A morte de um exorcista

O recente falecimento do pe. Gabriele Amorth pegou-me de surpresa. Sim, o velho exorcista já contava com 91 anos e, nesta idade, a morte não é propriamente um acontecimento inesperado; a manchete, no entanto, mostrou-me o quão pouco eu estava acompanhando as notícias a respeito dele. Não sabia que estava doente, aliás nem me lembrava ao certo da idade dele. Na sexta-feira passada, no entanto, ele deixou o campo de batalha terreno para nos ajudar lá do Alto, onde agora pode mais junto a Deus.

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Há um mau hábito — já devo ter falado dele em algum momento por aqui — no Catolicismo contemporâneo de ser muito condescendente para com as imperfeições alheias, principalmente no que diz respeito à tendência de conceder uma imediata ascensão aos Céus às almas daqueles que minimamente admiramos. Todo mundo é santo sùbito, toda morte é entrada gloriosa no Paraíso. Esquecemo-nos do Purgatório — e isso pode até ser falta de caridade de nossa parte, na medida em que nos sentimos desobrigados de rezar pelas almas daqueles que já consideramos salvos. Esquecemos do Purgatório e queremos que todos os nossos mortos estejam, desde já, desde o instante seguinte à morte, gozando da Bem-Aventurança dos eleitos de Deus.

Ainda assim, eu disse acima que o pe. Amorth já agora estava nos ajudando de junto de Deus. Justifico. Em primeiro lugar, o venerável sacerdote chegou a uma avançada idade, e isso significa duas coisas. Primeiro que não foi apanhado de surpresa pela Morte; segundo, que pôde padecer os sofrimentos próprios da velhice em expiação pelas próprias faltas e em preparação para o Dia sem ocaso. Muitas pessoas acham que a melhor morte é aquela que nos chega sem que percebamos; o famoso “ir dormir e acordar morto”. Não vou dizer que este seja uma má morte (até porque a morte ser boa ou má depende essencialmente das disposições interiores em que nos encontramos no instante derradeiro, e não de ela ser mais demorada ou mais lenta, mais consciente ou mais súbita); mas se trata, parece-me, pelo menos de uma morte arriscada. As pessoas perderam o hábito de pensar na morte e, com isso, a morte repentina, de um mal súbito, ou a morte em um acidente, podem chegar sem que a casa esteja devidamente preparada, sem que as disposições interiores estejam suficientemente lapidadas, sem que a alma esteja pronta, em suma, para se encontrar com Deus e com os pecados de toda uma vida.

A morte na velhice, após uma doença mais ou menos longa, é o contrário. A Inimiga das Gentes vem devagar, vem anunciando a própria presença, vem a passos lentos — e, com isso, dá mais tempo para que nos preparemos. Podemos fazer um demorado exame de consciência; podemos suplicar mais demoradamente o perdão e a misericórdia de Deus. Podemos nos confessar, receber a Extrema Unção e o Viático; podemos até mesmo oferecer os inconvenientes da doença, os achaques, o medo, as dores — os sofrimentos todos em suma — em expiação pelas nossas faltas. Li que o pe. Amorth expirou após algumas semanas internados em um hospital; quero crer, portanto, que ele tenha sabido aproveitar todas essas oportunidades de apressar a própria chegada no Céu.

Uma segunda razão pela qual imagino que o pe. Amorth esteja junto de Deus é o ofício ao qual ele dedicou a própria vida. Não foi apenas sacerdote (como se isso fosse pouco), mas sim sacerdote e exorcista. Foi nesta terra inimigo ferrenho de Satanás, lutando corajosamente contra ele exatamente naqueles aspectos em que a presença demoníaca no mundo é mais forte e mais perturbadora: a obsessão, a infestação, a possessão. O mundo moderno vive em uma crise de Fé que, se muito esquece de Deus, muito mais esquece do Diabo; esta figura é muitas vezes relegada à superstição medieval, à ignorância de um passado obscuro, a concepções maniqueístas primitivas que não encontram mais lugar em um mundo onde Deus é Amor.

Ora, mas Deus sempre foi Amor; Deus é Amor desde a criação dos Anjos e a Queda de Lúcifer, e uma coisa não tem nada a ver com a outra. Satanás não é um “deus do mal”, mas isso não significa que não seja uma criatura capaz de fazer muito mal. Há entre os homens ladrões e assassinos, sádicos e estupradores, salteadores e bandidos de todos os naipes; a quantidade de mal que o homem tem provocado ao próprio homem é enorme e capaz de assombrar por toda uma vida aqueles que dela tenham ainda que um pálido vislumbre. Senão vejamos: se os homens podem causar mal uns aos outros sem que isso seja um óbice à existência de um Deus que é Pai Amoroso, por que um anjo não poderia também provocar o mal aos filhos de Deus sem que isso minimamente maculasse a Onibenevolência do Altíssimo? Não há maniqueísmos dentro da Doutrina Cristã e nunca os houve; não há um deus mau ao lado do Deus que é Bom. No entanto, o mistério da liberdade que permite a existência do mal moral dentro do mundo criado não se restringe apenas aos seres humanos. Também os anjos têm inteligência e vontade, também eles são seres livres, também podem fazer o mal. Satanás não é uma hipótese ingênua e contraditória com a noção de um Deus sumamente bom, pelo menos não mais do que um estuprador ou um serial killer. Na verdade é o contrário: ingenuidade é imaginar que, havendo ladrões e assassinos no mundo, não pudessem existir também seres angélicos voltados à prática do mal.

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O pe. Amorth foi inimigo ferrenho de Satanás nesta terra, eu dizia, e venceu-o por incontáveis vezes, e por isso eu também quero acreditar que Deus o tenha levado depressa para os Céus; pode ser sentimentalismo, mas acho que não convém que aquele que foi inimigo aberto do Demônio no mundo tenha a sua entrada no Céu postergada por causa de algum apego de sua alma aos pecados que nada mais são do que as obras do mesmo Satanás que ele dedicou a vida a combater. Mas há ainda uma terceira razão. É que o tempo e a Eternidade relacionam-se de maneira, digamos, curiosa: aqui a história se desenrola de maneira sequencial mas, lá, é tudo já e(vi)terno.

O padre Pio certo dia rezava pelo seu avô. “Mas padre, o senhor não disse que ele já estava no Céu?”, um amigo perguntou; “sim, está, mas as orações que eu fiz por ele até hoje e as que eu ainda farei até o fim da minha vida o ajudaram a chegar lá”. O John McCaffery registrou a história em seu livro de memórias, e compreendê-la ajuda a contemplar melhor o mistério da Comunhão dos Santos. O Céu já está completo enquanto a História se desenrola; e por mais tempo que uma alma justa tenha passado no Purgatório, já agora ela está no Céu, já agora ela pode interceder por nós.

É com este ânimo que olho para o pe. Amorth e quero já vê-lo em esplendor — o velho guerreiro revestido de suas armas gloriosas, impingindo já a Satanás maiores tormentos do que nos mais formidáveis exorcismos que ele exerceu durante a sua vida…! Que assim seja. Que o bom Deus olhe com misericórdia para o seu pobre servo e lhe dê o descanso eterno, a luz e a paz. E que, do alto dos Céus, o padre Gabriele Amorth continue a fazer guerra terrível contra todos os espíritos malignos que andam pelo mundo para perder as almas.

Neymar, o COI e as manifestações religiosas nas Olimpíadas

A história envolvendo Neymar, a faixa com “100% Jesus” e a reclamação do Comitê Olímpico Internacional é uma falsa polêmica — ou melhor, uma polêmica à qual se está dando mais atenção do que ela merece. Resumindo a história, o Brasil ganhou no último sábado a sua primeira medalha de ouro de futebol nas Olimpíadas. Durante a cerimônia de premiação, o capitão do time brasileiro subiu no pódio com uma faixa amarrada na cabeça com a inscrição “100% Jesus” — não é a primeira vez que ele o faz. O COI disse que iria enviar uma carta de protesto à delegação brasileira afirmando que o ato era inaceitável no evento. Houve protestos por parte da mídia cristã.

Como já antecipei, penso que se trata de uma falsa polêmica. Primeiro porque a manifestação não é a melhor expressão de Fé do mundo; segundo porque não vale a pena mendigar o reconhecimento do Comitê Olímpico Internacional; terceiro porque o próprio COI disse que não haveria sanções associadas ao incidente — ou seja, tudo se trata de mera vontade de espezinhar.

A primeira questão é talvez a mais relevante aqui. Sinceramente, eu desconheço o testemunho público da Fé Cristã de Neymar — ou ao menos o testemunho público que vá além de usar uma bandana com o Santíssimo Nome de Nosso Senhor nas cerimônias onde ele é premiado. O craque parece levar uma vida em tudo indistinguível da de todos os outros atletas jovens, ricos e famosos — festas, mulheres, brigas. Neste último fim de semana mesmo, com o nome de Cristo na testa e tudo, o atleta ganhou as manchetes dos jornais por conta de ter xingado um torcedor! É certo que a Fé Cristã deve ser difundida; mas será que não estamos fazendo isso errado? Sinceramente eu não sei quem presta maior desserviço ao Cristianismo: o COI, que não quer atletas fazendo referências a Cristo, ou o atleta que, fazendo questão de dar mostras públicas da sua Fé, comporta-se de ordinário como alguém que nada deve à mensagem evangélica!

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Não se trata de condicionar o apostolado à perfeição moral, evidentemente. O ponto é preservar o Evangelho do escândalo. Irritamo-nos, e com toda a razão do mundo, quando os burocratas ateus do COI desprezam a Fé do povo e querem afastar dos olhos do mundo quaisquer referências públicas ao Divino Salvador; ora, por que razão não nos irritaríamos, também e com até maior medida, quando um atleta amarra uma faixa com o nome de Cristo na testa e vai arrumar confusão com os torcedores a ponto de precisar ser contido por seguranças? Porventura isso não é também um desprezo terrível para com os símbolos cristãos?

[O medalhista Usain Bolt é outro atleta que deu recentemente muito mau testemunho ao ser filmado nas boates cariocas de maneira bem pouco casta, para dizer o mínimo: o mesmo Bolt que há bem poucos dias foi divulgado como sendo devoto de Nossa Senhora das Graças. Aqui, no entanto, a questão é toda outra; não me recordo de ter visto o velocista ostentando a sua Fé Católica pelos pódios nos quais subiu durante as Olimpíadas. A Medalha Milagrosa cai muito bem sobre o peito dos pecadores: que a Virgem da Rue du Bac proteja o jamaicano das brasileiras oportunistas! O problema não é ser cristão e cometer pecados — ser pecador é aliás pré-requisito para ser cristão. O problema é preocupar-se mais com dizer-se cristão do que com portar-se, ou ao menos tentar portar-se, de acordo com as exigências deste nome. Sigamos.]

Há uma outra razão pela qual a revolta parece errar o alvo: parece que, com ela, concede-se aos organizadores dos jogos olímpicos uma autoridade e um prestígio que eles, absolutamente, não detêm. O que tem o COI a ver com a Fé dos atletas, com os símbolos que eles usam, com os gestos que eles fazem, com as preces que eles recitam? Que necessidade existe da aprovação destes senhores?

É bem sabido que as normas do Comitê não têm nada a ver com nenhuma “neutralidade religiosa” (como se isso fosse possível). Trata-se, é notório, de uma deliberada e seletiva perseguição aos símbolos e manifestações do Cristianismo, e não de qualquer religião. Isto é muito fácil de ver. Aqui, no Rio de Janeiro, no início da competição, é impossível não lembrar da mulher que jogou vôlei de praia coberta da cabeça aos pés sob o sol escaldante de Copacabana. A vestimenta, que destoava do contexto muitas ordens de grandeza mais do que a pequena faixa do jovem Neymar, era evidentemente um símbolo religioso — no caso, do islamismo. Não lembro de ter visto o COI reclamar de Doaa Elghobashy. Mais ainda: na mídia houve até festa, dizendo que as atletas estavam quebrando um tabu. Se certos símbolos religiosos são aceitos sem maiores polêmicas enquanto outros ensejam reclamações formais, então é óbvio que o objeto da norma proibitória não é a generalidade das religiões, mas sim uma religião (ou algumas religiões) específica(s).

Ora, se o COI está visivelmente empenhado em uma cruzada anti-cristã sob a desculpa da neutralidade religiosa, o que mais é necessário fazer além de desmascarar-lhe a parcialidade? Apontar a medonha contradição já não é suficiente? Exigir de um órgão incoerente e tendencioso… o quê?, o reconhecimento da licitude dos símbolos e gestos cristãos?, a autorização para falar o nome de Jesus Cristo?, não é dar-lhe uma importância desmedida? Por que os atletas cristãos precisariam da autorização do COI para falar de sua Fé? Por que Nosso Senhor teria que pedir licença aos burocratas de um comitê para subir no pódio conquistado pelos Seus seguidores? Ora, que o Comitê Olímpico se limite àquilo que lhe diz respeito! Quanto aos atletas, que sigam ignorando os seus (do COI) queixumes, que mais que isso é rebaixar a Fé aos caprichos dos organismos internacionais.

A situação seria diferente se o órgão estivesse falando em alguma espécie de punição. Se os atletas estivessem sendo minimamente coagidos na manifestação de suas crenças, se estivessem sob a ameaça de alguma sanção, aí sim seria o caso de dizer com voz altiva que compete obedecer antes a Deus que aos homens, que os comitês organizadores não têm jurisdição sobre a consciência alheia e não podem determinar a quem os atletas oferecem suas vitórias ou a quem deixam de as oferecer. Mas nada disso é assim. Sabendo que não tem legitimidade alguma para impedir o uso de uma faixa com o nome de Jesus por um jogador cristão ao mesmo tempo em que placidamente permite indumentárias islâmicas completas a uma atleta muçulmana, o COI não teve nem mesmo a coragem de ameaçar com sanções. Por outra: disse taxativamente que não haveria sanção alguma. É apenas um protesto vazio, digno de adolescentes birrentos, ao qual não convém conceder mais do que um solene desprezo.

Em suma: se há alguma coisa de censurável na atitude do menino Neymar, tal é o uso meramente externo de um símbolo cristão sem que a isso sejam acrescentados alguns mínimos sinais de que se tem em verdadeira conta a seriedade da mensagem evangélica. A pretensão do Comitê Olímpico de censurar as celebrações dos atletas é descabida e, além do mais, incoerente com a própria atitude do COI diante de outras manifestações análogas — e por isso não merece ser levada a sério. A despeito dos maus exemplos dos atletas cristãos e das picuinhas dos burocratas ateus, o fato é que a Fé não depende nem da coerência daqueles nem do beneplácito destes para ser vivida. E vivê-la inclui professá-la em particular como em público — direito natural contra o qual nada podem as cartas de protesto enviadas por todos os comitês do mundo.

A Mulher por sobre os Tronos e as Potestades

Tenho particular afeição pela festa que se celebra hoje porque penso que, nela, o mistério da Redenção resplandece com um fulgor particular. Hoje se celebra a Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria em corpo e alma; hoje a Igreja canta a Sua coroação como Rainha dos Céus e da Terra. É uma festa que deveria encher o povo cristão de alegria; uma festa que chega mesmo a exaltar aquilo que falta na da Ascensão de Nosso Senhor. Porque na Ascensão é Deus quem Se eleva, glorioso, ao Trono dos Céus que Lhe pertence desde toda a Eternidade; hoje, ao contrário, é uma criatura — é Maria Santíssima! — quem é elevada para ocupar um lugar que até então não ocupava.

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Que o Corpo de Cristo não ficasse entregue à corrupção do sepulcro é uma coisa, não digo prosaica, mas até lógica, fácil de compreender e de aceitar: tanto que a aceitam, sem maiores dificuldades, mesmo os protestantes de todas as matizes. Agora que não conheça a corrupção o corpo de uma criatura, de uma filha de Eva…! Tal é uma coisa inaudita e portentosa, tal é a loucura extrema do amor de Deus — a que os filhos de Lutero viram as costas de maneira orgulhosa e farisaica. A Ascensão de Cristo é a glorificação do próprio Deus; a Assunção da Virgem, a divinização da criatura. O Criador ser glorificado é algo que os judeus vêem desde Jacó; a criatura ser divinizada, tal é algo que o mundo viu hoje pela primeira vez — e ainda não tornou a ver, não do mesmo modo, não na mesma medida.

Porque é na festa da Assunção da Virgem Santíssima que a graça de Deus brilha de uma maneira que desafia a nossa inteligência e chega mesmo a desconcertar. Morrer e ressuscitar, aceite-se; salvar o homem do pecado, vá lá. Agora colocar uma criatura — uma Mulher! — por sobre os Tronos e as Potestades, e sentá-la gloriosa sobre as nuvens, e conferir-lhe poder soberano sobre os céus e a terra…! Aí não. Aí já é coisa que nossa inteligência tende a rejeitar, aí já é algo diante do qual o nosso primeiro impulso é dizer “não, aí também já é demais”.

Hoje é a festa em que Deus nos diz que, para Ele, nada é demais. Hoje é a festa que expande o Seu amor para além das fronteiras de nossa justiça e de nossa razoabilidade. Porque a munificência de Deus está além de nossa compreensão; ora, poderia haver prova mais eloquente dessa liberalidade do que ornar uma criatura com todos os privilégios que somente o próprio Deus poderia alcançar?

A glorificação de Cristo é uma exigência da natureza. A glorificação da Virgem não é exigência de nada, é puro rasgo de amor gratuito de Deus — e por isso mais nos assombra, e por isso mais nos deve alegrar. Cristo glorificado não podia ser diferente. A Virgem assunta aos Céus, envolta em glória sobre os anjos, poderia, sim, ser diferente — e é por não ser diferente que é tão maravilhoso, é por isso que a cantamos com toda a pompa devida ao dia de hoje. É por isso que a celebramos e não poderemos nunca deixar de celebrar.

Em Cristo a nossa humanidade é exaltada; na Virgem Maria Deus nos exalta ainda algo mais. Se Cristo sentado em Seu trono sobre as nuvens eleva a natureza humana a um patamar de honra inigualável, na Virgem recoberta de glória algo ainda mais próprio nosso é glorificado: a nossa “criaturidade”. O Deus Onipotente tem natureza humana — é o mistério da Encarnação. Mas Deus não é criatura em nenhum sentido e sob nenhum aspecto; no entanto, hoje uma criatura é coroada Rainha da Criação. Mistério profundo que transcende a própria Redenção, ou melhor, que a culmina de uma maneira admirável — de um modo que não a entendem os pagãos nem os gentios, e nem mesmo os hereges são capazes de conceber.

Salve, pois, ó Virgem da Glória, Rainha assunta aos Céus, em quem Deus revelou os limites do Seu amor e o poder da Sua graça! Lembrai-Vos de nós, pecadores miseráveis que caminhamos neste mundo com o desejo da graça e a esperança da glória. Lembrai-Vos de nós que, hoje, alegramo-nos convosco e com os anjos cantamos os Vossos louvores. Vós, que sois tanto e tanto podes, lembrai-Vos de nós, que bem pouco somos e nada podemos. Rogai a Deus por nós.

A JMJ e a união dos povos

Há quem pense que o esporte é capaz de unir os povos e as culturas. As grandes competições internacionais (como a Copa do Mundo ou, mais atualmente, as Olimpíadas) são por vezes apresentadas como um modelo de congraçamento pacífico e profícuo entre pessoas de diferentes origens e nacionalidades, como um território comum onde os seres humanos podem interagir independentemente das eventuais divergências — políticas, econômicas, ideológicas, religiosas — que possuam.

Sem dúvidas o estabelecimento de regras internacionalmente válidas para os esportes permite que, neles, compitam pessoas que — por conta de barreiras linguísticas, sociais etc. — teriam muita dificuldade de interagir de qualquer outra maneira. No entanto, a pretensão de uma união fundamental de todos os homens sob — p. ex. — a chama dos jogos olímpicos parece-me estar acima das capacidades do espírito esportivo humano. É possível, sem dúvidas, jogar em paz; não significa que se possa edificar a paz sobre os jogos. A fraternidade universal é um anseio da humanidade; calcá-la sobre os esportes, contudo, é edificar sobre a areia. É uma espécie de pareidolia ideológica, que em tudo imagina enxergar a unidade humana perdida.

Existem eventos que melhor atendem a estes anseios (em tudo legítimos) de interação frutuosa e congraçamento de culturas por sobre as barreiras linguísticas, políticas, nacionais: são as Jornadas Mundiais da Juventude católicas. Estes eventos — de cuja magnitude as copas do mundo ou os jogos olímpicos são apenas um reflexo pálido — conseguem atrair multidões vindas dos quatro cantos do planeta, de todos os idiomas, de todas as raças e nacionalidades. Essas pessoas, durante os dias da Jornada, trocam experiências, fazem amizades, ajudam-se mutuamente — em suma, convivem, em união verdadeira, daquela união que torna a dar esperança no futuro da humanidade. Uma união que revela que, por debaixo da diversidade das línguas e das vestimentas, somos todos humanos, somos todos irmãos.

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Infelizmente não pude estar na JMJ da Cracóvia que se encerrou no último domingo. Estive em Madrid, em 2011, e estive no Rio de Janeiro, em 2013; há textos aqui no blog que contam as gratificantes experiências destas duas viagens. Não acompanhei a passagem da «juventud del Papa» pela Polônia, nem mesmo de longe; mas tenho certeza de que aqueles rapazes e moças cumpriram o seu papel e souberam fazer ecoar a mensagem do Evangelho por entre as ruínas da civilização européia. Eu já os vi e sei do que são capazes.

Toda a programação do evento — com todos os pronunciamentos de Sua Santidade — está disponível no site do Vaticano ad perpetuam rei memoriam. Vale uma passagem pela página. De todos os textos disponíveis eu olhei um: o encontro do Papa com os bispos polacos. São quatro perguntas, respondidas pelo Pontífice argentino com toda a informalidade de uma conversa entre amigos. O que me levou a este texto em específico foi uma manchete que vi na mídia secular: “Papa lamenta que crianças aprendam na escola que podem escolher gênero”. Esta colocação do Vigário de Cristo está já no final do encontro, no contexto de uma pergunta sobre como agir diante dos refugiados que chegam à Europa — problema candente e da mais atual importância.

Separemos as coisas. Primeiro a ideologia de gênero. É significativo que o Papa tenha falado sobre o assunto, principalmente se considerarmos que a intervenção pontifícia parece descontextualizada. Ninguém o perguntou sobre isso; ele, espontaneamente, trouxe o assunto à baila. É este o parágrafo que nos interessa aqui:

E aqui gostaria de concluir com um aspeto concreto, porque por detrás dele estão as ideologias. Na Europa, nos Estados Unidos, na América Latina, na África, nalguns países da Ásia, existem verdadeiras colonizações ideológicas. E uma delas – digo-a claramente por «nome e apelido» – é o gender! Hoje às crianças – às crianças! –, na escola, ensina-se isto: o sexo, cada um pode escolhê-lo. E porque ensinam isto? Porque os livros são os das pessoas e instituições que te dão dinheiro. São as colonizações ideológicas, apoiadas mesmo por países muito influentes. E isto é terrível. Em conversa com o Papa Bento – que está bem e tem um pensamento claro – dizia-me ele: «Santidade, esta é a época do pecado contra Deus Criador». É inteligente! Deus criou o homem e a mulher; Deus criou o mundo assim, assim e assim; e nós estamos a fazer o contrário. Deus deu-nos um estado «inculto» para que o fizéssemos tornar-se cultura; e depois, com esta cultura, fazemos as coisas que nos levam ao estado «inculto»! Devemos pensar naquilo que disse o Papa Bento: «É a época do pecado contra Deus Criador»! E isto ajudar-nos-á.

Veja-se que interessante: em primeiro lugar, o Papa chama as questões de gênero de «colonização ideológica», ou seja, de uma imposição feita por determinados grupos poderosos sobre populações menos capazes de se defender. Isto coloca a discussão nos seus termos devidos: não se trata de ciência nem de progresso, mas sim de voluntarismo de um determinado grupo de pessoas influentes.

Depois, o Papa Francisco chamou Bento XVI para cerrar fileiras consigo nesta investida. Ao que parece, foi a única fez que o Pontífice reinante citou o emérito nesta viagem. E a referência a Bento XVI nos traz à lembrança aquele discurso de 2012, onde o então Papa, falando sobre este assunto, afirmou claramente que «onde Deus é negado, dissolve-se também a dignidade do homem» — aforismo que deveríamos ter sempre muito claro na memória. O que está em jogo não são os gostos e preferências individuais. É a dignidade humana que é aviltada quando se diz que o sexo pode ser livremente escolhido.

Ainda: o Papa Francisco falou em Estado e em cultura. Ou seja, não se trata de um preceito de católicos voltado somente para católicos. É questão que diz respeito ao Estado, portanto ao direito, às legislações temporais: o fetiche do Estado Laico não nos deve assustar aqui. Identificando o «gender» com o estado «inculto», Sua Santidade afirma ainda que se deixar conduzir por esta colonização ideológica é incultura, é incivilização e selvageria, é, em suma, barbárie.

Finalmente, a referência ao «pecado contra Deus Criador» revela a magnitude deste equívoco. Ora, o Deus «Criador» é o “primeiro Deus” — quero dizer, é a primeira e mais básica compreensão que o homem tem do Ser Supremo. A Santificação (a capacidade de participar da vida de Deus) ou mesmo a Redenção (o perdão dos pecados e o merecimento da vida de glória) são conceitos teológicos razoavelmente refinados. A Criação não. Esta chega às raias de uma evidência: é a própria razão humana natural, sozinha, que é capaz de alcançar o Criador. Revoltar-se «contra Deus Criador», assim, é algo muito mais fundamental e significativo do que rejeitar a Igreja ou Jesus Cristo. Arrisco-me a dizer que se aproxima de um pecado contra o Espírito Santo (na modalidade “negar a verdade conhecida como tal”) — o que expõe a gravidade da situação e a miséria em que se encontra o homem contemporâneo, longe não apenas da Fé Revelada como também dos rudimentos da teologia natural.

Mas volto à questão dos imigrantes — e concluo. Sobre eles basicamente o Papa fala três coisas: primeiro, que o problema está na terra deles; segundo, que cada um precisa acolhê-los na medida da própria capacidade; e, terceiro, que é preciso integrá-los bem. Isso não é um discurso para o Estado ateu; aqui o Papa está falando para bispos católicos. E estes três passos, que para os poderes de César podem significar apenas algumas políticas públicas burocráticas, para a Igreja têm um significado todo diferente.

O problema dos que batem à porta da Igreja está no lugar de onde eles vieram: nas suas falsas religiões, portanto. Embora não seja possível estabelecer formas universais de receber os pecadores, a ninguém é lícito desprezá-los: todo católico está obrigado, na medida de suas capacidades, a acolhê-los. Finalmente, é preciso integrá-los bem; e integrar na Igreja Católica outra coisa não significa que converter.

Porque o problema não é a «cultura», entendido este termo como o conjunto de hábitos, vestimentas, língua, comidas típicas etc.; o problema é a «religião» ou, antes, o problema são as falsas religiões. Há um único multiculturalismo válido e possível: é o da Igreja Católica, que é Universal e, portanto, abraça todos os homens de todos os povos, raças e nações. O Catolicismo não é uma «cultura»; ele transcende a todas elas e a todas integra em si. As bases comuns sobre as quais é possível construir a fraternidade de todos os povos não podem ser outras que as bases da Fé verdadeira. Desta unidade na diversidade — única possível! — dão testemunho, a cada três anos, os católicos que se reúnem nas Jornadas Mundiais da Juventude. Esta concórdia, esta união, esta paz, que os homens em vão buscam nos torneios de futebol ou nas competições olímpicas, somente em torno ao Papa se podem encontrar.

Os cruzados e os pregadores

Ontem um padre foi assassinado na França. Mais que isso: foi atacado enquanto celebrava Missa e barbaramente degolado por dois covardes muçulmanos. Não se pode dizer que a tragédia tenha sido inesperada; mesmo assim ela nos choca quando enfim acontece. Se a flecha que nós já conhecemos chega mais devagar, como canta Dante, nem por isso ela nos machuca menos quando — a despeito de tudo — nos atinge em cheio. É incrível: das coisas previsíveis nós deveríamos nos precaver. No entanto, apenas assistimos, atônitos, as tragédias que — de longe! — víamos avançar contra nós!

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O mais aterrador é saber que há quem tema que fatos assim sejam imputados indistintamente a todos os muçulmanos, mesmo aos pacíficos. Ora, este problema está posto em uma clave totalmente equivocada. A questão não é saber se há ou não há uma minoria radical muçulmana; a questão é saber, primeiro, se o islamismo deve ser enfrentado e, segundo, de que maneira se o deve enfrentar.

Que ele deva ser enfrentado é uma posição que encontra, graças a Deus, cada vez menos opositores — o discurso de Ratisbona já vai completar dez anos e nunca esteve tão atual. O passar dos anos tem nos mostrado que há um número cada vez maior de muçulmanos e que eles estão cada vez mais próximos de nós: são nossos compatriotas, nossos colegas de trabalho, nossos vizinhos. E se os nossos vizinhos têm um conceito tão importante quanto — por exemplo — «jihād», que evidentemente diz respeito às relações intersubjetivas entre os homens no seio da sociedade, não parece prudente tratar esta categoria como se não nos dissesse respeito. É preciso, sim, enfrentá-la. Se há um grupo de pessoas que acredita ter o direito — por vezes o dever — de nos impôr as suas crenças, está cada vez mais claro que não podemos tratar isso apenas como uma excentricidade que nós podemos ignorar. Não dá para ignorar. É preciso reconhecer o diferente que está do nosso lado; é preciso ouvi-lo e falar com ele.

E, evidentemente, é preciso por vezes impôr-lhe limites: a sanha expansionista do Islã, que nos atentados do ISIS revela a sua faceta mais desumana, precisa, sim, ser enfrentada pelo Ocidente, se o Ocidente quiser sobreviver. Isso é até pouco polêmico. O problema maior surge quando discutimos de que maneira a devemos enfrentar. Os próceres do relativismo dizem que é preciso distinguir o muçulmano normal do fundamentalista, para que não ataquemos de maneira indiscriminada pessoas inocentes. A preocupação é verdadeiramente estapafúrdia, e revela uma ignorância histórica que seria cômica se não fosse tão perigosa.

Porque sempre houve dois mouros: o dos negócios e o da guerra. O súdito e o soldado. O teórico e o prático. E com ambos sempre soube tratar a Cristandade, sem generalizações rasas nem distinções bizantinas. Santo Tomás pode até ter pensado certa feita em cruzar espadas com Averróis; pode até ter passado um dia pela cabeça de Ricardo Coração de Leão desafiar Saladino para uma disputatio universitária. Não há no entanto dúvidas de que um é um acadêmico e, outro, um militar; contra aquele a escolástica levantou tratados, contra este os nobres lançaram cruzadas. Ambos foram inimigos da Cristandade, mas as armas que ela empregou contra um e outro foram totalmente diferentes. Um é o mister do pregador; outro, o do cruzado. Não é só este o que atualmente faz falta; há uma indigência terrível, devastadora, clamorosa, de pregadores nos dias de hoje!

Há um clamor cada vez maior por cruzados. Sim, cruzados fazem falta; mas nem só de cruzados era composta a Cristandade. Sim, o mouro precisa ser combatido; mas é preciso saber de que modo o combater. Porque queremos, sim, fazer guerra contra os infiéis; mas não — sempre — a guerra das armas, não — necessariamente — a guerra dos soldados. É com idéias que as idéias se combatem; fossem os muçulmanos evangelizados, aliás, não precisariam ser hoje combatidos. Há hoje necessidade de cruzados, porque faltaram, e faltam, pregadores do Evangelho.

Mas as pessoas têm medo do sadio combate ao islamismo, porque pensam, primeiro, que as únicas coisas que os católicos sabem fazer contra os muçulmanos são as cruzadas; segundo, que as campanhas medievais contra os turcos eram, todas, uma espécie de pogrom voltado para o extermínio dos mouros. Ora, nada disso não faz o menor sentido.

As Cruzadas foram movimentos de guerra, ad extra, desempenhados em campo aberto, de peito aberto, cabeça descoberta, contra inimigos — atenção, que isso é importante — igualmente em guerra, igualmente em combate, igualmente armados e mortíferos. Não se trata (e nem nunca se tratou) de perseguir minorias pacíficas e indefesas. Eram a guerra dos homens livres e corajosos, com os reis à frente dos exércitos, sem alistamento militar obrigatório. Hoje, com soldados enviados à força para países estranhos, com máquinas voadoras não-tripuladas bombardeando alvos civis, aquelas coisas já não se compreendem; não cedamos, contudo, à fácil tentação de conferir maior incivilidade aos nossos antepassados que a nós próprios. O ius in bello nasceu muito antes do Tribunal de Haia, e tanto os reinos cristãos quanto os califados foram forças de agregação social das quais a ONU jamais chegou perto. Chesterton tinha razão quando disse que um soldado lutava mais por amor àquilo que protegia atrás de si do que por ódio ao que tinha à sua frente; e o guerreiro medieval talvez seja o melhor arquétipo deste soldado pintado pelo polemista inglês.

A Cristandade fez guerra contra o mouro, sim. Mas não a fez com a covardia com a qual, hoje, os bastardos de Baphomet atacam o Ocidente. Os atentados modernos aliás talvez nem mereçam novas cruzadas, porque os terroristas contemporâneos não são herdeiros dignos dos sarracenos que os nossos antepassados enfrentaram. Em campo aberto um dia o cruzado lutou com o mouro; a espada cristã e a cimitarra turca entrechocaram-se, a Cruz contra a Crescente, sob o sol de Deus. A guerra, a boa guerra, exige e pressupõe uma certa consideração mútua entre os adversários, um certo respeito entre inimigos — coisas em tudo ausentes nas saraivadas de balas disparadas contra jovens desarmados, nos caminhões lançados sobre transeuntes, nas facas decapitando sacerdotes durante a celebração da Santa Missa. Saladino ficaria envergonhado.

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E ainda mais: nem só de guerras viveu a Idade Média! É evidente que nem todo muçulmano é pessoalmente um homem-bomba; isso, no entanto, é completamente irrelevante. Há o mouro soldado e há o mouro simples fiel; se é verdade que devem ser ambos combatidos, não é menos verdade que o primeiro se combate com as armas e, o segundo, com as letras. Ninguém teve jamais dúvida disso. A pretensão de passar a fio de espada populações inteiras só poderia surgir do totalitarismo laico contemporâneo — dessa antropologia canhestra que, de tanto criticar o Antigo Testamento, incorporou os demônios que lá julgou encontrar. O que os homens modernos não parecem perceber é isto: ninguém vai ter tempo de hostilizar muçulmanos pacíficos se estiver em guerra contra muçulmanos belicosos. A Cruzada não é um pogrom. A Cruzada evita pogroms.

Até porque o muçulmano “funcional” — o fiel islâmico que, mais ou menos bem integrado ao país do Ocidente onde reside, cumpre com seus deveres cívicos e não é um elemento desagregador da sociedade — está para a República moderna assim como os antigos mouriscos para os reinos católicos. Ora, jamais se fez na Península Ibérica contra os mouros batizados a mesma guerra que se travou inclemente contra os otomanos no Mediterrâneo. O mundo moderno precisa aprender com os antigos como tratar o Islã; e a primeira coisa que ele precisa aprender é que nem toda interação cristã-muçulmana se deu nos moldes do Saque de Constantinopla!

Distinguir um mouro do outro, assim, é essencial para proteger os próprios mouros. Os muçulmanos pacíficos não estarão seguros enquanto os agressivos formarem, com eles, uma massa indistinta. E clamar contra a “islamofobia” (ou qualquer bobagem do tipo) diante do ISIS chacinando “infiéis” diariamente não é proteger os muçulmanos. É pô-los, a todos, sob constante suspeita. É impedir a sadia atuação distinta dos pregadores e dos cruzados. É reducionista e obtuso.

Mas distinguir um mouro do outro é fundamental também para os próprios cristãos: afinal, somente assim a posição deles se torna defensável — ou mesmo exequível. Cada combate precisa ser travado com as suas armas adequadas; e embora o Islã seja sem dúvidas o velho inimigo, uma coisa é o muçulmano rezando na mesquita e, outra, o muçulmano assassinando inocentes. Um se enfrenta com as armas da apologética; outro se combate com armas de fogo. Um demanda a força intelectual e, outro, a força física. Foi assim que sempre se fez. Não tem sentido conclamar uma guerra contra “o mundo árabe” assim, indistintamente, como se todo muçulmano devesse ser combatido da mesma maneira. É preciso compreender a unidade do inimigo, sim, para que se tenha clara noção da importância da guerra; mas é preciso distinguir o mouro do mouro, igualmente, para que os cruzados e os pregadores tenham cada qual o seu devido campo de atuação.

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Ontem um padre católico foi assassinado dentro de uma igreja, e é difícil imaginar que não tenhamos chegado ao ápice da pusilânime letargia ocidental. É de se esperar que, quem sabe?, agora a França — a filha dileta da Igreja — desperte do seu torpor. Os cães sarracenos tocaram num ungido de Cristo, profanaram uma igreja, derramaram o sangue de um padre diante do altar do Senhor, assassinaram um sacerdote do Deus Altíssimo! Será possível que a França continue inerte? Terão os franceses se esquecido do seu passado de glória? A gesta Dei per francos será somente uma expressão antiga, incapaz de inflamar nas almas francesas o amor a Cristo?

O sangue dos mártires é semente dos cristãos; ficará o testemunho do pe. Hamel sem frutificar? Quero crer que não. Que o Senhor Se levante para nos proteger; que desperte e tenha misericórdia de nós. Que suscite santos cruzados e santos pregadores, todos repletos de uma santa coragem, imbuídos da abnegação de consumir a própria vida a serviço de Cristo. O Ocidente precisa de santos capazes de fazer frente ao mouros. Cruzados que os impeçam de vitimar inocentes. Pregadores que os arrastem aos pés de Cristo Salvador dos Homens.

Escola sem Partido: méritos e riscos

A proposta do “Escola sem Partido” está dando o que falar, principalmente por conta de uma consulta pública no site do Senado que vem provocando uma verdadeira guerra virtual nos últimos dias — com a vitória pendendo ora para um lado, ora para o outro. Muita gente me havia pedido para escrever sobre o assunto, e eu estava reticente. Talvez a própria escrita deste texto esclareça as razões da minha resistência original.

Antes de qualquer outra coisa, cabe deixar claro que não se trata de um tema propriamente católico; quero dizer, não se trata de um tema sobre o qual seja possível apresentar uma “resposta católica” universalmente aceita. Conheço gente que está muito entusiasmada com o projeto; conheço, igualmente, gente que tem ressalvas contra ele. Com isso não quero dizer que o problema seja de tal natureza que mereça a indiferença dos católicos; é claro que não. Apenas a solução apresentada não é a única aceitável. A um mesmo problema se pode quase sempre apresentar soluções distintas: por exemplo, a morte de mulheres em decorrência da prática do aborto é sem dúvidas um problema. Isto reconhecem, facilmente, os católicos e as feministas. Já as soluções apresentadas por um grupo e pelo outro são em tudo distintas: os primeiros querem evitar todas as mortes evitando o próprio aborto, e as últimas querem evitar as mortes das mães mediante o asséptico, legal e profissionalizado assassinato dos filhos.

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Aqui a situação é diferente. O problemaa existência de doutrinação nas escolas — é no geral incontestável, ao menos entre os católicos; os inimigos da proposta, por sua vez, debatem-se entre afirmar que não há doutrinação e reclamar o próprio direito de doutrinar em paz. Não nos ocupemos tanto com estes últimos. Procuremos entender o porquê de haver discórdias entre nós.

Os católicos temos uma diferença radical para com os incrédulos do século moderno: nós acreditamos firmemente na existência de uma verdade, com relação à qual os homens têm um dever moral de reconhecimento. Isto significa que não nos é permitido ficar inertes diante das mentiras que contam nas nossas escolas — das quais a comparação entre um santo católico e um assassino comunista é apenas o absurdo mais patente. Teríamos este dever, aliás, ainda que as escolas não tivessem nada a ver conosco; sendo compulsórias para os nossos filhos como o são, no entanto, este dever se nos reveste de maior premência. Trata-se de um problema da mais alta gravidade, cujo reconhecimento é necessário ainda que se possa licitamente divergir quanto aos meios de o enfrentar.

A questão é que, havendo este problema, há (pelo menos) três coisas diferentes em jogo.

a inspiração original do Escola sem Partido, que pode ser resumida na seguinte proposta:

Nada mais simples: basta informar e educar os alunos sobre o direito que eles têm de não ser doutrinados por seus professores; basta informar e educar os professores sobre os limites éticos e jurídicos da sua liberdade de ensinar.

Há modelos de projeto de lei do mesmo Escola sem Partido, dos quais o Federal contém coisas como a que segue:

Art. 8º. O ministério e as secretarias de educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato.

Parágrafo único. As reclamações referidas no caput deste artigo deverão ser encaminhadas ao órgão do Ministério Público incumbido da defesa dos interesses da criança e do adolescente, sob pena de responsabilidade.

E há o projeto de lei efetivamente em tramitação no Congresso, que é praticamente igual ao modelo acima apresentado, com talvez uma única diferença — um dispositivo que proíbe “a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes” –, sobre a qual o próprio idealizador do movimento já se manifestou de maneira contrária.

A grande questão é que da inspiração primeira ao que é possível fazer vai uma distância muito longa, por vezes maior do que aceitável pelos partidários da insatisfação original. Que há um problema de doutrinação nas nossas escolas, há; mas como combatê-lo eficazmente? Uma lei não funciona somente para o que ela “foi pensada” para fazer; mormente no caos jurídico contemporâneo, uma lei tem vida própria e os seus efeitos podem se espraiar por situações muito distantes das que os seus idealizadores originalmente imaginaram. O PL 867/2015, por exemplo, diz um dos princípios aos quais atenderá a educação nacional é o “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”.

A justificativa do projeto e o histórico da educação brasileira nos dizem que, com isso, pretende-se limitar o discurso hegemônico da esquerda; mas não é difícil imaginar uma situação na qual professores decentes passem a ser perseguidos com base nesta lei. Afinal de contas, se é para haver “pluralismo de idéias”, então um professor que diga que os homens e as mulheres são naturalmente diferentes entre si precisa, também, contrabalancear esta afirmação dizendo igualmente — e de forma neutra, isenta — que há quem diga que ser homem ou ser mulher é meramente uma construção social, e que qualquer das duas teorias é em princípio aceitável. Do mesmo modo, uma professora de biologia que diga que a vida do indivíduo humano se inicia com a concepção deverá, de maneira equilibrada e imparcial, afirmar que há também quem diga que ela só inicia em outro momento — com a nidação, a formação do sistema nervoso central ou sabe-se lá o quê, e antes disso o embrião ou o feto humano não passa de um punhado de células com as quais é possível fazer qualquer coisa. Em suma: a lei, que objetiva dar espaço à verdade no meio de um oceano de mentiras, pode muito facilmente ser usada para exigir que a mentira seja introduzida naqueles (já escassos!) espaços onde a verdade é privilegiada.

Não vou me alongar muito. Não sei exatamente o que pensar sobre o projeto; por um lado intuo que a gritaria das esquerdas é sinal de que o Nagib acertou no ponto correto e, ao mesmo tempo, não quero simplesmente fazer “fogo amigo” contra pessoas que têm uma visão de mundo correta, sadia e necessária. Por outro lado, compreendo as ressalvas que outras pessoas — também católicas, também sérias, também preocupadas com os rumos da sociedade — fazem a respeito do projeto, e até faço minhas algumas delas. Arrisco-me a dizer somente duas coisas.

Uma: que o efeito simbólico do projeto de lei pode ser salutar. O próprio Miguel Nagib já disse que, no seu projeto, “o que interessa é o cartaz com os deveres do professor”. Talvez fosse interessante, então, remover os elementos burocráticos que podem dar azo a perseguições políticas e insistir somente no constrangimento que o cartaz onipresente pode provocar em educadores picaretas. A lei assim não haveria de ensejar punições administrativas; mas teria um efeito retórico que talvez não seja de se negligenciar.

Duas: que o mais importante em matéria de educação é firmar independência frente ao Estado, e não chamá-lo para tutelar os interesses legítimos da sociedade! O importante é que os pais eduquem os filhos — e exijam que eles sejam bem educados se, por acaso, precisarem terceirizar este seu dever. O importante é garantir o direito de ensinar o que é correto, e não demandar que o Estado exija quotas iguais para a verdade e para a mentira a todos os que exercem o múnus da docência. Não é suficiente fazer concessões para limitar o avanço do mal; é preciso, corajosamente e com uma santa altivez, fazer o bem. De peito aberto, de fronte erguida, sem a ninguém dever nada.

Os templos são uma profissão de Fé

Hoje é a festa de Nossa Senhora do Carmo e calhou de eu me encontrar em João Pessoa; há lá uma bela igreja erigida em honra à Virgem do Carmelo, que eu não conhecia e que remete ao século XVI. Aos alvores portanto da colonização brasileira; à tenra infância da Terra de Santa Cruz. Contemplar aquele templo é contemplar, em um lance de vista, todo o tempo transcorrido daquela época aos dias de hoje. Há nisto duas coisas que me chamaram particularmente a atenção nesta visita despretensiosa e não planejada. Admira o que se perdeu; é de se pasmar o que se manteve.

Singela a igreja. É tombada pelo IPHAN e, como é infelizmente comum acontecer nestes casos, não se encontra no seu melhor estado de conservação. Todavia esta circunstância, providencial, tornava a edificação toda ainda mais admirável aos meus olhos. Hoje em dia as coisas que construímos se desfazem com assustadora facilidade; a cultura do descartável, presente nas roupas e nos aparelhos eletrônicos, já se espraia confortavelmente sobre o mercado automobilístico e parece exigir seu espaço também nas nossas construções. Lembro o viaduto que caiu em Minas Gerais durante a Copa ou o a ciclovia tragada por um vagalhão no Rio de Janeiro ainda este ano; e hoje, na Igreja do Carmo, eu olhava para cima — o teto estava nu, sem o forro, mostrando apenas as vigas de madeira cobertas de telhas — e pensava em como os nossos antepassados se sentiriam se pudessem conversar com os nossos engenheiros e mestres-de-obras sobre a durabilidade das edificações do século XXI.

Porque não deixa de haver nisso uma espécie de “moral da história”, como se da comparação entre as velhas igrejas e os passeios modernos pudesse exsurgir uma parábola — se não a respeito da verdade das coisas, ao menos da maneira diferente como os nossos antepassados e os nossos contemporâneos concebiam e concebem as suas obras. Parece que em algum momento da história nós já construímos coisas para durar até a Segunda Vinda de Cristo; e, hoje, com todo o progresso e toda a técnica de que dispomos — ou talvez até mesmo por conta destes progressos e técnica –, nós realizamos obras para serem substituídas dentro de um espaço de tempo cada vez mais curto. Nós já acreditamos na Eternidade e, disto, os templos antigos nos dão testemunho; hoje não acreditamos em nada além de nós mesmos, e as coisas que construímos são feitas para morrer conosco. Tudo isso me dizia a igreja quinhentista, e eu não podia senão concordar com ela: chega a ser impressionante como foi possível termos regredido tanto em apenas quatro séculos.

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Mas talvez até mais impressionante do que o declínio da arquitetura seja a preservação da Fé; e, hoje, ao final da solene celebração de Nossa Senhora do Carmo, um irmão terciário dizia, com orgulho, que o Sodalício Carmelita da Parahyba (ele não disse deste jeito; assim chamo-o eu) tinha 310 anos. “Só não é mais antigo que o de Recife” — e eu não pude conter um sorriso ufano. Bairrismos à parte, o que importa é perceber como a festa atravessa gerações e chega ao nosso século ateu, se não com a vivacidade original, ao menos com algo daquele antigo frescor. Algo que se recusa a passar. “Temos até algumas orações e cânticos em latim, que os bispos sempre nos deixaram manter”.

E isto, na verdade, é uma vitória retumbante, um triunfo glorioso, um refrigério do Céu que nos permite manter acesa a chama da esperança: enquanto as obras deste século ruem estrondosamente e jazem no chão, os servos da Virgem ainda hoje cantam as glórias da Rainha do Carmo — e cantam-nas nos templos que foram construídos para durar até a consumação dos séculos porque Aquela em cuja honra eles foram levantados não passará jamais. As antigas construções são em si mesmas uma profissão de Fé. Ela vencerá o mundo porque a cada ano, a cada festa, a cada nova geração ela é renovada. Sempre haverá quem ouse desfraldar bem alto o estandarte da Virgem; sempre haverá porque até hoje não faltou quem o desfraldasse.

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O Imaculado Coração da Virgem triunfará. Acima de todas as coisas que passam reina a Senhora do Carmo, e a vitória d’Ela é tão certa quanto o raiar de um novo dia após uma noite longa, por escura que ela seja. O mundo dá voltas mas o Carmelo permanece — é o testemunho que cada 16 de julho dá ao mundo. Não precisamos nos atormentar. Acima de nós e a nos proteger, resplandece e fulgura Aquela que é o esplendor do Céu.

Pe. Eugenio Maria e o «embate de ciência versus fé»

Parece que ontem à noite foi ao ar um episódio do Conexão Repórter sobre milagres, onde o pe. Eugenio Maria foi entrevistado a título de “milagreiro” pelo Roberto Cabrini. Não vi o programa, aliás nem sabia dele; somente hoje vi o assunto ser comentado nas redes sociais. Não sei, portanto, em detalhes nem o conteúdo apresentado no SBT e nem a forma com a qual ele foi abordado.

Apenas me interessei pelo assunto porque eu já conheci o padre Eugenio Maria. Já estive numa das casas da FMDJ (agora não lembro se foi o Regina Pacis ou o Menino Jesus) em São Paulo, na companhia do Pe. Mateus Maria que, à época, era ligado à Fraternidade. Faz anos. O pe. Eugenio estava convalescendo — de uma cirurgia, penso, se a memória não me trai. Troquei com ele algumas breves palavras apenas. Não identifiquei então nenhum traço de charlatanismo ou abuso psicológico, muito pelo contrário: pareceu-me ele, então, um homem muito sério e muito comedido. Não acompanhei depois, à distância, o trabalho dele; mas guardei uma muito boa impressão da visita.

O Catolicismo, como já defendi incontáveis vezes aqui, é a religião do Homem das Dores e não da prosperidade material. Na senda de uma infinidade de santos, é preciso afirmar com clareza que o maior distintivo da religião cristã são as lágrimas e não os milagres. No sofrimento resignado dos cristãos — do qual os mártires enfrentando as feras do Coliseu são talvez o exemplo mais eloquente — o Cristianismo se mostra mais verdadeiro que nos milagres da Legenda Aurea. Foi o sangue dos mártires e não os milagres dos Apóstolos o que nos primórdios do Cristianismo se chamou de semente da Igreja.

Isso — atenção — não significa que os milagres não existam; significa que desempenham um papel secundário na vida cristã. Nosso Senhor um dia censurou os que Lhe pediam um milagre (cf. Mt XVI, 4); não é portanto em torno da busca pelo extraordinário que se deve erigir o itinerário da Fé. Há aliás uma outra passagem talvez até mais eloquente: encontra-se no Cap. XVI do Evangelho de S. Lucas, do versículo 20 até o final. A passagem é bem conhecida. O rico morreu e foi para o inferno. Lá, atormentado pelas chamas, pediu a Abraão que fizesse um milagre em favor dos seus irmãos (“Rogo-te então, pai, que mandes Lázaro [então falecido] à casa de meu pai”), a fim de que eles se emendassem e não terminassem no inferno também (“que não aconteça virem também eles parar neste lugar de tormentos”).

A resposta de Abraão é bastante dura: “Se não ouvirem a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite algum dos mortos” (v. 31). O alcance desta afirmação talvez nos passe despercebido. Não se trata simplesmente de afirmar que existam pessoas que não se converteriam nem mesmo à vista de um milagre retumbante: antes, trata-se de estabelecer que o testemunho de «Moisés e os profetas» tem maior capacidade de convencimento do que a exortação de um morto recém levantado da tumba!

sbtpedia

A aplicação disso à questão dos “milagreiros” é bastante óbvia: se os incrédulos não dão ouvidos à Igreja, não se deixarão convencer nem mesmo diante dos mais portentosos milagres. É bem possível que o Cabrini não faça a menor idéia dessas coisas; o pe. Eugenio Maria, no entanto, pelo que dele me recordo, sabe-o muito bem. Por conseguinte, não tem sentido uma chamada sensacionalista que promete apresentar «como é possível curar o incurável com apenas um gesto»: uma tal coisa, se existisse e fosse alardeada pelo sacerdote, seria um verdadeiro desserviço ao Cristianismo. Os que porventura procurassem a Fé em busca de curas estariam simplesmente procurando errado, correndo o risco de não conseguir nem uma coisa nem outra — ou, pior ainda!, de conseguir a cura perdendo a Fé.

Não existe nenhum «embate» possível de «ciência versus fé», muito menos na questão dos milagres. E por uma razão bem simples: se os milagres não puderem ser reproduzidos em condições controladas então estão fora do âmbito da ciência; se o puderem, estão fora do âmbito da Fé. A própria forma de colocar o problema — em uma dicotomia impossível e nonsense — já revela o baixo nível da reportagem pretendida.

Em suma, não dá para seguir o caminho delineado pelo Roberto Cabrini: quem por ele enveredar vai se perder. Dá, no entanto, talvez, para se surpreender com a figura do pe. Eugenio Maria, que talvez exsurja católico — com a força do Catolicismo que, nele, um dia vislumbrei…! — a despeito do materialismo grotesco e autocontraditório com o qual se pretendeu contar-lhe a história. Se isso acontecer, louvado seja Deus! Não será a primeira vez que uma Fé sincera e sólida consegue fazer brotar coisas boas de onde nada de bom poderia vir.

Pureza e fecundidade: a força da mulher

Há pelo menos três coisas a se distinguir no Dia Internacional da Mulher: a sua origem, o seu discurso oficial e o espírito com o qual ele é celebrado.

Quanto à origem, a história do incêndio, conquanto bem conhecida — em certa fábrica, no dia oito de março, as mulheres que estavam protestando por melhores condições de trabalho terminaram morrendo em um incêndio criminoso –, não é imune a controvérsias: não se sabe se há registros históricos precisos sobre este fato. De qualquer maneira, como é notório que as condições de trabalho das mulheres já foram um dia piores do que são hoje, as brumas míticas das quais emerge o Oito de Março são um assunto que costuma merecer pouca atenção. O símbolo prevalece sobre o rigor histórico, e não vale a pena insistir em investigações deste tipo.

Mais relevante é o fato, este sim inconteste, de que as celebrações de hoje derivam, todas, de movimentos revolucionários de esquerda. A aplicação da luta de classes à diferença entre os sexos é o que caracteriza todo o feminismo (e por extensão também o dia de hoje) e é também o que o desqualifica. Um século e meio depois de Marx, parece incrível que se pretenda ainda levar a sério a cosmovisão que se baseia no “nós-contra-eles”, como se a diversidade não fosse uma riqueza ou como se o extermínio de uma parcela da humanidade (sejam os patrões para o empoderamento da classe operária, sejam os homens para a glorificação feminista) tivesse algo de viável.

Em se tratando do discurso oficial a coisa fica ainda mais deplorável. A dar crédito às porta-vozes do Oito de Março, hoje poderia perfeitamente ser o dia internacional do aborto. É aqui que tudo fica mais feio e vergonhoso, e é aqui que dá vontade de combater o dia de hoje ao invés de o celebrar. Eu já devo ter dito algures que uma “feminista” não é uma mulher que luta pelos direitos de outras mulheres (digamos, para que ela não seja espancada pelo marido ou para que não seja pressionada pelo namorado a abortar o seu filho). Quem defende que a mulher possa trabalhar, votar e outras coisas afins são os seres humanos civilizados em geral. As feministas, por sua vez, naquilo que as distinguem dos seres humanos civilizados, são as propagadoras de uma pauta que não encontra eco na sociedade em geral: pauta consignada, entre outras coisas, na famigerada “Marcha das Vadias” e nos movimentos pró-aborto de todos os naipes.

Ora, aceitar esta pauta como representativa dos “direitos das mulheres” é profundamente ultrajante à imensíssima maior parte das próprias mulheres: das que sabem que o corpo feminino é um templo sagrado que se deve preservar e não um objeto de luxúria a ser desgastado no cio mais animalesco, por exemplo, e das que entendem que a dignidade feminina começa na concepção e, destarte, nem mesmo no útero materno as mulheres são descartáveis — devendo portanto ser protegidas de violências, máxime do aborto, sejam elas perpetradas por homens ou por outras mulheres. Pureza e fecundidade: estas, sim, características que a mulher verdadeira não despreza — em oposição aos arremedos revolucionários que acham que ser mulher é destruir tudo aquilo que sempre tornou as mulheres dignas de respeito e admiração no mundo.

Mas há bons motivos para não se deixar abater pelo significado do dia de hoje. Se tudo isso é oficialmente assim, contudo, na prática a teoria é outra. Fora dos círculos autorreferentes da intelectualidade esquerdista, quase ninguém associa o Dia da Mulher às histéricas mal-amadas possuídas por um espírito de misandria raivosa. Ao contrário, no dia de hoje exalta-se, no geral, precisamente aquela feminilidade da qual as inimigas do gênero humano se envergonham e tanto se esmeram por destruir. O Dia da Mulher é o dia em que as mulheres — para ficar no exemplo mais comezinho — são presenteadas com flores e chocolates; e que maneira melhor de afirmar papéis de gênero do que encher de mimos o sexo frágil, com coisas doces e belas, no dia às mulheres dedicado? A própria maneira com a qual as pessoas normais comemoram o Oito de Março é uma punhalada em todos os movimentos feministas, e faz as ossadas das companheiras falecidas chacoalharem-se convulsivamente no túmulo: tentaram criar um dia para reduzir a mulher a um macho mal-acabado, conseguiram uma data onde a feminilidade é ostensivamente exaltada.

Quanto a nós, cristãos, não nos podemos esquecer de que no princípio Deus criou o homem e a mulher, macho e fêmea, e dotou a humanidade dos seus dois gêneros como um ato positivo de sua vontade antes do Pecado Original. Isso significa, primeiro, que a feminilidade (ao lado da masculinidade) é uma riqueza e, segundo, que a convivência harmônica entre os sexos não só é possível como é também o desejo original do Criador. É por isso que devemos batalhar — não pelos gritos raivosos e cada vez mais anacrônicos das feministas aparentemente incapazes de sair do século XIX.

A Mulher por excelência é a Santíssima Virgem Maria — e que distância entre Ela e as feministas que destilam ódio, chamam-se de vadias e exigem a legalização do aborto! Que no dia de hoje as mulheres sejam cada vez mais mulheres, isto é, conformem-se cada vez mais à Santíssima Virgem que é o modelo e a plenitude de toda feminilidade. Que Ela esmague a cabeça da serpente feminista! E que as mulheres possam segui-La corajosamente, rumo à verdadeira liberdade que não se encontra senão bem distante do feminismo ideológico dos dias de hoje.

À luz da eternidade

Correndo os olhos pelo noticiário político, tenho cada vez menos vontade de escrever textos específicos sobre o assunto. As coisas, simultaneamente, parecem correr numa velocidade estonteante (a notícia de hoje pela manhã é já velha, tendo sido já esmiuçada e destrinchada por um sem-número de textos internet afora…) e não sair nunca do mesmo lugar (todos os protagonistas continuam onde sempre estiveram, por semanas, meses, anos a fio). O problema parece ser tão íntimo a nós próprios, tão próximo, que se confunde com a nossa história e a nossa índole, e (parece que) antes conseguiremos emancipar o homem pós-moderno da natureza humana que atingir um governo cujo fim precípuo não seja — ou pelo menos não explicitamente — espoliar o povo brasileiro.

O trabalho — de formiguinha! — que há de ser feito, embora não disponhamos absolutamente dos meios para o tornar socialmente significante, é bem conhecido: é a educação para a virtude, é a valorização da cultura, é o exercício da própria atividade no mundo com a devoção de um sacerdócio. Pode parecer pouco efetivo, e talvez o seja mesmo. Paciência, que ninguém está obrigado ao impossível; Deus haverá de nos julgar pelo (pouco) que conseguirmos fazer, ainda que fracassemos vergonhosamente em conduzir a nossa Pátria a um destino melhor do que este que hoje se lhe descortina.

À desesperança para com os rumos da Cidade dos Homens em cujo interior vivemos, contudo, não se nos deve somar espécie alguma de tibieza no que diz respeito aos nossos deveres cristãos para com o nosso horizonte próximo de influência: nossa família, nosso trabalho imediato, nossos amigos próximos. Se o destino dos reis e das nações foge ao nosso controle, cada vida é uma nação em miniatura e cada homem é rei e senhor do seu futuro. Talvez não dê para mudar o Brasil, mas decerto é possível salvar a própria alma — o que é muito mais importante.

A vida no século deve ser encarada à luz da Eternidade; somente assim é possível sobreviver-lhe. Aquela história de omnia hæc adicientur vobis (cf Mt 6, 33) tem implicações universais: também o bem público (só) é concedido aos homens por acréscimo. Não se ganha o mundo lutando contra ele; esta vitória só é possível alcançando Aquele que venceu o mundo. O mais é desperdiçar preciosas energias debatendo-se em vão.