Sobre a ocupação da Faculdade de Direito do Recife

Alguns amigos me perguntam se não me solidarizo com os estudantes — muitos dos quais colegas meus, com os quais estudo ou já estudei, que eu vejo praticamente todos os dias — que invadiram ontem à noite o prédio da Faculdade de Direito do Recife. Dizem-me que eles fazem isso porque estão convencidos de estar agindo de maneira correta; só chegaram a este extremo porque não vêem outra alternativa. Em assim sendo o momento é de “dialogar” e não de acirrar animosidades.

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Bom, a questão absolutamente não é essa. Claro que eles, internamente, estão convencidos de estarem fazendo a coisa certa. Isso é óbvio, todo mundo só faz aquilo que acredita ser correto. Gostaria muitíssimo, aliás, de ver essa capacidade de empatia dos meus interlocutores aplicada a tudo — porque, para ficar só em um exemplo, os portugueses que aqui chegaram há quinhentos anos certamente acreditavam estar fazendo a coisa certa ao catequizar os índios, e eu não estou acostumado a ver muita condescendência histórica com a colonização ibérica. Exigir para si mesmo aquilo que costumeiramente se nega aos outros, portanto, não é lá uma disposição dialógica sincera; ao contrário, tem forte sabor de hipocrisia.

O ponto não é que os estudantes acreditem estar fazendo o certo. O que interessa aqui é saber qual o juízo público que deve ser feito de suas atitudes. Quais as consequências exteriores e objetivas de suas ações, se eles devem ser por elas responsabilizados e de que maneira. Esta é a discussão que interessa. Estou plenamente convencido de que aqueles jovens acreditam estar fazendo a coisa certa quando invadem uma propriedade pública na calada de noite e impedem que os cidadãos — muitos dos quais alunos hipossuficientes, beneficiários de assistência estudantil — tenham acesso à prestação de serviços a que aquele prédio público se destina. Não tenho a menor dúvida disso, como — mutatis mutandis — não tenho a menor dúvida de que um homem-bomba muçulmano acredite estar fazendo a coisa certa quando um explode um metrô no ocidente. Não cabe cogitar das intenções do homem-bomba. O que interessa é dizer que não é socialmente aceitável que uma pessoa exploda as outras, por melhores que sejam as suas intenções.

Vão me dizer que ocupar um prédio público é bastante diferente de explodir um metrô. Claro que é diferente, mas o princípio é rigorosamente o mesmo: é justificar a violação de uma norma social por conta das alegadas boas intenções que movem o violador da norma. Explodir um metrô e ocupar violentamente um prédio público obviamente não são censuráveis na mesma medida; mas são, ambas as atitudes, censuráveis em medidas distintas e é isso que se quer dizer aqui. Porque, afinal de contas, nós devemos olhar para a reprovabilidade da conduta ou para as intenções do agente? Se for para estas, então precisamos ser mais condescendentes com o terrorismo (e com a colonização portuguesa, o nazi-fascismo etc.); se, ao contrário, devermos olhar para os resultados objetivos das ações individuais, e se a repressão à atitude particular não guardar relação direta com a bondade ou maldade da intenção de quem a pratica, então talvez precisemos olhar para as ocupações das universidades públicas de uma maneira um pouco menos superficial. Talvez exigir a imediata retirada dos estudantes não se confunda com “condenar” as suas tomadas de posições políticas.

Este assunto interessa particularmente a este blog porque é, em última instância, uma reedição do fenômeno “quem sou eu para julgar?”. Porque do jeito que a sensibilidade contemporânea está estruturada fica parecendo que só é possível reprovar uma atitude pública se a pessoa que a prática for particularmente culpável de alguma espécie de maldade intrínseca; ou, a contrario sensu, que se uma pessoa puder estar subjetivamente justificada em alguma sua motivação interior então não é possível fazer nada contra as suas atitudes externas. Bom, uma e outra coisa estão erradas. Nem a condenação externa de um ato implica a reprovação pessoal do agente, nem a possibilidade de o agente estar de boa-fé o autoriza a cometer publicamente o ato sem que ninguém possa fazer nada a respeito. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Esta compreensão é completamente básica na doutrina católica: há certas atitudes que são inadmissíveis ainda que se possa imaginar que alguém as cometa em candura de consciência. A Igreja é intolerante nos princípios porque crê, mas é condescendente com as pessoas porque ama. Os atos de homossexualismo são intrinsecamente desordenados e não podem em hipótese alguma ser aprovados, ainda que se deva evitar para com as pessoas homossexuais todo sinal de discriminação injusta. Uma pessoa pode viver em uma situação objetiva de pecado sem que contudo seja subjetivamente culpável ou não o seja plenamente. É sempre o mesmo princípio aplicado das mais distintas maneiras; e o desconhecimento dele faz com que as pessoas ou acreditem que o Papa está a revogar a Doutrina da Igreja, ou que esta mesma Doutrina está a impedir Sua Santidade de ser verdadeiro Papa.

Volto à nossa Faculdade de Direito. Muitos dos marginais que estão lá dentro são provavelmente meus amigos; nem eles deixam de ser criminosos pelo fato de eu ser capaz de compreender as suas motivações, e nem o fato de eles serem meus amigos faz com que esteja tudo bem em invadir um prédio público e prejudicar a vida de milhares de pessoas que pouco ou nada compactuam com a visão de mundo deles. Se são pessoas malignas, não, claro que não são — não passam de jovens com uma visão de mundo equivocada que, conquanto possa ser subjetivamente justificável, é socialmente deletéria e se deve, com certeza!, externamente combater. Se deveriam ser retirados à força, é lógico que deveriam! Não se poderia sequer ter deixado que eles passassem a noite lá, e quanto mais o tempo passa mais a situação se torna difícil de resolver. Entender as motivações de terceiros não é condescender com as agressões de outrem, nem tampouco reagir às atitudes socialmente deletérias é negar que os seus fautores tenham ideais sinceros: no fundo é isso o que interessa aqui. No meio de todos os males provocados pelos bárbaros que neste momento estão ocupando ilegitimamente um prédio histórico, que ao menos a tragédia possa ajudar essas distinções básicas a serem melhor compreendidas.

A vitória de Trump: o aborto

Alguns dos meus amigos, verdadeiramente eufóricos com a vitória de Trump, parecem convencidos de que ele será o melhor presidente dos Estados Unidos desde Reagan. Eu, profundo ignorante a respeito da política americana, não tenho condições de compartilhar do mesmo entusiasmo deles; no entanto, sobre a vitória do bilionário republicano há duas ou três coisas que eu julgo poder dizer.

Muitos trataram essas eleições como se elas fossem uma disputa entre o Diabo e Satanás; houve até quem as comparasse com uma eleição disputada, no Brasil, entre Dilma e Crivella. Aquela história de que “a boa notícia de hoje é que Hillary perdeu; a má, que Trump ganhou” foi repetida milhões de vezes desde as primeiras horas da madrugada. Sem compartilhar nem da euforia de alguns nem do alarmismo histérico de outros, penso que eu próprio, se americano fosse, não pensaria duas vezes antes de votar no candidato do Partido Republicano.

https://www.youtube.com/watch?v=llzgxOY92NA

O motivo é muito simples: Trump pode ter todos os defeitos do mundo de que lhe acusam, pode ser grosseiro e xenófobo, pode insuflar nacionalismos, provocar corridas armamentistas, pode ser imprudente, sonegador de impostos, pode haver conflito de interesses entre ser multiempresário e presidente da maior economia do mundo, tudo isso: Hillary defende o aborto até o nono mês da gravidez, e Trump não. Isto por si só é motivo mais do que suficiente para votar contra ela, independente de quaisquer outras questões de governo das quais se possa legitimamente divergir no programa político do GOP. Nenhum assunto que faça parte da disputa política contemporânea é mais premente do que a questão do aborto; nenhuma pessoa que defenda o assassinato de crianças no ventre das suas mães tem suficiente integridade moral para merecer confiança em qualquer outra área de atuação pública.

No último debate presidencial, há menos de um mês, Hillary Clinton defendeu o partial-birth abortion. Para quem não sabe do que se trata, o «aborto por nascimento parcial» é uma “técnica” aplicada no último trimestre da gravidez e que consiste em induzir o parto até o ponto de o feto, ainda vivo, começar a nascer; neste momento, quando está parcialmente fora do corpo materno, o aborteiro lhe faz uma incisão na base do crânio que lhe provoca a morte. Em outras palavras, trata-se de pegar uma criança plenamente formada (com sete, oito ou nove meses de gestação), puxar-lhe pelos pés para fora do útero (mantendo apenas a cabeça ainda no interior do corpo da mãe), enfiar uma tesoura na sua nuca até o interior da caixa craniana (matando-a portanto) para, pelo buraco assim formado, introduzir um aspirador, sugar-lhe o cérebro e depois retirar o corpo com a cabeça murcha. Macabro assim.

O Pontifício Conselho para a Família assim se manifestou em 2003 a respeito do tema:

A expressão partial-birth abortion, aborto com nascimento parcial, designa uma técnica de aborto utilizada nos últimos meses de gravidez, durante a qual é praticado um parto intravaginal parcial do feto vivo, seguido de uma aspiração do conteúdo cerebral antes de completar o parto.

[…]

Segundo os seus promotores, trata-se de um gesto rápido, podendo ser praticado sem hospitalização, com anestesia local. A intervenção é precedida de uma preparação de três dias, com dilatação mecânica do cólon uterino. A operação desenvolve-se em cinco fases: num primeiro tempo, quem opera, guiado por ultra-sons, depois da eventual inversão, se necessário for, da posição do feto no útero, prende os seus pés com uma pinça. Em seguida, com uma tracção tira o feto para fora do útero e provoca o parto, extraindo todo o corpo da criança, excepto a cabeça. Quem pratica o aborto executa então um corte na base do crânio do nascituro, através do qual faz passar a ponta de umas tesouras para furar a caixa craniana. Depois, introduz no orifício assim predisposto a extremidade de um tubo fino evacuativo, através do qual é aspirado o cérebro e o conteúdo da caixa craniana do menino. A este ponto, para concluir o aborto, só falta extrair a cabeça reduzida de volume.

É evidente que isso se trata de uma coisa profundamente demoníaca, asquerosa, diante da qual nenhum homem de bem pode nem mesmo ficar indiferente — muito menos defendê-la! Tal monstruosidade é ainda praticada nos Estados Unidos; ainda que não o fosse mais, contudo, Hillary Clinton votou a favor dela quando era senadora e, no mês passado, defendeu esta sua posição ao vivo durante um debate presidencial. Uma pessoa dessas deve, sim, ser combatida de todas as formas possíveis, inclusive por meio do voto presidencial, independente de quem esteja contra ela concorrendo (a menos, é lógico, que o outro candidato defendesse alguma outra imoralidade equiparável — o que absolutamente não era o caso). A magnitude deste volutabro é tão grande que obscurece quaisquer outras questões sobre assuntos normais como política econômica, defesa interna ou restrições imigratórias.

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Hillary Clinton foi derrotada nos Estados Unidos, e isso é uma coisa a agradecer a Deus. Foi derrotado o aborto, o assassinato de crianças no ventre das mães, o promíscuo financiamento federal à Planned Parenthood; estando em jogo coisas assim importantes e explícitas não cabe nem discutir o eventual simbolismo machista, homofóbico, xenófobo ou whatever que o voto em Donald Trump alegadamente represente. Não tem nem cabimento entrar nesse mérito. Obviamente Trump não é o cavaleiro de armadura reluzente que a Cristandade espera; isso no entanto perde completamente a relevância quando se está diante de alguém que defende late-term abortions.

Penso que muitos dos eleitores americanos não queriam votar no magnata nova-iorquino; mas quero pensar que muitos quiseram votar contra a despudorada defesa do assassinato de crianças que a sra. Clinton trouxe para o centro de sua campanha presidencial. A voz das urnas, assim, não foi uma vitória do liberalismo sobre o globalismo ou do conservadorismo sobre o progressismo nem nada do tipo, mas da civilização sobre a barbárie e da defesa da vida sobre o assassinato dos inocentes. Neste ponto sim, sem dúvidas, os resultados hoje apresentados ao mundo são alvissareiros e dignos de comemoração.

Isto está além das cortes superiores

O revmo. padre Lodi, do Pró-Vida de Anápolis, foi recentemente condenado pelo Superior Tribunal de Justiça ao pagamento de uma indenização no valor de R$ 60.000,00. Não encontrei ainda o acórdão do REsp 1.467.888 (acho que o STJ ainda não o publicou), pelo qual tenho um particular interesse; no entanto, as notícias que estão sendo veiculadas — “Padre é condenado a pagar danos morais por impedir aborto legal” — possuem logo no título dois graves equívocos: nem o padre impediu nada, nem o aborto era legal!

Quem impediu o aborto foi o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. O padre, ao contrário do que a manchete dá a entender, não entrou no hospital ameaçando os médicos nem manteve a gestante em cárcere privado; ele ingressou com um habeas corpus que foi apreciado pelo Poder Judiciário e ao qual o desembargador Aluísio Ataídes de Sousa deu provimento. Por força de norma constitucional basilar, o Judiciário não pode se furtar a apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito (CF, 5º, XXXV). A atuação do padre — e, acrescentamos, do Tribunal — manteve-se, portanto, estritamente dentro legalidade, não se compreendendo como ele possa ser, por isso, agora punido.

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Depois, o aborto não foi legal. Não era legal à época (em 2005) e nem é legal agora em 2016. O julgamento da ADPF 54 autorizou o aborto eugênico não de qualquer criança deficiente, mas sim das crianças portadoras de uma deficiência específica: a anencefalia. O acórdão é claro: o que se permite é a «interrupção da gravidez de feto anencéfalo», e não de feto “portador de doença incompatível com a vida extra-uterina”. Por se tratar de norma que autoriza a violação de direito fundamental — o direito à vida do nascituro — não é admissível a interpretação analógica. Ora, a criança em favor da qual o pe. Lodi impetrou o HC em 2005 era portadora de síndrome de Body Stalk, não de anencefalia. À luz da Constituição Federal, do Pacto de San José da Costa Rica e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, impossível estender a (aliás já teratológica) interpretação da ADPF em prejuízo da criança por nascer.

Ainda considerando concesso non dato que a excludente criada pelo STF fosse aplicável ao caso, seria evidente não se tratar de aplicação direta da norma (afinal, as deficiências tratadas em um e em outro caso são distintas!) e, portanto, a divergência na interpretação seria, no mínimo, legítima — o que por si só bastaria para descaracterizar o abuso de direito. Se há divergência interpretativa legítima então a boa-fé é de se presumir; presumindo-se a boa-fé, não há que se falar em abuso de direito.

A decisão do STJ, assim, é toda de se lamentar. Mas como Deus não permite um mal de que não possa tirar um bem ainda maior, essa triste história nos proporcionou duas pequenas pérolas — que em certo sentido pertencem ao passado, é verdade, mas cuja lembrança hoje é um refrigério a nos animar.

Primeiro, o desfecho do caso. Tristíssimo — a mãe, que já havia iniciado o abortamento quando chegou a liminar do TJ-GO, voltou para casa e agonizou em dores de parto por mais de uma semana até que o seu organismo envenenado expulsasse prematuramente a sua filha que, deficiente, sobreviveu pouco menos de duas horas –, mas que tem um detalhe importante. É o próprio padre Lodi quem no-lo recorda: «[d]e qualquer forma, ela [a criança] recebeu um nome [Geovana Gomes Leneu] e foi sepultada, destino bem melhor que o de ser jogada fora e misturada ao lixo hospitalar». E dar um nome e uma sepultura a um ser humano precocemente falecido é coisa bastante digna, que resplandece com vigor no meio das trevas dessa história dolorosa.

Segundo, um HC julgado pelo próprio STJ em 2004 (HC 32159/RJ). Na ocasião, a 5ª turma concedeu um habeas corpus em favor de uma criança anencéfala — eram tempos que não haviam sido ainda maculados pela barbárie da ADPF 54! Naquele seu relatório, a ministra Laurita Vaz reproduziu esta passagem preciosa, preciosíssima, da lavra do MPF:

Não é correto, como faz a il. Des. Gizelda Leitão Teixeira, dizer da invocação constitucional “como garantidora do direito à vida, nada mais”.

Ora, o direito à vida é tudo, por isso que nada mais se considera quando ele é questionado, caindo, então, no vazio tal questionamento.

Não são assim, “velhos e surrados argumentos de defesa pura e simples da vida” como estabeleceu a il. Desembargadora.

Qualquer argumento em favor da vida jamais será velho e surrado.

O que é preciso compreender-se – e agora sim surge a incidência do princípio da razoabilidade – é que vida intra-uterina existe.

É que, mesmo nesse estágio, sentimentos de acolhida, carinho, amor, passam por certo, do pai e da mãe, mormente desta para o feto.

Se ele está fisicamente deformado – por mais feio que possa parecer [–] isto jamais impedirá que a acolhida, o carinho, o amor flua à vida, que existe, e enquanto existir possa.

Isso, graças a Deus, está além da ciência.

Já se vão mais de dez anos! Mas estas palavras nos soam ainda atualíssimas e têm muito a nos dizer, a nós, nestes tristes anos em que o mundo é regido pelo utilitarismo mais doentio — que descarta vidas humanas como se fossem produtos defeituosos, sob a mais dolorosa indiferença da opinião pública. Hoje, como em 2004, a vida intra-uterina existe. E hoje, como então, e como sempre, ela deve ser protegida «enquanto existir possa». Isto está além da ciência e — acrescento eu — além das cortes superiores. Esta verdade é que deve ser guardada, defendida e divulgada, ainda que contra todos. Por esta causa valem quaisquer sacrifícios. É isso que nos torna merecedores de viver. É isso o que nos mantém humanos.

As tatuagens e a liturgia tridentina

A respeito da polêmica envolvendo a Sara Winter, as tatuagens e uma Missa do IBP em Brasília, conforme relatada pelo sr. Thácio Siqueira em três posts consecutivos (aqui, aqui e aqui), parece oportuno fazer algumas considerações.

1. A despeito de quaisquer boas intenções que possa ter havido de ambos os lados, o resultado é uma tragédia completa. Por um lado, uma recém-convertida saindo aos prantos de um templo católico por ter sido quase escorraçada de lá no meio de uma Missa; por outro lado, um «professor de Teologia e Filosofia, formado em Roma» publicando absurdos na internet e indispondo a opinião pública contra uma espiritualidade católica, santa e legítima. É difícil imaginar como as coisas poderiam sair pior.

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2. Sobre as tatuagens, no mérito, eu confesso que não sei de onde foi tirada a informação de que fazê-las seria pecado mortal contra o Quinto Mandamento. O Catecismo não diz isso, nem o novo, nem o Tridentino. O Compêndio do Del Greco não tem um verbete “tatuagem” no índice remissivo. A Teología Moral para seglares do pe. Royo Marín não diz nada sobre o tema, nem o Compendio Moral Salmaticense. Desconheço, do mesmo modo, qualquer pronunciamento da Santa Sé, do Papa ou dos Dicastérios Romanos, a respeito do assunto. Não se compreende, assim, que “pecado mortal” seria esse que, desconhecido dos moralistas e dos documentos eclesiásticos, pode licitamente ser bramido em uma Missa contra uma recém-convertida que traz ainda em seu corpo as cicatrizes de sua vida pregressa — e aqui chegamos ao ponto seguinte.

3. Sobre as tatuagens, na forma, a coisa não podia ser mais desajeitada. Sinceramente! Conceda-se, ad argumentandum, que as tatuagens sejam pecado mortal; por conta disso se vai expôr uma fiel no meio da missa, uma visitante, diante de toda a comunidade reunida? Não se cogitou, se se julgasse realmente preciso, repreender em privado? Era mesmo necessário o julgamento em público, a crítica feita do alto do púlpito, a censura áspera e claramente endereçada diante de todos?

Mais até: o pecado é um ato que se pratica, e não uma condição que se adquire. A tatuagem não é um ato humano e sim uma marca, uma coisa; se houvesse pecado aqui, ele obviamente seria o de fazer a tatuagem, e não o simples fato de possuí-la. Concedendo portanto que um pastor de almas pudesse censurar e repreender um fiel que estivesse em vias de fazer uma tatuagem, não se pode transpôr essa mesma lógica para um fiel que possua uma tatuagem já feita. Como saber se a tinta na pele não é meramente o resquício de um pecado já há muito arrependido? Como inferir, dos desenhos no corpo feitos no passado (sabe-se lá o quão distante!), a presença de um vilipêndio em ato ao templo do Espírito Santo em que, pelo Batismo, se torna o corpo humano?

Finalmente, a exigência de se reverter as consequências dos pecados anteriormente cometidos não é absoluta. Quem rouba um relógio precisa devolver o relógio roubado ou o equivalente, sem dúvidas; mas quem amputa o próprio braço não está forçado a implantar um braço biônico, a quem comete um aborto não é exigido que adote uma criança, quem faz vasectomia não é constrangido a se submeter a uma segunda cirurgia para reverter a esterilidade provocada. Por que cargas d’água quem fez uma tatuagem — tudo isso considerando que fazer tatuagem fosse pecado! — estaria moralmente obrigado a removê-la?

Tudo isso parece um excesso de zelo totalmente desordenado. E tal falta de sensibilidade dos envolvidos nessa quixotesca cruzada contra as tatuagens — é o ponto seguinte — terminou por dar azo a que o sr. Thácio Siqueira denegrisse a imagem dos fiéis que aderem à espiritualidade católica tradicional, prestando um enorme desserviço à causa da Liturgia.

4. No afã de protestar contra o absurdo de que foi vítima a Sara Winter, o sr. Thácio terminou por voltar os seus canhões contra a própria espiritualidade católica tradicional, criticando a coisa certa pelas razões erradas e protagonizando um espetáculo tão contraditório quanto deplorável.

O primeiro relato é este aqui. O desdém do professor pelas formas clássicas da liturgia perpassa todo o texto, a começar pelo título onde chama a Missa Tridentina de “algo muito estranho”. Critica as normas de vestimenta, o uso do véu, até o latim do sacerdote. Chama o rito tridentino de “pouquíssimo acolhedor”. Chega ao ponto de chamar o Santo Sacrifício celebrado segundo as rubricas de 62 de “missa”, assim entre aspas (!):

Começou a “missa”. Tudo em latim. Legal! Mas, não dava pra entender nada por falha de dicção do sacerdote.

segundo relato é inteiramente dedicado a denegrir, em público e com uma dose bastante ácida de ironia, o pároco da referida paróquia, o próprio Instituto Bom Pastor e, indiretamente, todos os fiéis que cultivam a espiritualidade tradicional. Percebam, o sujeito confessadamente não conhece nada do rito, a sua única experiência foi no último domingo e, mesmo assim, ele se julga no direito de desabonar todos os católicos do mundo que de algum modo participam da liturgia gregoriana:

O Bom Pastor dá a vida pelas suas ovelhas, o Bom Pastor deixa as noventa e nove ovelhas e vai em busca da que ficou para trás, o Bom Pastor carrega a ovelha no colo, o Bom Pastor não humilha alguém em público.

Confesso que não conhecia esse Instituto Bom Pastor até o acontecido no último domingo, mas a maioria das pessoas que comentaram no meu site defendendo tal Instituto demonstraram uma animosidade que me assustou.

Serão assim todos os seguidores de tal rito?

Por fim, o terceiro relato é um mero mosaico desconexo de copiar-e-colar textos sobre a Forma Extraordinária do Rito Romano. É o mais equilibrado dos três, provavelmente por ser o que contém menos texto próprio do sr. Thácio.

5. A atitude do sr. Thácio, conquanto motivada por uma causa justa, é toda de se censurar. Primeiro que ele não tem direito algum de tratar de maneira assim tão desdenhosa — debochada até — um rito católico legítimo, aprovado e autorizado pela Igreja. Segundo: não tem lógica nenhuma, nem é justo de nenhuma maneira, utilizar uma única experiência particular — realizada uma única vez na vida e em uma única igreja específica — para lançar em público a pecha da suspeição sobre todos os sacerdotes e leigos que integram o IBP (um instituto canônico regularmente erigido pela própria Santa Sé), nem muitíssimo menos sobre todos os católicos que, não pertencendo ao IBP, todavia sentem-se de algum modo ligados à Forma Extraordinária do Rito Romano (os «seguidores de tal rito», como ele se refere acusadoramente a nós). Terceiro, é assustadoramente contraditório protestar contra a exposição pública dos supostos pecados de uma fiel católica na igreja… expondo publicamente, na internet, os alegados defeitos de um sacerdote católico! Quer dizer, o padre fazer isso na igreja é inadmissível, mas o leigo fazer o mesmo na internet está tudo bem? Que loucura é essa?

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6. Por fim, registre-se aqui o nosso duplo desagravo. Primeiro, aos católicos tradicionais, cuja imagem foi manchada pelo “tradicionalismo” de um lado e pelo “anti-tradicionalismo” do outro. Não aceitamos a pecha da arrogância, do sectarismo, da falta de acolhimento: se alguns católicos possuem algum ranço jansenista isso é lá com eles, não sendo justo extrapolar os defeitos de particulares para um grupo não-uniforme de católicos e nem muitíssimo menos para um rito legítimo da Igreja enquanto tal. E segundo, e principalmente, a Sara Winter, pessoa que por sua história de vida é digna de toda a nossa compreensão e que pela boa vontade que vem demonstrando merece as portas de todas as igrejas abertas de par em par para si. Sara, o autor dessas linhas não tem nada a ver com a igrejinha de Brasília de onde você saiu em lágrimas no domingo passado; mas, na qualidade de católico, venho aqui oferecer as minhas desculpas, a minha solidariedade e as minhas orações.

Só a Igreja combate a pedofilia com coerência

Mentes pequenas discutem pessoas enquanto grandes mentes debatem idéias. Trata-se de um lugar comum; mas todo lugar comum encerra importantes verdades. As pessoas passam e seu horizonte de atuação é muito restrito; as idéias permanecem, transcendem os homens e modificam o mundo. Discutir pessoas, destarte, é mesquinho, é pequeno, é insignificante. Quem detém pretensões um pouco mais ambiciosas precisa voltar-se para as idéias que levam as pessoas a agirem de tal ou qual maneira.

As idéias, contudo, para produzirem os seus efeitos no mundo, precisam de tempo. Raras vezes os primeiros propagadores de uma nova idéia verão todas as consequências de sua disseminação. Talvez não fosse claro, por exemplo, aos adeptos entusiasmados da revolução sexual da década de 60 que, poucos anos depois, crianças de 12 anos estariam fazendo filmes pornográficos. Por esses dias eu ouvia uma professora comentar que os anos 80 foram estranhos — eu já o comentei aqui. De fato foram tempos sinistros aqueles; considerá-los imprevisíveis, contudo, parece-me excessiva ingenuidade.

O abuso sexual infantil é uma lástima sob quaisquer aspectos deplorável. Creditá-lo à Igreja Católica, no entanto, é de uma hipocrisia avassaladora. Ora, não é possível esquecer — para ficar só no exemplo talvez mais paradigmático — que, há bem pouco tempo, a sexualidade infantil mereceu o apoio entusiasmado e aberto do cinema nacional; e de uma maneira tão constrangedora que a protagonista do filme, posteriormente, empregou sem sucesso a sua fortuna para tentar removê-lo de circulação. Não se diga que foi apenas uma excentricidade isolada da época: hoje mesmo, em pleno terceiro milênio, não falta quem chame de “cultura” o funk que estimula o estupro de meninas. Ora, as idéias têm consequências, por mais que o ignorem os seus propagadores. Nos dias de hoje parece haver um certo consenso de que o abuso sexual de crianças é uma coisa condenável. No entanto, somente a Igreja Católica o tem consistentemente condenado com a devida coerência!

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Ninguém faz mais que a Igreja contra a pedofilia. Recentemente se noticiaram novas medidas tomadas pela Santa Sé para facilitar a responsabilização de bispos que forem lenientes em casos de abusos infantis. Fui procurar; o documento que o Papa Francisco promulgou no último 4 de junho chama-se Come una madre amorevole — assim, em italiano mesmo, fugindo ao latim com que se costuma dar título aos documentos pontifícios. A Mãe Amorosa revela-se aqui implacável logo no primeiro artigo: os bispos podem ser legitimamente removidos de suas dioceses se a sua negligência provocar ou não impedir que seja provocado um grave dano a alguém.

Parágrafo primeiro: este dano pode ser físico, moral, espiritual ou patrimonial.

Parágrafo segundo: o bispo pode ser removido ainda que sua negligência não constitua culpa pessoal grave.

Parágrafo terceiro: em casos de abusos sexuais, basta que a indiligência seja grave (em oposição à molto grave do parágrafo antecedente).

Fico pensando em que hipótese um bispo pode ser negligente em matéria de abuso infantil e, ao mesmo tempo, não ser moralmente réu de culpa grave. Porque é evidente que a negligência pode configurar pecado mortal — e, para afastá-lo, é preciso que o agente ou não tenha visto com clareza a dimensão do problema, ou não dispusesse de plenas condições para o evitar. Em uma palavra: a negligência só não implica em pecado mortal se ela não for exigível. Mas, ora, se a atitude que se omitiu não era exigível, é ainda possível dizer que subsiste a própria negligência? Afinal, ser negligente é precisamente deixar de fazer algo que devia ser feito. Se devia ser feito, como é possível que não importe em culpa pessoal? Se não devia, como se pode falar ainda em negligência?

Penso que a novidade do documento reside precisamente nesta possibilidade de responsabilizar pessoas sobre as quais não é possível formar com segurança um juízo moral negativo. Fui olhar o Sacramentorum Sanctitatis Tutela e, nele, não encontrei semelhante previsão; a Graviora Delicta — que afirma ser «Congregationi pro Doctrina Fidei reservata» , entre outros, o «delictum contra sextum Decalogi praeceptum cum minore infra aetatem duodeviginti annorum a clerico commissum» — tampouco a traz. Não me recordo de a ter já visto em algum lugar — e, no entanto, ei-la reluzindo no frontispício da Madre Amorevole do Papa Francisco!

No Direito Penal secular isso provavelmente seria considerado responsabilidade objetiva — a possibilidade de se punir pessoas sem que lhes esteja caracterizado o dolo ou a culpa — e os doutrinadores contemporâneos, ciosos das garantias individuais contra a hipertrofia punitiva estatal, esmerar-se-iam por pintá-la aos olhos de todos como uma excrescência odiosa, não sossegando enquanto não a lograssem proscrever do Ordenamento Jurídico. No entanto, a justiça de Deus não deve prestar contas à justiça dos homens e, se é verdade que Leviathan não pode aplicar uma pena sem um fato típico, antijurídico e culpável, a Esposa de Cristo pode, sim, prescindir dessa culpabilidade na hora de desferir os golpes necessários à proteção dos Seus filhos.

É evidente que pode. Mais até: deve. Em se tratando de uma matéria grave como o abuso sexual de menores, mais do que estabelecer a culpa dos responsáveis importa fazer cessar o abuso e tomar medidas para que ele não se repita. Se determinado bispo não foi capaz de impedir a lepra da pedofilia de apodrecer parte do seu clero, é evidente que este bispo precisa ser substituído independente de sua culpa própria na propagação da epidemia — porque o papel do bispo é proteger os fiéis a ele confiados, e este dever é grave demais para que alguém possa eximir-se dele simplesmente dizendo “não consigo”. Ora, uma pessoa pode, perfeitamente, ser pessoalmente incapaz de enfrentar pervertidos sem que isso lhe acarrete culpa particular alguma. No entanto, tal pessoa não pode ser bispo católico. Não pode, porque de um bispo se exige mais do que de um católico comum. É bom que seja assim. Não pode não ser assim.

Amor_Estranho_AmorO abuso sexual de crianças é uma coisa terrível; nossa sociedade doente, no entanto, encontra e sempre encontrou mil modos de condescender com essa mácula! Lembremo-nos, o cinema brasileiro já filmou Amor Estranho Amor. Os nossos programas de auditório infantis já estiveram repletos de mulheres seminuas. As músicas cantadas ainda hoje por nossas crianças e adolescentes incentivam o sexo mais animalesco. O STF já há alguns anos flexibilizou a presunção de violência no estupro de vulnerável. O MEC há muito propõe aulas de educação sexual para crianças e jovens.

Somente a Igreja é de uma intolerância obstinada, medieval, contra o sexo infantil. Somente a Igreja afirma, sozinha, que o sexo é sagrado e que o seu lugar é dentro do Matrimônio com vistas à formação de uma família. Somente a Igreja prega, sozinha, que é preciso fugir do pecado e das ocasiões de pecado, e que é preciso mortificar os sentidos, e que a pornografia é pecado grave, e que certas modas imodestas muito ofendem a Nosso Senhor. Somente a Igreja ensina, sozinha, que o consentimento mútuo não elide o pecado contra a castidade, e que as depravações sexuais exaltadas pelo mundo moderno não deixam de ser depravações quando são consentidas. E, agora, somente a Igreja, sozinha, determina punição independente de culpa para quem não faz cessar os abusos sexuais sofridos por menores que de algum modo estavam sob sua responsabilidade.

A pedofilia é uma desgraça que cresce assustadoramente no mundo sob o impulso das concepções modernas a respeito do sexo. E somente a Igreja a combate com a coerência exigida. Somente à luz d’Ela este mal poderá ser vencido. Apenas esta Mãe Amorosa é capaz de proteger verdadeiramente os pequenos e indefesos.

Pureza e fecundidade: a força da mulher

Há pelo menos três coisas a se distinguir no Dia Internacional da Mulher: a sua origem, o seu discurso oficial e o espírito com o qual ele é celebrado.

Quanto à origem, a história do incêndio, conquanto bem conhecida — em certa fábrica, no dia oito de março, as mulheres que estavam protestando por melhores condições de trabalho terminaram morrendo em um incêndio criminoso –, não é imune a controvérsias: não se sabe se há registros históricos precisos sobre este fato. De qualquer maneira, como é notório que as condições de trabalho das mulheres já foram um dia piores do que são hoje, as brumas míticas das quais emerge o Oito de Março são um assunto que costuma merecer pouca atenção. O símbolo prevalece sobre o rigor histórico, e não vale a pena insistir em investigações deste tipo.

Mais relevante é o fato, este sim inconteste, de que as celebrações de hoje derivam, todas, de movimentos revolucionários de esquerda. A aplicação da luta de classes à diferença entre os sexos é o que caracteriza todo o feminismo (e por extensão também o dia de hoje) e é também o que o desqualifica. Um século e meio depois de Marx, parece incrível que se pretenda ainda levar a sério a cosmovisão que se baseia no “nós-contra-eles”, como se a diversidade não fosse uma riqueza ou como se o extermínio de uma parcela da humanidade (sejam os patrões para o empoderamento da classe operária, sejam os homens para a glorificação feminista) tivesse algo de viável.

Em se tratando do discurso oficial a coisa fica ainda mais deplorável. A dar crédito às porta-vozes do Oito de Março, hoje poderia perfeitamente ser o dia internacional do aborto. É aqui que tudo fica mais feio e vergonhoso, e é aqui que dá vontade de combater o dia de hoje ao invés de o celebrar. Eu já devo ter dito algures que uma “feminista” não é uma mulher que luta pelos direitos de outras mulheres (digamos, para que ela não seja espancada pelo marido ou para que não seja pressionada pelo namorado a abortar o seu filho). Quem defende que a mulher possa trabalhar, votar e outras coisas afins são os seres humanos civilizados em geral. As feministas, por sua vez, naquilo que as distinguem dos seres humanos civilizados, são as propagadoras de uma pauta que não encontra eco na sociedade em geral: pauta consignada, entre outras coisas, na famigerada “Marcha das Vadias” e nos movimentos pró-aborto de todos os naipes.

Ora, aceitar esta pauta como representativa dos “direitos das mulheres” é profundamente ultrajante à imensíssima maior parte das próprias mulheres: das que sabem que o corpo feminino é um templo sagrado que se deve preservar e não um objeto de luxúria a ser desgastado no cio mais animalesco, por exemplo, e das que entendem que a dignidade feminina começa na concepção e, destarte, nem mesmo no útero materno as mulheres são descartáveis — devendo portanto ser protegidas de violências, máxime do aborto, sejam elas perpetradas por homens ou por outras mulheres. Pureza e fecundidade: estas, sim, características que a mulher verdadeira não despreza — em oposição aos arremedos revolucionários que acham que ser mulher é destruir tudo aquilo que sempre tornou as mulheres dignas de respeito e admiração no mundo.

Mas há bons motivos para não se deixar abater pelo significado do dia de hoje. Se tudo isso é oficialmente assim, contudo, na prática a teoria é outra. Fora dos círculos autorreferentes da intelectualidade esquerdista, quase ninguém associa o Dia da Mulher às histéricas mal-amadas possuídas por um espírito de misandria raivosa. Ao contrário, no dia de hoje exalta-se, no geral, precisamente aquela feminilidade da qual as inimigas do gênero humano se envergonham e tanto se esmeram por destruir. O Dia da Mulher é o dia em que as mulheres — para ficar no exemplo mais comezinho — são presenteadas com flores e chocolates; e que maneira melhor de afirmar papéis de gênero do que encher de mimos o sexo frágil, com coisas doces e belas, no dia às mulheres dedicado? A própria maneira com a qual as pessoas normais comemoram o Oito de Março é uma punhalada em todos os movimentos feministas, e faz as ossadas das companheiras falecidas chacoalharem-se convulsivamente no túmulo: tentaram criar um dia para reduzir a mulher a um macho mal-acabado, conseguiram uma data onde a feminilidade é ostensivamente exaltada.

Quanto a nós, cristãos, não nos podemos esquecer de que no princípio Deus criou o homem e a mulher, macho e fêmea, e dotou a humanidade dos seus dois gêneros como um ato positivo de sua vontade antes do Pecado Original. Isso significa, primeiro, que a feminilidade (ao lado da masculinidade) é uma riqueza e, segundo, que a convivência harmônica entre os sexos não só é possível como é também o desejo original do Criador. É por isso que devemos batalhar — não pelos gritos raivosos e cada vez mais anacrônicos das feministas aparentemente incapazes de sair do século XIX.

A Mulher por excelência é a Santíssima Virgem Maria — e que distância entre Ela e as feministas que destilam ódio, chamam-se de vadias e exigem a legalização do aborto! Que no dia de hoje as mulheres sejam cada vez mais mulheres, isto é, conformem-se cada vez mais à Santíssima Virgem que é o modelo e a plenitude de toda feminilidade. Que Ela esmague a cabeça da serpente feminista! E que as mulheres possam segui-La corajosamente, rumo à verdadeira liberdade que não se encontra senão bem distante do feminismo ideológico dos dias de hoje.

É lícito distribuir preservativos para evitar abortos?

A cooperação para o mal “é o concurso que se presta à ação má de outro, levando-o a fazer o mal na qualidade de agente principal” (Del Greco, Compêndio de Teologia Moral, n. 138). Segundo o mesmo autor, é lícita “quando intervier motivo proporcionado”; e, exemplificando, “pode-se dar vinho a um bêbado para impedir que ele blasfeme” (n. 139).

O moralista é até mais abrangente e chega mesmo a falar que se pode “sempre cooperar materialmente quando se trata de fazer evitar um mal mais grave” (id. ibid). A esta luz é legítimo — já vi o exemplo alhures — buscar persuadir alguém, que esteja disposto a matar um seu desafeto, a “apenas” feri-lo. Como o pecado é cometido por outrem e como a intervenção fê-lo, na prática, deixar de cometer um pecado mais grave, ela respeita o mandamento da caridade — que obriga a buscar o bem dos outros e se esmerar por atingi-lo. Não só é legítima como, talvez, pode ocorrer de ser moralmente exigida.

Diante destes pressupostos coloca-se a pergunta incômoda: é lícito, portanto, oferecer um contraceptivo a alguém que vai cometer uma relação sexual cujo eventual fruto está disposto a abortar? Em outras palavras: se se sabe que fulano constrangeria sua namorada a cometer um aborto caso ela engravidasse, será porventura lícito, na eventualidade de não ser possível dissuadir-lhes da fornicação em si, oferecer a camisinha para ele, ou a pílula para ela, a fim de evitar que eles cometam o mal (muito maior) do aborto? O paralelo é notável: a ação é meramente cooperativa e não comissiva, e evitar a morte de um ser humano inocente parece um “motivo proporcionado” a se levar em consideração.

Não sei se os teólogos morais já se debruçaram sobre o tema, mas penso que há certas particularidades que devem ser levadas em consideração antes de uma resposta ligeira e irrefletida.

Primeiro, a fornicação — ao contrário dos outros exemplos mais fáceis de embriagar ou bater em alguém — é pecado mortal ex toto genere suo (cf. op. cit., n. 82), i.e., não admite parvidade de matéria (não pode nunca constituir pecado venial, ao menos não pelo seu objeto); e embora o que se diga a respeito da cooperação para o mal não faça menção à gravidade do pecado com o qual se coopera, é no mínimo temerário aderir laconicamente à tese de que ela é indiferente. Ou se pode licitamente tentar convencer a matar um inocente só quem está já disposto a matar dois?

Segundo, e talvez mais importante, porque, in casu, o pecado que se instiga e aquele que se pretende evitar não estão no mesmo plano. O primeiro existe, formalmente, na medida em que o sujeito está decidido a fornicar; já o segundo não, porque a concepção de um filho não lhe é diretamente visada, e nem muito menos o eventual aborto com o qual ele teria — presumivelmente — a pretensão de se desincumbir da sua responsabilidade. É muito diferente do caso de convencer fulano a ferir o sujeito que ele pretende matar: aqui já existe o pecado do homicídio, presente no intelecto do agente, em vias de execução quase, e persuadi-lo a “apenas” dar uma surra no seu desafeto faz, assim, sem dúvidas, e propriamente, o papel de evitar um assassinato concreto.

Não é absolutamente o mesmo o caso do aborto, tanto por ele não passar de uma probabilidade cuja existência não depende do contraceptivo para ser afastada (afinal, a menina pode simplesmente não engravidar e, portanto, a questão do aborto pode não se colocar jamais) quanto porque ele não era, no momento do pecado, objeto do querer do agente (cuja vontade pecaminosa era simplesmente a de fornicar, e não de abortar — e, portanto, diferente do que ocorre no caso do homicida, aqui o pecado efetivamente cometido é exatamente aquele inicialmente desejado, sem diminuição alguma).

Mas há ainda um terceiro ponto que se deve ter em conta, e ele considera os efeitos sociais da atitude de cooperação para o mal. Porque se imagina, no caso do sujeito disposto a matar o seu desafeto, que convencê-lo a o ferir não passa de uma solução de emergência, de um caso fortuito, raro e eventual: não passa pela cabeça do moralista, suponho, a possibilidade de que o espancamento público de desafetos venha a se generalizar como a maneira natural — e socialmente aceita — de cercear os instintos assassinos do ser humano. Não se concebe que, de pecado, ferir o seu inimigo passe a ser visto como uma coisa banal e indiferente, ou mesmo positiva até, a se incentivar e a tratar com ampla naturalidade.

Ora, no caso dos contraceptivos é exatamente isso o que acontece. Não se vê a pílula como um mal menor a ser eventualmente utilizado em situações excepcionais cuja premência impede uma solução mais adequada: apresenta-se-lhe, ao contrário, como a solução ordinária e definitiva em matéria sexual que, se evita maiores males (como o aborto), fá-lo às custas da naturalização generalizada do pecado — já grave — da fornicação. Ora, se é possível sopesar pecados em se tratando de escolhas individuais, não parece contudo ser lícito institucionalizar alguns pecados nem mesmo para mitigar outros mais graves. A lógica da cooperação para o mal só faz sentido dentro dos estreitos limites em que o pecado é tratado como pecado; é uma lógica de contenção perplexa e não de exceção moral. Se se perde isso de vista e se o mal passa a ser visto com naturalidade, então talvez não se esteja mais evitando um “mal mais grave” — e, sem isso, cooperar com o pecado alheio deixa de ser lícito.

Os contraceptivos e a Zika

O grande Paulo VI, na sua conhecida encíclica Humanae Vitae, estabeleceu o seguinte ensinamento lapidar: “[é] de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” (HV 14). Não satisfeito, antevendo talvez as objeções que porventura lhe pudessem fazer, o Servo de Deus continua assim o seu arrazoado:

Não se podem invocar, como razões válidas, para a justificação dos atos conjugais tornados intencionalmente infecundos, o mal menor (…). Na verdade, se é lícito, algumas vezes, tolerar o mal menor para evitar um mal maior, ou para promover um bem superior, nunca é lícito, nem sequer por razões gravíssimas, fazer o mal, para que daí provenha o bem; isto é, ter como objeto de um ato positivo da vontade aquilo que é intrinsecamente desordenado e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo se for praticado com intenção de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares, ou sociais [id. ibid.].

Esta encíclica não diz diretamente que a contracepção é intrinsecamente má. Quem o faz é S. João Paulo II na Veritatis Splendor (n. 80). O que são atos intrinsecamente maus? São aqueles — ainda S. João Paulo II — que são maus “sempre e por si mesmos, ou seja, pelo próprio objecto, independentemente das posteriores intenções de quem age e das circunstâncias” (id. ibid.). Aliás, vale a pena a leitura dos parágrafos desta encíclica que falam sobre o tema: os nn. 79-83 e 95-97 ajudarão a conhecer com mais clareza a posição da Igreja sobre o assunto. Em suma, não é legítimo, “nem sequer por razões gravíssimas”, tornar um ato conjugal intencionalmente infecundo — independente das circunstâncias em que se encontre o agente (e.g. às voltas com um surto de uma moléstia incurável) e das intenções que ele porventura tenha (evitar que um filho nasça gravemente doente, v.g.).

[Existe, talvez, uma discussão teologicamente legítima que se pode fazer a respeito da posição católica contrária à contracepção: é a que indaga se o Magistério versa sobre todo e qualquer ato sexual, em qualquer contexto, ou se fala especificamente a respeito do ato conjugal entre esposos legitimamente casados. Pode-se encontrar aqui uma discussão a este respeito. A argumentação é pertinente porque, em se tratando da fornicação — da prática do ato sexual fora do casamento, entre solteiros — tão desgraçadamente comum nos dias de hoje, não é claro se o uso do preservativo agrava ou não o pecado (que, lembremo-nos, já é mortal). De qualquer maneira, não se discute (obviamente) se existe alguma situação em que o uso dos contraceptivos seja legítimo, mas sim se há alguma que o Magistério não abrangeu. São duas coisas completamente distintas, mas a questão tem a sua relevância prática, quando menos, para responder à acusação estapafúrdia de que a Igreja, condenando a camisinha, é responsável (v.g.) pelos altos índices de gravidez na adolescência. Tal é um completo nonsense (afinal, a Igreja condena os atos sexuais fora do Matrimônio, e não apenas “a camisinha”), contra o qual, por frustrante que seja, o baixo nível do anti-catolicismo contemporâneo obriga-nos por vezes a nos batermos.]

Coletiva do Papa aos jornalistas durante o voo de retorno do México deixou perplexos católicos e não-católicos por conta de uma resposta estranha que Sua Santidade deu a uma pergunta a respeito da Zika, do aborto e da contracepção. Ei-las, pergunta e resposta, na íntegra (grifos da RV):

(Paloma Garcia Ovejero, “Cope”)

Santo Padre, há algumas semanas há muita preocupação em muitos países latino-americanos, mas também na Europa, sobre o vírus “Zika”. O risco maior seria para as mulheres grávidas: há angustia. Algumas autoridades propuseram o aborto, ou de se evitar a gravidez. Neste caso, a Igreja pode levar em consideração o conceito de “entre os males, o menor”?

Papa Francisco: O aborto não é um “mal menor”. É um crime. É descartar um para salvar o outro. É aquilo que a máfia faz, eh? É um crime. É um mal absoluto. Sobre “mal menor”: mas, evitar a gravidez é – falemos em termos de conflito entre o quinto e o sexto Mandamento. Paulo VI, o Grande!, em uma situação difícil, na África, permitiu às religiosas de usar anticoncepcionais par aos casos de violência. Não confundir o mal de evitar a gravidez, sozinho, com o aborto. O aborto não é um problema teológico: é um problema humano, é um problema médico. Mata-se uma pessoa para salvar uma outra – nos melhores dos casos. Ou por conforto, não? Vai contra o Juramento de Hipócrates que os médicos devem fazer. É um mal em si mesmo, mas não é um mal religioso, ao início: não, é um mal humano. Além disso, evidentemente, já que é um mal humano – como todos assassinatos – é condenado. Ao invés, evitar a gravidez não é um mal absoluto: e, em certos casos, como neste, como naquele que mencionei do Beato Paulo VI, era claro. Ainda, eu exortaria os médicos para que façam tudo para encontrar as vacinas contra estes dois mosquitos que trazem este mal: sobre isto se deve trabalhar. Obrigado.

Não há reparos a serem feitos no que diz respeito ao aborto, penso, uma vez que a sua condenação está bastante clara e enfática; prestemos atenção no que concerne à contracepção.

Primeiro, que evitar a gravidez não é um mal absoluto. Verdade. A própria HV citada ensina que, havendo “motivos sérios para distanciar os nascimentos, que derivem ou das condições físicas ou psicológicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores” (HV 16), é lícito “regular a natalidade”. Mas, atenção!, que isto não se pode fazer de qualquer modo: o que é lícito é “ter em conta os ritmos naturais imanentes às funções geradoras, para usar do matrimônio só nos períodos infecundos” (id. ibid.). Uma epidemia de Zika é motivo suficientemente grave para espaçar o nascimento dos filhos? Sim, é. Isso significa que, em tais circunstâncias, um casal pode legitimamente recorrer aos “períodos infecundos” para não engravidar.

Segundo, a história de Paulo VI e as freiras. Aqui o negócio fica mais nebuloso; parece que ninguém conseguiu encontrar uma referência primária a este fato. O pe. Z., aliás, afirma, altissonante, que isso é uma mentira e Paulo VI jamais deu permissão alguma para que freiras usassem contraceptivos; houve um artigo, publicado no início da década de 60, onde esta hipótese era aventada, e nada mais. Há referências esparsas a coisas parecidas com isso (por exemplo, o pe. Cullinane afirma, num panfleto, que há um decreto do Santo Ofício com este teor na época de Pio XII), mas nada capaz de dirimir a questão.

Se a materialidade da história é — pra dizer o mínimo — controversa, o seu conteúdo não é mais cediço. Del Greco ensina que é lícito à mulher violentada expulsar do seu corpo o sêmen do estuprador, e que isto se deve considerar como legítima defesa; no entanto, parece que este uso “defensivo” dos anticoncepcionais não tem sido tão pacificamente aceito pelas autoridades vaticanas como dá a entender a entrevista pontifícia. Na década de 90, já sob S. João Paulo II, a Santa Sé proibiu a pílula mesmo para freiras que, missionárias em zona de guerra, corriam risco de estupro. Roma, portanto, non locuta, e esta causa não se pode pretender finita.

Terceiro, por fim, a ilação anticatólica — que, malgrado o Papa não diga com estas exatas palavras, os meios de comunicação do mundo inteiro foram praticamente unânimes em alardear — de que é lícito usar contraceptivos durante o surto de Zika para evitar o nascimento de crianças com microcefalia. Sobre isso, é preciso dizer

i) que a situação das freiras na África aparentemente não guarda semelhança alguma com a de pessoas tendo relações sexuais livres e consentidas em um país da América Latina afligido pela Zika: no primeiro caso há a violência que permite aventar a hipótese da legítima defesa e, no segundo, não;

ii) que, portanto, para que se possa discutir a possibilidade de se usar contraceptivos como no (suposto) caso de Paulo VI, é preciso que se esteja diante de uma situação que lhe seja minimamente análoga — é o que faz o National Catholic Register, ao aventar o exemplo de uma mulher que é constrangida, pelo marido doente de Zika, a ter relações sexuais com ele;

iii) que o Pe. Lombardi, comentando a entrevista, disse que o uso dos contraceptivos só poderia ser objeto de deliberação da consciência em casi di particolare emergenza e gravità — casos de particular emergência e gravidade –, o que parece ir ao encontro do que NCR publicou; por fim,

iv) que independente de tudo isso permanece integralmente válido o ensino tradicional da Igreja, contido no Magistério de — entre outros — Paulo VI e S. João Paulo II, segundo o qual o uso de contraceptivos não é legítimo nem “mesmo se for praticado com intenção de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares, ou sociais” (HV).

Evidentemente o aborto é um pecado mais grave que a contracepção; claro que peca mais quem tira a vida de um ser humano inocente do que quem torna um ato sexual intencionalmente infecundo. Esta diferença de gravidade entre os pecados, no entanto, não tem o condão de “justificar” o pecado menos grave, que continua sendo pecado, e pecado grave, é bom lembrar. Nunca é lícito fazer o mal para que dele provenha o bem; tendo lembrado Paulo VI no avião, o Papa Francisco bem que poderia ter-lhe citado esta frase — esta, sim, de cuja autoria não há dúvidas, e cuja doutrina é certa e segura.

Microcefalia e o avanço da agenda pró-aborto

O meritíssimo sr. Juiz de Direito da 1ª Vara dos Crimes Dolosos Contra a Vida de Goiânia, dr. Jesseir Coelho de Alcântara, apareceu recentemente na nossa imprensa defendendo o aborto das crianças portadoras de microcefalia. «Se houver pedido por alguma gestante nesse caso de gravidez com microcefalia e zika, com comprovação médica de que esse bebê não vai nascer com vida, aí sim a gente autoriza o aborto», disse o Magistrado à BBC Brasil.

A bravata deve, sim, preocupar. Embora pessoas com esta síndrome possam levar uma vida perfeitamente normal — inclusive a ponto de dizerem achar «errado propor aborto para casos de microcefalia» –, isto só acontece se lhes é permitido, em primeiríssimo lugar, nascerem. Antes do nascimento, quando o feto não passa de uma imagem em um aparelho ultrassom, é sempre possível dizer qualquer coisa. Já cansamos de ver isso acontecer.

Marcela de Jesus, diagnosticada anencéfala, viveu um ano e oito meses. Vitória de Cristo, diagnosticada anencéfala, viveu mais de dois anos e meio. Jaxon Buell nasceu em 2014 e continua vivo. E a anencefalia é uma má-formação mais grave do que a microcefalia! Se mesmo bebês anencéfalos, a despeito dos diagnósticos que recebam no útero de suas mães, teimam em viver quando não são assassinados, o que se dirá dos portadores de microcefalia — que, destes, temos fartos exemplos até à idade adulta?

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Não existe «comprovação médica de que esse bebê não vai nascer com vida», esta quimera que o Dr. Jesseir evoca para anestesiar a consciência dos seus interlocutores. Não existe e nem nunca vai existir, porque este tipo de previsão (e não “comprovação”) é por sua própria natureza muito frágil. Diante de um aborto espontâneo, analisar o embrião com microcefalia severa e aventar a hipótese (verossímil, conceda-se) de que esta síndrome causou aquela morte, tal é possível ex post facto. Dizer, no entanto, que uma gravidez microcefálica em curso vai comprovadamente terminar em aborto, tal não é ciência e nem medicina. É na melhor das hipóteses exercício leviano de futurologia — e, na pior, pura e simples vontade de exterminar o deficiente. Não se pretende apressar o que há-de acontecer inevitavelmente, e sim poupar-se de uma experiência que se imagina desagradável. Acontece que, neste caso, esta experiência consiste em um ser humano inocente.

Veja-se como é esta e não outra a justificativa do aborto! Na sua fundamentação da ADPF 54, esta excrescência jurídica, o Ministro-Relator não é tão exigente quanto o Dr. Jesseir de Alcântara. Marco Aurélio, em seu voto, chega mesmo a dizer que o aborto deveria ser uma opção à mãe ainda que se reconhecesse o direito à vida do feto. Está lá, à página 69 do Acórdão:

No caso, ainda que se conceba o direito à vida do feto anencéfalo – o que, na minha óptica, é inadmissível, consoante enfatizado –, tal direito cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde, previstos, respectivamente, nos artigos 1º, inciso III, 5º, cabeça e incisos II, III e X, e 6º, cabeça, da Carta da República.

Ou seja: para o nosso Judiciário, a inviabilidade da vida extra-uterina é somente uma desculpa para tranquilizar a consciência da opinião pública, que insiste em ser visceralmente contrária ao aborto. Esta inviabilidade não é necessária de verdade: os juízes prescindem dela, aceitando em seu lugar meras impressões diagnósticas de que «esse bebê não vai nascer com vida» — e os mais ousados têm até a pachorra de dizer, em voto, que a liberdade sexual da mãe prepondera sobre a vida do feto. Antes, como agora, o objetivo não é conciliar direitos conflituosos em um caso limítrofe: o objetivo, agora como então, é fazer avançar a agenda pró-aborto. Que outro motivo explicaria o surgimento desta discussão de agora, quando são tão gritantes as diferenças entre o anencéfalo típico e o típico portador de microcefalia?

Para se defender desta tragédia é preciso ter a coragem de anunciar a sanidade em um mundo que parece sufocado pelo mal; mas é preciso também expôr ao descrédito estes maus profissionais que põem seus saberes a serviço da eugenia. Por exemplo, uma associação de portadores de microcefalia que receberam «comprovação médica» de que não nasceriam com vida seria excelente para destruir a credibilidade desta espécie de atestado médico, e bem que poderia tornar os profissionais de saúde menos propensos a arriscar sua reputação nesta espécie de vaticínio macabro. E o Juiz de Direito da 1ª Vara dos Crimes Dolosos Contra a Vida de Goiânia, que não tem a coragem do Marco Aurélio, já disse que só “autoriza” o aborto com a dita «comprovação». Sem ela, ao menos as crianças goianienses estarão a salvo da sanha homicida do Dr. Jesseir.

O que diz a Igreja sobre as sociedades secretas?

Um leitor do blog pergunta:

E além do tema do Comunismo, o que diz a Doutrina da Igreja sobre a adesão de batizados às sociedades secretas e relacionado a esse tema da excomunhão?

Pode esclarecer a respeito?

É o seguinte:

I. O Código Pio-Beneditino previa, no seu cânon 2335, explicitamente, excomunhão automática, reservada à Sé Apostólica, para quem aderisse à maçonaria:

Can. 2335. Nomen dantes sectae massonicae aliisve eiusdem generis associationibus quae contra Ecclesiam vel legitimas civiles potestates machinantur, contrahunt ipso facto excommunicationem Sedi Apostolicae simpliciter reservatam. [“Quem inscrever seu nome na seita maçônica ou em outras associações, do mesmo gênero, que conspiram contra a Igreja ou contra as legítimas autoridades civis, incorre ipso facto em excomunhão reservada à Sé Apostólica” — tradução livre minha.]

II. Em 1981, antes da entrada em vigor do novo Código, a Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma declaração onde dizia que «não foi modificada de algum modo a actual disciplina canónica» e, portanto, que não foi tampouco «ab-rogada a excomunhão nem as outras penas previstas». O antigo cânon, então, «veta[va] aos católicos, sob pena de excomunhão, inscreverem-se nas associações maçónicas e outras semelhantes».

Ou seja: nesta época, embora houvesse um cuidado (que se pode dizer pastoral) para distinguir as responsabilidades individuais em cada caso concreto, a Igreja absolutamente não mudara nem estava em vias de mudar o seu «juízo de carácter geral sobre a natureza das associações maçónicas», que permanecia negativo.

III. No final de 1983, no ano em que foi publicado o novo Código de Direito Canônico, a mesma Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma segunda declaração onde dizia que continuava «imutável o parecer negativo da Igreja a respeito das associações maçónicas, pois os seus princípios foram sempre considerados inconciliáveis com a doutrina da Igreja e por isso permanece proibida a inscrição nelas». Ainda, acrescentou que os «fiéis que pertencem às associações maçónicas estão em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão».

Há aqui uma mudança de direito eclesiástico: ab-rogado o antigo cânon 2335 sem que se lhe tenha colocado no novo Codex dispositivo correspondente, permanecia contudo a proibição aos católicos de ingressarem na maçonaria, sob pena não mais de excomunhão, mas de pecado grave.

Continuava e ainda continua vigente, não obstante, o cânon que prevê excomunhão automática para «o apóstata da Fé, o herege e o cismático» (CIC 1364). Portanto, se a adesão a uma loja maçônica ou a qualquer outra associação análoga importar em um pecado contra a Fé, o sujeito queda excomungado automaticamente: não mais pela inscrição na maçonaria (pena do antigo cânon 2335), mas pelo pecado contra a Fé Católica (pena do atual cânon 1364). É o mesmo raciocínio aplicável à questão da excomunhão dos comunistas.

IV. Pouco depois de um ano, em 1985, foi emitida pela CDF uma terceira declaração, mais longa que as anteriores. Esta é muito interessante e vale uma leitura na íntegra, porque distingue bem as questões morais (aquilo que é pecado) das penais (o subconjunto dos pecados ao qual são impostas determinadas penas pelo Direito Canônico). Além disso, explica detalhadamente os princípios que norteiam o parecer negativo da Igreja sobre a maçonaria:

Mesmo quando, como já se disse, não houvesse uma obrigação explícita de professar o relativismo como doutrina, todavia a força “relativizante” de uma tal fraternidade, pela sua mesma lógica intrínseca[,] tem em si a capacidade de transformar a estrutura do acto de fé de modo tão radical que não é aceitável por parte de um cristão, “ao qual é cara a sua fé” (Leão XIII).

Esta solução canônica, conclua-se, é a que está atualmente vigente: participar da maçonaria ou de outras sociedades secretas é pecado grave e, na medida em que esta participação leve a um pecado contra a Fé, conduz à excomunhão por heresia, apostasia ou cisma do cânon 1364.

V. Para fins informativos — pois os aspectos normativos vigentes são os que foram acima expostos — é interessante anotar o seguinte: um recente “questionário sobre a descrença” coloca a maçonaria (cf. q. 3.4) entre os «fenômenos ou movimentos para-religiosos»; e o Papa Francisco, quando esteve em Turim no ano passado, fez uma referência bem pouco positiva aos maçons:

[E]m finais do século xix a juventude crescia nas piores condições: a maçonaria estava no auge, até a Igreja nada podia fazer, havia o anticlericalismo, o satanismo… Era um dos momentos mais obscuros e um dos lugares mais tristes da história da Itália

VI. Em resumo, é possível sintetizar o que segue:

  • A mera inscrição na maçonaria ou em outras sociedades secretas não implica mais em uma pena de excomunhão automática.
  • Todavia, mesmo a mera inscrição é matéria de pecado grave, conforme reiteradas manifestações da Congregação para a Doutrina da Fé o afirmam (naturalmente, aplicam-se aqui os critérios morais genéricos dos pecados mortais, para cuja concretização exige-se conhecimento e livre consentimento).
  • Os princípios da maçonaria são irreconciliáveis com os da Fé Católica, de tal sorte que a adesão àqueles «tem em si a capacidade de transformar a estrutura do acto de fé» católico.
  • Na medida em que o católico inscrito na maçonaria tenha a sua fé deturpada, aplica-se-lhe a pena de excomunhão do cânon 1364 — não mais pelo mero ingresso na loja maçônica, mas sim pela deturpação da sua fé provocada por ela.

Com isso respondem-se as dúvidas colocadas sobre o assunto.