Riquezas do Catolicismo: consciência das próprias misérias

Acho que é de Chesterton a frase segundo a qual tornar-se católico é o único meio que o ser humano tem de escapar à condição de ser escravo do seu tempo. Ao converter-se à Igreja Católica todo fiel coloca-se, imediatamente, sobre os ombros de vinte séculos de humanidade, e adquire uma visão de mundo de um tal alcance que não seria capaz de obter de outra maneira.

Isso tem incontáveis implicações. Uma delas — fundamental, aliás, para qualquer processo de conversão sério — é notar que não existe nenhum pecado que não seja alcançado pela misericórdia de Deus. Nenhuma ofensa, por grande que nos pareça, é capaz de oferecer obstáculo verdadeiro à Graça alcançada por Cristo na Cruz do Calvário; não existe nenhum pecado que não possa ser verdadeiramente remido (e faço um parêntese: é por isso que rezamos, no Símbolo Apostólico, que cremos “na remissão dos pecados”, remissão verdadeira e própria, i.e., extinção, aniquilamento, destruição, desaparecimento. Isto é muito mais forte do que “ficar quite” após o cumprimento de uma pena: a remissão dos pecados é o fim da própria dívida que implicava na pena); não existe, dizia, nenhum pecado que não possa ser perdoado pelo Deus que é Todo-Poderoso exatamente para cancelar a paga que, por dívida de justiça, incumbe-nos prestar pelo mal que praticamos.

Não há pecado algum que não possa ser perdoado: esta é uma verdade que nos deve reconfortar. Mas a ela corresponde uma outra verdade, infelizmente menos lembrada mas nem por isso menos verdadeira, e que deveria nos fazer vigilantes e cuidadosos: do mesmo modo que não há pecado que não possa ser perdoado, não há também pecado, por grave que seja, que não possa ser cometido. Ninguém está imune a ofender a Deus! Ao contrário até: se não o fazemos, é porque Ele nos sustenta com a Sua Graça. Se não fosse por Ela, se Ela nos faltasse um instante sequer, pereceríamos verdadeira e miseravelmente, sem que nada pudéssemos fazer.

A tradição da Igreja é rica neste tipo de meditação, desde a advertência paulina (qui se existimat stare videat ne cadat — “quem julga estar de pé cuide para que não caia”, 1Cor 10, 12) até, por exemplo, esta eloquente passagem de S. Luís de Montfort que sempre me pareceu comovente:

Ah! Quantos cedros do Líbano, quantas estrelas do firmamento não têm-se visto cair miseravelmente e, em pouco tempo, perder toda a sua elevação e claridade! Donde proveio esta estranha mudança? O que faltou não foi a graça, que não falta a ninguém, foi a humildade. Julgaram-se mais fortes e mais capazes do que eram; julgaram que podiam guardar os seus tesouros. Fiaram-se e apoiaram-se em si mesmos. Acharam a sua casa bastante segura e os seus cofres bastante fortes para guardar o precioso tesouro da graça.

Tratado da Verdadeira Devoção, 89

Somos fracos, ainda que não o experimentemos, ainda que as pessoas que nos são próximas não o sejam capazes de perceber. Temos no nosso interior o desejo do infinito, sim, e uma capacidade extraordinária de abertura à graça de Deus; mas temos também, inafastavelmente, o poder de pecar, a capacidade da mesquinharia, a possibilidade da traição vil e covarde, a aptidão para os mais horrendos pecados. Tal consciência é uma riqueza da experiência cristã multissecular, parte do tesouro atemporal que se recebe ao tornar-se católico.

Eu pensava em tudo isso quando li esta matéria sobre um senhor de 67 anos que matou, decapitou e cortou os dedos da mulher com quem era casado há 37 anos. Esta espécie de crime bárbaro a gente costuma imaginar que é praticado por monstros, por doentes mentais, por pessoas cujos valores são totalmente diversos dos nossos; não parece ser o caso do sr. Jair. Pela história que foi contada não se tratou de nada minimamente premeditado: após uma briga, ele empurrou a mulher que «bateu a cabeça no chão e, por conta do ferimento no crânio, acabou morrendo». Naquele momento, «[d]esesperado», ele «decidiu decapitar a mulher e cortar as pontas dos dedos das mãos da vítima, para dificultar a identificação por parte da polícia»; na delegacia, ao relatar o seu desaparecimento, acabou entrando em contradições e, pressionado, terminou por confessar o crime.

Eu li a história e ela não me pareceu somente uma desculpa fajuta de um criminoso inveterado; talvez pelos cabelos brancos do idoso, pelos seus muitos anos de casamento, pela reação do filho do casal… não sei ao certo, mas acreditei no relato. E me parece, sim, que o sr. Jair está sofrendo, intimamente, as conseqüências das suas atitudes. Isso o torna mais humano. E isso nos torna, a todos nós, humanos miseráveis, mais próximos dele. E também ele, por mais inquietante que isso nos pareça, mais próximo de nós.

Quantos cedros do Líbano não têm caído por terra…! “Bom marido”, quase quatro décadas de casado, cabelos brancos, bons antecedentes. Que ninguém se julgue bom demais, perfeito demais, evoluído demais, auto-suficiente demais. Não o somos, e a realidade nos grita aos ouvidos, o tempo inteiro, que não o somos. Há sempre espaço para o arrependimento — esta é a grande maravilha da misericórdia de Deus! Mas há também sempre espaço para a queda. O demônio anda à nossa espreita, procurando nos devorar…! Tomemos cuidado. Vigiemos, que são muitos os melhores que nós que já caíram em suas garras.

Pelos lábios dela fala a voz da experiência

O mais recente rebuliço das redes sociais está sendo provocado por uma única feminista que, tendo abandonado a sororidade, resolveu dedicar a vida pública a desmascarar o feminismo tupiniquim. Não sei exatamente a trajetória dela entre o fim das atividades do Femen Brazil e a sua apoteótica irrupção pública ocorrida há algumas semanas; sei, no entanto, que a vida da Sara Winter nunca foi e nem tem sido fácil.

vadianao

Ela o conta no seu livro — Vadia, não! Sete vezes que fui traída pelo feminismo –, cujo lançamento foi na última segunda feira. Li-o, e a sensação que fica da leitura é um misto de repulsa e pena. São sete pequenos capítulos, bem curtos, nos quais a autora conta (com o devido cuidado na utilização de pseudônimos) algumas histórias escabrosas pelas quais ela própria passou no seu passado de militante feminista. A autoridade da testemunha ocular — mais forte até: da própria envolvida diretamente nos eventos relatados — transforma a obra em uma denúncia que importa, penso, conhecer e fazer conhecida. Contra ela não cola a velha estratégia de afirmar que são os “de fora”, malvados e invejosos, esbravejando falsamente contra “as mulheres” que não fazem senão lutar por seus direitos: trata-se de uma insider, de uma militante feminista, ela própria mulher também, que se entregou à luta feminista com uma invejável paixão — quase como se se tratasse de um ofício sagrado — e que depois, decepcionada com o que viu e viveu, rompe agora o silêncio trazendo à tona aquilo sobre o que é, hoje em dia, deselegante falar.

Outro dia eu dizia que não faz ninguém ser feminista o ser a favor do voto das mulheres, ou a favor de que elas possam estudar nas Universidades, ou contra os seus maridos espancarem-nas, ou coisas do tipo. Isto não faz ninguém ser feminista porque estas pautas pertencem à humanidade, e não a grupo sectário algum. Querer o bem das mulheres é característica dos seres humanos civilizados e decentes; e o maior logro do qual se aproveitam os movimentos sedizentes “feministas” é, justamente, rotular todos os que lhes são contrários como se fossem ogros ávidos por bater em mulheres, impedir-lhes o acesso à educação, tratar-lhes como coisas sem vontade própria ou qualquer outra barbaridade do tipo que — importante! — ninguém defende. Com esta tática depravada pretendem estes movimentos limpar o terreno da opinião pública para dar livre curso às suas pautas verdadeiras — como o aborto, por exemplo, esta sim uma reivindicação feminista por excelência. Ser “contra o feminismo”, portanto, geralmente não significa querer reduzir as mulheres ao status de escravas de seus pais/maridos. A maior parte das vezes significa coisas muito mais prosaicas como ser contra o assassinato de crianças indefesas no ventre de suas mães.

Ser “contra o feminismo” não significa deixar as mulheres entregues à própria sorte. Ao contrário até: querer ajudar verdadeiramente às mulheres implica em denunciar os movimentos que as instrumentalizam em prol de seus (dos movimentos) próprios interesses escusos. Querer ajudar as mulheres só é possível, em última instância, colocando-se firmemente contra o feminismo. É isto o que se evidencia quando as coisas são analisadas com mais vagar e menos emoção, e quando se percebe que as notas características dos movimentos que se dizem feministas — notas que os distinguem dos outros grupos e ideologias sociais — na verdade têm pouco ou nada a ver com as mulheres.

Foi isto, aliás, o que a Sara Winter descobriu. “Meu intuito é despertar as meninas para ficarem bem longe do feminismo”, diz a chamada da entrevista que ela concedeu recentemente a Zenit. E pelos lábios dela fala a voz da experiência, a voz do testemunho de quem viveu por quatro anos naquele mundo. A voz machucada de uma mulher extremamente ferida, cujo alerta outro intento não tem que poupar as meninas dos sofrimentos pelos quais ela própria teve que passar. É sábio dar-lhe ouvidos.

E atenção!, que não se trata de uma Santa Madalena arrependida saindo pelo mundo com ardor sobrenatural a pregar ousadamente o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo! É simplesmente uma garota machucada pelo movimento feminista, que teve a coragem de levantar a cabeça e tentar (re)construir a própria vida não mais sob as garras daquelas que tanto lhe fizeram mal — e, por isso, merece todo nosso respeito e consideração. A Sara não precisa, assim, de encômios e nem de maldições, não merece que se lhe atirem pedras e nem confetes: do que ela realmente precisa, sem dúvida, é de nossas orações. Ser feminista deixa marcas profundas no corpo e na alma, das quais não é nunca fácil se desvencilhar: e o que esta garota está fazendo em público é admirável. Ouçam a Sara. Ajudem a Sara. Rezem pela Sara.

“Somente até aqui”

Leio hoje que a China pretende “acaba[r] com a política do filho único”, o que é uma excelente notícia. No entanto, ato contínuo, na mesma manchete, vem a brutalidade: agora, o país «permitirá 2 crianças por casal».

Ora, que houvesse uma política de filho único é um absurdo completo; no entanto, que o segundo filho seja uma concessão do Governo chinês é também um absurdo, da mesma gravidade do primeiro. O verdadeiro escândalo aqui é que seja o Partido Comunista a se imiscuir no seio das famílias para lhes dizer quantos filhos tenham: se o número é um, dois ou cinco, isto é meramente um detalhe quantitativo, sem dúvidas relevante, mas de somenos importância no contexto maior. É grave que sejam (só) um ou dois filhos, sem dúvidas, mas ainda mais grave é que se aceite que o Estado diga qualquer coisa a respeito do número de filhos que as pessoas podem ter!

Passando para um assunto análogo: a mentalidade contraceptiva não se manifesta somente no desejo de ter poucos filhos. A sua maior característica é a pretensão de domínio sobre a própria fecundidade, é o desejo prévio de, em matéria de filhos, chegar somente até um certo ponto e dali não passar mais. O casal que diz querer somente “dois filhos, um casalzinho” revela, sem dúvidas, uma perspectiva antinatalista; mas a mesmíssima perspectiva se encontra – embora aqui seja mais difícil de notar – em quem diz “quero ter cinco filhos”. Porque o antinatalismo não é uma questão de quantidade, mas sim de qualidade: a sua específica característica é dizer “somente até aqui”.

O caso chinês ajuda a ilustrar isto: é um absurdo que a China imponha apenas um filho aos seus cidadãos, mas é também absurdo que ela imponha dois – porque, como dizíamos acima, o cerne do problema está na própria idéia de que compete ao Estado dizer quantos filhos as famílias devem ter. Na eventualidade de que o Partido Comunista implementasse uma “política de sete filhos”, ainda que nenhum chinês chegasse jamais ao oitavo filho, ainda assim, tratar-se-ia de uma política ilegítima de um governo ímpio. A questão não é de fato, e sim de princípio: não pode o Estado dizer “somente até aqui”. Se aceitamos que é legítimo a ele fazer isso, então os limites quantitativos deste “aqui” transformam-se em uma questão de grau, a serem mais amplos ou mais estreitos a depender das conveniências políticas de cada momento histórico.

Vale isso também, mutatis mutandis, para as famílias católicas. No dia do seu matrimônio, diante do altar de Deus, os católicos juram receber com amor os filhos que Ele lhes confiar. Não se faz, então, a mais mínima menção ao número destes filhos – como se fosse possível dizer “Senhor, recebo com amor até o terceiro; mais que isso, não”. A questão é de princípio, e não de grau. É este o ensinamento católico da Humanae Vitae, esta encíclica tão importante quanto ignorada: é lícita – e, atenção!, que pode até ser exigível – «a decisão, tomada por motivos graves e com respeito pela lei moral, de evitar temporariamente, ou mesmo por tempo indeterminado, um novo nascimento» (HV 10). O que o documento não coloca, propositalmente, é que esta evitação possa ser prévia nem definitiva.

Aboliu a China a infame política do filho único: alvíssaras! Que caia, também, a própria intromissão abjeta do Governo na vida das famílias chinesas. E que o fato nos sirva à reflexão: conquanto estejamos acostumados a enxergá-lo com naturalidade, por vezes se encontra camuflado no seio das famílias católicas um antinatalismo da mesma espécie do que é imposto, às escâncaras, pelos regimes totalitários. Um e outro cumpre ser combatido.

Livro: “De Persona a Pessoa: o reconhecimento da dignidade do nascituro perante a ordem jurídica brasileira”, do prof. Humberto Carneiro

Já está disponível na Livraria Cultura o livro do prof. Humberto Carneiro, “De Persona a Pessoa: O Reconhecimento da Dignidade do Nascituro perante a Ordem Jurídica Brasileira”. Trata-se da dissertação de mestrado do professor, a cuja defesa estive presente e sobre a qual publiquei um relato aqui, no Deus lo Vult!, à ocasião. Humberto disse que organizaria o trabalho para o publicar. O momento enfim chegou — e em tempo oportuno, para engrossar as fileiras dos que, contra um utilitarismo perverso infelizmente muito em voga, defendem o valor da vida humana “desde a concepção até a morte natural”.

Embora o nosso Código Civil estabeleça que “a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (Art. 2º) e o Pacto de San José da Costa Rica (também em vigor no Brasil desde antes do próprio CC) determine que “pessoa é todo ser humano” (Art. 1., 2.), o fato é que hoje se procura, por todos os meios, mitigar o alcance desta norma de direito natural e positivo. As questões envolvendo pesquisas científicas com seres humanos em estágio embrionário e a autorização judicial para se terminar a gravidez de feto meroanencefálico (com a conseqüente morte do ser humano deficiente) são talvez os dois exemplos mais claros de como a nossa Suprema Corte, na verdade, para a defesa de interesses escusos, julga-se no direito de passar por cima tanto da legislação pátria quanto dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Os nossos ministros do Supremo Tribunal Federal, é fato, não são os mais ardorosos e entusiastas defensores daquela norma que manda “respeitar os direitos e liberdades (…) [de] todo ser humano” (CADH 1). Ao contrário até: eles buscam, em toda oportunidade, meios de a relativizar, de lhe diminuir o alcance, de a esvaziar de conteúdo. E eles não o poderiam fazer — ou, ao menos, não com tanta facilidade — se contassem com uma oposição firme e verdadeira, não só da opinião pública como também, e principalmente, da Academia.

É por isso que é tão importante que seja agora lançado, pela Editora da Universidade Federal de Pernambuco, um livro onde se defende, já desde o título!, o reconhecimento da dignidade do nascituro perante a ordem jurídica brasileira. Iniciativas assim, jamais louvadas o bastante, devem ser aplaudidas, divulgadas e imitadas. Oxalá esta mudança de paradigma possa se expandir depressa, a fim de que o estrago causado por más idéias a respeito do ser humano — hoje ainda, em certos círculos, dominantes — possa ser contido e vire, o quanto antes, apenas uma página triste da história do Brasil.

Tudo o que é possível é perdoá-lo

O aborto, enquanto assassinato direto de um ser humano inocente, é um pecado grave, gravíssimo — daqueles que “clamam ao Céu vingança”, ao lado de praticar atos de homossexualismo, oprimir os pobres e negar o salário ao trabalhador. Por conta dessa sua (tão grande!) gravidade intrínseca e porque, muitas vezes, o horrendo crime do aborto é negligenciado e encarado como se fosse algo de somenos importância, a Igreja impõe, a quem o pratica e aos que colaboram materialmente com ele, uma pena de excomunhão. É o que diz o Código de Direito Canônico vigente: «Quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae» (CIC 1398). A pena não é nova; a mesmíssima sanção consta no Código Pio-Beneditino, Cân. 2350, o qual reza: «[p]rocurantes abortum, matre non excepta, incurrunt, effectu secuto, in excommumcationem latae sententiae Ordinario reservatam». Quem procura o aborto, sem exceção da mãe, incorre, alcançado o efeito, em excomunhão automática reservada ao Ordinário.

Ora, existem duas coisas distintas aqui. Existe o pecado mortal, decorrente de uma violação direta de um dos preceitos do Decálogo, cujas conseqüências — das quais a mais grave é a perda do estado de graça — nós conhecemos bem das aulas de teologia moral; e existe a pena canônica de excomunhão, imposta pelo Direito eclesiástico. Conquanto emanem ambas do mesmo ato, as duas coisas não se confundem. Um só é o ato humano aqui: o aborto. Dele decorrem, simultaneamente, duas penas, uma de ordem moral, outra de ordem eclesiástica: uma, a perda do estado de graça, outra, a perda da comunhão com a Igreja.

Todo pecado mortal — e não apenas o aborto — provoca a perda do estado de graça. Para recuperá-lo, são necessárias a contrição, a confissão e a satisfação: i.e., arrepender-se verdadeiramente do mal praticado, confessá-lo a um sacerdote da Igreja Católica que tenha a faculdade de o absolver e, na medida do possível, repará-lo. Esses são os pré-requisitos básicos e imprescindíveis para que alguém, tendo perdido a graça santificante por meio de um pecado mortal cometido após o Batismo, venha um dia a recuperá-la. Sem isso (ou pelo menos sem o primeiríssimo deles, a contrição — e perfeita –, na impossibilidade material de acorrer à Confissão Sacramental), não cabe falar em “perdão”.

Se todo pecado grave, pelo fato mesmo de ser grave (i.e., de ser uma ofensa consciente e deliberada à lei de Deus em matéria grave), provoca a perda do estado de graça, nem todo ele provoca excomunhão latae sententiae. Nem mesmo os pecados que clamam ao Céu vingança são, todos, punidos com excomunhão. Na verdade, são apenas oito as excomunhões automáticas atualmente vigentes no ordenamento jurídico canônico (no Código: aborto, absolvição de cúmplice em pecado contra o sexto mandamento, violação de sigilo de Confissão, agressão física ao romano pontífice, sagração episcopal sem mandato pontifício, profanação eucarística e heresia, apostasia ou cisma — hipóteses às quais foi posteriormente acrescentada a tentativa de ordenação feminina). A excomunhão é mais grave do que o mero pecado mortal, uma vez que rompe o vínculo jurídico do excomungado com a Igreja — o qual passa a, d’Ela, não poder receber mais nada. Quem está em pecado mortal, conquanto não aufira as graças próprias (e.g.) dos sacramentos “de vivos”, está apto a receber o perdão sacramental mediante o Sacramento da Penitência. Quem está excomungado, não; precisa primeiro ter a sua excomunhão levantada para, em seguida, receber o perdão sacramental.

Quem comete o aborto está sob uma dupla pena: a perda do estado de graça, comum a todos os pecados mortais, e a excomunhão, que é própria do aborto (e do restrito conjunto de pecados acima mencionado). Isso significa que, uma vez arrependido, o penitente precisa de um pouco mais do que o comum para se reconciliar com a Igreja: se àqueles que cometem pecados mortais que não excomungam basta a absolvição sacramental (i.e., basta a confissão com qualquer sacerdote que esteja apto a ouvir confissões), quem está excomungado precisa antes ser readmitido à comunhão eclesiástica para, só depois, ser absolvido.

O problema é que nem todo padre possui, de ordinário, o poder de levantar a excomunhão do aborto. Assim, quem comete o pecado do aborto — e que está, portanto, além de em pecado mortal, excomungado — precisa, para se reconciliar com Deus e a Igreja, de um sacerdote não só capaz de ouvir confissões, mas também com a faculdade de retirar a excomunhão. Quem possui tal faculdade, segundo o que está expresso no Código Pio-Beneditino (e ainda em vigor), é o Ordinário do lugar. Ou seja, é o bispo diocesano. O bispo pode delegar esta faculdade a alguns dos sacerdotes de sua diocese, ou mesmo a todos eles.

O Papa é o Pastor Supremo da Igreja, que possui jurisdição plena e imediata sobre todo fiel católico. Tudo aquilo que um bispo pode fazer, o Papa pode — e com muito mais razão — fazer igualmente. E foi isso o que Sua Santidade o Papa Francisco fez recentemente: estendeu, a todos os sacerdotes do orbe, durante o Ano Santo, a faculdade de levantar a excomunhão do aborto.

Algumas coisas, portanto, precisam ficar claras.

  • O aborto sempre foi perdoável, como todo pecado mortal, mediante arrependimento e confissão.
  • A pena de excomunhão do aborto, como toda pena de excomunhão, não pode ser levantada por todo e qualquer sacerdote — mas apenas pela autoridade competente e por aqueles a quem esta autoridade competente delegar este poder.
  • A autoridade competente para levantar a excomunhão do aborto é o Bispo Diocesano (o Ordinário).
  • O aborto comporta duas penas — a perda do estado de graça e a excomunhão eclesiástica — e, portanto, o processo de reconciliação com Deus e a Igreja de quem comete este pecado passa, também, por duas fases: o levantamento da excomunhão e a absolvição sacramental.
  • Estas duas fases, via de regra, acontecem no ato da mesma confissão sacramental: o penitente, arrependido, se confessa, e o padre, que tem a faculdade de levantar a excomunhão e a de absolver os pecados, revoga a excomunhão e, acto contínuo, absolve o penitente.
  • Na eventualidade de um fiel católico que tenha cometido o pecado do aborto vir a se confessar com um padre que não possua a faculdade de levantar a excomunhão, então este padre não o pode absolver, pelo menos não de imediato, e deve encaminhá-lo ao bispo, ou a outro sacerdote que, na diocese, possua esta faculdade, ou mesmo solicitar, ele próprio, o padre, ao seu bispo a faculdade de revogar a excomunhão do aborto, para então conferir ao penitente a reconciliação eclesiástica e a absolvição sacramental.
  • A fim de facilitar aos pecadores arrependidos a reconciliação com a Igreja, o Papa Francisco determinou que, durante o Ano Santo, todo sacerdote tem o poder de revogar a excomunhão na qual incorre “quem procura o aborto”. Aquilo que era privativo do bispo diocesano e dos sacerdotes que ele designasse, portanto, durante o Jubileu, por um ato de liberalidade do Romano Pontífice, cabe a todo e qualquer padre.
  • Não tem o menor sentido falar que, com isso, o Papa esteja “desculpando” o aborto ou qualquer coisa do tipo. As palavras de Sua Santidade são claras: «decidi conceder a todos os sacerdotes para o Ano Jubilar a faculdade de absolver do pecado de aborto quantos o cometeram e, arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado». Ou seja, não é para revogar automaticamente todas as excomunhões de todo mundo; é para que os padres possam absolver aqueles fiéis que cometeram aborto e — conjunção aditiva –, «arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado». É preciso, portanto, i) estar arrependido — contrição — e ii) pedir o perdão — confissão sacramental.
  • O Ano Santo «abrir-se-á no dia 8 de Dezembro de 2015, solenidade da Imaculada Conceição» e «terminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo, 20 de Novembro de 2016» (Misericordiae Vultus). É somente dentro deste intervalo de tempo que os padres gozarão da faculdade conferida pelo Papa.
  • Até lá, quem se arrependeu do aborto que cometeu ou ajudou a cometer pode se reconciliar com a Igreja procurando o Bispo da sua diocese.
  • Por fim, mesmo durante o Ano Jubilar, quem não está arrependido de ter praticado ou ajudado a praticar o aborto, evidentemente, não tem como receber o perdão sacramental. A estes cabe esta censura do Papa (cf. carta citada):

Uma mentalidade muito difundida já fez perder a necessária sensibilidade pessoal e social pelo acolhimento de uma nova vida. O drama do aborto é vivido por alguns com uma consciência superficial, quase sem se dar conta do gravíssimo mal que um gesto semelhante comporta.

Não surpreende que a mídia faça eco a esta «mentalidade». Os católicos, no entanto, aos quais Cristo mandou não se conformar com este mundo, não podem compreender as coisas — nem muito menos as coisas da Igreja — do modo superficial que elas aparecem nos meios de comunicação. Sim, o aborto é um «gravíssimo mal» — o Papa sabe disso! Mas não existe mal que não possa ser vencido por um coração contrito. O mundo clama por misericórdia. Mas misericórdia e arrependimento andam lado a lado. As reivindicações do mundo — por exemplo, para que se deixe de condenar os atos de homossexualismo, o adultério e a fornicação, o egoísmo, o aborto — não são, de nenhum modo!, misericórdia verdadeira. São, aliás, o contrário mesmo de misericórdia, na medida em que, fechando os olhos ao pecado, fecham o coração ao arrependimento — e, por conseguinte, vedam-lhe o perdão. Não é possível fazer com que o pecado deixe de existir. Tudo o que é possível é perdoá-lo. Para isso existe a Igreja. Fora disso não há salvação.

E a redução da maioridade penal?

Um leitor do Deus lo Vult! apresenta os seguintes (pertinentes) questionamentos:

1ª) Ser contra reduzir a maioridade penal é uma posição oficial da Igreja? Se sim, baseada em quê?

2ª) Você é a favor de reduzir a maioridade penal?

3ª) Por quê é tão polêmico esse tema pra a Igreja? Tendo em vista que a violência precisa ser combatida, são seria mais do que justo punir baixando a maioridade penal, de forma contundente, quem comete crimes?

Primeiramente, é preciso deixar claro a Igreja não tem “posições oficiais” sobre temas tão essencialmente contingentes como o modo adequado de punir as pessoas de acordo com a idade que elas tenham. A Igreja trabalha com princípios, deixando (ampla) margem à sua variada concretização de acordo com os tempos e lugares, os costumes e os modos de vida de cada sociedade.

Aquilo que mais aproximadamente se pode procurar a este respeito na Igreja são as disposições do Código de Direito Canônico. Dois cânones particularmente interessam aqui; encontram-se no Livro VI – “das sanções na Igreja” – do Código e, dentro dele, no Título III – “da pessoa sujeita às sanções penais”. São os seguintes:

Cân. 1323 — Não está sujeito a nenhuma pena aquele que, ao violar a lei ou o preceito:

1.° não tinha ainda completado dezasseis anos de idade;

* * *

Cân. 1324 — § 1. O autor da violação não se exime à pena, mas esta, imposta por lei ou preceito, deve atenuar-se ou em seu lugar aplicar-se uma penitência, se o delito for praticado:

[…]

4.° por um menor que tenha completado dezasseis anos de idade;

Daqui se vê que, no que se refere à punibilidade do fiel católico em razão de sua faixa etária, vigoram três regimes na Igreja:

  1. os menores de 16 anos não estão sujeitos a nenhuma pena;
  2. os que já completaram 16 anos e ainda não completaram 18 anos estão sujeitos a penas atenuadas ou substituídas por penitências;
  3. os que já completaram 18 anos são punidos normalmente.

Isto – atenção! – não diz respeito à legislação civil dos diversos países do globo: isto é o que a Igreja dispõe para a aplicação das penas canônicas. Os dois ramos do Direito – o canônico e o civil – são relativamente independentes e, portanto, é perfeitamente possível que uma pessoa seja civilmente inimputável e canonicamente punível, ou vice-versa, sem que haja nenhum problema intrínseco com isto.

No que se refere ao direito secular, às penas estabelecidas pelo Estado, o que vale é o que está no Catecismo (III parte, Segunda Seção, Cap. II):

2266. O esforço do Estado em reprimir a difusão de comportamentos que lesam os direitos humanos e as regras fundamentais da convivência civil, corresponde a uma exigência de preservar o bem comum. É direito e dever da autoridade pública legítima infligir penas proporcionadas à gravidade do delito. A pena tem como primeiro objectivo reparar a desordem introduzida pela culpa. Quando esta pena é voluntariamente aceite pelo culpado, adquire valor de expiação. A pena tem ainda como objectivo, para além da defesa da ordem pública e da protecção da segurança das pessoas, uma finalidade medicinal, posto que deve, na medida do possível, contribuir para a emenda do culpado.

Desta passagem é possível extrair as seguintes importantíssimas conclusões:

  1. não existe nenhuma referência à idade da maioridade penal;
  2. é dever do Estado reprimir os comportamentos socialmente deletérios;
  3. o primeiro objetivo da pena é “reparar a desordem introduzida pela culpa” (função retributiva);
  4. a emenda do culpado (ressocialização) deve ocorrer “na medida do possível”.

Ou seja: é dever do Estado punir os crimes. A maneira concreta como esta punição se dará é deixada à prudência política dos governantes; nada obsta a que, por exemplo, existam estabelecimentos prisionais diferentes de acordo com a faixa etária do criminoso, ou – no meu entender mais importante ainda – de acordo com a lesividade do delito. Uma sociedade, caso queira, pode estabelecer vinte faixas etárias diferentes com diferentes modos de punição para cada uma delas: havendo certa razoável proporcionalidade entre eles, não existe a isso nenhum óbice de natureza moral. O que a sociedade não pode é deixar os delitos impunes: até aqui a doutrina da Igreja.

A respeito da maioridade penal, as duas posições antagônicas – pelos menos as duas posições sérias antagônicas – podem ser resumidas, parece-me, nas seguintes: por um lado, há quem ache que punir mal é menos ruim do que não punir e, pelo outro lado, há quem julgue que não punir é menos ruim do que punir mal.

Acho que ninguém discorda disto: o nosso sistema carcerário pune muito mal. Já o disse alhures, aliás: estou convencido de que, no futuro, os nossos descendentes olharão para nós com horror e, implacáveis, censurar-nos-ão a indiferença com a qual parecemos levar as nossas vidas enquanto, nas nossas prisões, seres humanos – nossos semelhantes – vivem pior do que animais.

Reconhecê-lo não é esquerdismo. O insuspeito Nelson Rodrigues, em uma de suas crônicas d’A Cabra Vadia (“A fotografia do ódio”, pp. 62-65), traz-nos os seguintes interessantíssimos parágrafos:

Imaginem um chefe de família, de origem italiana. Mas a origem pouco importa. Era uma criatura doce, cálida, generosa. Um dia foi preso porque não tinha, na hora, a sua identidade. Sua mulher, seus oito filhos, estão em casa, esperando para o jantar. Mas ele não vem porque foi atirado no fundo de um xadrez. Passou lá, entre marginais, 24 horas, e gritando. Digo eu que o verdadeiro grito parece falso. E o motorista gritava como se estivesse imitando, apenas imitando a dor da carne ferida.

Eis o que aconteceu: — fora estuprado por seis ou sete marginais. Saiu do xadrez, foi para casa. Empurrou a mulher, entrou no quarto e trancou-se. Lá, meteu uma bala na cabeça. Morreu de ódio, morreu odiando, como a fotografia de Manchete. E, como a leitora, não sabia a quem odiar. Os marginais eram, decerto, os menos culpados. Episódios assim são uma rotina que jamais variou. Isso pode acontecer com o filho, o pai, o irmão de qualquer um; pode acontecer com qualquer um. A vítima pode uivar três dias e três noites. Ninguém se mexe na delegacia.

Ora, isso foi escrito em 1968…! O que diria o cronista se visse, em todo o esplendor do terceiro milênio, o Carandiru, Pedrinhas ou o nosso Aníbal Bruno?

A grande questão de fundo, sobre a qual ninguém fala, é a seguinte: o sistema carcerário é ruim para o “adolescente” de 17 anos como o é para o “jovem” de 19. Quem é contra a redução da maioridade não quer que apenas o “de menor” seja poupado dos horrores dos presídios: quer, igualmente, que o seja o “de maior”. Apenas não existe viabilidade para a bandeira e, portanto, por uma mera questão de contenção de danos, ele aceita a incoerência acidental da própria posição.

Tal é legítimo? Lógico que é. O problema é que se está diante de duas posições injustificáveis. O Estado não pode deixar de punir. Mas tampouco pode pôr em grave risco a integridade física e mental de seus cidadãos. Alguém pode justificar a sua posição favorável à redução da maioridade afirmando que se devem tolerar os males do sistema carcerário em vistas a evitar a impunidade generalizada, que é um mal maior. Por outro lado, alguém pode defender a não redução da maioridade alegando que se deve tolerar a relativa impunidade a fim de mitigar os danos injustos do sistema penitenciário patrício, que – este sim! – é o mal maior aqui. Como determinar, de uma vez por todas e absolutamente, a qual dos dois litigantes assiste razão?

O que precisa ficar claro é que a questão não tem absolutamente nada a ver com a idade a partir da qual os brasileiros conseguem entender o caráter ilícito de seus atos e se determinar de acordo com este entendimento. É lógico que – salvo exceções extraordinárias e que devem ser provadas a posteriori, jamais presumidas – pessoas de quinze, dezesseis ou dezessete anos sabem perfeitamente o que estão fazendo. A questão é o que fazer com quem comete crimes, dentro das circunstâncias históricas concretas em que estamos inseridos. E, aqui – excetuando-se, é claro, posições tresloucadas como “não se pode punir, apenas reeducar” ou congêneres -, há espaço para bastante diversidade legítima de opinião.

Soluções concretas para as famílias não-tradicionais

Recebi por WhatsApp de um amigo uma manchete jornalística, em tom eufórico, segundo a qual o Papa Francisco conclamava a uma solução concreta para as famílias não-tradicionais. A frase verdadeira, proferida na homilia em Guayaquil, é a seguinte:

Pouco antes de começar o Ano Jubilar da Misericórdia, a Igreja vai celebrar o Sínodo Ordinário dedicado às famílias para amadurecer um verdadeiro discernimento espiritual e encontrar soluções concretas para as inúmeras dificuldades e importantes desafios que a família deve enfrentar nos nossos dias. Convido vocês a intensificar a oração por essa intenção: para que, mesmo aquilo que nos pareça impuro, nos escandalize ou espante, Deus – fazendo-o passar pela sua “hora” – possa milagrosamente transformá-lo. Hoje a família precisa desse milagre.

Desta vez, contudo, eu nem precisei recorrer ao texto original. Disse-lhe, sem pestanejar: ora, é claro que a dita “família não-tradicional” precisa de uma solução, e uma solução urgente, porque é um escândalo que seres humanos – muitos dos quais católicos! – vivam os mais horrendos pecados como se não fossem nada!

Não existe “família não-tradicional” e nem “família tradicional”. Existe família, ponto. Família é o pai, a mãe e os filhos. Isso não é a família “tradicional”, isso é a família verdadeira e perfeita, a arquetípica, a família por antonomásia em referência à qual todos os outros agrupamentos sociais se definem. Por vezes, decerto, as coisas não acontecem de maneira tão perfeita; por vezes, sem dúvidas, faltam alguns desses elementos. Às vezes os filhos não vêm, às vezes a morte vem colher precocemente um dos cônjuges; dir-se-á, nestes casos, que não existe família?

Melhor se dirá que a família está ainda em projeto, em desenvolvimento, no caso dos filhos que ainda não vieram; ou que ela persiste, ainda, subsistindo, nos seus frutos, nas suas marcas, no caso em que um dos cônjuges já partiu para as moradas celestes. Mas, atenção! Isto, que materialmente pode ser igual a um divorciado ou a um casal que emprega anticoncepcionais para não ter filhos, é no entanto completamente diferente.

Porque uma coisa é a aceitação resignada das vicissitudes da vida, de uma eventualidade alheia às nossas vontades – contrária, até, às nossas vontades! – e que priva a família quer dos seus alicerces originais – no caso da morte -, quer de seu desenvolvimento natural – no caso dos filhos que não vêm. Uma outra coisa, completamente diferente, é, por conta própria, destruir o vínculo indissolúvel que só a morte é capaz de solver, ou ceifar os filhos que Deus quisera mandar ao mundo.

Não há comparação possível. Do fato de os fins da família poderem ser frustrados não segue que nós os possamos deliberada e conscientemente frustrar; assim como do fato de que possamos perder um membro na guerra (e les invalides são merecedores de todo o nosso respeito e consideração!) não segue que possamos, por conta própria, nos mutilar por acharmos que o corpo deficiente “nos cai” melhor que o corpo são – e nem muito menos sancionar socialmente esta loucura.

De volta à (dita) “família não tradicional”. Isso simplesmente não existe; o que existe, e que demanda urgente tratamento – e nisto o Papa está mais uma vez corretíssimo! – são arremedos familiares, frutos de uma loucura generalizada que faz a seres humanos julgarem que a desestabilização voluntária da própria família (quer na sua dissolução, quer no impedimento de seus desenvolvimentos naturais) pode lhes ser algo bom. E é um escândalo que pessoas civilizadas, sem nenhuma coação premente de situações excepcionais (tal seria o exemplo, digamos, de uma mulher espancada diariamente pelo marido), aceitem com naturalidade viver em adultério continuado, traindo as promessas feitas um dia diante de Deus; ou tomando diariamente veneno para impedir que seus órgãos funcionem da maneira que foram feitos para funcionar, rejeitando os filhos que também prometeram um dia receber e educar. Isto choca e escandaliza, é socialmente deletério, individualmente degradante. E tal se vê não entre ímpios e pagãos, mas muitas vezes entre os que se dizem católicos praticantes…! Claro que provoca perplexidade; claro que demanda, sim, enfrentamento corajoso e urgente.

No WhatsApp, eu dizia que o maior sintoma dessa degenerescência era o fato de as pessoas não aceitarem o próprio erro mas, ao contrário, ficarem sempre repetindo para si próprias que estavam certas e errados eram os Papas, os santos, a Igreja, o próprio Cristo! Que os outros que mudassem, pois elas próprias não iriam mudar. Isto é o mais grave pecado que pode haver, porque é o pecado que já não se reconhece como pecado, é – para usar a expressão que Bento XVI consagrou – a própria perda de sentido do pecado.

O Papa sabe que é preciso «soluções concretas» para estes casos. Ora, que soluções? As que o mundo demanda? As que estas pessoas querem? De maneira alguma: a que deseja a Igreja! A solução para estes indivíduos é, nas palavras do próprio Papa!, que Deus «possa milagrosamente transformá-lo[s]». Sim, é um milagre; furar a barreira erguida pela impiedade de quem não é mais capaz de reconhecer o pecado em que vive imerso é um verdadeiro milagre. Mas é um milagre necessário, e pelo qual o Papa nos convida a rezar mais intensamente. Hoje a família precisa dele. Não nos é lícito fingir que não temos nada com isso.

A imoralidade tornada pública é, sim, digna de censura igualmente pública

Os santos católicos, decididamente, não eram as figuras adocicadas – verdadeiros paspalhões! – que costumam pintar por aí. Ainda nos dias de hoje; lembrava-me, agora, de um texto a esse respeito que eu lera há muitos anos, da pena do falecido prof. Orlando Fedeli (que Deus o tenha!). Recuperei-o no Google; faz mais de uma década. A passagem cuja impressão se me apresentava mais vívida à memória era a seguinte:

Ser santo era fazer milagres, andar de camisolão azul celeste, com uma flor de lírio na mão, e com jeito semifeminino.

Lembro-me de que quando me disseram que os santos eram assim, decidi não ser santo.

Ah se me tivessem dito que os santos — todos os santos foram combativos e foram odiados — eram “briguentos”! Ah se me tivessem dito que ser santo era ser combativo, era ser herói no mais alto sentido desse termo!

E eu me lembrava disso porque hoje é o dia de São João Batista; e, decerto, o santo passaria longe, muito longe!, dos padrões de “civilidade” e “bom trato” que se exigem nos dias que correm. Certo, o dia de São João Batista – 24 de junho – é o dia do seu nascimento e, portanto, existe uma certa lógica nas suas representações como criança de colo que são tão comuns neste período junino; mas isso não justifica, absolutamente, que nós nos esqueçamos do homem que ele se tornou e da história que ele legou ao mundo.

Não vou nem discorrer muito sobre o fato de que ele vivia fora da cidade, longe da convivência social normal, vestido somente com peles de animais e comendo coisas nojentas como gafanhotos e mel silvestre. (Mesmo assim, as pessoas acorriam ao deserto para vê-lo.) Não vou me deter no fato de que ele, com as suas palavras profundamente indelicadas, trovejava invectivas e ameaças que, hoje, dir-se-iam fanáticas: coisas como “raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera vindoura?” ou “o machado está posto à raiz das árvores, e toda ela que não der frutos será cortada e lançada ao fogo!”. (Ainda assim, as pessoas se aproximavam para ouvi-lo.)

O que hoje não me sai da cabeça é uma outra passagem, já mais próxima do final da sua vida. Herodes, o rei, tomara por concubina a esposa do seu irmão. Por conta disso, São João Batista o repreendeu duramente, e Herodes o mandou encarcerar. Depois disso, em uma festa de aniversário do velho rei, a sua enteada dançou-lhe tão lubricamente que o deixou com o baixo ventre em chamas. Cego de volúpia, disse à filha de Herodíades que lhe pedisse o que quisesse. A adolescente, provavelmente com bem pouca malícia de vida afora a necessária para seduzir velhos monarcas, correu à barra da saia da mãe para lhe pedir conselhos. “A cabeça de João Batista em uma bandeja de prata!”, foi o pedido que se tornou proverbial. E assim fez Herodes. Entristecido, como nos contam os Santos Evangelhos, mais ainda assim o fez.

É curioso que Herodíades tenha guardado tanto rancor contra o homem que ousou desaprovar as suas aventuras sexuais com o cunhado. A fixação da própria Salomé para com São João Batista, aliás, foi retratada de maneira impressionante na peça de Oscar Wilde que, hoje, vale uma (re)leitura: o santo incorruptível, a cujos lábios Salomé só tem acesso – a despeito de todos os seus rogos! – na bandeja de prata; e o Tetrarca todo-poderoso, suplicando pateticamente para que a filha de Herodíades simplesmente dançasse para ele. Talvez poucas obras da literatura mundial tenham conseguido retratar, assim, com tanta clareza, como é desprezível o homem escravo de suas paixões – e, por via de contraste, como são admiráveis os santos no seu desprezo pelas coisas terrenas.

Que abismo atrai abismo nós já sabemos muito bem, e a história de Herodes é um belo exemplo dessa progressão no mal: o sujeito começa desejando a mulher do irmão, depois já está fantasiando com a enteada e termina como mandante de um assassinato que ele próprio, por si só, de início não queria realizar. Mas o que mais nos interessa aqui é o fato de São João Batista ter censurado, pública e asperamente, esse aspecto (que hoje se diria “da vida privada” ou “da intimidade”) do tetrarca da Galiléia!

Se o sujeito quer tomar para si a mulher do seu irmão – e se ela também o quer, como parece ser o caso -, o que as outras pessoas têm a ver com isso? E se, uma vez cansado da mãe, o velho volta os seus desejos libidinosos para a filha dela, isso é porventura da conta de alguém? Esse tal de João Batista – perguntar-se-ia, certamente, nos dias de hoje – não tem mais o que fazer além de ficar se metendo na vida dos outros?

O que esta passagem da vida de São João nos ensina é que a imoralidade tornada pública é, sim, digna de censura igualmente pública, e de censura inclusive violenta se for o caso. Apesar de o santo não ter nada a ver com a vida de Herodes e de Herodíades – com o que dois adultos fazem consentidamente entre si -, o escândalo provocado pelos maus hábitos praticados às claras é passível, sim, de ser criticado, deplorado e condenado pela autoridade espiritual e moral de quem anuncia o Evangelho – igualmente às claras. Ninguém pode ser coagido a uma vida íntegra, é verdade; mas os que levam uma vida dissoluta não têm direito algum a silenciar a voz dos que anunciam a importância de se levar uma vida reta e agradável a Deus.

Nos dias de hoje, em que querem relegar a moral à esfera subjetiva e onde parece ser já senso comum a idéia de que ninguém pode condenar os hábitos de outrem, lembremo-nos de São João Batista e peçamos, sempre, a sua poderosa intercessão. Olhemos para ele e nos convençamos, de uma vez por todas!, de que os santos não são aquelas pessoas que estão sempre em paz com todo mundo. Imitemos a vida de São João, também e principalmente, na sua vocação profética de chamar o mal de mal, às claras e diante de todo o mundo, ainda que tentem nos calar os poderosos. Ainda que isso nos valha o ódio dos dissolutos. Ainda que os leve a pedir as nossas cabeças.

Sempre há flores possíveis

Foi no final do mês passado que correu a internet o vídeo de uma menina, chilena, vítima de uma doença grave e incurável; a adolescente, de nome Valentina, fazia uma súplica emocionada para que a deixassem morrer. À eutanásia há quem confira o eufemismo de “morte piedosa”; para estes, pôr fim ao sofrimento de um doente terminal seria uma atitude piedosa e compassiva, até moralmente exigível àqueles que pretendem possuir algum grau de civilidade e empatia.

Os problemas com esta argumentação – que, aqui, saltam aos olhos – são dois.

Em primeiro lugar, uma decisão é tanto melhor tomada quando mais se a toma de maneira isenta e desapaixonada, longe da turbação mental que a experiência concreta e presente de um estado de espírito extremo (como, por exemplo, as terríveis dores e a ausência de perspectiva de futuro características de doenças graves e incuráveis) costuma provocar. Em uma palavra, ao contrário do que a viralização do vídeo da pequena Valentina induz a crer, estar doente não qualifica especialmente a pessoa para decidir em questões graves de vida e de morte – muito pelo contrário aliás. A dor oferece muitas vezes obstáculo à meditação serena. E morrer é grave. Decisão assim tão grave simplesmente não pode ficar nas mãos de quem sofre. Impôr-lha, isso sim, é uma desumanidade insensível, é acrescentar à já precária condição de vida do doente um fardo como maior não pode haver.

Em segundo lugar, matar – matar diretamente, por meio da administração de um veneno, do sufocamento, da inanição ou de qualquer coisa do tipo – é, em si mesmo e para além de qualquer possibilidade de floreio retórico, um mal. Não se trata aqui principalmente de “aliviar” as dores de ninguém, e sim de empurrar a pessoa para aquele lado da existência do qual não há volta possível, cortar-lhe sem possibilidade de remendo o único fio que a liga à existência terrena, cerrar-lhe definitivamente a porta que dá acesso ao mundo dos vivos. Tal não pode ser pintado com as cores bonitas de um «dormir para sempre» que apaguem a realidade nua e crua da morte, dessa experiência única, irrepetível e irrevogável que, em situações normais, ninguém deseja para si: como é possível que alguém, com a consciência tranquila, ofereça, como uma dádiva, ao que sofre aquilo que o sadio não desejaria para si nem como a mais cruel das penas? Há um quê de doentio na idéia de que pode ser um bom negócio oferecer a morte àquele a quem não se é capaz de consertar a vida. Repugna à razão humana acreditar, assim, sem mais, como se fosse um lugar-comum, que uma coisa pode servir de sucedânea do seu oposto.

No entanto – e embora esta outra notícia tenha merecido muito menor divulgação -, após o seu vídeo ganhar notoriedade mundial e após receber diversas visitas, a garota chilena mudou de idéia: Valentina desistiu da eutanásia! Vejam a pequena reportagem de seis minutos. Por que fizeste aquele vídeo, Valentina? “Estava cansada, já não aguentava mais”. E agora? Ainda queres dormir? “Já não sei”. Ao final, o que tens a dizer? “Sigam-me apoiando. Tenho que seguir adiante”.

Sim, é coisa edificante encontrar uma menina, aos catorze anos de vida, portadora de fibrose cística, e que há menos de um mês queria morrer… dizendo, agora, entre sorrisos, que precisa seguir adiante! Veja-se, foi bem pouco o que mudou. Algumas poucas semanas se passaram. O prognóstico da adolescente ainda é bastante delicado. No entanto, que diferença entre os dois vídeos! E que importante lição: não é verdade que, quando não haja mais nada que se possa clinicamente fazer por uma pessoa, só reste entregá-la à morte. Não, tal não é verdade! Sempre há flores que podem ser oferecidas no lugar do veneno pretensamente libertador. É sempre possível fazer algo – algo em si mesmo bom – por alguém a quem não se pode fazer mais nada. E é sempre possível mudar a maneira como as vicissitudes da vida – mesmo uma doença grave – nos influenciam. Eis que, do Chile, uma adolescente nos está a ensiná-lo. Que o bom Deus a console! E nos abra os ouvidos para que possamos entender.

O que existe de «comunismo» no Ocidente contemporâneo

Impressiona, por vezes, a dificuldade que têm as pessoas – mesmo as bem-intencionadas… – em entender o porquê de ser o comunismo uma doutrina condenada pela Igreja ou mesmo de identificar traços comunistas na sociedade em que hoje vivemos. São dois problemas: por um lado, muitos parecem incapazes de reconhecer o comunismo que se lhes antolha; por outro lado, do comunismo sobre o qual ouvem falar como de a uma coisa distante, muitos não conseguem emitir um juízo de reprovação.

Penso que os dois problemas estão intimamente relacionados: é porque pintam com cores muito carregadas o comunismo, a fim de incutir horror a respeito dele, que as pessoas não o conseguem enxergar na política contemporânea; e é porque mitigam-lhe o alcance em um sem-número de aspectos, a fim de o adequar à realidade contemporânea, que as pessoas não conseguem emitir sobre ele o juízo de reprovação que seria esperado…

Parece fundamental esclarecer algumas coisas. E a primeira coisa que precisa ficar clara parece ser a seguinte: o comunismo contemporâneo, de matriz gramsciana, não é imediatamente identificável com a doutrina fulminada pela Quadragesimo Anno. Isso – atenção! – não implica em dizer que o atual estado de coisas é catolicamente aceitável; mas, até mesmo para que consigamos conversar com os nossos interlocutores, é necessário reconhecer que há diferenças – e diferenças à primeira vista deveras relevantes – entre o passado e o presente.

Em 1931, Pio XI dedicou alguns parágrafos da sua encíclica para falar sobre a «evolução do socialismo». O horizonte histórico do Soberano Pontífice, naturalmente, abrangia o intervalo de tempo compreendido entre a publicação da Rerum Novarum – 1891 – e a data em que ele escrevia a Quadragesimo Anno. E, já então, o Papa se sentia autorizado a dizer que «[g]randes foram as transformações, que desde os tempos de Leão XIII sofreram tanto a economia, como o socialismo»…! Que se dirá, então, das transformações ocorridas nesses mais de oitenta anos que nos separam do Magistério de Pio XI? Ora, se num tempo em que as mudanças ocorriam com relativa lentidão um Papa julgou oportuno assinalar as «grandes (…) transformações» sofridas pelo socialismo, que metamorfoses não precisaríamos apontar, hoje, em pleno século XXI, quando tudo parece transmudar-se tão vertiginosamente que não se consegue sequer acompanhar?

O mesmo trabalho sistematizador de Pio XI, no entanto, o seu sucessor não julgou oportuno realizar. Na Centesimus Annus, escrita seis décadas depois, S. João Paulo II não traçou a evolução do socialismo até os seus dias. Ao invés de julgar o acerto ou o equívoco dessa escolha, contudo, parece (muito!) mais relevante atentar para aquilo que o documento traz de propositivo. E penso que um dos seus pontos-chaves encontra-se no número 13, quando o Papa vai falar do erro fundamental do socialismo, de onde peço licença para uma citação um pouco longa:

[O] erro fundamental do socialismo é de carácter antropológico. De facto, ele considera cada homem simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente subordinado ao funcionamento do mecanismo económico-social, enquanto, por outro lado, defende que esse mesmo bem se pode realizar prescindindo da livre opção, da sua única e exclusiva decisão responsável em face do bem ou do mal. O homem é reduzido a uma série de relações sociais, e desaparece o conceito de pessoa como sujeito autónomo de decisão moral, que constrói, através dessa decisão, o ordenamento social. Desta errada concepção da pessoa, deriva a distorção do direito, que define o âmbito do exercício da liberdade, bem como a oposição à propriedade privada. O homem, de facto, privado de algo que possa «dizer seu» e da possibilidade de ganhar com que viver por sua iniciativa, acaba por depender da máquina social e daqueles que a controlam, o que lhe torna muito mais difícil reconhecer a sua dignidade de pessoa e impede o caminho para a constituição de uma autêntica comunidade humana.

Pelo contrário, da concepção cristã da pessoa segue-se necessariamente uma justa visão da sociedade. Segundo a Rerum novarum e toda a doutrina social da Igreja, a sociabilidade do homem não se esgota no Estado, mas realiza-se em diversos aglomerados intermédios, desde a família até aos grupos económicos, sociais, políticos e culturais, os quais, provenientes da própria natureza humana, estão dotados — subordinando-se sempre ao bem comum — da sua própria autonomia. É o que designei de «subjectividade» da sociedade, que foi anulada pelo «socialismo real».

Ao invés de assinalar o «socialismo» historicamente existente, o Papa vai mais fundo e oferece uma definição do que existe de condenável no socialismo. A mudança de abordagem é notória. E ela nos autoriza algumas conclusões:

1. O fenômeno histórico «socialismo» é susceptível de profundas transformações no decurso da história, tendo se apresentado, ao longo do tempo, sob roupagens as mais diversas.

2. O seu «erro fundamental», no entanto, é de caráter antropológico. Significa que o que existe de comum entre os diversos “socialismos” historicamente existentes – e poderíamos até mesmo dizer, por que não?, teoricamente possíveis – é uma determinada concepção a respeito do homem: a de que ele não passa de uma «molécula do organismo social», a ele subordinada, somente em referência ao qual o homem pode se afirmar.

3. Isso significa também – é o mais importante! – que a identidade diacrônica do socialismo não advém de uma unidade política, de um concurso de atores, de uma continuidade de escola de pensamento à qual explicitamente se vinculam acadêmicos, nem nada do tipo. O que faz o socialismo ser socialismo é um determinado erro antropológico. Portanto, ainda na hipótese de que pessoas distintas, separadas no tempo e no espaço, chegassem, por meio distintos e totalmente independentes entre si, a conclusões antropológicas redutíveis àquela visão do homem enquanto “molécula do organismo social”, então a mesma censura que se aplica ao «socialismo» seria aplicável, igualmente, a todas essas pessoas, por mais que elas aparentemente nada tenham que ver umas com as outras.

Ora, é muito difícil demonstrar (v.g.) que o lulo-petismo obedece a instruções de Moscou, que Barack Obama é subserviente aos interesses da KGB ou que o neoconstitucionalismo latino-americano é controlado diretamente de Havana pelos herdeiros da família Castro. Tais elucubrações, no entanto, são totalmente desnecessárias para que se reconheça um determinado traço comum a todos esses fenômenos, que não é de ordem política e nem estratégica mas sim conceitual; e para que se possa, a partir dessa identificação, rejeitar essas concepções políticas como equivocadas e incompatíveis com a visão de «homem» esposada pelo Catolicismo. Nem todo erro exige uma enorme conspiração por trás. E não é por não haver conspiração que o erro fica afastado.

O que torna o comunismo condenável não é apenas a sua insistência em perpetrar genocídios, mas sim a sua visão utópica quer do homem, quer da realidade social. E o que existe de socialista nos regimes políticos latino-americanos hodiernos não é meramente uma gradativa concentração de poderes e correspondente cerceamento de liberdades individuais, mas sim certa concepção de «sociedade» somente em função da qual deve ser dado espaço ao homem para existir. Vistas as coisas dessa maneira, talvez nos seja possível, afinal!, contornar as dificuldades apresentadas no início deste texto. E se, retratada agora com estas características, talvez haja discordâncias a respeito da valoração que merece tal visão de mundo, quiçá consigamos nos pôr de acordo ao menos quanto à situação de fato da existência e predominância desta concepção social. Já será um grande avanço.