Na festa de Cristo Rei

[Nesta semana em que comemorámos a solenidade de Cristo Rei, com a qual a Igreja finda o seu ano litúrgico e inicia a preparação de um novo ciclo de celebrações, publico com alegria este precioso texto sobre o Reinado de Nosso Senhor, gentilmente enviado pelo Bruno Borgarelli, a quem agradeço. Que em meio às trevas desta pós-modernidade desvairada nós nos esforcemos com denodo para que Cristo possa reinar — no pequeno mundo de nossas almas, no mundo mais amplo de nossas famílias e no vasto espaço das sociedades. Viva Cristo Rei!]

SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO

Bruno de Ávila Borgarelli

De todo o esplendor da Encíclica Quas Primas, de S.S. Pio XI, instituição da Solenidade de Cristo, Rei do Universo, deve o jurista atentar-se ao trecho respeitante à “pusilanimidade de certos católicos”, que vão esquecendo o Direito de Cristo sobre todas as coisas.

Sua Santidade nota essa tibieza, oportunamente operada sob a veste laicista, já em 1925.

Tanto mais notamo-la hoje, volvido quase um século, passada a Segunda Guerra, passadas as perturbações do violento século XX, e afinal abandonado o próprio estudo do Direito Natural em prol do odioso e protorrevolucionário “constitucionalismo contemporâneo”, insistente em achar princípios desgarrados da lei moral (como fosse isso possível).

Não espanta que sob o signo desse constitucionalismo os homens tenham dado foros de legitimidade ao que de mais repugnante existe, de que a ideologia de gênero é apenas um exemplo.

Sob este mesmo aporte, derivado da mesma negação de Cristo, advém a crise moral das instituições, transformado que fica o Estado em um mecanismo contínuo e eficiente de opressão e combate ao que ainda resta de cristão no mundo, na guerra aberta que opõe as “maiorias” à natural constituição da sociedade.

A participação da lei eterna na criatura racional, ou seja, a lei natural (“participatio legis aeternae in rationali creatura lex naturalis dicitur”; Summa Th., I-II, q.91, a.2) é o alvo por excelência de todos os combates desse ilegítimo “estado constitucional”.

Sabendo muito bem que a razão apreende a lei natural por conaturalidade, os revolucionários precisam ou usar a força para suprimir a mesma razão – e, assim, permitir que aflorem e sejam patrocinadas pelo Estado todas as tendências contrárias à natureza – como de fato ocorre; ou, melhor ainda, precisam tutelar o relativismo moral e os positivismos, frutos podres da mesma diabólica árvore.

Séculos de racionalismo laicista paralisaram a força do “justo”, petrificando-o em leis e códigos. Outros séculos de historicismo subtraíram, especialmente ao Direito Civil, o contato com a normatividade objetiva extraível da natureza humana.

O resultado pérfido veio, como fora arquitetado. Uma paralisia, uma inação, uma permissividade generalizada.

Olvidando, sob a pressão desses movimentos de brutal negação da objetividade, que as leis humanas positivas são meios de explicitação da lei natural, e de garantir sua eficácia, chega-se ao império não mais da lei, mas da corrupção das leis (pois, como diz Santo Tomás, “si vero in aliquo a lege naturali discordet, iam nom erit lex sed legis corruptio”).

Mandam os códigos, governa a obsessão das leis, pouco relevando sua iniquidade, sua discordância relativamente à justiça, aos preceitos da lex naturalis. O Direito Civil, primaz na regulamentação das instituições ligadas à natureza humana, perdeu a autoridade, como recorda Galvão de Sousa, que é então ocupada pelo “poder criador das assembleias”, restando a tecnocracia em lugar da constituição natural da sociedade (in “O Direito Civil entre o ‘ius naturale’ e a tecnocracia”).

E a sobrevivência das “instituições democráticas”, tomadas como fim em si, vale mais que a razão natural, vale mais que o culto público a Deus – que é mandamento, e não solicitação.

O credo fanático no legalismo, no laicismo, a idolatria da lei positiva humana, tudo isso decorre da tentativa de destronar Cristo, o que se epitomiza em certos fatores políticos e jurídicos, dentre os quais M. Bigotte Chorão identifica a Revolução Francesa, o Estado Liberal, os regimes comunistas etc.

Esse fanatismo já ninguém o pode negar. Oprime, amedronta, e se revela com maior ferocidade no acanhamento dos cristãos, que é justamente o que sublinha S.S. Pio XI na Quas Primas, identificando a “indolência e timidez dos bons que se abstêm de toda resistência, ou resistem com moleza, donde provém, nos adversários da Igreja, novo acréscimo de pretensões e de audácia”.

E não só se pode dizer que os católicos não exercem, na sociedade civil, a autoridade que conviria aos apologistas da fé, como observa Sua Santidade. Até exercem, eventualmente.

Mas a realidade é que as instituições se recheiam de pessoas que se anunciam como católicas, metem uma tímida imagem ao canto do gabinete, esboçam (nunca em público) o sinal da cruz, murmuram uma qualquer parte da Santa Doutrina – apenas quando a conveniência dos salões o permite -, e até frequentam os Sacramentos, mas não vivem a Verdade do Reino de Cristo.

E não a vivem na medida em que não trabalham para a efetiva instituição desse Reinado, porque já as contaminou o veneno do conformismo, da acomodação: “que faria eu, pobre cristão, para reverter a marcha do tal historicismo, do tal positivismo, do tal constitucionalismo?”

E tecem contas de orações por sua sobrevivência profissional, pensando assim: “exercerei em nome de Cristo esta função institucional que me foi confiada, e, quando detiver maior poder, estrategicamente, ajudarei a arrumar a sociedade, fazendo-a voltar aos princípios da lei natural”.

Estratégias, estratégias, estratégias!

Creem ser possível justificar que se dê às leis humanas civis, ainda por um instante, um valor em si, e não uma autoridade relativa, que somente se verifica na medida – na exata medida – em que respeitam a lei natural.

E creem em tal coisa porque calculam que é mais válido não enfrentar, neste momento, a “autoridade” da lei civil, afinal, “quem sou eu para bater de frente com o laicismo, a esta altura da história? Melhor é aceitar esse estado de coisas e ir lutando para mudar o que é possível”.

Mentira! Mero oportunismo, e não prudência.

Cálculos, cálculos, cálculos!

Essa ideia – tão bem “calculada” – é fruto do medo, do zelo excessivo de si, do receio de perder a reputação perante os homens. Cria-se uma pletora de justificativas para a pior das ações: a negação objetiva de Cristo, a quem cabe toda honra e toda a glória.

Esquecem-se, contudo, que o homem não se pode justificar a si mesmo contra Deus. Pois o homem que se justifica a si julga a Deus, negando sua autoridade (Rom 3,19). Jesus Nosso Senhor, puríssimo e sem mácula, não entrou a justificar-se perante Pilatos e a multidão. Ora então, quem é o homem para assacar argumentos contra Deus? (Jo 9, 14).

Esquecem-se do que diz S.S. Pio XII, na Alocução “Ci Riesce”: aquilo que não responde à lei moral não tem nenhum direito à existência, nem à propaganda, nem à ação. Sua Santidade não faz ressalvas: àquilo que está em desacordo com a lei moral não é dado direito algum, sequer de ser propagandeado.

Esquecem-se que a ninguém Deus deu licença de pecar (Eclo 15, 20).

Esquecem-se, enfim, que o dia de amanhã não foi prometido a ninguém. “Hodie non cras!”.

E nesses esquecimentos, sinais da covardia, vai-se esvaindo a potência para o bem, vai desmoronando a ordem (i.e., a disposição das coisas segundo seus fins), vai-se consumindo a força da catolicidade, pois quem adia o Reinado de Cristo, já negou Sua Divindade sobre todas as coisas.

Cai-se daí facilmente nos respeitos humanos. Afinal, tendo-se convencido de que é possível acumular poder nas coisas do mundo e só depois agir publicamente em nome de Cristo, parece oportuno, a tais pessoas, não criar desgastes com esta ou aquela autoridade, nem figurar sob a pecha de fanatismo (que os modernos atribuem ao verdadeiro católico).

E avançam nessa miserável vida de enganos, suportando no coração – decerto – o peso desse pecado, que conhecem bem, e que consiste em negar Deus.

Que infelizes não serão! Que sofrimento experimentam já, o qual, sem o arrependimento, se tornará danação eterna.

Afinal, a recompensa da Coroa só virá para os que praticam a verdade, e não para os que a pregam ou ouvem (Venerável Fulton Sheen). Muito menos virá tal recompensa para os que apenas murmuram a verdade, quando é conveniente, e quando as altas rodas não reprimem a exposição pública da fé.

Que terror não causa também o pensar que estamos todos nós, na provação que consiste em viver nesta época, igualmente sujeitos a tal desgraça.

A desgraça de julgar conforme nossos propósitos, de olvidar a Lei de Deus, de cair nos respeitos humanos, de zelar por nossos cargos, de amar nossas reputações, de encorajar nos outros essa mesma paixão desordenada – ou de não a desencorajar, em fraternal correção, quando assim agem – de ocultar a fé para ingressar nos círculos de mando da sociedade, de oferecer justificativas para nós mesmos.

Que Nosso Senhor nos ensine a continuamente rejeitar o mundo e suas falsas benesses, e a resgatar verdadeiramente – sem pusilanimidade e tibieza – sua Lei.

Que Ele nos conceda sabedoria para nos humilharmos diante de sua Majestade e Poder.

De joelhos, hoje, na Festa instituída em recordação ao Reinado de Cristo sobre todo o Universo, brademos como está Escrito:

“Levanta-te, ó Deus, e julgue toda a Terra, porque a ti pertencem todas as nações!” (Sm 82, 8)

Viva Cristo Rei!

Bruno de Ávila Borgarelli

São Paulo, 24.XI.2019

Todo bem radica no Evangelho

No seu livro de memórias, Joaquim Nabuco, lá pelas tantas, se queixa de que a abolição no Brasil tenha sido antes um arroubo revolucionário que um apostolado religioso. E nisso distingue a caridade cristã do amor à humanidade, dizendo que tanto este amor quanto aquela caridade podem disputar a realização de uma mesma obra — por vezes avantajando-se o último quando a primeira fraqueja. Mas não é indiferente que os avanços sociais sejam conquistados pela caridade ou pela filantropia, porque no primeiro caso é mais provável que eles deitem raízes e frutifiquem, enquanto no último é-lhes mais fácil estagnar ou se degenerar.

Ora, Deus é o autor de todo bem. Assim como toda verdade pertence à Igreja onde quer que ela seja proferida — dizia Santo Tomás para explicar, embora não com esses termos modernos, os elementos de santificação e verdade existentes em meio aos hereges –, do mesmo modo todo e qualquer bem na ordem temporal radica no Evangelho, a ele pertence por direito, por ele pode ser reclamado e a ele deve ser ordenado. Que a mera filantropia possa por vezes chegar (acidental e parcialmente) ao bem humano é irrelevante: é claro que o amor natural pode mover o homem à prática de algum bem, assim como a razão natural pode chegar ao descobrimento de certas verdades. Isto, no entanto, não torna a Fé despicienda, nem aquilo torna prescindível a Caridade.

Ao contrário do que somos condicionados a pensar no nosso mundo polarizado pelas redes sociais, as bandeiras não têm o valor ou o desvalor de quem as empunha. No mundo das ideias, os vexilos valem o que representam independente de quem marche sob eles. Assim, por exemplo, a abolição era e é uma causa evangélica ainda que fosse tomada a peito pelos revolucionários, e do mesmo modo o pagamento do justo salário aos empregados era e é uma causa católica ainda que historicamente a reclamem os comunistas.

Pelas mesmíssimas razões, e mutatis mutandis, as questões ambientais dizem respeito ao Reino de Deus, são de interesse e propriedade do Cristianismo — único capaz de lhes dar a correta dimensão e a justa medida — e podem e devem ser reclamadas atualmente pelos cristãos. Que hoje em dia as monopolizem e distorçam os naturalistas e panteístas é coisa que não nos deve espantar; aliás, tal circunstância deveria ser, antes, um motivo a mais para nos dedicarmos à defesa e difusão de uma concepção correta acerca dos direitos e deveres do homem para com a Criação. Da mesma forma que não se combate o comunismo defendendo a jornada de trabalho da Revolução Industrial, assim também não se combate o (por falta de termo melhor) ambientalismo neopagão jogando garrafa plástica no rio ou tocando fogo em mico-leão dourado.

As paixões humanas tendem a ocupar os espaços onde os cristãos não fazem chegar a força do Evangelho. E o amor natural, como dizíamos, é bom e é capaz de coisas boas; mas é também decaído, propenso ao erro e capaz de equívocos. O moderno discurso ambientalista está repleto desses erros e desses equívocos. Mas disso não segue — ao menos não necessariamente, ao menos não para todos os que o adotam — que nele haja malícia em princípio, ou que ele seja desprovido de razão em todas as questões que levanta. Os cristãos devem, sim, levantar a sua voz no debate ambiental, porque a Criação é obra de Deus, e é muito importante para ficar nas mãos de gente sem Fé.

O sacerdote reduzido ao estado laical

O ex-Cardeal Theodore McCarrick, Arcebispo emérito de Washington, foi recentemente destituído do estado clerical após o Vaticano considerá-lo culpado de “abusos sexuais de menores e adultos”. O assunto foi bastante comentado, compreensivelmente, porque coisas assim não saem na imprensa todos os dias — aliás, atingindo um membro do colégio cardinalício, parece que o caso de McCarrick é o primeiro em muitos séculos.

Não se pode dizer que o procedimento seja tão excepcional que quase nunca seja aplicado. Em anos recentes o Papa Francisco reduziu Marco Mangiacasale e Fernando Karadima ao estado laical por abusarem de menores. Também por conta de abusos sexuais o Papa Bento XVI demitiu do estado clerical 384 padres entre os anos de 2011 e 2012. Isso sem contar os casos mais conhecidos, como o do paraguaio Fernando Lugo ou do africano Emanuel Millingo, ambos bispos, que foram laicizados por Bento XVI — nestes casos, sem que houvesse acusações de abuso sexual, é bom registrar.

Algumas pessoas reclamaram da expressão “redução ao estado laical”, como se ela implicasse em demérito para com os leigos católicos. Como se a punição aplicável a um mau sacerdote — a um predador sexual! — fosse passar a viver como leigo, isto é, no mesmo estado de vida em que sempre viveu a imensa maior parte dos católicos do mundo. Como se ser leigo fosse um castigo e não uma vocação. Ora, acontece que não se trata disso.

Quando um sacerdote é reduzido ao estado laical, a pena dele não é “ser leigo”. Ele nunca vai ser leigo. O Sacramento da Ordem imprime na alma caráter indelével, que não pode ser jamais removido; não existe retorno ao status quo ante aqui. O sacerdote reduzido ainda assim é sacerdote, e é justamente nesta contradição entre a sua natureza e o seu estado de vida que reside a pena do Cân. 1336 do Código de Direito Canônico.

O sacerdote ordenado recebe por assim dizer duas coisas distintas no dia da sua ordenação: uma, o Sacramento, a conformação da alma a Cristo Sumo Sacerdote, outra, o ministério, a permissão para exercer o sacerdócio no grêmio da Santa Igreja. A primeira tem uma dimensão pessoal, ontológica, ad intra; a segunda, uma dimensão eclesial, ministerial, ad extra. Sacerdote é o que se é; sacerdócio, o que se exerce.

A demissão do estado clerical não é uma ordenação ao contrário. Mesmo com a demissão, o demitido permanece ordenado: “[a] sagrada ordenação, uma vez recebida validamente, nunca se anula” (CIC, Cân. 290). Não é, portanto, que ele deixe de ser sacerdote; o que lhe é retirado é o exercício do sacerdócio. Não é, de maneira alguma!, que ele passe a ser leigo. O que lhe ocorre é que ele, não sendo leigo, passa a precisar viver como se leigo fosse.

A situação do leigo é toda outra. O leigo vive como leigo porque é leigo; o seu estado de vida está em conformidade com a sua vocação e com a natureza de sua alma. Não há, no leigo, tensão alguma entre aquilo que se é e a forma como se vive. As duas situações — a do leigo não-ordenado e a do sacerdote ordenado que perde o estado clerical — não guardam semelhança entre si a ponto de se poder dizer que a redução ao estado laical equivale a “ser leigo” simpliciter. Não equivale de nenhuma maneira. Aquilo que para o leigo é caminho de santificação, para o sacerdote é um fardo. Tal é decorrência natural da própria diversidade entre os homens e entre os estados de vida na Igreja.

A demissão do estado clerical é uma situação extrema que merece a nossa atenção: para nossa vergonha, ela é mais frequente do que gostaríamos de acreditar. Quereríamos que os sacerdotes fossem, todos, fiéis à sua vocação, dóceis à graça sacramental, verdadeiros imitadores de Cristo; no entanto, muitas vezes esta não é a realidade com a qual nos deparamos na Igreja.

Precisamos rezar por estes sacerdotes! A demissão do estado clerical, nos termos do Direito Canônico, é uma “pena expiatória”. Significa que ela tem por fim purgar a culpa, expiar o delito; significa que a Igreja a impõe não para afastar o sacerdote de Deus, mas sim para reconduzi-lo ao caminho da salvação. Para que ele a aceite como justa punição pelos seus crimes e, aceitando-a, arrependendo-se, humilhando-se e sofrendo, inicie o seu processo de reabilitação diante de Deus. Não se trata de condenar, mas de remir. É obra de justiça, sim, mas também de misericórdia.

Hoje se inicia no Vaticano o Encontro sobre a proteção dos menores na Igreja. Unamo-nos em oração ao Papa Francisco, aos santos do Céu e a todos os católicos da terra aos quais cobre de dor e vergonha a imoralidade do clero. Rezemos por todos os sacerdotes, para que sejam santos, para que estejam à altura da vocação que receberam, para que tenham consciência da própria dignidade. Para que sejam hóstia pura no altar de Deus. Senhor, salvai e purificai a Vossa Igreja. Senhor, tende misericórdia de todos nós.

Questões religiosas e questões políticas

Muito bonita e muito verdadeira a afirmação do Card. Dolan acerca de o aborto não ser uma questão de “direita” contra “esquerda”, mas sim do que é certo contra o que é errado. O trocadilho é intradutível: “[abortion is not about] right versus left, but right versus wrong”, e aliás não é da lavra do Cardeal de Nova York e sim do ex-governador da Pensilvânia Bob Casey Sr. Casey era do partido democrata e adversário ferrenho do aborto.

A política americana atual se encontra dividida entre dois campos ideológicos opostos e irreconciliáveis. Cada grupo tem o seu próprio pacote de reivindicações pronto e acabado: a esquerda é a favor do aborto e dos direitos dos trabalhadores, a direita é a favor das armas e do direito de propriedade. A esquerda é progressista e a direita é conservadora. A esquerda é o Partido Democrata e, a direita, o Partido Republicano.

Esta caricatura de ideologia política transcendeu as fronteiras dos Estados Unidos da América e, no mundo globalizado em que vivemos, passou a dar o tom de toda política. Assim, em qualquer lugar do mundo, hoje você é constantemente interpelado a se definir em termos de direita ou de esquerda; pior ainda, a depender das respostas que você dê a certos temas tidos como “representativos” (como política de drogas ou taxação de dividendos, por exemplo), você é classificado como pertencente a um grupo ou outro e, automaticamente, as pessoas atribuem a você — para o bem e para o mal — todo o pacote ideológico daquele grupo.

Assim, se você é, por exemplo, religioso, contra o casamento gay e contra o aborto, as pessoas presumem que você também é contra as políticas assistencialistas e as cotas sociais. Ou se você é a favor do divórcio, dos imigrantes e contra a presença de símbolos religiosos em prédios públicos, os outros presumem que você também é contra a posse de armas de fogo e a favor da intervenção forte do Estado na economia. Isso facilita as coisas, sem dúvidas, isso reduz complexidade social, mas isso também limita o campo de atuação humano e, convenhamos, dificulta e falseia o debate público. Ou seja, isso termina por atrapalhar a política.

Essa forma com a qual nos acostumamos a enxergar a realidade tem dois grandes problemas. O primeiro, como já foi ventilado, é que isso limita a esfera de ação daqueles que querem participar da vida pública. Precisando optar por um grupo político ou pelo outro, o cidadão acaba sendo coagido a comprar o “pacote completo” para fins de pragmatismo político e para fortalecer a identidade partidária: assim, o sujeito concorda bastante com x, w e z, não concorda muito com y mas acaba encampando também a sua defesa porque de outra sorte não teria espaço para defender x, w e z — que é aquilo pelo que ele realmente gostaria de lutar. Ou seja, a pessoa defende algumas coisas por convicção interior e outras por condicionamento exterior.

O segundo problema é ainda pior. É que existem algumas coisas dentro destes pacotes político-ideológicos — muitas coisas, eu diria — que são perfeitamente discutíveis, com relação às quais se pode chegar a diversos arranjos legítimos. Não existe uma única maneira correta de se cobrar impostos ou de se elencar os deveres mínimos que os empregadores devem guardar para com os seus empregados. Definir se a maioridade penal deve ou não coincidir com a maioridade civil, ou repartir entre os patrões e a sociedade os custos da licença-maternidade, isso são coisas cujas concretizações podem ser francamente inaceitáveis, sem dúvidas, mas que também se podem concretizar de muitas maneiras perfeitamente aceitáveis. Em temas assim, as questões verdadeiramente morais só se impõem nos seus extremos, deixando uma ampla margem para o saudável exercício da prudência e dos juízos contingentes. Aqui há muito espaço para negociações.

Mas isso não se aplica a todos os temas. Em particular, a defesa da vida não é negociável da mesma maneira que a alíquota do imposto de renda; com o aborto, com o assassínio, com o mal, não é possível condescender de nenhuma maneira. Não é possível, aqui, forçar um meio-termo que privilegie os dois lados da disputa: qualquer mínima autorização ao aborto é sempre e em si mesma uma ofensa objetiva à justiça e ao direito, uma ferida aberta na civilização. Da mesma forma que não se pode pacificar o embate entre escravocratas e abolicionistas dizendo que “apenas” poderão ser escravas as pessoas nas condições A, B e C: por restritíssimas que fossem essas condições, ainda assim elas não fariam descansar os que combatessem a escravidão.

O aborto permitido em condições restritas não é uma deferência concedida aos pró-vida, não é uma situação socialmente pacificada que se deve lutar pra manter: diante do horror do aborto, como diante do horror da escravatura, a única resposta humana possível é a luta por sua total abolição. Com menos do que isso não pode haver paz. Enquanto uma única criança puder ser assassinada com a anuência do Estado, então não é possível estar em paz com esse simulacro de direito e com esta caricatura de justiça.

Foto: Infocatólica | © Getty

A imensa maior parte dos outros temas politicamente relevantes não tem essa mesma imperiosidade. Foi por isso que o Card. Dolan pôde responder assim ao governador de Nova York, que parece ter enorme dificuldade para perceber estas nuances:

Ele — o governador — não me considerava parte da “direita religiosa” quando procurava minha ajuda para o aumento do salário mínimo, a reforma penitenciária, a proteção dos trabalhadores, a acolhida dos imigrantes e refugiados e a promoção da educação universitária para a população carcerária — causas pelas quais estávamos felizes de nos associar com ele, porque também eram as nossas causas. Suponho que eu era parte da “esquerda religiosa” nesses casos.

Card. Dolan

Em resumo, é preciso ter cuidado hoje em dia, porque nem tudo o que se costuma discutir entre pessoas religiosas é uma questão religiosa, como nem tudo sobre o que os políticos são chamados a se manifestar é uma questão política. Há no meio dos “pacotes ideológicos” muitas coisas que não podem ser defendidas com intransigência religiosa, como há também algumas coisas que não podem ser negociadas com condescendência política. É preciso saber separar uma coisa de outra — isso para o bem da política como para o bem da religião.

Deixa as pessoas!

De ontem para hoje a internet se encheu de homenagens a Mr. Catra, o funkeiro que morreu aos 49 anos deixando 3 viúvas e 32 filhos. Em particular, tem obtido boa circulação o seguinte tweet do artista, que condensa em cento e poucos caracteres uma seletiva forma de laissez-faire curiosamente com muito boa aceitação nos dias de hoje:

Deixa as pessoas!

Divulgam-no, como é de praxe, toda a caterva dos anti-clericais, que não esconde a vontade de ver a Igreja deixar de “se meter” na “vida dos outros”. E, nos shares dos paladinos desse neoliberalismo moral, o defunto — cujo corpo nem esfriou direito ainda — se transforma em ponta de lança para atacar o alegado moralismo religioso. Mas o que dizer disso?

Cumpre, em primeiro lugar, deixar claro uma coisa: a Moral, assim como a religião em geral e o Catolicismo em particular, deixam e sempre deixaram as pessoas fazerem de suas vidas o que bem entendessem. E nem poderia ser diferente, porque os preceitos morais, assim como os religiosos, não têm propriamente a força de coagir ninguém a fazer nada. A não ser, é claro, a força moral que lhes é intrínseca e que, em um certo sentido muito particular, constrange, sim, a alma humana — que não obstante é sempre livre — a agir de tal maneira ou a deixar de agir de tal outra. Mas essa força moral é própria das idéias e não lhes pode ser retirada: só é possível acabar com aquela silenciando estas.

Daí a importância de entender bem a revolta dos anticlericais. Eles não querem que a Igreja deixe (p. ex.) “os gay ser gay” no sentido, digamos, físico do verbo deixar. Porque ninguém jamais precisou de autorização eclesiástica para namorar rapazes e nem a Guarda Suíça anda à caça de sodomitas para os impedir de conspurcar o ato sexual criado por Deus. O que querem os revoltosos de hoje é uma coisa mais profunda (e mais diabólica) do que as simples liberdades civis das revoluções burguesas: por detrás de um tweet de efeito, o que eles exigem é que as pessoas deixem de condenar como imorais determinados comportamentos — tais como, p. ex., o ato sexual contrário à natureza, a gula, a fornicação.

E vamos colocar as coisas em seus devidos lugares. Ninguém está obrigado a seguir o ensino moral da Igreja Católica (ou de qualquer outra religião) acerca da sexualidade responsável. Exigir, no entanto, que se silencie ou se modifique este ensinamento moral a fim de que as pessoas não sejam sequer confrontadas com uma visão de mundo antagônica às suas próprias, tal é extrapolar um pouco o (justíssimo) papel que as liberdades individuais devem desempenhar em uma sociedade saudável. 

No fundo, o que os propagadores do tweet mistercátrico querem não é simplesmente que a gente deixe “as mina dar” (!), como se elas nos pedissem permissão para isso ou como se tivéssemos o hábito de interromper à força intimidades alheias. Em vez disso, o que eles querem, exigem!, é que a gente sequer ouse levantar um juízo de censura sobre a degradação da sexualidade humana que o Mr. Catra soube tão bem consolidar em menos de 140 caracteres. No fundo, o que ele quer não é apenas fazer os seus filhos, porque isso ele passou a vida inteiro fazendo com espantosa prodigalidade: ele quer fazê-los sem que ninguém sequer sugira que o ato de sair por aí gerando várias crianças em várias mulheres talvez não corresponda muito bem àquilo que entendemos por dignidade humana.

Enfim, não se trata simplesmente de deixar as pessoas; o que se almeja é deixá-las imunes mesmo àquelas palavras que talvez inquietem um pouco as suas consciências. Não é um grito de liberdade, é o contrário: é um libelo em que o que se pede, ao fim e ao cabo, é a censura de idéias pura e simples.

O livre-arbítrio é uma coisa importante. Devíamos deixar as pessoas tomarem as suas próprias decisões, sim. Só que isso inclui também deixar a Igreja dizer o que é certo e o que é errado. Afinal de contas, segue-A quem quer.

Quanto a Wagner Domingues Costa, o Mr. Catra, que o Bom Deus tenha misericórdia dele e lhe conceda, pela Sua Misericórdia, o descanso eterno, a luz e a paz. Que Ele olhe com particular cuidado também para as ex-companheiras do cantor, bem como para a prole generosa que ele (tão desordenadamente) deixa sobre a terra. E que o Evangelho nunca deixe de ressoar na sociedade, ainda que isso incomode o estilo de vida eventualmente adotado por alguns.

Não faltam apenas bons pastores na Igreja: também se precisa de bons súditos

Nestes dias terríveis, nesta hora lancinante, neste momento agônico onde a crise da Igreja parece atingir o paroxismo, é preciso — mais do que nunca! — manter os pés no chão e os olhos voltados para o Alto; é preciso não se precipitar e não se deixar levar pelos instintos da turba, por justos que eles pareçam neste momento; é preciso respirar fundo e tomar a decisão mais racional e mais correta, por mais antipática que ela se apresente agora.

É um momento particularmente difícil e que nos deixa desnorteados! Grandes baluartes do Catolicismo tradicional, em pungente descompostura, vêm a público quais camponeses desesperados, munidos de archotes e forquilhas, cercar a Cidade Eterna em uma noite de lua minguante para pedir — quem o ousaria imaginar jamais? — a cabeça do Cristo-na-Terra. Católicos tradicionais, conservadores, pedindo em público a renúncia do Papa! Seria inacreditável, uma piada de mau gosto, uma burla grotesca, se não fosse a terrível e dolorosa verdade.

E nem estamos falando dos críticos inveterados de tudo o que sucede e procede do Vaticano II. Agora são pessoas equilibradas, apostolados sérios, nomes respeitáveis que fazem coro à denúncia e ao brado do Mons. Viganò pela renúncia do Papa Francisco por conta do escândalo do Card. McCarrick. É o Rorate Caeli que publica um editorial dizendo que “[o Papa] Francisco deve ir”; é o Michael Voris dizendo que o “Papa Francisco deve renunciar”; é o Thomas Peters — compartilhado pelo Scott Hahn! — dizendo que se as acusações de Viganò forem verdadeiras “a única coisa responsável que o Papa pode fazer é renunciar”.

É preciso ter calma. É preciso ter paciência. É preciso sofrer as dores, a vergonha, a infâmia, é preciso entornar corajosamente o cálice até a última gota, até lhe ver o fundo. É preciso, na falta de expressão melhor, resignar-se.

Neste momento de grave crise é preciso ser tradicional, é preciso ser conservador, é preciso ser católico. E a coisa católica, conservadora e tradicional a ser feita certamente não é pedir a renúncia do Soberano Pontífice. Nem mesmo situações extraordinárias autorizam que se lance mão de expedientes revolucionários; não é lícito fazer o mal para que dele advenha um bem. Súditos exigirem nas ruas a renúncia do monarca não é uma atitude conservadora, subordinados clamarem nas praças pela abdicação dos superiores não é uma coisa tradicional, leigos publicarem manifestos para que o Papa renuncie ao Trono de Pedro é coisa inaudita em vinte séculos de Cristianismo.

É preciso dizer “não”. É preciso resistir.

E não se trata de menoscabar as denúncias do Mons. Viganò. Elas são graves e precisam ser levadas a sério por toda a Igreja. Como disse alguém, não é uma disputa intestina entre conservadores e progressistas no seio da Igreja Católica: é a dor provocada a todos por um clero corrompido, um clero por cuja santificação cada membro do Corpo de Cristo é chamado a derramar as suas lágrimas.

Não se trata, insista-se, de desprezar as denúncias do ex-núncio. Ao contrário, é para que elas sejam levadas suficientemente a sério que é preciso separar, no seu testemunho, o que é denúncia e o que é opinião, o que é problema apontado e o que é solução apresentada. A rede de homossexuais que existe no clero é a denúncia, clara e inequívoca, que ou é verdadeira ou é falsa; a demissão de todos os de alguma maneira envolvidos no acobertamento desta rede, isso é uma proposta de solução, que não necessariamente é a única solução possível. Para uma coisa ser verdadeira não é necessário que a outra também o seja; para se dar crédito à denúncia feita pelo Arcebispo, não é necessário adotar a mesma opinião do Arcebispo quanto à resposta que se lhe deve dar.

A íntegra do testemunho de Mons. Viganò pode ser lida aqui. Não acho, sinceramente, que lhe seja possível questionar o conteúdo; acredito que o Arcebispo é sincero e, o seu relato, é substancialmente verdadeiro. Não acho que a defesa do Papa exija desacreditar as palavras do Arcebispo, como parece ser a linha adotada pelo Andrea Tornielli (primeiro aqui e, mais detalhadamente, aqui): com isso se corre o risco de perder de vista a dimensão da corrupção do clero e de deixar de tomar as medidas necessárias à sua purificação.

Porque é evidente que há corruptos entre o clero; é evidente que a Igreja agoniza e precisa de profunda reforma doutrinária e moral. Todo mundo sabe disso; sem dúvidas o Papa Francisco o sabe também.

Estou disposto a aceitar que o Papa Francisco estava certamente informado das acusações contra o Card. McCarrick. Quem, no entanto, será capaz de aquilatar o quanto ele efetivamente lhes dava crédito? Ou se ele acreditava que os pecados do Cardeal pertenciam a um passado do qual Sua Eminência já estava arrependido? Ou se achava que as medidas tomadas contra ele já tinham cumprido o seu caráter ressarcitório, e, afinal de contas, toda pena há de ter o seu fim? Não há, absolutamente!, nenhum liame necessário entre reabilitar um cardeal homossexual e apoiar a agenda gay. Há erros de juízo prático de diversas matizes; nem todos eles têm a mesma dimensão; e nenhum, absolutamente nenhum erro do Romano Pontífice nesta seara autoriza os católicos a saírem às ruas para lhe coagir a renunciar.

Defender o Papa, como eu dizia, não exige desacreditar o Mons. Viganò. É o contrário: é defender a denúncia do Mons. Viganò que exige desacreditar a campanha pública pela saída do Papa Francisco. Tal campanha é moderna e revolucionária, é anti-tradicional, desnecessária e contraproducente. O Papa obviamente não é “infalível” em seus atos de governo (a categoria nem se pode aplicar aqui), mas é soberano. E ser soberano significa, justamente, que ninguém lhe pode exigir que responda pelos eventuais erros que cometa.

O Papa pode perfeitamente renunciar. Mas pode também, e também perfeitamente, não renunciar, e não há poder algum sobre a terra que tenha o direito de lhe exigir a Grã Renúncia. E se os fiéis não podem demandar a renúncia do Papa — como de fato não o podem –, então essa mobilização toda nas redes sociais é fumaça e pirotecnia, e pior, é desperdício de esforços e desvio de rumos.

Que choremos pela Igreja, que Lhe ofereçamos as nossas dores e coloquemos o nosso trabalho à Sua disposição. E que rezemos pelo Papa, rezemos pelo Doce Cristo-na-Terra, peçamos a Deus que o ilumine e que nos ilumine. Que o Espírito Santo nos ajude: que ensine o Papa a ser Pastor, e nos ensine a nós, leigos, a sermos súditos.

Não basta não ser pecador, é preciso ser santo

Ainda sobre a questão dos abusos sexuais praticados por membros do clero, foram publicados nos últimos dias diversos textos abordando aspectos bastante pertinentes do problema. Comento aqui somente um ou outro ponto deles, escolhidos por afinidade temática e não por serem necessariamente os mais importantes. O assunto é bem grave e demanda mesmo textos longos, cuja leitura na íntegra este post não tem a pretensão de suprir.

Chamo a atenção, em primeiríssimo lugar, para o Carlos Ramalhete apontando o homossexualismo como a verdadeira raiz do problema. «O que agora vem se tornando claro, ainda que disso pouco se falasse no começo do escândalo, mas que eu vinha falando desde que estes horrores inomináveis começaram a vir à luz, é que as vítimas, em sua imensíssima maioria, não eram criancinhas, mas rapazinhos. Em outras palavras, não se trata, nunca se tratou, de um escândalo de pedofilia, sim de efebofilia. Ou, em outras palavras, de homossexualismo.» 

Esta análise, é importante frisar, não é característica exclusiva de católicos conservadores. Gostaria de lembrar que mesmo os ataques virulentos de um Reinaldo Azevedo contra o celibato católico têm esse mesmíssimo pano de fundo. Veja-se, por exemplo, velharias como “Igreja não é armário”, “Ou a Igreja acaba com o celibato ou o celibato acaba com a Igreja” (sic) e “Sacerdócio não é armário”. Naturalmente, este blog por diversas vezes já se levantou contra a tagarelice do sr. Reinaldo quando de suas incursões pouco piedosas no terreno do Catolicismo; neste caso específico, no entanto, o erro dele é de terapêutica e não de diagnóstico. A constatação de que há homossexuais infiltrados no clero católico é uma constatação verdadeira; a idéia de acabar com o celibato por conta disso é que é uma estupidez.

É compreensível que as pessoas — de boa ou de má vontade — queiram apontar soluções para o problema; talvez mais do que nunca, esta é uma marca dos dias atuais. Mas existem alguns pontos que não podem ser obscurecidos. Primeiro, que a reforma da vida sacerdotal virá dos sacerdotes e não dos leigos — e, portanto, as intermináveis laudas publicadas na internet sobre o assunto não podem aspirar senão a um papel bem modesto nesta batalha. Segundo, que a abominação da desolação exige de nós orações redobradas: o Papa Francisco chegou a pedir ao povo de Deus jejum e oração, lembrando que — segundo Nosso Senhor — é somente à força deles que certos demônios podem ser expulsados. E, terceiro, que a vastidão dos pecados do clero não nos pode fazer perder de vista — nem por um segundo — a multidão ainda mais inumerável de padres honestos, que decerto prefeririam morrer a desonrar a vocação sacerdotal a que um dia foram chamados. É preciso, mais do que nunca, rezar por eles.

Este último ponto, no entanto, precisa de maiores desenvolvimentos. É que o lobby gay dentro da Igreja aparenta ser tão vasto que houve até quem falasse em uma corrupção do clero a rivalizar com a da época dos Bórgia (!). A retórica é exagerada e até mesmo injusta; mas que se deixe isso um pouco de lado por enquanto, porque a situação é calamitosa, e às vezes acontece de pessoas bem intencionadas errarem a mão na hora de se levantarem contra injustiças. O fato é que um laxismo generalizado paira sobre a Igreja, e isso é escandaloso e atrai a ira de Deus. «O triunfo da degradação homossexual em tantas dioceses e ministérios na Igreja Católica», diz o artigo do Matthew Hoffman, «deve-se a uma causa fundamental: a aceitação generalizada de um laxismo moral que minimiza a gravidade do pecado sexual e entende a continência como um simples “ideal”, fora do alcance de um católico comum.»

Trata-se de um naturalismo grosseiro que desdenha da graça de Deus e que, em última instância, almeja confinar a sublime vocação humana à santidade em uma vida medíocre e acomodada. Trata-se de uma completa inversão do ideário missionário da Igreja, que sempre consistiu na elevação moral dos católicos para muito além do espírito do seu tempo e, hoje, parece empenhado em reduzir as sublimes exigências do Cristianismo à altura de homens tíbios e pusilânimes, satisfeitos em se arrastar mundo afora curvados sob o peso da própria sensualidade. Trata-se, em suma, de algo indigno da Igreja nascida do costado traspassado de Cristo no alto da Cruz, que foi fundada para arrancar dolorosamente o pecado do mundo e não para acomodar confortavelmente o mundo no pecado.

Essas cores podem parecer demasiado vívidas, mas é sinceramente difícil escolher outras com as quais se possa pintar honestamente o panorama atual. Cada notícia que nos chega é mais escabrosa do a anterior. Agora o Michael Voris denunciou uma rede de tráfico de seminaristas homossexuais (!) da Colômbia para os Estados Unidos, que funcionou durante anos e se estendia por diversas paróquias e dioceses do leste americano. A matéria fala em “por lo menos seis diócesis implicadas”, número que, por conta das informações que continuam chegando, “sigue creciendo”.

Tudo isso é um acinte, é um escárnio, é uma vergonha. E uma situação assim drástica exige uma reação também vigorosa, enérgica, radical. Diante de tamanha podridão não é suficiente se manter fleumaticamente afastado: é preciso o combate explosivo, colérico, visceral. Os pecados são muitos e muito graves; é preciso contrapôr a eles um clero santo. Não é o suficiente guardar a própria castidade, é preciso fazer violência contra o laxismo hegemônico. Não basta não ser homossexual, não basta não estar envolvido em escândalos, é preciso denunciar e combater os que desonram a Igreja de Nosso Senhor. Não basta levar uma vida meia-boca, dessas que, como se diz, “não fede nem cheira”: é preciso ser trigo sadio e vistoso, que se ergue, dourado, em direção ao sol, abafando e sufocando com a própria virtude o joio circundante. Não basta não ser pecador; é preciso ser santo.

E que nós, leigos, possamos rezar mais e nos mortificar mais, que passemos a nos voltar para Deus com mais frequência e com mais confiança, e que levemos mais a sério a Fé em Cristo que a Igreja nos legou. Ela sofre e agoniza. Nós queremos vê-La saudável e resplandecente, iluminando todos os homens e sendo, na História, instrumento eficaz da glória de Deus e da salvação das almas. Mas nossas mãos estão atadas. Sacerdotes de Cristo, tomai sob vosso encargo, corajosamente, virilmente, a defesa da Esposa de Nosso Senhor! É a vós que primeiro compete restaurá-La. Sem vós nada podemos fazer.

A Argentina resiste

E o aborto não foi legalizado na Argentina. Não desta vez. É sem dúvidas uma vitória importante, é algo a se comemorar e a agradecer, de joelhos!, a Nosso Senhor e à Virgem Santíssima; mas é também um importante aviso de que devemos — precisamos! — sair da defensiva e assumir um maior protagonismo nesta encarniçada guerra que se trava, escancarada, bem diante de nossos olhos, entre a vida civilizada e a cultura da morte. O aborto não foi aprovado de ontem para hoje na Argentina; mas ele poderia ter sido aprovado, e essa só possibilidade já é uma tragédia e uma vergonha. O avanço da barbárie foi terrível; o estrago que já foi feito é desmesurado; e talvez não estejamos levando suficientemente a sério toda a dimensão do que nos incumbe fazer.

É preciso continuar alerta. O projeto que fora aprovado na Câmara dos Deputados por uma verdadeira maioria de ocasião — 128 votos favoráveis contra 124 contrários — foi derrubado esta madrugada no Senado e não poderá voltar a ser apresentado até a próxima sessão legislativa, que só se inicia em março do ano que vem. No entanto, ainda este mês o Parlamento argentino vai começar a discutir a reforma do Código Penal — que, como não poderia deixar de ser, também vai precisar se posicionar sobre o crime do aborto. A batalha foi superada, mas a guerra está ainda muito longe de acabar.

É preciso não dar tréguas ao mal, e isso tem aqui uma dupla consequência. Por um lado é preciso sem dúvidas parar com o bom-mocismo; é preciso deixar de prestar deferência, em nome da alegada troca civilizada de idéias, aos fautores do crime horrendo do aborto. É preciso chamar o mal de mal com toda a força dos pulmões; é preciso denunciar a insuperável incivilidade da posição abortista. Duas pessoas podem discordar — inclusive de maneira muito irredutível e muito visceral — a respeito de posições, não obstante opostas, em si mesmas respeitáveis, e mesmo dois ferrenhos adversários podem ser capazes de reconhecer isso. Mas um pró-vida não pode agir com a mesma condescendência para com um abortista. Não se está aqui tratando de duas visões de mundo legítimas: antes é o embate entre uma cosmovisão e uma cosmocegueira. A maldade intrínseca do abortismo precisa ser exposta sem tréguas, porque a apologia do pecado é pior do que o próprio pecado.

E esta é a segunda consequência: a prática do aborto é pecaminosa, mas a promoção do aborto é satânica. Se é preciso combater o abortismo com todo o afã, é igualmente preciso desdobrar-se para resgatar as almas que estão à beira do abismo do aborto ou nele já caíram. O abortismo precisa ser massacrado impiedosamente; a mulher que abortou ou pensa em abortar, no entanto, esta precisa ser salva. Estatísticas bem duvidosas dizem que uma a cada cinco mulheres aos quarenta anos já terá feito um aborto; ainda que isso fosse mesmo verdadeiro, não seria verdade que vinte por cento das mulheres fossem abortistas.

Não nos deve assombrar a vastidão do pecado; ao contrário, ela pode e deve ser vista como uma oportunidade para a superabundância da graça. Já escrevi aqui outra vez sobre as mulheres que confessavam abortos: elas podem engrossar as estatísticas dos crimes que já mancharam a nossa Pátria, mas de maneira alguma servem para pavimentar a estrada do assassínio institucionalizado. Em poucas palavras, não se sabe ao certo o número de abortos praticados nos países onde ele é proibido; quanto maior for esse número, no entanto, maior deve ser o empenho para lhe pôr renovados embaraços, para dificultar ainda mais a sua prática. É próprio da honra e da virtude combater com mais ardor, com mais afinco, com mais abnegação, quanto mais vigoroso for o inimigo que nos assalta. Ao contrário, recuar perante o avanço da iniquidade é o que faz uma nação de covardes, uma sociedade de escravos.

É preciso criatividade para cativar os corações e para salvar vidas do aborto. Não podemos mais nos dar ao luxo de levantar em defesa dos indefesos apenas alguns artigos do Código Penal; é preciso dar-lhes vida e efetividade, é preciso impingir com cores vigorosas nas almas o horror deste crime. Que haja abortos, repita-se, não deveria tanto nos assombrar; que haja quem defenda o aborto, este é o maior mal e o inimigo mais macabro, este é o demônio com o qual não é possível fazer acordos, e que é preciso exorcizar à força de mais jejuns e orações que até então vínhamos fazendo.

A Argentina não caiu. No entanto, o golpe sofrido precisa nos fazer acordar. É preciso reconhecer a seriedade da guerra e a importância de nos comprometermos mais com a causa: porque do lado de lá não faltam pessoas comprometidas com o derramamento de sangue inocente. Foi-nos concedida uma pequena vitória, mas não nos enganemos: estamos ainda em plena guerra, com o inimigo à espreita, e não nos é lícito abaixar a guarda por um instante sequer.

Demos graças ao Senhor, sim, sem dúvidas; mas que aos nossos agradecimentos se unam, também, as nossas súplicas mais ardentes e nossos compromissos mais sinceros. Obrigado, ó Virgem Santa, pela batalha recém vencida; e concedei-nos força e coragem para as que ainda nos virão. Valei-nos Cristo Senhor! Por meio da dedicação às Vossas lutas fazei-nos merecedores da Vossa paz.

Nova redação do Catecismo sobre a pena de morte

A respeito da recente alteração do parágrafo 2267 do Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte, sem a menor pretensão de esgotar o assunto, diga-se apenas, preliminarmente, quanto segue:

  1. Um catecismo é um resumo da Fé Católica; é um texto, por excelência, pedagógico, que se propõe a apresentar de maneira orgânica a Doutrina da Igreja, conforme interpretada pelo Seu Magistério. Rigorosamente falando, um catecismo não é fonte magisterial, mas instrumento de exposição doutrinária.
  2. Assim, o Catecismo não é nem “falível” e nem “infalível”: simplesmente essas categorias não se aplicam a ele. A infalibilidade é uma nota do Magistério da Igreja, que tem os seus meios próprios de manifestação. Assim, por exemplo, o Magistério Pontifício pode se manifestar através de uma Carta Encíclica (veículo de exercício do magistério papal por excelência): um catecismo pode (e deve) apresentar de maneira orgânica e acessível o conteúdo das encíclicas papais, mas o que é “Magistério”, a rigor, são as encíclicas e não o catecismo. Catecismos e suas formulações são contingentes, ao passo que a Doutrina é imutável.
  3. Ou seja, um catecismo não possui autoridade por si só. A Doutrina Católica apresentada por um catecismo, qualquer que seja ele, somente é infalível na medida em que o Magistério que lhe subjaz é, ele próprio, infalível. A rigor, o Catecismo não obriga à Fé: o que obriga são os documentos magisteriais que embasam o Catecismo.
  4. Mudanças na formulação de algum ponto de um catecismo, assim, não têm característica de aprofundamento doutrinário. Simplesmente não podem ter, porque a doutrina se aprofunda pelo labor orgânico do Magistério, e jamais pela forma eventualmente escolhida para a sua exposição pedagógica. A mudança na redação de algum ponto do Catecismo deve, necessariamente, encontrar o seu fundamento no exercício do Magistério que precede a modificação do texto, não podendo a simples reescrita de um parágrafo funcionar como sucedâneo de um ato magisterial.
  5. Isso significa que eventuais dificuldades suscitadas pela formulação de algum parágrafo do Catecismo devem ser resolvidas nas referências magisteriais que digam respeito ao ponto controverso. O Catecismo não esgota a Doutrina nem a substitui.
  6. A nova redação do parágrafo 2267 provocou uma enorme e desnecessária confusão sobre a pena de morte; isso porque o texto mistura aspectos principiológicos com questões contingentes, substituindo a redação anterior, que era boa e clara, por uma bastante inferior e confusa.
  7. Diga-se, antes do mais, que a Doutrina da Igreja a respeito da pena de morte não mudou. Não mudou, primeiro porque Doutrina não muda e, segundo, porque redação de parágrafo de catecismo não é veículo idôneo para desenvolvimento doutrinário. Assim, a posição da Igreja a respeito do assunto há forçosamente de ser, hoje, após a nova redação do parágrafo 2267, rigorosamente a mesma da semana passada, quando ainda vigente a redação antiga. Não entender isso é desconhecer os rudimentos da Doutrina Católica.
  8. A nova redação, injustificadissimamente, substituiu a referência à Evangelium Vitae, Encíclica que fala especificamente sobre a inviolabilidade da vida humana, por um discurso do Papa Francisco onde o tema da pena de morte é mencionado en passant. Ora, à toda evidência, remover a referência à Evangelium Vitae não tem o condão de revogar a Carta Encíclica, de modo que ela permanece sendo o referencial doutrinário válido, vigente e autorizado sobre o assunto.
  9. A referida Carta Encíclica dizia (n. 56) que a pena de morte não devia ser aplicada «senão em casos de absoluta necessidade», os quais, «graças à organização cada vez mais adequada da instituição penal, (…) são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes». Em outras palavras, o fundamento da não-aplicação da pena capital hoje é a «organização cada vez mais adequada da instituição penal», e não uma suposta “inadmissibilidade intrínseca” da pena de morte.
  10. Ou seja, ao contrário do que dá a entender a novel formulação do parágrafo 2267, in finis, do Catecismo da Igreja Católica, a pena de morte é inadmissível não simpliciter, mas apenas secundum quid: na medida em que existem «sistemas de detenção mais eficazes» e em que se disseminou «uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado», então a pena de morte é inadmissível. Fora dessas condições, não.
  11. Esses fundamentos, como salta aos olhos, são intrinsecamente contingentes: podem existir hoje e, amanhã, não mais se verificarem, como também podem não ser rigorosamente os mesmos nos diversos países do globo. Ademais, um Catecismo versa precipuamente sobre doutrinas e não sobre situações de fato, estas as quais são, por sua própria natureza e ao contrário daquelas, extremamente mutáveis. 
  12. Que a carta da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o tema não discorra sobre estes assuntos tem pouca importância: principalmente no âmbito do Catolicismo, as coisas não deixam de existir se as pessoas silenciam sobre elas. E, principalmente!, apesar de o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé falar várias vezes em «desenvolvimento da doutrina», na verdade não existe aqui desenvolvimento algum. O juízo prático sobre a aplicação de tal ou qual pena em determinadas situações concretas é, em essência, um juízo prudencial e não doutrinário. Além do mais, a doutrina, se se desenvolve, só o faz de maneira orgânica e harmônica, e não negando hoje o que até ontem afirmava.
  13. Se o objetivo das autoridades eclesiásticas é, hoje, «empenha[r]-se com determinação a favor da sua [da pena de morte] abolição em todo o mundo» (CCE, 2267), elas têm todo o direito de fazê-lo — e, aliás, já o vinham fazendo há muitos anos mesmo com a antiga redação do Catecismo, como a carta de D. Ladaria exemplifica fartamente. Não era absolutamente necessário proceder a esta modificação confusa em um texto de referência catequética para se colocar contra a pena de morte no Ocidente do século XXI.
  14. Sobre o tema, por fim, reitero tanto quanto escrevi aqui ainda em 2014, em particular o seguinte: «é legítimo, em abstrato, ao poder temporal punir os criminosos inclusive com a morte; (…) [e] é perfeitamente possível que, nos Estados modernamente constituídos e com a sensibilidade contemporânea, não haja espaço para a aplicação daquela pena máxima».

Sobre o assunto, veja-se, também, entre outros, este texto sobre o ensino tradicional da Igreja acerca do assunto; este outro texto, pequeno, mas relevante, sobre a distinção entre a dignidade da natureza humana e a dignidade moral do homem; e estas considerações do Joathas sobre a nova redação do Catecismo acerca da pena de morte.

“E para ter uma vida tranquila, mata-se um inocente.”

Nos últimos dias, a mídia anti-clerical parece ter “descoberto”, embasbacada, o catolicismo do Papa Francisco. Foi por ocasião da recente, infame e ilegítima votação da Câmara dos Deputados argentina que, por 129 votos a favor e 125 contra, aprovou um projeto de lei (que ainda precisa passar pelo Senado e pela sanção presidencial) autorizando o crime do aborto até a 14ª semana de gestação. Em meio à escalada da sanha homicida das sociedades degeneradas contemporâneas, ninguém parece ter se levantado contra o enorme absurdo que é admitir que cinco míseros votos parlamentares — verdadeira e evidente maioria de ocasião — tenham o poder de condenar à morte crianças no ventre materno. Veja-se, que o direito de vida e morte sobre outrem fosse submetido a votação, ainda que por maioria qualificada, ou mesmo por unanimidade, já seria um retrocesso, uma barbárie! Que tal “direito” possa ser admitido por uma diferença de cinco votos entre duzentos e setenta e cinco votantes, aí já é um escárnio e uma loucura. Trata-se de 1,8%. É óbvio que nenhuma coisa em favor da qual se possa decidir legitimamente com base em uma diferença tão pequena é levada a sério por quem se sujeita a essas regras. Por cinco votos dentre trezentos é possível decidir sobre a data da festa da colheita da cidade, entre duas datas igualmente boas; ou sobre o nome do próximo presidente do Parlamento, entre dois nomes igualmente legítimos. Decidir, no entanto, entre a vida e a morte por essa margem, é coisa que deveria fazer corar de vergonha até mesmo os abortistas que guardam algum apreço pelos processos democráticos.

Mas o que isso tem a ver com o catolicismo do Papa? É que, no final de semana seguinte, Sua Santidade fez um discurso improvisado — no qual, aliás, nem mencionava a Argentina — onde disse o óbvio: que é um absurdo matar crianças para que se tenha uma vida tranquila, que isso é uma regressão ao paganismo mais abjeto, que hoje fazemos o mesmo que os nazistas faziam, só que «com luvas brancas». Foi o suficiente para que a mídia, que passou os últimos anos enaltecendo com tanto afinco a figura deste Papa progressista, que estaria empenhado em modernizar a Igreja, que seria o perfeito oposto do seu antecessor alemão, foi o suficiente, eu dizia, para que essa mesma mídia transformasse o Papa em inimigo público número 1 e passasse a exigir, aos berros, a sua renúncia.

Não é figura de linguagem. A Carta Capital estampou uma manchete onde pedia “Deixe o trono, Francisco”, e onde fazia questão de reafirmar a sua «dissidência com esta Igreja que se recusa a reconhecer as mulheres como sujeitas de suas histórias». Oras, agora ser contra o assassínio frio e deliberado de crianças no ventre de suas mães passou a ser recusar-se a reconhecer as mulheres como sujeitas de suas histórias! O que tem uma coisa a ver com a outra? Estivéssemos em pleno regime escravocrata, essa revista censuraria os abolicionistas por negarem aos senhores de engenho o serem sujeitos de suas próprias histórias? É evidente que a questão escravagista não era mera implicância contra os donos de escravos, mas sim uma questão básica de humanidade para com os seres humanos escravizados; como, do mesmíssimo modo, é óbvio que a questão pró-vida não é displicência para com mulher gestante, mas sim defesa do ser humano em risco de ser abortado.

Menos inflamada, mas ainda assim bastante reveladora, foi a coluna da Cora Rónai para O Globo (excertos aqui). Sem esconder o seu descontentamento e a sua insatisfação, a autora afirma que «[o] Papa Francisco é um perigo» porque — ó novidade! — «é tão aferrado aos dogmas medievais da Igreja quanto o papa Ratzinger». E expõe assim a sua preocupação:

A palavra de um líder religioso aparentemente aberto e antenado ao seu tempo tem um peso muito maior do que a palavra de um homem que cultiva ostensivamente a tradição, e não faz a menor questão de ser popular.

O papa Francisco pode causar estragos muito maiores do que o papa Ratzinger jamais sonhou.

Ora, que os Papas sejam (necessariamente) católicos é um pressuposto que não se deveria sequer pôr em discussão. Com o Papa Francisco até essa obviedade foi posta em causa; defendeu-se, dizendo que era católico e filho da Igreja. Quanto a isso, jamais pode ser acusado de haver querido enganar ninguém. No entanto, vemos, agora, os não-católicos virem à mídia carpir as suas alegadas decepções e se insinuarem traídos por uma Papa que — coisa incrível! — se recusa a abraçar as doenças do Terceiro Milênio.

Os doentes e os pecadores sempre receberam uma atenção especial do Papa Francisco. Porque é esta a verdadeira missão revolucionária da Igreja, desde sempre, desde as mais singelas páginas do Evangelho onde Nosso Senhor afirma ter vindo não para os sãos mas sim para os doentes, não para os justos, mas para os pecadores. No entanto, ao contrário do mundo, não se verá jamais a Igreja ou o Papa abraçando a doença ou o pecado — e essa é a diferença essencial entre quem realmente se preocupa com a humanidade e quem mancomuna-se com Satanás para espalhar dor sobre o mundo.

Entre o Papa que ama os doentes e o mundo que espalha doenças, não deve ser difícil escolher quem merece ser ouvido. A Igreja acolhe os pecadores enquanto o mundo exalta o pecado: é por isso que a Igreja permanece enquanto o mundo cai de degeneração em degeneração. No fundo, a histeria dos anti-clericais, como tudo o que fazem, não tem verdadeira razão-de-ser: é somente outra tentativa vil e desonesta (igual em seus objetivos, aliás, à que procura apresentar o Papa como um Che Guevara de branco) de afastar as pessoas do Vigário de Cristo e da verdadeira Igreja de Nosso Senhor — único lugar onde o homem pode encontrar realmente a felicidade e a paz.