizer que ocupar um prédio público é bastante diferente de explodir um metrô. Claro que é diferente, mas o princípio é rigorosamente o mesmo: é justificar a violação de uma norma social por conta das alegadas boas intenções que movem o violador da norma. Explodir um metrô e ocupar violentamente um prédio público obviamente não são censuráveis na mesma medida; mas são, ambas as atitudes, censuráveis em medidas distintas e é isso que se quer dizer aqui. Porque, afinal de contas, nós devemos olhar para a reprovabilidade da conduta ou para as intenções do agente? Se for para estas, então precisamos ser mais condescendentes com o terrorismo (e com a colonização portuguesa, o nazi-fascismo etc.); se, ao contrário, devermos olhar para os resultados objetivos das ações individuais, e se a repressão à atitude particular não guardar relação direta com a bondade ou maldade da intenção de quem a pratica, então talvez precisemos olhar para as ocupações das universidades públicas de uma maneira um pouco menos superficial. Talvez exigir a imediata retirada dos estudantes não se confunda com “condenar” as suas tomadas de posições políticas.

Este assunto interessa particularmente a este blog porque é, em última instância, uma reedição do fenômeno “quem sou eu para julgar?”. Porque do jeito que a sensibilidade contemporânea está estruturada fica parecendo que só é possível reprovar uma atitude pública se a pessoa que a prática for particularmente culpável de alguma espécie de maldade intrínseca; ou, a contrario sensu, que se uma pessoa puder estar subjetivamente justificada em alguma sua motivação interior então não é possível fazer nada contra as suas atitudes externas. Bom, uma e outra coisa estão erradas. Nem a condenação externa de um ato implica a reprovação pessoal do agente, nem a possibilidade de o agente estar de boa-fé o autoriza a cometer publicamente o ato sem que ninguém possa fazer nada a respeito. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Esta compreensão é completamente básica na doutrina católica: há certas atitudes que são inadmissíveis ainda que se possa imaginar que alguém as cometa em candura de consciência. A Igreja é intolerante nos princípios porque crê, mas é condescendente com as pessoas porque ama. Os atos de homossexualismo são intrinsecamente desordenados e não podem em hipótese alguma ser aprovados, ainda que se deva evitar para com as pessoas homossexuais todo sinal de discriminação injusta. Uma pessoa pode viver em uma situação objetiva de pecado sem que contudo seja subjetivamente culpável ou não o seja plenamente. É sempre o mesmo princípio aplicado das mais distintas maneiras; e o desconhecimento dele faz com que as pessoas ou acreditem que o Papa está a revogar a Doutrina da Igreja, ou que esta mesma Doutrina está a impedir Sua Santidade de ser verdadeiro Papa.

Volto à nossa Faculdade de Direito. Muitos dos marginais que estão lá dentro são provavelmente meus amigos; nem eles deixam de ser criminosos pelo fato de eu ser capaz de compreender as suas motivações, e nem o fato de eles serem meus amigos faz com que esteja tudo bem em invadir um prédio público e prejudicar a vida de milhares de pessoas que pouco ou nada compactuam com a visão de mundo deles. Se são pessoas malignas, não, claro que não são — não passam de jovens com uma visão de mundo equivocada que, conquanto possa ser subjetivamente justificável, é socialmente deletéria e se deve, com certeza!, externamente combater. Se deveriam ser retirados à força, é lógico que deveriam! Não se poderia sequer ter deixado que eles passassem a noite lá, e quanto mais o tempo passa mais a situação se torna difícil de resolver. Entender as motivações de terceiros não é condescender com as agressões de outrem, nem tampouco reagir às atitudes socialmente deletérias é negar que os seus fautores tenham ideais sinceros: no fundo é isso o que interessa aqui. No meio de todos os males provocados pelos bárbaros que neste momento estão ocupando ilegitimamente um prédio histórico, que ao menos a tragédia possa ajudar essas distinções básicas a serem melhor compreendidas.

A vitória de Trump: o aborto

Alguns dos meus amigos, verdadeiramente eufóricos com a vitória de Trump, parecem convencidos de que ele será o melhor presidente dos Estados Unidos desde Reagan. Eu, profundo ignorante a respeito da política americana, não tenho condições de compartilhar do mesmo entusiasmo deles; no entanto, sobre a vitória do bilionário republicano há duas ou três coisas que eu julgo poder dizer.

Muitos trataram essas eleições como se elas fossem uma disputa entre o Diabo e Satanás; houve até quem as comparasse com uma eleição disputada, no Brasil, entre Dilma e Crivella. Aquela história de que “a boa notícia de hoje é que Hillary perdeu; a má, que Trump ganhou” foi repetida milhões de vezes desde as primeiras horas da madrugada. Sem compartilhar nem da euforia de alguns nem do alarmismo histérico de outros, penso que eu próprio, se americano fosse, não pensaria duas vezes antes de votar no candidato do Partido Republicano.

https://www.youtube.com/watch?v=llzgxOY92NA

O motivo é muito simples: Trump pode ter todos os defeitos do mundo de que lhe acusam, pode ser grosseiro e xenófobo, pode insuflar nacionalismos, provocar corridas armamentistas, pode ser imprudente, sonegador de impostos, pode haver conflito de interesses entre ser multiempresário e presidente da maior economia do mundo, tudo isso: Hillary defende o aborto até o nono mês da gravidez, e Trump não. Isto por si só é motivo mais do que suficiente para votar contra ela, independente de quaisquer outras questões de governo das quais se possa legitimamente divergir no programa político do GOP. Nenhum assunto que faça parte da disputa política contemporânea é mais premente do que a questão do aborto; nenhuma pessoa que defenda o assassinato de crianças no ventre das suas mães tem suficiente integridade moral para merecer confiança em qualquer outra área de atuação pública.

No último debate presidencial, há menos de um mês, Hillary Clinton defendeu o partial-birth abortion. Para quem não sabe do que se trata, o «aborto por nascimento parcial» é uma “técnica” aplicada no último trimestre da gravidez e que consiste em induzir o parto até o ponto de o feto, ainda vivo, começar a nascer; neste momento, quando está parcialmente fora do corpo materno, o aborteiro lhe faz uma incisão na base do crânio que lhe provoca a morte. Em outras palavras, trata-se de pegar uma criança plenamente formada (com sete, oito ou nove meses de gestação), puxar-lhe pelos pés para fora do útero (mantendo apenas a cabeça ainda no interior do corpo da mãe), enfiar uma tesoura na sua nuca até o interior da caixa craniana (matando-a portanto) para, pelo buraco assim formado, introduzir um aspirador, sugar-lhe o cérebro e depois retirar o corpo com a cabeça murcha. Macabro assim.

O Pontifício Conselho para a Família assim se manifestou em 2003 a respeito do tema:

A expressão partial-birth abortion, aborto com nascimento parcial, designa uma técnica de aborto utilizada nos últimos meses de gravidez, durante a qual é praticado um parto intravaginal parcial do feto vivo, seguido de uma aspiração do conteúdo cerebral antes de completar o parto.

[…]

Segundo os seus promotores, trata-se de um gesto rápido, podendo ser praticado sem hospitalização, com anestesia local. A intervenção é precedida de uma preparação de três dias, com dilatação mecânica do cólon uterino. A operação desenvolve-se em cinco fases: num primeiro tempo, quem opera, guiado por ultra-sons, depois da eventual inversão, se necessário for, da posição do feto no útero, prende os seus pés com uma pinça. Em seguida, com uma tracção tira o feto para fora do útero e provoca o parto, extraindo todo o corpo da criança, excepto a cabeça. Quem pratica o aborto executa então um corte na base do crânio do nascituro, através do qual faz passar a ponta de umas tesouras para furar a caixa craniana. Depois, introduz no orifício assim predisposto a extremidade de um tubo fino evacuativo, através do qual é aspirado o cérebro e o conteúdo da caixa craniana do menino. A este ponto, para concluir o aborto, só falta extrair a cabeça reduzida de volume.

É evidente que isso se trata de uma coisa profundamente demoníaca, asquerosa, diante da qual nenhum homem de bem pode nem mesmo ficar indiferente — muito menos defendê-la! Tal monstruosidade é ainda praticada nos Estados Unidos; ainda que não o fosse mais, contudo, Hillary Clinton votou a favor dela quando era senadora e, no mês passado, defendeu esta sua posição ao vivo durante um debate presidencial. Uma pessoa dessas deve, sim, ser combatida de todas as formas possíveis, inclusive por meio do voto presidencial, independente de quem esteja contra ela concorrendo (a menos, é lógico, que o outro candidato defendesse alguma outra imoralidade equiparável — o que absolutamente não era o caso). A magnitude deste volutabro é tão grande que obscurece quaisquer outras questões sobre assuntos normais como política econômica, defesa interna ou restrições imigratórias.

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Hillary Clinton foi derrotada nos Estados Unidos, e isso é uma coisa a agradecer a Deus. Foi derrotado o aborto, o assassinato de crianças no ventre das mães, o promíscuo financiamento federal à Planned Parenthood; estando em jogo coisas assim importantes e explícitas não cabe nem discutir o eventual simbolismo machista, homofóbico, xenófobo ou whatever que o voto em Donald Trump alegadamente represente. Não tem nem cabimento entrar nesse mérito. Obviamente Trump não é o cavaleiro de armadura reluzente que a Cristandade espera; isso no entanto perde completamente a relevância quando se está diante de alguém que defende late-term abortions.

Penso que muitos dos eleitores americanos não queriam votar no magnata nova-iorquino; mas quero pensar que muitos quiseram votar contra a despudorada defesa do assassinato de crianças que a sra. Clinton trouxe para o centro de sua campanha presidencial. A voz das urnas, assim, não foi uma vitória do liberalismo sobre o globalismo ou do conservadorismo sobre o progressismo nem nada do tipo, mas da civilização sobre a barbárie e da defesa da vida sobre o assassinato dos inocentes. Neste ponto sim, sem dúvidas, os resultados hoje apresentados ao mundo são alvissareiros e dignos de comemoração.

A intolerância que não se vê

A redação do ENEM no último final de semana versou sobre intolerância religiosa e, diante do tema, eu tenho impressões contraditórias. Por um lado parece claro que a escolha gravita em torno de um enorme lugar-comum: as perseguições sofridas pelas religiões de matiz africana, e fazer tal opção argumentativa favorece — quase exige — a crítica à dita intolerância evangélica. Seguir por esse caminho é fazer a coisa mais fácil (e mais contraditória) do mundo: jogar pedra no Cristianismo para defender a tolerância.

Por outro lado, no entanto, o tema torna possível falar — e com bastante propriedade — sobre a intolerância que vitima os religiosos no debate público brasileiro, intolerância esta que (até por uma questão demográfica) tem claramente os cristãos por alvo principal. O problema aqui é um só: esta linha argumentativa destoa bastante do senso comum e, por ser assim tão destoante, eu tenho sérias dúvidas sobre a capacidade de a compreenderem os responsáveis pelas correções destas provas…

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Iniciemos a nossa argumentação com a seguinte assertiva: nem toda intolerância se manifesta em atos de agressão física. Poderíamos, sem dúvidas, citar os diversos casos de vandalismo contra igrejas que cotidianamente aparecem em nossos noticiários (p. ex. em João Pessoa, em Belo Horizonte, no Ceará e em Passo Fundo — só na primeira página do Google, todos os casos deste ano); mas isto é somente o ponto mais superficial, epidérmico do problema. A intolerância física é mais brutal, mais primitiva e, por isso mesmo, mais facilmente visível e condenável de forma mais incontroversa. A pior intolerância, aqui, é a que se reveste de ares de intelectualidade, é a que se apresenta como pensamento evoluído e padrão de comportamento socialmente exigível. A pior intolerância é a que enxerga com desconfiança e desprezo a manifestação de opiniões públicas feita por religiosos pelo fato de eles serem religiosos.

Esta “intolerância cívica” fecha aos religiosos o acesso aos espaços públicos de decisão. Transforma os que têm Fé em uma espécie de cidadãos de segunda categoria, cujas opiniões não podem ser levadas em consideração no debate público — e isso é o mais absurdo, é o mais injusto, é o mais intolerante que se pode conceber. Você é contra o aborto? O Estado é Laico, nem todo mundo é católico e as suas crenças não podem ser impostas para toda a população. É contra o “casamento” gay — ou a ideologia de gênero? Você é um fanático religioso, o Estado é Laico e as suas convicções não podem ser usadas para definir regras de conduta aplicáveis a todos os cidadãos. É a favor da isenção tributária das igrejas? O Estado é Laico e o conjunto total da população não pode sustentar a prática da crença de uma parcela dos cidadãos. É favorável à presença de símbolos religiosos em repartições públicas? Você é um intolerante, o Estado é Laico e o espaço público não se pode revestir de símbolo de religião alguma.

A cantilena, monótona, estende-se para alcançar quaisquer aspectos da vida cívica onde haja o mais mínimo desacordo entre a vontade dos anticlericais (que detêm o discurso vencedor da opinião pública) e os valores do Cristianismo. O fato de estes valores perfazerem — ainda — a sensibilidade moral da maioria da população brasileira é um detalhe que só torna as coisas mais trágicas: a rigor, ainda que fossem valores minoritários, eles não poderiam ser liminarmente excluídos do debate público sob a pecha do “ah, isso é crença religiosa”. Primeiro porque eles no geral não são mera “crença religiosa” — a Imaculada Conceição da Santíssima Virgem ou as Processões Divinas são crenças religiosas! Já a definição dos comportamentos que devem ser socialmente aceitos ou juridicamente coibidos são juízos prudenciais sobre temas cívicos, com ampla fundamentação na razão natural que está ao alcance de todos os homens independente do credo sob o qual militem. Segundo porque o eventual fundamento dos valores morais não pode ser usado para desqualificar a priori as posições alheias — o nome disso é preconceito e intolerância. O que deve fazer uma determinada posição política ser socialmente aceitável ou inaceitável é a sua adequabilidade para o fim a que ela se propõe — a razoável ordenação da vida em comum –, e não a sua origem metafísica. Todas essas coisas são por demais evidentes; mas a intolerância religiosa que grassa nos nossos meios intelectualizados lança um véu de ignorância mesmo sobre essas platitudes — e ninguém se preocupa com isso, e todos continuam torcendo o nariz para a “bancada da Bíblia” ou a “ideologia tefepista” sem que quase nunca precisem se dar ao incômodo trabalho de entrar no mérito das posições que elas defendem.

A intolerância que deixa rastros de dor e de sangue é no geral fácil de ser combatida, porque no geral não aparece ninguém para a defender. Ninguém defende que judeus sejam enviados para campos de concentração ou muçulmanos para Guantánamo; ninguém defende que igrejas sejam pichadas ou mães de santo sejam expulsas de suas casas por traficantes evangélicos (por inacreditável que seja essa notícia). No entanto, a maior parte das pessoas medianamente esclarecidas defende que os evangélicos não possam defender os seus valores no espaço público ou que as leis civis não atendam aos anseios dos católicos — e isso é preocupante, uma vez que tanto evangélicos quanto católicos são cidadãos iguais a quaisquer outros, cujos direitos políticos não podem ser cerceados em função de sua opção religiosa. Esta intolerância invisível pode ser menos chocante, mas não é menos injusta nem menos daninha — e decerto não é menos digna de ser combatida. O preconceito contra o Cristianismo, festejado nos meios de comunicação em massa e virtualmente onipresente entre os formadores de opinião, é talvez o último preconceito que se aceita na moderna sociedade dita esclarecida. Não deixa contudo de ser uma forma insidiosa e inaceitável de intolerância religiosa, que todos os homens de boa vontade devem se esforçar por abolir.

Um dia seremos nós

Ontem foi o dia de Finados, a «comemoração dos fiéis defuntos» que a Igreja celebra anualmente. É um dia que fala muito mesmo ao homem contemporâneo, alheio que ele costuma ser a questões religiosas: afinal a morte, cedo ou tarde, nos atinge a todos indistintamente. Mesmo um católico não-praticante pode ter alguma dificuldade para entender, por exemplo, o que é a festividade de Corpus Christi; já o valor da recordação dos mortos, por sua vez, isso até um militante ateísta consegue perceber.

Nós não temos uma relação lá muito saudável com a morte: raramente pensamos nela, somos displicentes na preparação para a sua chegada e, no geral, vivemos os nossos dias como se ela nada tivesse a ver conosco. Aquelas palavras de Santo Agostinho têm uma aplicação que perpassa os séculos e dizem respeito a todos os homens desde que o mundo é mundo: enterramos os nossos parentes e amigos, vemos funerais todos os dias e, não obstante, continuamos a nos prometer longos anos de vida. Faz bem a Igreja em dedicar um dia aos finados; cuidando dos mortos, pensando neles, de certo modo é de nossa própria morte que cuidamos.

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A Liturgia dos defuntos sempre me impressionou. O negro dos paramentos, o tom grave da celebração, a essa fúnebre na nave central, o Dies Irae… tudo converge o pensamento para o Juízo, parece que as próprias paredes do templo exalam compunção. Alguém talvez critique o caráter mórbido da solenidade — “parece até que vamos morrer”. Bom, não parece, a verdade é que nós vamos morrer mesmo e quanto antes aceitarmos isso melhor. A vida é um piscar de olhos — é uma noite mal dormida em má pousada, como diz Sta. Teresa. Deixar de viver por conta da morte, aí sim é doentio, aí sim é morbidez; mas tal não tem nada a ver com ter consciência da própria morte e se comportar de acordo com isso.

Gosto da Liturgia dos defuntos; de uma certa maneira, enquanto nós rezamos por eles é como se estivéssemos rezando também por nós. Primeiro porque toda a Liturgia faz pensar na morte, como eu disse. E pensar nos novíssimos — não canso de o dizer aqui — é um exercício salutar e necessário à vida cristã: levaríamos uma vida mais perfeita se pensássemos na morte com mais frequência.

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Segundo porque naquela liturgia nós por diversas vezes nos pegamos rezando em primeira pessoa: por exemplo, ao longo da sequência é como se estivéssemos nós próprios perante o Juízo Final. Sou eu que, miserável, não sei o que dizer (quid sum miser tunc dicturus?); é o meu rosto que enrubesce de vergonha pelos meus pecados (culpa rubet vultus meus); são as minhas orações que não são dignas de chegar a Deus (preces meæ non sunt dignæ); é o meu fim que confio aos cuidados do Juiz (gere curam mei finis). E é bom recitar essas preces em nosso próprio nome enquanto tal nos é permitido: talvez a nossa voz ecoe até os umbrais da Vida Eterna e, um dia, diante do Justo Juiz, cheguem até ele as súplicas que Lhe fizemos enquanto ainda podíamos suplicar.

Terceiro porque livrando almas do Purgatório nós conquistamos amigos no Céu. Pode-se lucrar uma indulgência plenária no Dia de Finados; diferente das outras, no entanto, essa indulgência, que se pode ganhar visitando uma igreja no dia 2 de novembro (ou visitando um cemitério entre o dia 1º e o dia 8 de novembro), é aplicável aos defuntos e não ao fiel que pratica a obra indulgenciada. Não é só um exercício particularmente desinteressado de caridade — conquistar uma coisa que vai servir totalmente para outrem e não para si; é a maior graça que um fiel falecido pode receber. Se um fiel vivo consegue em um determinado momento a remissão total das penas temporais devidas pelos pecados que ele já cometeu, nada impede que ele volte a delinquir e, até o fim da vida, acumule outras tantas penas sobre as que foram apagadas. Uma alma no Purgatório, no entanto, não peca mais, e recebendo uma indulgência plenária ela entra direto no Céu. Quer dizer, são as indulgências mais eficazes do mundo: aqui o tesouro de méritos da Igreja encontra a sua máxima realização. De um modo maravilhoso aqui se cumpre a prece do Dies Irae: «tantus labor non sit cassus». Estas indulgências — entre todas — não ficam em vão. Maravilhas da misericórdia de Deus.

É bela a Liturgia dos defuntos, com os seus cantos graves e seus paramentos negros. Não porque a morte seja uma coisa bela, mas por conta da esperança da Vida Eterna que perpassa toda a Fé Cristã e, no dia de ontem, resplandece com um fulgor todo especial: no 2 de novembro aplacam-se um pouco as chamas do Purgatório e, graças à atividade da Igreja Militante, muitas almas benditas deixam a Igreja Padecente e ingressam jubilosas nas fileiras da Igreja Triunfante. Nessa Missa nós não temos direito sequer à bênção final, dedicada que é aos mortos a celebração inteira; mas na absolvição do catafalco com a qual se encerra a cerimônia a nossa esperança é reavivada e o nosso papel neste mundo adquire um renovado sentido. Do féretro simbólico aspergido pelo sacerdote sobem almas para o Céu. Elas vão lá nos preceder, preparar-nos um lugar. Um dia seremos nós. E apraza a Deus que haja então ainda dias de Finados para nos valer.

Hoje a Igreja celebra os protestantes que estão no Céu

Santo é uma palavra equívoca dentro da doutrina católica. Pode significar aquela pessoa que, por ter levado uma vida terrena de extraordinária conformação a Cristo, merece ser apresentada aos fiéis católicos como um modelo a ser seguido — é o seu sentido aliás mais comum e corriqueiro; mas pode significar, também e igualmente, aquela pessoa que simplesmente (como se “simplesmente” fosse um modo aplicável aos novíssimos, mas enfim) ao final da vida se salvou e, tendo já purificado os seus pecados, encontra-se na Glória diante de Deus. São os santos no seu sentido mais lato, i.e., todas aquelas pessoas que alcançaram a santidade — que, em última instância, outra coisa não é que a salvação. É por isso, aliás, que as proposições “fora da Igreja não há salvação” e “fora da Igreja não há santidade” são equivalentes, e por vezes nós as encontramos na sua forma mais sintética quando se quer enfatizar este papel insubstituível da Igreja Católica: Ela é a Igreja de Cristo, fora da qual não há salvação nem santidade.

Santo, assim, significa duas coisas distintas. Há, como gosta de dizer um velho professor amigo meu, o santo do Céu e o santo de altar. Todos aqueles que estão no Céu junto a Deus são, no rigor do termo e com todo o direito, santos; mas nem todas as pessoas que alcançaram a graça da perseverança final levaram necessariamente uma vida externa digna de ser reverenciada e imitada. O mais empedernido pecador que tenha se arrependido na hora de morte, e de cujo arrependimento a notícia não chegou a ser humano algum, pode purgar os seus pecados no Purgatório e, depois, alcançar a Bem-Aventurança junto a Deus — e será santo por estar no Céu. Mas não poderá jamais, por razões óbvias, ser santo de altar, ser apresentado como modelo de vida à imitação dos fiéis, simplesmente porque a única parte da sua vida propriamente digna de imitação — o arrependimento final — é desconhecido de todos os homens.

Não obstante, santo é santo. Todas as almas bem-aventuradas que estão diante de Deus gozam, por assim dizer, dos mesmos privilégios, independente dos caminhos pelos quais tenham passado até chegar à presença do Altíssimo. São, assim, todos eles, membros da Igreja Triunfante — e por conseguinte da única Igreja de Cristo — e podem interceder pela salvação dos homens que ainda vivem aqui na terra, na Igreja Militante ou fora d’Ela.

Hoje a Igreja celebra a Solenidade de Todos os Santos e esta festa é particularmente dedicada a estes “santos ocultos” — a estas almas benditas que, não possuindo a glória dos altares, são todavia membros da Igreja Triunfante e com Ela intercedem junto a Deus pela salvação do mundo inteiro. E hoje o Santo Padre, o Papa Francisco, termina a sua viagem apostólica à Suécia — uma viagem de polêmico cariz ecumênico — justamente com a celebração da Santa Missa de Todos os Santos. A data não podia ser melhor escolhida. Trata-se de um dia extremamente propício para a realização de atos ecumênicos pela seguinte singela razão: hoje é o único dia do ano litúrgico em que a Igreja celebra os não-católicos que estão no Céu!

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Afinal de contas, quem são os que se salvam? São aqueles que, conservando ao longo da vida as vestes puras que receberam no Santo Batismo, mediante uma vida de graça e de amizade com Deus adquirem d’Ele o imerecido dom da perseverança final. Esta é a regra. Mas há uma importante exceção: também se salvam aqueles que, cumprindo retamente os ditames da Lei Natural, «sofrem de ignorância da verdadeira religião, se aquela é invencível» (Pio IX, Singulari Quadam). E os que se salvam fora dos limites visíveis da Igreja Católica por esta ignorância somente de Deus conhecida são santos também, com todas as prerrogativas das almas bem-aventuradas cuja festa nós hoje celebramos. O Dia de Todos os Santos é também o dia destes santos.

Não dá para saber exatamente quem são as almas que apenas na hora da morte descobriram que deviam ter sido católicas a vida inteira, nem quantas elas são. No entanto é certo que elas existem; e se elas existem, e se no momento da morte descobriram que a religião que seguiram a vida inteira mais as afastou que as aproximou de Cristo, e se sabem agora que deveriam ter desde sempre, desde a mais tenra infância, militado nas fileiras da Igreja Católica e Apostólica sob o estandarte do Papa e da Virgem Santíssima… não é então razoável imaginar que elas, no Céu, junto de Deus, intercedam particularmente pela conversão dos que vivem nas trevas do erro religioso? Do mesmo erro que quase lhes valeu a danação eterna?

Imagine-se um protestante que tenha ido ao Céu — quer por ter se convertido verdadeiramente no último suspiro, quer porque viveu a sua vida inteira na mais cândida ignorância da verdadeira religião. Esse protestante há de ter se arrependido amargamente de toda a insubmissão na qual consumiu a vida inteira; há de ter pensado em como a sua vida teria sido mais fácil se ele acorresse com frequência aos sacramentos, se se valesse diariamente da invocação do nome da Santíssima Virgem Mãe de Deus. Há de aquilatar como não teria sido mais santo, e com muito mais facilidade, se tivesse à sua disposição os meios que Cristo instituiu para a santificação das almas. Ora, este protestante não há de se compadecer particularmente do risco terrível que correm os seus correligionários? Não há de consumir o seu Céu especialmente a serviço deles — para que não corram os mesmos riscos que correu e para que alcancem o quanto antes, ainda em vida!, a graça que ele só abraçou no instante derradeiro?

Façamos um pequeno exercício especulativo. Imaginemos que Lutero, na hora derradeira, após gravar nas paredes do seu quarto o agônico e blasfemo pestis eram vivens, moriens ero mors tua, papa, tenha se arrependido. Imaginemos que, por uma graça insólita da Virgem Mãe de Deus (pela qual, ao que parece, o Heresiarca conservou sempre um resquício de devoção), ao último suspiro o monge louco caiu em si e se arrependeu. Tal portento, que a História não registrou, se de fato ocorreu há de ficar oculto dos homens até a Segunda Vinda de Cristo. Mas semelhante graça, se existiu, aproveitou à pobre alma atormentada do monge alemão. Se tal tiver acontecido, o monge rebelde estará no Céu e não poderá ser jamais santo canonizado — porque a sua vida inteira foi um completo anti-exemplo de Cristianismo. Mas, se tal tiver acontecido, o único dia em que ele poderá ser de algum modo celebrado é o dia de hoje, Primeiro de Novembro, o day-after da Reforma. Seria uma deliciosa ironia.

Lutero certamente pode não ter se salvado. Mas algum protestante que tenha vivido nestes últimos quinhentos anos provavelmente se salvou; e este protestante que gastou a sua vida na heresia e que consumiu seus anos distante de Deus tem hoje a chance de suplicar uma melhor sorte para os seus companheiros de infortúnio. Hoje a Igreja celebra todos os protestantes que a despeito do protestantismo tenham alcançado a salvação; é, portanto, um dia adequado, adequadíssimo, para suplicar a unidade de todos os cristãos sob o báculo do Vigário de Cristo. Ao Papa Francisco juntam-se hoje os santos do Céu; e entre os santos do Céu há alguns que em vida foram protestantes até o suspiro derradeiro.

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Hoje, na Suécia, o Papa Francisco rezou junto com os hereges, e a cena tinha certos contornos escatológicos. Porque hoje — especialmente hoje! –, no Céu, rezam juntos os católicos e os [que em vida foram, ao menos materialmente,] protestantes. Para que esta cena terrestre se reproduza um dia no Céu, no entanto, é preciso que todos, católicos e protestantes, estejam dentro da única Igreja de Cristo — fora da qual não há salvação e nem santidade. Isto já o perceberam todos os protestantes que estão no Céu. E todos estes hoje, diante de Deus, rezam para que também o percebam, e o quanto antes!, os protestantes que ainda estão na terra — as ovelhas tresmalhadas, moribundas e exânimes, ao encontro das quais nestes últimos dias o Papa Francisco moveu toda a Igreja.

O Bom Pastor vai ao encontro da ovelha desgarrada

O site do Vaticano ostenta hoje, logo na sua página inicial, a viagem apostólica do Papa Francisco à Suécia — seguida pelo constrangedor subtítulo de «por ocasião da comemoração comum luterano-católica da reforma». Como o assunto dá margem para muitíssima confusão — com pessoas exultando por um lado porque a Igreja está “aceitando” o protestantismo e, pelo outro, rasgando as vestes porque o Papa é a Besta do Apocalipse –, convém pontuar alguns detalhes aos quais não se costuma dar a devida atenção.

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Duas semanas atrás eu escrevi aqui sobre a peregrinação a Roma que o heresiarca Lutero, em efígie, foi constrangido pelos seus descendentes a fazer. Era Lutero se revirando no túmulo e os protestantes carregando a sua estátua para a apresentar ao Vigário de Cristo. Já então houve quem perguntasse, se fosse assim, como se deveria ler a anunciada viagem do Papa à Suécia que hoje se inicia. Ora, outra leitura não é possível fazer: é o Bom Pastor que, destemidamente, vai mesmo aos mais putrefatos charcos em busca da ovelha desgarrada, a fim de lhe colocar sobre ombros para a trazer de volta ao aprisco de Cristo — no interior do qual somente ela é capaz de encontrar segurança!

É claro que é incômodo ver falar-se de “comemoração” em se tratando de uma revolta luciferina que estraçalhou a Cristandade e precipitou milhões de almas no Inferno pelos últimos quinhentos anos. Dê-se, no entanto, um desconto ao bom-mocismo e à política de boa-vizinhança: é um tributo que mesmo os melhores pagam aos tempos que correm. Etimologicamente comemoração significa “lembrar junto” e pronto; não há que se falar n’alguma conotação laudatória intrínseca ao termo, como se o Papa estivesse louvando a heresia ou enaltecendo o heresiarca. Fui olhar a página da viagem apostólica em seus diversos idiomas; em inglês diz «commemoration», em espanhol, «conmemoración», em italiano «commemorazione». Ora, fala-se sem maiores celeumas em «commemorazioni del centenario» da Primeira Guerra Mundial (do início, em 2014, e não do fim) e em «commemoration of the Holocaust», e ninguém é louco de dizer que, por conta disso, o Holocausto ou a Primeira Guerra sejam coisas positivas. Por mais malsonante que o termo “comemoração” nos seja, portanto, o que interessa é o conteúdo do encontro e não o nome que se lhe dá. O mesmo, aliás, foi dito recentemente por um ex-protestante convertido à Igreja em 2014: a visita do Papa «comemora a reforma, não a celebra».

Os protestantes provavelmente consideram uma coisa boa a origem de sua religião; os católicos certamente não consideramos uma coisa positiva a ruptura eclesiástica. Católicos e protestantes, assim, podem até lembrar juntos o mesmo evento do 31 de outubro, mas o fazem sob óticas distintas: estes o lembram como um feito heroico a ser celebrado, enquanto os primeiros o veem como uma lembrança triste que se deve lutar por não repetir jamais. Toda declaração ecumênica tem um quê de fórmula de compromisso, passível de leituras diferentes por cada um dos lados — é óbvio. Não fosse assim, tratar-se-ia já de plena comunhão e não de caminho ecumênico.

O diálogo ecumênico travado a nível das grandes lideranças religiosas apresenta, assim, essa característica particular: por vezes dá mais ênfase ao consenso político que ao rigor doutrinário. Pode-se até discordar dessa abordagem, mas é equivocado conferir a esses documentos a mesma leitura que se dá aos cânones dos concílios dogmáticos: são dois discursos completamente diferentes a exigir hermenêuticas completamente distintas. Concretamente: diante — por exemplo — da declaração conjunta hoje proferida em Lund pode-se até dizer que silenciar os pontos de discordância entre a Fé e a heresia mais atrapalha que ajuda a causa da plena comunhão, mas não se pode ler na referência aos «dons espirituais e teológicos recebidos através da Reforma», por absurda que seja a frase, uma revogação tardia da Exsurge Domine.

E não se diga que tal é coisa exclusiva do atual pontificado! Bento XVI não foi para Erfurt dizer que o «pensamento de Lutero, a sua espiritualidade inteira era totalmente cristocêntrica»? A única diferença entre as duas atitudes é o estilo do velho pontífice alemão. De resto é a mesma coisa: são os usos contemporâneos, as regras de etiqueta socialmente aceitas nos tempos de hoje. É um equívoco imaginar que elas sejam mais do que fórmulas de tratamento e regras de educação — função fática que só serve para manter aberto o canal de comunicação adequado à sensibilidade contemporânea.

É grande a miséria espiritual dos pobres filhos da Reforma! Não é para os manter na indigência que o Papa Francisco lhes vai ao encontro. O que move o Vigário de Cristo não é a indiferença pela sorte eterna dos que morrem longe da Igreja de Cristo, mas a «esperança da reconciliação» entre os discípulos de Cristo e os sequazes de Lutero. Também pelos hereges morreu Nosso Senhor, também a eles se estende a mensagem salvífica do Evangelho. Não é possível bater o pó das sandálias de uma vez para sempre; a cada homem Cristo dirige o Seu chamado. Para que se converta, evidentemente, que não se trata (talvez não seja nunca demais repetir) de manter os hereges longe da Fé. Mas não se pode simplesmente presumir que todos os transviados do mundo tenham a exata dimensão do quanto estão perdidos.

Se o Papa se apresenta sujo de lama e coberto de espinhos, portanto, talvez não precisemos lançar-lhe em face o desleixo ou censurar-lhe pelas costas a displicência com a qual ele se entrega à causa do Evangelho. Talvez ele esteja fazendo o melhor que pode. Talvez esteja fazendo melhor do que qualquer um de nós faríamos. Talvez ele faça exatamente o que precisa ser feito. Não se passa uma vida inteira pregando em meio aos bárbaros sem lhes adquirir alguns hábitos que pareçam repulsivos a uma sensibilidade mais refinada. Ora, o mundo moderno é completamente insano; deveríamos nos surpreender tanto assim que, à força de ser obrigada a lhe falar dia e noite sobre Cristo, a Igreja historicamente encarnada adquira dele alguns cacoetes?

Talvez a voz cansada do Bispo de Roma não esteja à altura dos coros angélicos que desejaríamos ver anunciando o Evangelho. É possível. Mas Cristo nos mandou seguir o velho pescador e não as falanges angélicas. A submissão ao Romano Pontífice é absolutamente necessária à salvação de toda criatura humana, e a observância dessa regra básica não está condicionada a nenhuma qualidade particular daquele que esteja sentado no Trono de Pedro. Nem muitíssimo menos aos juízes particulares que somos tentados a fazer a respeito das qualidades daquele que porta na fronte a tríplice coroa do poder supremo.

Enfim, o Papa Francisco vai à Suécia. O Bom Pastor vai ao encontro das ovelhas desgarradas em meio aos pântanos pestilentos, do filho pródigo refestelando-se na lavagem dos porcos, dos bastardos de Lutero chafurdando na heresia. Os seus pés podem estar rasgados, suas vestes, enlameadas, sua voz rouca; mas são só os pés dele que conhecem o caminho da Salvação, é nas suas vestes apenas que estão estampadas as insígnias do Rei, é através da voz dele somente que Cristo nos fala e nós O temos que ouvir. 

Isto está além das cortes superiores

O revmo. padre Lodi, do Pró-Vida de Anápolis, foi recentemente condenado pelo Superior Tribunal de Justiça ao pagamento de uma indenização no valor de R$ 60.000,00. Não encontrei ainda o acórdão do REsp 1.467.888 (acho que o STJ ainda não o publicou), pelo qual tenho um particular interesse; no entanto, as notícias que estão sendo veiculadas — “Padre é condenado a pagar danos morais por impedir aborto legal” — possuem logo no título dois graves equívocos: nem o padre impediu nada, nem o aborto era legal!

Quem impediu o aborto foi o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. O padre, ao contrário do que a manchete dá a entender, não entrou no hospital ameaçando os médicos nem manteve a gestante em cárcere privado; ele ingressou com um habeas corpus que foi apreciado pelo Poder Judiciário e ao qual o desembargador Aluísio Ataídes de Sousa deu provimento. Por força de norma constitucional basilar, o Judiciário não pode se furtar a apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito (CF, 5º, XXXV). A atuação do padre — e, acrescentamos, do Tribunal — manteve-se, portanto, estritamente dentro legalidade, não se compreendendo como ele possa ser, por isso, agora punido.

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Depois, o aborto não foi legal. Não era legal à época (em 2005) e nem é legal agora em 2016. O julgamento da ADPF 54 autorizou o aborto eugênico não de qualquer criança deficiente, mas sim das crianças portadoras de uma deficiência específica: a anencefalia. O acórdão é claro: o que se permite é a «interrupção da gravidez de feto anencéfalo», e não de feto “portador de doença incompatível com a vida extra-uterina”. Por se tratar de norma que autoriza a violação de direito fundamental — o direito à vida do nascituro — não é admissível a interpretação analógica. Ora, a criança em favor da qual o pe. Lodi impetrou o HC em 2005 era portadora de síndrome de Body Stalk, não de anencefalia. À luz da Constituição Federal, do Pacto de San José da Costa Rica e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, impossível estender a (aliás já teratológica) interpretação da ADPF em prejuízo da criança por nascer.

Ainda considerando concesso non dato que a excludente criada pelo STF fosse aplicável ao caso, seria evidente não se tratar de aplicação direta da norma (afinal, as deficiências tratadas em um e em outro caso são distintas!) e, portanto, a divergência na interpretação seria, no mínimo, legítima — o que por si só bastaria para descaracterizar o abuso de direito. Se há divergência interpretativa legítima então a boa-fé é de se presumir; presumindo-se a boa-fé, não há que se falar em abuso de direito.

A decisão do STJ, assim, é toda de se lamentar. Mas como Deus não permite um mal de que não possa tirar um bem ainda maior, essa triste história nos proporcionou duas pequenas pérolas — que em certo sentido pertencem ao passado, é verdade, mas cuja lembrança hoje é um refrigério a nos animar.

Primeiro, o desfecho do caso. Tristíssimo — a mãe, que já havia iniciado o abortamento quando chegou a liminar do TJ-GO, voltou para casa e agonizou em dores de parto por mais de uma semana até que o seu organismo envenenado expulsasse prematuramente a sua filha que, deficiente, sobreviveu pouco menos de duas horas –, mas que tem um detalhe importante. É o próprio padre Lodi quem no-lo recorda: «[d]e qualquer forma, ela [a criança] recebeu um nome [Geovana Gomes Leneu] e foi sepultada, destino bem melhor que o de ser jogada fora e misturada ao lixo hospitalar». E dar um nome e uma sepultura a um ser humano precocemente falecido é coisa bastante digna, que resplandece com vigor no meio das trevas dessa história dolorosa.

Segundo, um HC julgado pelo próprio STJ em 2004 (HC 32159/RJ). Na ocasião, a 5ª turma concedeu um habeas corpus em favor de uma criança anencéfala — eram tempos que não haviam sido ainda maculados pela barbárie da ADPF 54! Naquele seu relatório, a ministra Laurita Vaz reproduziu esta passagem preciosa, preciosíssima, da lavra do MPF:

Não é correto, como faz a il. Des. Gizelda Leitão Teixeira, dizer da invocação constitucional “como garantidora do direito à vida, nada mais”.

Ora, o direito à vida é tudo, por isso que nada mais se considera quando ele é questionado, caindo, então, no vazio tal questionamento.

Não são assim, “velhos e surrados argumentos de defesa pura e simples da vida” como estabeleceu a il. Desembargadora.

Qualquer argumento em favor da vida jamais será velho e surrado.

O que é preciso compreender-se – e agora sim surge a incidência do princípio da razoabilidade – é que vida intra-uterina existe.

É que, mesmo nesse estágio, sentimentos de acolhida, carinho, amor, passam por certo, do pai e da mãe, mormente desta para o feto.

Se ele está fisicamente deformado – por mais feio que possa parecer [–] isto jamais impedirá que a acolhida, o carinho, o amor flua à vida, que existe, e enquanto existir possa.

Isso, graças a Deus, está além da ciência.

Já se vão mais de dez anos! Mas estas palavras nos soam ainda atualíssimas e têm muito a nos dizer, a nós, nestes tristes anos em que o mundo é regido pelo utilitarismo mais doentio — que descarta vidas humanas como se fossem produtos defeituosos, sob a mais dolorosa indiferença da opinião pública. Hoje, como em 2004, a vida intra-uterina existe. E hoje, como então, e como sempre, ela deve ser protegida «enquanto existir possa». Isto está além da ciência e — acrescento eu — além das cortes superiores. Esta verdade é que deve ser guardada, defendida e divulgada, ainda que contra todos. Por esta causa valem quaisquer sacrifícios. É isso que nos torna merecedores de viver. É isso o que nos mantém humanos.

A ressurreição da carne e a cremação

Algumas pessoas me perguntam se é verdade que o Vaticano proibiu a cremação. Não, não é verdade. O que aconteceu foi que hoje, 25 de outubro, foi publicada uma instrução da Congregação para a Doutrina da Fé — Ad resurgendum cum Christo — contendo algumas normas a respeito «da conservação das cinzas da cremação».

Primeiramente e antes de qualquer outra coisa, se estão sendo publicadas normas sobre o que se pode e o que não se pode fazer com as cinzas da cremação, é evidente que a cremação em si não pode ser proibida — senão não teria sentido disciplinar o destino das cinzas. A autorização para que os católicos sejam cremados, portanto, é tácita e se infere do próprio título da instrução. Se tal não fosse o bastante, o documento ainda diz textualmente que «a Igreja não vê razões doutrinais para impedir tal práxis [da cremação]; uma vez que a cremação do cadáver não toca o espírito e não impede à omnipotência divina de ressuscitar o corpo» (ARCC, 4).

Em segundo lugar, é preciso deixar também claro que a Igreja tem uma preferência manifesta e vultosa pelo enterramento: a prática de enterrar os mortos é muito mais adequada e muito mais conforme à Fé Cristã por várias razões. Primeiro porque é, historicamente, a prática distintiva do Cristianismo frente aos pagãos da Antiguidade (estes, que cremavam os seus mortos).  Segundo porque propicia a existência dos cemitérios, dos campos santos, esses lugares sagrados de oração e de meditação onde aqueles que morreram esperam o dia terrível da Ressurreição dos Mortos. Terceiro porque ela representa melhor a crença na ressurreição da carne, este ponto da Fé Católica que, paradoxalmente, é tão negligenciado mesmo no século materialista em que vivemos.

Confesso não conhecer as minudências escatológicas das outras religiões (não sei, por exemplo, como os muçulmanos entendem o negócio do paraíso com as virgens), mas o credo cristão é bastante claro e literal: Deus haverá de ressuscitar o mesmo corpo que nós possuímos hoje. Não é um corpo “espiritual” nem “metafórico”, mas um corpo físico mesmo, formado de matéria, que ocupa lugar no espaço, que possui sentidos, enfim, um corpo como os corpos que nós conhecemos. “Ah, mas vai ser exatamente igual, vai sentir dor, vai ter os mesmos dentes faltantes, essas coisas?” Não, aí não. Na Ressurreição da carne o nosso corpo será glorificado e, portanto, vai possuir algumas características que hoje não possuímos — a teologia clássica elenca a impassibilidade, a sutileza, a agilidade e a claridade –, sem que contanto deixe de ser um corpo.

As relações disso com a inumação são bastante óbvias: se o Cristianismo vive da espera da ressurreição da carne, e se essa ressurreição dar-se-á no mesmo corpo que vivia, então a prática de deitar este corpo em repouso em algum lugar — o cemitério — é bastante proporcionada com a crença que os cristãos professamos. Se o corpo vai ressurgir, então existe nele alguma coisa de sagrado — e, portanto, exige-se-lhe um respeito diferente do que se concede a uma coisa (por útil que nos seja!) que nós usamos e depois jogamos fora, porque se estragou e não nos serve mais, e não a voltaremos a usar. Na verdade, nós não “usamos” o nosso corpo como querem os espíritas, nós somos o nosso corpo, por conta da composição hilemórfica — corpo e alma em união substancial — do ser humano.

“Ah, mas os corpos podem ter sido destruídos por ocasião da própria morte, como por exemplo um incêndio ou um naufrágio; além disso, os católicos sempre tiveram a prática de destruir os corpos dos santos, despedaçando-os em mil e uma relíquias”. Sim, tudo isso é verdade, e nada disso constitui verdadeiro empecilho a que Deus ressurja o corpo por ocasião do Juízo Final, e é exatamente por conta dessas coisas que não existe nenhum óbice intrínseco à prática da cremação. Deus é Onipotente para reconstituir os corpos ainda que os seus pedaços se tenham espalhado por toda a Terra: o mesmo corpo, convém lembrar, não significa a mesma matéria (até porque a matéria que o nosso corpo possui hoje não é mais a mesma que possuía quando éramos crianças, e não obstante continua sendo o nosso corpo). Santo Tomás já falava isso no século XIII: «as cinzas de um corpo humano devem, na ressurreição, voltar a constituir a mesma parte do corpo que nelas se dissolveu»? E concluía pela negativa: «nas cousas artificiais não é necessário, para reparar uma obra com a mesma matéria, que as partes dessa matéria sejam colocadas no mesmo lugar. Logo, nem é necessário que tal se dê com o homem».

O que diz, em suma, a Ad resurgendum cum Christo? Apenas disciplina aquilo que já estava dito no Catecismo. Este dizia: «[a] Igreja permite a cremação a não ser que esta ponha em causa a fé na ressurreição dos corpos» (CCE, 2301). Aquela enumera alguns atos concretos que põem «em causa a fé na ressurreição dos corpos» e que, portanto, são proibidos. As normas são as seguintes: as cinzas devem ser conservadas em um lugar sagrado, como um cemitério ou igreja (n. 5); apenas muito excepcionalmente, e com autorização da autoridade eclesiástica, podem ser conservadas em casas particulares (n. 6); não se podem dispersar as cinzas «no ar, na terra ou na água ou, ainda, em qualquer outro lugar», nem transformá-las em jóias ou outros objetos (n. 7). Com isso se condenam as práticas atualmente vigentes que vão de encontro àquela Fé na ressurreição da carne que é apanágio do Cristianismo.

O mundo precisa do testemunho da ressurreição. A Igreja, consciente do valor dos símbolos e zelosa pela fé dos fiéis, estabelece normas específicas sobre o cuidado que se deve ter com os mortos no mundo materialista e imanentista em que nós vivemos. As atitudes que nos cercam e as práticas sociais com as quais nos acostumamos podem não raro nos levar ao obscurecimento da Fé; para evitar este risco, em boa hora vem a lume esta instrução da Congregatio Pro Doctrina Fidei. Façamo-la conhecida, a fim de dissipar os equívocos tão comuns neste tema.

Crowdfunding: Família Católica, Igreja Doméstica

É provavelmente desnecessário apresentar o dr. Rafael Vitola Brodbeck, delegado de polícia e pai de quatro filhos, que desde os áureos tempos do Veritatis Splendor é referência nacional na área da apologética católica. Desnecessário, também, parece ser falar da dra. Aline Rocha Taddei Brodbeck, professora e advogada, autora do Femina e esposa do Rafael. Estes nomes por si sós já são credenciais e dispensam maiores apresentações.

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O que é importante falar aqui é sobre o novo livro, escrito em co-autoria por ambos, intitulado Família Católica, Igreja Doméstica. É uma seqüência de ineditismos. Trata-se do primeiro livro escrito por ambos, marido e esposa juntos. É a primeira vez que a editora Simonsen vai lançar na arena editorial tupiniquim uma obra que ostente o temível brasão Brodbeck. E é um livro sem precedentes no mercado nacional, abordando um tema tão importante quanto negligenciado.

Os problemas do mundo moderno não nos são impostos do alto, das grandes organizações, do Estado altamente centralizador, dos ricos e poderosos, do Movimento Gay internacional, do globalismo comunista, dos modernistas que ocupam cargos elevados na hierarquia eclesiástica. Nada disso. Todas as dificuldades que nós enfrentamos têm a sua gênese na dissolução da família — e é somente no fortalecimento desta célula mater da sociedade que se poderá encontrar a superação dessas e de todas as outras possíveis dificuldades capazes de flagelar o mundo. As instâncias burocráticas imiscuem-se na vida privada porque as famílias lhes deixam o espaço aberto; esta e não outra é a raiz dos problemas modernos. É verdade que ninguém pode fazer nada contra os grandes organismos internacionais; mas qualquer um pode voltar pra casa, amar a sua família e sacrificar-se pela santificação dela.

A frase é de Santa Teresa de Calcutá: se você quiser fazer algo pela paz mundial, vá para casa e ame a sua família. Não se trata de arroubo de retórica e nem de metáfora piedosa: nada disso, a frase revela uma lucidez e um pragmatismo dos quais somente os grandes santos são capazes. Porque a paz é fruto da justiça (cf. Is 32, 17) e esta se inicia nas pequenas coisas. Uma família arruinada é provavelmente a primeira grande injustiça que está ao alcance de qualquer pessoa; e combater as injustiças — mormente as que se nos aparecem, as que somente nós podemos combater — outra coisa não é que promover a paz.

A família se reveste, assim, dessa espécie curiosa de universal exclusividade: por um lado, praticamente não existe ser humano que não possa fazer alguma coisa pela sua família; por outro lado, cada família só pode ser cuidada pelos que dela fazem parte e por ninguém mais. É um dever tão geral que se impõe a todos; é um dever tão particular que não há quem o possa cumprir no lugar do outro.

Por isso que é importante se preparar para viver bem em família, e neste quesito os autores do livro têm bastante o que compartilhar. São católicos praticantes, que gozam de reconhecimento quer profissional, quer nos apostolados religiosos que exercem, que desde 2013 estão envolvidos no projeto que culminou neste livro, que desde o ano passado ministram cursos sobre como catequizar seus filhos em casa, que, em suma, têm suficiente experiência para realizar esta empreitada. Fazem jus à credibilidade que lhes tributo aqui.

O livro está em campanha de financiamento coletivo pelo Kickante; faltam apenas 16 dias e ainda 60% do valor a ser arrecadado. Acessem lá e verifiquem como podem contribuir. Não se trata de simples doação, mas sim de efetiva aquisição do livro, de acordo com a recompensa escolhida: há-as para todos os gostos. Por exemplo, a edição impressa sai por R$ 45,00; por sua vez, o próprio “Família Católica, Igreja Doméstica”, mais uma cópia do “Guia Politicamente Incorreto da Literatura”, mais “O Outro Lado do Feminismo”, mais o nome impresso no livro, custa apenas por R$ 120,00. E há diversas outras. Cliquem e vejam como podem ajudar.

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Mas atenção, que se o valor do projeto não for alcançado o livro não será editado (e o dinheiro das contribuições, óbvio, será devolvido); isso significa que ele não poderá ser adquirido depois. Para que o livro chegue depois às livrarias é preciso que a campanha seja agora bem sucedida. Não deixe para mais tarde; colabore agora com esta obra civilizacional. Os autores — e o Brasil — agradecem.