A Noite diferente das outras noites

Por que esta noite é diferente das outras noites? Esta é a frase que Mel Gibson coloca nos lábios da Virgem Santíssima no início do seu Paixão de Cristo. Trata-se ali de uma espécie de responsório judaico tradicional, o Ma Nishtana que há milênios é cantado no Seder de Pessach. Os judeus têm razão e esta noite é de fato diferente, tão diferente que merece uma liturgia própria e sem paralelo em todo o ano litúrgico. A missa da Quinta-Feira Santa é diferente de todas as outras missas, e nos comove e enleva, e nos compunge e assusta.

Há branco e há órgão, há flores e há incenso e parece até que a atmosfera lúgubre da Quaresma foi deixada para trás. Mas a impressão dura pouco, somente enquanto estamos na Ceia, somente enquanto Nosso Senhor está de toalha à cinta para lavar os pés aos Seus discípulos: dentro em breve é Getsêmani e tentação, é coorte e deslealdade, é julgamento e prisão. Esta parte da história não nos é contada nas leituras do Evangelho que, hoje, mantêm-nos no Cenáculo: mas ela exsurge terrível dos ritos que se sucedem em perturbadora profusão após o Lava-Pés.

A começar pelo cânon, que possui Communicantes próprio e mesmo um inaudito Qui pridie exclusivo para o dia da instituição da Eucaristia. É certo que estas mudanças nas orações sagradas, ditas em voz submissa pelo sacerdote que adentra sozinho o Santo dos Santos, não são notadas pelos fiéis que de joelhos acompanham o Santo Sacrifício: mas estes não deixam de perceber o som abafado das matracas que, após o Sanctus, ressoa sombrio por todo o templo. O órgão já estava em silêncio desde o Gloria, mas o estrépito de metal e madeira provocado por elas produz um efeito aterrador. Fazia um ano que não as escutávamos! E o seu barulho seco nos momentos em que estávamos acostumados a ouvir os sinos nos diz, de maneira insofismável, que alguma coisa está perturbadoramente fora de lugar. É a velha Missa que conhecemos muito bem mas, ao mesmo tempo, é outra coisa. Que Liturgia é essa que, iniciando festiva e pomposa ao som do órgão, chega ao seu ápice assim vazia e desolada?

E então o Sacrário fica aberto, e Nosso Senhor é trasladado para a sacristia enquanto O acompanhamos ao som do Pange Lingua. Depois o retorno à nave e o desnudamento do altar, e a sensação de estranheza a cada momento fica mais intensa: que igreja é esta onde as imagens estão todas cobertas de roxo, onde a lâmpada do sacrário não mais refulge, onde o altar está em pedra nua? Se a intenção era nos conduzir àquela noite tão diferente de todas as outras noites, àquela noite terrível onde o Filho do Homem foi entregue aos Seus inimigos, àquela primeira Quinta-Feira Santa, então é preciso dizer que o objetivo dificilmente poderia ser melhor alcançado. Em nenhum outro momento do ano o templo fica com um ar tão grave de abandono, onde realmente parece que Cristo nos foi tirado e estamos vivendo a hora do poder das trevas.

E saímos da igreja e voltamos para casa desamparados, com a angustiante sensação de que a última Missa de todas acabou de ser celebrada e o mundo está agora desprotegido porque todos os altares da terra estão desnudos, e em nenhum deles se celebra mais um sacrifício para aplacar a cólera de Deus.

Se houver verdadeira demonstração de que a Terra circunda o Sol, então é preciso reinterpretar as Escrituras

Alguém comentou aqui no blog:

Sou catequista, mas nunca engoli a história da criação do Mundo e do homem… mas finalmente o Papa se pronunciou (Que alívio).

Por for, fale-me à respeito…

Papa Francisco diz que Big Bang e Teoria da Evolução não são incompatíveis com cristianismo – Catholicus

http://catholicus.org.br/papa-francisco-diz-que-big-bang-e-teoria-da-evolucao-nao-sao-incompativeis-com-cristianismo/

A Igreja Católica é uma sociedade visível fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo para guardar e transmitir as verdades necessárias à salvação de toda criatura humana. O escopo d’Ela é, portanto, restrito e não ilimitado. Necessário aos homens para que se salvem é saberem em quê devem crer e como devem agir; por isso a Igreja é Mestra Infalível em Fé e Moral, mas não em ciências naturais.

Não cabe portanto propriamente à Igreja pronunciar-se sobre o “Big Bang” ou sobre a “Teoria da Evolução”: estas coisas estão em princípio fora da Sua esfera de competência. No entanto, como a realidade é uma só e como a Revelação contém uma série de afirmações a respeito do mundo (e.g. que houve uma Criação, que o homem cometeu um Pecado Original, que Nosso Senhor «padeceu sob Pôncio Pilatos» etc.), torna-se por vezes necessário aparar algumas arestas que eventualmente surjam de outras alegações feitas pelas ciências seculares — como a cosmologia, a biologia evolutiva ou a história.

De antemão é preciso dizer que o núcleo essencial de afirmações da Doutrina Católica a respeito destes temas é mínimo. Não é necessário que o sol gire em torno da terra, que estejamos atualmente em 5.777 anno mundi ou que Deus tenha criado direta, específica e separadamente cada raça de cachorro que existe na face da terra, por exemplo. Esses detalhes (conquanto, reconheça-se, provavelmente não tenham sido sempre assim considerados por muitos cristãos) são periféricos e meramente acidentais na história da Salvação: ou seja, eles tanto podem ser assim como de diversas outras maneiras sem que isso altere fundamentalmente a natureza humana ou a necessidade do Evangelho.

Hoje nós certamente vemos isso com mais clareza do que no passado; no entanto, esta consciência sempre esteve presente na Igreja. Cite-se, por todos, a afirmação do inquisidor de Galileu, São Roberto Belarmino, ao comentar sobre a hipótese heliocêntrica:

Digo que se houvesse uma verdadeira demonstração de que o Sol está no centro do mundo e a Terra no terceiro céu, e que o Sol não circunda a terra, mas a Terra circunda o Sol, então seria preciso ir com muita consideração em explicar as Escrituras que parecem contrárias, e antes dizer que não as entendemos do que dizer que é falso o que se demonstra (Carta a Antonio Foscarini, escrita durante o processo de Galileu).

Se houver verdadeira demonstração de que a Terra circunda o Sol então é preciso reinterpretar as Escrituras: penso que se deve conceder ousadamente ao princípio aplicação universal. É preciso ser generoso e conceder autonomia para que os distintos ramos das ciências humanas cheguem às suas próprias conclusões acerca dos seus objetos próprios de estudo: porque se houver verdadeira demonstração de qualquer coisa da natureza então é possível coaduná-la com a Doutrina Católica, porque um mesmo Deus é o autor dos dois livros e, sendo perfeitíssimo, não pode enganar-Se e nem nos enganar.

Sim, a razão humana está sujeita a falhas e, portanto, as afirmações da ciência podem estar simplesmente erradas. Rejeitá-las liminarmente, no entanto, somente porque elas pareçam contradizer algum aspecto do Catolicismo é indolência intelectual: a razão iluminada pela Fé é sem dúvidas capaz de soluções mais elaboradas. Além do mais, há aqui um risco muito mais grave: pior, muito pior do que rejeitar um avanço científico legítimo por não conseguir assimilá-lo coerentemente no interior de uma cosmovisão católica é repudiar a Doutrina Católica por julgá-la incompatível com o que “a Ciência diz” — e esta limitação da inteligência já levou muitos homens à perdição, é um verdadeiro obstáculo à Fé que qualquer apostolado que se pretenda eficaz precisa esforçar-se por eliminar.

Para ajudar os ignorantes a não caírem em tão funesto erro, assim, é importante mostrar como muitas coisas — mesmo as mais estapafúrdias e improváveis do mundo — poderiam ser compatíveis com o Catolicismo, ainda que não sejam efetivamente verdadeiras. É preciso seguir o exemplo de Santo Tomás. Uma vez o perguntaram se era verdade que os nomes de todos os Bem-Aventurados estariam escritos em um pergaminho no céu; o frade, com a sua peculiar genialidade, respondeu que não achava que fosse assim, mas ao mesmo tempo não havia problema em acreditar nisso (cf. o capítulo 5.2 da biografia de Santo Tomás escrita por Chesterton).

E não haver problema em acreditar que um dia vai existir um manuscrito quilométrico flutuando na troposfera significa exatamente isto: esta hipótese, por extravagante que seja, é compatível com a alegação católica de que Cristo há-de vir no fim dos tempos «para julgar os vivos e os mortos». E se isso é compatível com a Fé, quantas outras coisas não o poderiam ser igualmente?

Humanos evoluindo de animais? Universo criado a partir de uma explosão? Seres extraterrestres? Ora, o que são todas essas hipóteses perto do heliocentrismo copernicano ou do pergaminho adejante tomista? Se um inquisidor não se furtou a conciliar a hipótese de Galileu com a autoridade das Escrituras e se um frade medieval postulou a incolumidade do Catolicismo mesmo diante de um velino que cobrisse todo o céu, por que não haveríamos nós de também envidar esforços para mostrar a compatibilidade da Fé Católica com as hipóteses — por extravagantes que sejam! — aventadas por nossos contemporâneos?

A Igreja, em regra, não pode fazer afirmações sobre o mundo natural dotadas de um maior grau de certeza do que aquele alcançável pela razão humana. A autoridade d’Ela é espiritual. O que a Igreja pode — e o que todos os católicos podemos — é compatibilizar os dados da razão (não apenas os reais como também os meramente possíveis) com os da Fé. É nesta clave que devem ser enquadradas todas as questões referentes às interações entre religião e ciência que, hoje, são alardeadas com uma beligerância totalmente descabida — e que arrastam tantos à apostasia desnecessariamente.

Em tempo: o Big Bang jamais foi incompatível com o Cristianismo. Afinal de contas, quem primeiro concebeu a sua hipótese foi, precisamente, um padre católico.

E ainda, desde Pio XI Pio XII que «o magistério da Igreja não proíbe que nas investigações e disputas entre homens doutos de ambos os campos se trate da doutrina do evolucionismo, que busca a origem do corpo humano em matéria viva preexistente» (Humani Generis, 37).

A maior “inconveniência” é o próprio Evangelho

Um leitor me perguntou aqui sobre uns documentos do início da Era Cristã que supostamente trariam informações “revolucionárias” sobre o Cristianismo. De antemão e antes de qualquer análise sobre o conteúdo específico dessa notícia, não tenho medo de já adiantar que ela não merece crédito.

Isso porque o Cristianismo tem um acentuado caráter público que, ao longo da história, sempre lhe valeu os maiores problemas. Fosse a mensagem cristã um conhecimento esotérico restrito somente aos iniciados, a Igreja não precisaria ter sempre se indisposto tanto com os poderes do mundo. Aqui, a imagem do antigo Pantheon romano sempre foi muito significativa: lá sempre couberam todos os deuses do mundo, mas os cristãos jamais aceitaram colocar a Cristo ao lado dos outros ídolos pagãos.

Não se tratou somente de exclusivismo; quero dizer, o conflito não surgiu somente do fato de Cristo pretender-Se o único Deus. Esta é uma pretensão clássica do judaísmo: afinal de contas, os judeus já cantavam o Sh’ma Yisrael quando Rômulo e Remo ainda cheiravam a leite de loba. O problema maior é o caráter público da Revelação cristã: Cristo não apenas é o único Deus como essa doutrina precisa ser ensinada a todos os povos da terra, passando por cima das antigas tradições e reduzindo a cacos os ídolos dos povos pagãos.

Os cristãos sempre levaram muito a sério aquela história de anunciar o Evangelho de cima dos telhados — e foi isso e não outra coisa o que sempre lhes valeu as maiores perseguições. O Cristianismo nunca foi uma questão de foro íntimo, mas ao contrário: sempre foi uma religião que exigiu cidadania e, exigindo-a, entrou em rota de colisão com os poderes constituídos de todos os impérios da terra. Nunca foi suficiente acreditar que Cristo é o Senhor; os cristãos sempre precisaram dizê-lo em público, e esse hábito — humanamente falando — sempre lhes rendeu os maiores dissabores. A paz que havia dentro do Pantheon foi quebrada quando os cristãos condicionaram a salvação de todos os homens ao sacrifício da Cruz somente. À parte ser verdade, é forçoso reconhecer que se trata de uma mensagem bastante desagradável de se ouvir — principalmente para quem não é cristão.

Ora, diante de tudo isso, a idéia de um “complô” eclesiástico para esconder as “verdades inconvenientes” do Cristianismo não goza de nenhuma verossimilhança. A maior “inconveniência” é o próprio Evangelho — é essa história de dizer que é preciso arrepender-se dos próprios pecados, amar os inimigos, desprezar os prazeres da terra, abandonar os ídolos e adorar a Deus somente. As coisas mais inconvenientes são justamente as exigências do Novo Testamento tais e quais nos chegaram: basta ver como até hoje o mundo não suporta a mensagem cristã. Sendo as coisas assim como são, se fosse para esconder uma doutrina inconveniente melhor negócio fariam os cristãos primitivos em proscrever os Quatro Evangelistas e divulgar o Evangelho de Tomé!

Se os primeiros cristãos quisessem esconder a mensagem de Cristo, o crível é que apenas o fariam na própria conveniência — ou seja, é de se esperar que, se alguém vai cometer alguma falsidade, fá-lo-á somente para obter para si algum benefício. Mas, ora, os primeiros cristãos não foram beneficiados com o anúncio do Evangelho, muito pelo contrário. Não ganharam honrarias nem riquezas, não obtiveram poder e nem tranquilidade: foram perseguidos e caluniados, torturados e mortos. Ninguém inventa uma história para perder tudo o que tem e sofrer uma morte horrível. Nem se diga que a perseguição foi um resultado imprevisto e indesejado: primeiro porque era evidente que aquela história de «obedecer antes a Deus que aos homens» iria desagradar os poderosos da terra, e segundo porque certamente os fautores da lenda confessariam a própria mentira quando começassem a ser perseguidos. Ninguém sustenta uma mentira às custas da própria vida.

O fato é que os primitivos cristãos teriam sofrido muito menos se adotassem o discurso encontrado nos evangelhos gnósticos — e que fazem tanto sucesso na espiritualidade New Age contemporânea. Não há nada de «revolucionário» naquelas mensagens grosseiras que apenas acentuam o dualismo do mundo, o descompromisso com a vida pública, o subjetivismo individualista. Vou mais além e digo até que nunca se poderá, jamais, encontrar nada mais revolucionário, porque o homem não seria nunca capaz de criar uma mensagem mais perturbadora do que Aquela que o próprio Deus fez ressoar no mundo. Os códices antigos, com suas doutrinas primitivas, só servem para enobrecer os Evangelhos por comparação.

Os cristãos são os portadores de uma mensagem inovadora — da mais inovadora mensagem que já foi anunciada no mundo, e à qual as velharias descobertas em cavernas esquecidas pelo tempo não poderão jamais fazer frente. Nós somos os herdeiros da Boa-Nova que não coube no Pantheon e, justamente por isso!, ganhou o mundo. Não nos impressionemos com os paganismos grosseiros sobre os quais a Igreja há muitos séculos já triunfou.

Um dia seremos nós

Ontem foi o dia de Finados, a «comemoração dos fiéis defuntos» que a Igreja celebra anualmente. É um dia que fala muito mesmo ao homem contemporâneo, alheio que ele costuma ser a questões religiosas: afinal a morte, cedo ou tarde, nos atinge a todos indistintamente. Mesmo um católico não-praticante pode ter alguma dificuldade para entender, por exemplo, o que é a festividade de Corpus Christi; já o valor da recordação dos mortos, por sua vez, isso até um militante ateísta consegue perceber.

Nós não temos uma relação lá muito saudável com a morte: raramente pensamos nela, somos displicentes na preparação para a sua chegada e, no geral, vivemos os nossos dias como se ela nada tivesse a ver conosco. Aquelas palavras de Santo Agostinho têm uma aplicação que perpassa os séculos e dizem respeito a todos os homens desde que o mundo é mundo: enterramos os nossos parentes e amigos, vemos funerais todos os dias e, não obstante, continuamos a nos prometer longos anos de vida. Faz bem a Igreja em dedicar um dia aos finados; cuidando dos mortos, pensando neles, de certo modo é de nossa própria morte que cuidamos.

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A Liturgia dos defuntos sempre me impressionou. O negro dos paramentos, o tom grave da celebração, a essa fúnebre na nave central, o Dies Irae… tudo converge o pensamento para o Juízo, parece que as próprias paredes do templo exalam compunção. Alguém talvez critique o caráter mórbido da solenidade — “parece até que vamos morrer”. Bom, não parece, a verdade é que nós vamos morrer mesmo e quanto antes aceitarmos isso melhor. A vida é um piscar de olhos — é uma noite mal dormida em má pousada, como diz Sta. Teresa. Deixar de viver por conta da morte, aí sim é doentio, aí sim é morbidez; mas tal não tem nada a ver com ter consciência da própria morte e se comportar de acordo com isso.

Gosto da Liturgia dos defuntos; de uma certa maneira, enquanto nós rezamos por eles é como se estivéssemos rezando também por nós. Primeiro porque toda a Liturgia faz pensar na morte, como eu disse. E pensar nos novíssimos — não canso de o dizer aqui — é um exercício salutar e necessário à vida cristã: levaríamos uma vida mais perfeita se pensássemos na morte com mais frequência.

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Segundo porque naquela liturgia nós por diversas vezes nos pegamos rezando em primeira pessoa: por exemplo, ao longo da sequência é como se estivéssemos nós próprios perante o Juízo Final. Sou eu que, miserável, não sei o que dizer (quid sum miser tunc dicturus?); é o meu rosto que enrubesce de vergonha pelos meus pecados (culpa rubet vultus meus); são as minhas orações que não são dignas de chegar a Deus (preces meæ non sunt dignæ); é o meu fim que confio aos cuidados do Juiz (gere curam mei finis). E é bom recitar essas preces em nosso próprio nome enquanto tal nos é permitido: talvez a nossa voz ecoe até os umbrais da Vida Eterna e, um dia, diante do Justo Juiz, cheguem até ele as súplicas que Lhe fizemos enquanto ainda podíamos suplicar.

Terceiro porque livrando almas do Purgatório nós conquistamos amigos no Céu. Pode-se lucrar uma indulgência plenária no Dia de Finados; diferente das outras, no entanto, essa indulgência, que se pode ganhar visitando uma igreja no dia 2 de novembro (ou visitando um cemitério entre o dia 1º e o dia 8 de novembro), é aplicável aos defuntos e não ao fiel que pratica a obra indulgenciada. Não é só um exercício particularmente desinteressado de caridade — conquistar uma coisa que vai servir totalmente para outrem e não para si; é a maior graça que um fiel falecido pode receber. Se um fiel vivo consegue em um determinado momento a remissão total das penas temporais devidas pelos pecados que ele já cometeu, nada impede que ele volte a delinquir e, até o fim da vida, acumule outras tantas penas sobre as que foram apagadas. Uma alma no Purgatório, no entanto, não peca mais, e recebendo uma indulgência plenária ela entra direto no Céu. Quer dizer, são as indulgências mais eficazes do mundo: aqui o tesouro de méritos da Igreja encontra a sua máxima realização. De um modo maravilhoso aqui se cumpre a prece do Dies Irae: «tantus labor non sit cassus». Estas indulgências — entre todas — não ficam em vão. Maravilhas da misericórdia de Deus.

É bela a Liturgia dos defuntos, com os seus cantos graves e seus paramentos negros. Não porque a morte seja uma coisa bela, mas por conta da esperança da Vida Eterna que perpassa toda a Fé Cristã e, no dia de ontem, resplandece com um fulgor todo especial: no 2 de novembro aplacam-se um pouco as chamas do Purgatório e, graças à atividade da Igreja Militante, muitas almas benditas deixam a Igreja Padecente e ingressam jubilosas nas fileiras da Igreja Triunfante. Nessa Missa nós não temos direito sequer à bênção final, dedicada que é aos mortos a celebração inteira; mas na absolvição do catafalco com a qual se encerra a cerimônia a nossa esperança é reavivada e o nosso papel neste mundo adquire um renovado sentido. Do féretro simbólico aspergido pelo sacerdote sobem almas para o Céu. Elas vão lá nos preceder, preparar-nos um lugar. Um dia seremos nós. E apraza a Deus que haja então ainda dias de Finados para nos valer.

A ressurreição da carne e a cremação

Algumas pessoas me perguntam se é verdade que o Vaticano proibiu a cremação. Não, não é verdade. O que aconteceu foi que hoje, 25 de outubro, foi publicada uma instrução da Congregação para a Doutrina da Fé — Ad resurgendum cum Christo — contendo algumas normas a respeito «da conservação das cinzas da cremação».

Primeiramente e antes de qualquer outra coisa, se estão sendo publicadas normas sobre o que se pode e o que não se pode fazer com as cinzas da cremação, é evidente que a cremação em si não pode ser proibida — senão não teria sentido disciplinar o destino das cinzas. A autorização para que os católicos sejam cremados, portanto, é tácita e se infere do próprio título da instrução. Se tal não fosse o bastante, o documento ainda diz textualmente que «a Igreja não vê razões doutrinais para impedir tal práxis [da cremação]; uma vez que a cremação do cadáver não toca o espírito e não impede à omnipotência divina de ressuscitar o corpo» (ARCC, 4).

Em segundo lugar, é preciso deixar também claro que a Igreja tem uma preferência manifesta e vultosa pelo enterramento: a prática de enterrar os mortos é muito mais adequada e muito mais conforme à Fé Cristã por várias razões. Primeiro porque é, historicamente, a prática distintiva do Cristianismo frente aos pagãos da Antiguidade (estes, que cremavam os seus mortos).  Segundo porque propicia a existência dos cemitérios, dos campos santos, esses lugares sagrados de oração e de meditação onde aqueles que morreram esperam o dia terrível da Ressurreição dos Mortos. Terceiro porque ela representa melhor a crença na ressurreição da carne, este ponto da Fé Católica que, paradoxalmente, é tão negligenciado mesmo no século materialista em que vivemos.

Confesso não conhecer as minudências escatológicas das outras religiões (não sei, por exemplo, como os muçulmanos entendem o negócio do paraíso com as virgens), mas o credo cristão é bastante claro e literal: Deus haverá de ressuscitar o mesmo corpo que nós possuímos hoje. Não é um corpo “espiritual” nem “metafórico”, mas um corpo físico mesmo, formado de matéria, que ocupa lugar no espaço, que possui sentidos, enfim, um corpo como os corpos que nós conhecemos. “Ah, mas vai ser exatamente igual, vai sentir dor, vai ter os mesmos dentes faltantes, essas coisas?” Não, aí não. Na Ressurreição da carne o nosso corpo será glorificado e, portanto, vai possuir algumas características que hoje não possuímos — a teologia clássica elenca a impassibilidade, a sutileza, a agilidade e a claridade –, sem que contanto deixe de ser um corpo.

As relações disso com a inumação são bastante óbvias: se o Cristianismo vive da espera da ressurreição da carne, e se essa ressurreição dar-se-á no mesmo corpo que vivia, então a prática de deitar este corpo em repouso em algum lugar — o cemitério — é bastante proporcionada com a crença que os cristãos professamos. Se o corpo vai ressurgir, então existe nele alguma coisa de sagrado — e, portanto, exige-se-lhe um respeito diferente do que se concede a uma coisa (por útil que nos seja!) que nós usamos e depois jogamos fora, porque se estragou e não nos serve mais, e não a voltaremos a usar. Na verdade, nós não “usamos” o nosso corpo como querem os espíritas, nós somos o nosso corpo, por conta da composição hilemórfica — corpo e alma em união substancial — do ser humano.

“Ah, mas os corpos podem ter sido destruídos por ocasião da própria morte, como por exemplo um incêndio ou um naufrágio; além disso, os católicos sempre tiveram a prática de destruir os corpos dos santos, despedaçando-os em mil e uma relíquias”. Sim, tudo isso é verdade, e nada disso constitui verdadeiro empecilho a que Deus ressurja o corpo por ocasião do Juízo Final, e é exatamente por conta dessas coisas que não existe nenhum óbice intrínseco à prática da cremação. Deus é Onipotente para reconstituir os corpos ainda que os seus pedaços se tenham espalhado por toda a Terra: o mesmo corpo, convém lembrar, não significa a mesma matéria (até porque a matéria que o nosso corpo possui hoje não é mais a mesma que possuía quando éramos crianças, e não obstante continua sendo o nosso corpo). Santo Tomás já falava isso no século XIII: «as cinzas de um corpo humano devem, na ressurreição, voltar a constituir a mesma parte do corpo que nelas se dissolveu»? E concluía pela negativa: «nas cousas artificiais não é necessário, para reparar uma obra com a mesma matéria, que as partes dessa matéria sejam colocadas no mesmo lugar. Logo, nem é necessário que tal se dê com o homem».

O que diz, em suma, a Ad resurgendum cum Christo? Apenas disciplina aquilo que já estava dito no Catecismo. Este dizia: «[a] Igreja permite a cremação a não ser que esta ponha em causa a fé na ressurreição dos corpos» (CCE, 2301). Aquela enumera alguns atos concretos que põem «em causa a fé na ressurreição dos corpos» e que, portanto, são proibidos. As normas são as seguintes: as cinzas devem ser conservadas em um lugar sagrado, como um cemitério ou igreja (n. 5); apenas muito excepcionalmente, e com autorização da autoridade eclesiástica, podem ser conservadas em casas particulares (n. 6); não se podem dispersar as cinzas «no ar, na terra ou na água ou, ainda, em qualquer outro lugar», nem transformá-las em jóias ou outros objetos (n. 7). Com isso se condenam as práticas atualmente vigentes que vão de encontro àquela Fé na ressurreição da carne que é apanágio do Cristianismo.

O mundo precisa do testemunho da ressurreição. A Igreja, consciente do valor dos símbolos e zelosa pela fé dos fiéis, estabelece normas específicas sobre o cuidado que se deve ter com os mortos no mundo materialista e imanentista em que nós vivemos. As atitudes que nos cercam e as práticas sociais com as quais nos acostumamos podem não raro nos levar ao obscurecimento da Fé; para evitar este risco, em boa hora vem a lume esta instrução da Congregatio Pro Doctrina Fidei. Façamo-la conhecida, a fim de dissipar os equívocos tão comuns neste tema.

Lutero, enfim, vai a Roma

Um leitor faz a gentileza de me perguntar:

Queria ver sua explicação para a imagem de Lutero no Vaticano. Sei que você terá uma boa explicação. Já vi um padre dizer no facebook que foi uma provocação dos protestantes. A sua será semelhante? Algo do tipo: os luteranos que trouxeram e seria falta de educação não colocar ali?

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Não acho que tenha sido provocação. A questão me parece toda outra.

Deus criou o ser humano para Si, como diz Sto. Agostinho, e por isso o coração do homem vive inquieto enquanto não repousa n’Ele. Esta inquietude pode ser ignorada e pode ser posta de lado, pode ser enterrada por um tempo, pode ser disfarçada, maquiada, anestesiada, pode tudo: só não pode ser plenamente vencida. Porque ela foi posta pelo próprio Deus e, portanto, nada que o homem faça por si só, por suas próprias forças, será capaz de prevalecer sobre aquilo que Deus mesmo estabeleceu. É como, mutatis mutandis, aquela inimizade — inimicitias ponam… — que no início do Mundo foi estabelecida entre os filhos de Deus e os filhos das Trevas. Ela simplesmente não pode ser superada: o engenho humano não pode, absolutamente não pode lograr sucesso contra a vontade positiva do Onipotente.

Nada que os homens façam por sua própria conta será capaz de (re)estabelecer a unidade do gênero humano. Aqui falharam todas as empresas humanas, todos os impérios do passado, todas as potências do presente, todas as construções teóricas e os modelos de pensamento, tudo, tudo. As verdadeiras paz e concórdia só são possíveis aos pés da Cruz de Nosso Senhor, e mil vezes o mundo não queira aceitar esta verdade, mil vezes será despedaçado por guerras fratricidas. Nem sequer a própria Igreja, digo, nem sequer os próprios homens pertencentes à Igreja, os católicos, independente do prestígio do qual gozem, poderão ser vitoriosos nesta seara: os católicos podem anunciar mil e um arranjos de convivência pacífica plural, podem se esforçar pessoalmente na consecução de semelhante objetivo, e pode ser até — concedamos — que em determinados momentos eles o devam realmente fazer: o resultado assim obtido será sempre uma obra inacabada, terá sempre algo de contingente, de frágil, de periclitante, não raro prestes a desmoronar ao mais leve sopro de realidade. É evidente, todos nós o sabemos, que alguma paz cotidiana e pragmática, alguma condescendência hic et nunc, precisa ser feita para possibilitar um mínimo de vida em sociedade: nós fazemos isso o tempo inteiro. Esse armistício temporário, no entanto, essa — eis a palavra verdadeira — indiferença tolerante não se pode revestir de características deontológicas absolutas. É dizer: não se trata de um fim último a ser buscado a todo custo. Não é assim que as coisas devem ser, embora seja possível que, em determinadas circunstâncias concretas, elas praticamente (só) possam ser assim. Na percepção clara da diferença entre uma coisa e outra reside a distinção entre a Fé e a apostasia.

Volto aos luteranos para explicar o que quero dizer. Deve ser bem difícil ser herege; a posição em que se encontram os filhos da Reforma luciferina do ex-monge alemão é sem dúvidas bastante desagradável. Em todos os aspectos o luteranismo é insustentável: nos (incontáveis) vícios pessoais do seu fundador, nas conseqüências históricas dramáticas de seus pressupostos (eis aí o esfacelamento do Protestantismo em milhares de seitas mutuamente incompreensíveis entre si), na incoerência de sua visão histórica do Cristianismo (afinal de contas, por onde andaria o Paráclito no milênio e meio compreendido entre a ascensão de Cristo e as 95 Teses?), na maleabilidade promíscua de sua doutrina contemporânea (por exemplo, há diversas denominações luteranas hoje favoráveis às práticas homossexuais — talvez até mais do que contrárias), et cetera. Ora, Deus criou os homens para Si; e parece evidente que a Babel protestante, assim como a primeira, não é capaz de conduzir os homens ao céu.

E alguns luteranos o percebem. Eles notam que falta alguma coisa no arremedo de religião que eles se acostumaram a chamar de “igrejas”; é a sede de Deus que clama mais forte nas profundezas de suas almas e que, incapaz de se saciar no lamaçal da heresia luterana, reclama águas mais puras. O encontro dos luteranos com o Papa na última quinta-feira, assim, é talvez a mais eloqüente manifestação da falência do luteranismo. São os filhos degredados, sujos, maltrapilhos e machucados, voltando sobre os passos do pai louco e prestando, timidamente, a vassalagem contra a qual o seu patriarca originalmente se revoltou.

Uma peregrinação saída «dalla regione di Lutero» em direção à «sede del Vescovo di Roma» carrega um simbolismo que não se pode ignorar: são os protestantes dando as costas ao heresiarca, deixando Lutero para trás, e caminhando de maneira esforçada, firme, resoluta — ultrapassando os acidentes geográficos e as fronteiras dos países — rumo ao Doce Cristo na Terra!

No limiar da Reforma, quando Lutero não havia ainda rompido definitivamente com a Igreja, ele foi convidado a ir a Roma para defender as suas doutrinas. Recusou-se. Posteriormente o Concílio de Trento convidou os protestantes para participarem das assembleias conciliares. É possível dizer que o convite lançado há quase cinco séculos ainda estava aberto e, finalmente, de algum modo o Heresiarca lhe deu na última semana uma resposta. Leão X não logrou trazer Lutero a Roma; Francisco fê-lo ser carregado pela sua estirpe degenerada em desesperada peregrinação. O monge bêbado provavelmente encararia muito a contragosto semelhante patacoada. Mas aos filhos não deve ser impedido entrar pela porta da Vida Eterna que o pai louco fechou atrás de si.

Enfim, perguntam-me se isso foi uma provocação. Eu digo que foi uma catarse. O luteranismo chegou a tornar-se tão insuportável que, na busca desesperada pelo Deus que Lutero expulsou das igrejas que roubou ao Papa, os luteranos aceitaram até mesmo carregar nas costas o monge rebelde de volta para o Vaticano.

A comunhão na boca é um direito que não se pode suprimir

Em maio de 1969 foi tornada pública uma instrução da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos «sobre a maneira de se distribuir a Sagrada Comunhão». A Memoriale Domini, após consultar todos os bispos do mundo, divulgava os seguintes números:

1. Você acha que se deve dar atenção ao desejo de que, além da maneira tradicional, deve ser admitido o ritual de recebimento da Santa Comunhão nas mãos?

Sim: 597
Não: 1.233
Sim, mas com reservas: 315
Votos inválidos: 20

2. É de seu desejo que esse novo ritual seja primeiramente experimentado em pequenas comunidades, com o consentimento dos bispos?

Sim: 751
Não: 1.215
Votos inválidos: 70

3. Você acha que os fiéis receberão bem esse novo ritual, após uma adequada preparação catequética?

Sim: 835
Não: 1.185
Votos inválidos: 128

(Memoriale Domini in Veritatis Splendor)

Em decorrência disso, a mesma instrução assim determinava: «o Santo Padre [Paulo VI] decidiu não modificar a maneira existente de administrar a Santa Comunhão aos fiéis». Ou seja, a forma ordinária de se receber a Sagrada Eucaristia não foi jamais modificada: é recebê-La das mãos do sacerdote diretamente na boca. Esta é a prática tradicional que remonta a épocas imemoriais, é a prática que já foi incontáveis vezes confirmada pela Santa Sé, é a prática que nem a Memoriale Domini revogou.

Receber a comunhão nas mãos, embora se tenha tornado um abuso horrendo em todo o mundo, trata-se apenas de um indulto que as mais das vezes se aplica ilicitamente. É o que diz o n. 92 da Redemptionis Sacramentum: «Se existe perigo de profanação, não se distribua aos fiéis a Comunhão na mão». Como a maior parte das nossas celebrações litúrgicas é um verdadeiro pandemônio e como os nossos católicos apresentam no geral uma formação sofrível, o «profanationis periculum» — ao menos nas missas abertas — é a regra e, portanto, a lei litúrgica manda não distribuir a comunhão eucarística nas mãos. Que isso seja as mais das vezes ignorado não elide o seu caráter de ilicitude: a desobediência não deixa de ser desobediente apenas porque se pratica com uma regularidade descarada.

Papa_Francisco-Comunhao

“Ah, o problema é somente que as pessoas, não sabendo comungar direito, acabam deixando cair no chão fragmentos da hóstia consagrada”. Bom, ainda que o problema fosse só esse — concesso non dato –, tal já exigiria que se proibisse a comunhão na mão, uma vez que a RS manda não distribuir deste modo «[s]e existe perigo de profanação»! Deixar cair no chão um fragmento do Corpo de Cristo, ainda que seja “sem querer”, por desleixo e por falta de cuidado, é, sim, sem a menor sombra de dúvidas, uma situação de «profanationis periculum» — onde o direito manda, portanto, não distribuir a Eucaristia nas mãos. “Somente” este problema já é um sacrilégio horrendo e uma desobediência atroz à lei da Igreja, que não se pode menosprezar.

Mais: a comunhão na boca é direito verdadeiro e próprio do fiel, ao passo em que a comunhão na mão é mero indulto. É o que nos diz, ainda, o n. 92 da Redemptionis Sacramentum, cuja tradução para o português ficou truncada e incompreensível. Diz o texto na nossa língua:

Todo fiel tem sempre direito a escolher se deseja receber a sagrada Comunhão na boca ou se, o que vai comungar, quer receber na mão o Sacramento. Nos lugares aonde Conferência de Bispos o haja permitido, com a confirmação da Sé apostólica, deve-se lhe administrar a sagrada hóstia.

Somente em português a pontuação ficou desse jeito. Em italiano, em espanhol, em inglês e em latim o período vai até o final, e o seu sentido é claro: aquilo a que se tem «sempre direito» é a «receber a sagrada Comunhão na boca», e recebê-la na mão somente é possível nos «lugares aonde (sic) [a] Conferência de Bispos o haja permitido». A versão em francês é a mais clara e inequívoca: Tout fidèle a toujours le droit de recevoir, selon son choix, la sainte communion dans la bouche. Todos os fiéis têm o direito de receber, à sua escolha, a Santa Comunhão na boca. Ponto. Este é direito. Em seguida vem o indulto: Si un communiant désire recevoir le Sacrement dans la main, dans les régions où la Conférence des Évêques le permet, avec la confirmation du Siège Apostolique, on peut lui donner la sainte hostie. Se um fiel deseja receber na mão o Sacramento, naquelas regiões onde a Conferência dos Bispos com a confirmação da Sé Apostólica o permita, pode-se lhe dar a santa hóstia. Esta é a concessão, que não é absoluta e sim condicionada a um indulto da Conferência Episcopal ratificado pela Santa Sé.

Ou seja: embora qualquer Conferência Episcopal possa (e em muitos casos até mesmo o bispo individual o deva — si adsit profanationis periculum) proibir a comunhão na mão, nenhum bispo ou Conferência pode proibir a comunhão na boca. Este é o modo ordinário de se receber a comunhão eucarística, ao qual o fiel tem sempre direito — ius semper habeat. Este entendimento não é meu, é da Sagrada Congregação para o Culto Divino: em 2009, quando um surto de gripe suína levou certas dioceses a restringirem a comunhão na boca, o referido Dicastério assim se manifestou:

Este Dicastério observa que sua Instrução Redemptionis Sacramentum (25 de março de 2004) claramente determina que “todo fiel tem sempre direito a escolher se deseja receber a sagrada Comunhão na língua” (n. 92), nem é lícito negar a Sagrada Comunhão a qualquer dos fiéis de Cristo que não estão impedidos pelo direito de receber a Sagrada Eucaristia (cf. n. 91). (via Fratres)

Portanto, ninguém pode negar a Sagrada Comunhão a um fiel que A peça diretamente na boca — a não ser que ele esteja «impedido pelo direito», caso em que ele não pode comungar nem na mão e nem de jeito nenhum. Se um fiel católico pode comungar, então ele pode comungar na boca: é a lei da Igreja. Que cada um se esforce por fazer valer esse seu direito. Que ninguém se sinta constrangido por arrazoados pretensamente pastorais cuja intenção, velada ou explícita, seja obscurecer esta verdade cristalina.

Nossa Senhora dos Navegantes

Hoje é feriado em Porto Alegre; Nossa Senhora dos Navegantes, celebrada aos dois de fevereiro. Não sei desde quando a data é festejada; decerto remonta às origens do Brasil, à época das Grandes Navegações, na qual a travessia do Velho Mundo para as terras de cá não se dava com as facilidades contemporâneas. Lembro dos conhecidos versos de Pessoa — quantas noivas ficaram por casar / para que fosses nosso, ó mar! — e penso que talvez a invocação mariana, hoje, seja pouco compreendida.

Como também, aliás, a sua correlata Nossa Senhora da Boa Viagem, esta mais conhecida em Recife por conta do famoso bairro que dela empresta o nome. É provavelmente a proximidade entre as duas invocações que faz a nossa Rua dos Navegantes ser uma paralela da Avenida Boa Viagem aqui, no litoral recifense, acompanhando a faixa do mar: a nossa história tem mais catequese que muitas de nossas paróquias. E também da história é possível (e preciso!) haurir piedosas meditações. A invocação da Santíssima Virgem hoje festejada presta-se bem a isso.

Há um quadro espanhol quinhentista — descobri-o hoje — que retrata La Virgen de los Navegantes: mostra Nossa Senhora com o oceano a seus pés, manto aberto, com o qual abarca e protege os homens e os navios. Nesta pintura, sim, é possível admirar com clareza o que significou no passado este título, em uma época onde a Travessia do Atlântico era a grande aventura de uma era e onde novos argonautas dedicavam suas vidas a conquistas mais preciosas que o antigo velocino de ouro.

A imagem não é extemporânea: hoje não arriscamos mais as nossas vidas no interior de embarcações (relativamente) frágeis e sujeitas às intempéries da natureza no meio da imensidão do oceano, é verdade, mas como negar que tal seja, metaforicamente, a exata situação em que nos encontramos? Acaso o nosso destino é menos desconhecido do que o oceano infinito aberto à frente dos navegantes de outrora? Porventura os riscos que enfrentamos na travessia desta vida não guardam semelhança com os monstros marítimos e o furor da natureza que tornavam tão arriscadas as navegações de antigamente? Dependemos menos da intercessão da Bem Aventurada Virgem Maria para chegarmos à Perseverança Final do que os antigos marinheiros dependiam para levar a bom porto suas embarcações? A tragédia humana muda as suas roupagens, mas é sempre essencialmente a mesma: é o homem diante do imenso e do desconhecido, tendo uma vocação grandiosa a cumprir e não dispondo senão das graças do Céu para o sustentar no caminho.

São riquezas do Cristianismo que, conquanto pertençam a um tempo e a uma cultura distantes da nossa, têm muito a nos dizer. Aprendamos com elas.

O que diz a Igreja sobre as sociedades secretas?

Um leitor do blog pergunta:

E além do tema do Comunismo, o que diz a Doutrina da Igreja sobre a adesão de batizados às sociedades secretas e relacionado a esse tema da excomunhão?

Pode esclarecer a respeito?

É o seguinte:

I. O Código Pio-Beneditino previa, no seu cânon 2335, explicitamente, excomunhão automática, reservada à Sé Apostólica, para quem aderisse à maçonaria:

Can. 2335. Nomen dantes sectae massonicae aliisve eiusdem generis associationibus quae contra Ecclesiam vel legitimas civiles potestates machinantur, contrahunt ipso facto excommunicationem Sedi Apostolicae simpliciter reservatam. [“Quem inscrever seu nome na seita maçônica ou em outras associações, do mesmo gênero, que conspiram contra a Igreja ou contra as legítimas autoridades civis, incorre ipso facto em excomunhão reservada à Sé Apostólica” — tradução livre minha.]

II. Em 1981, antes da entrada em vigor do novo Código, a Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma declaração onde dizia que «não foi modificada de algum modo a actual disciplina canónica» e, portanto, que não foi tampouco «ab-rogada a excomunhão nem as outras penas previstas». O antigo cânon, então, «veta[va] aos católicos, sob pena de excomunhão, inscreverem-se nas associações maçónicas e outras semelhantes».

Ou seja: nesta época, embora houvesse um cuidado (que se pode dizer pastoral) para distinguir as responsabilidades individuais em cada caso concreto, a Igreja absolutamente não mudara nem estava em vias de mudar o seu «juízo de carácter geral sobre a natureza das associações maçónicas», que permanecia negativo.

III. No final de 1983, no ano em que foi publicado o novo Código de Direito Canônico, a mesma Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma segunda declaração onde dizia que continuava «imutável o parecer negativo da Igreja a respeito das associações maçónicas, pois os seus princípios foram sempre considerados inconciliáveis com a doutrina da Igreja e por isso permanece proibida a inscrição nelas». Ainda, acrescentou que os «fiéis que pertencem às associações maçónicas estão em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão».

Há aqui uma mudança de direito eclesiástico: ab-rogado o antigo cânon 2335 sem que se lhe tenha colocado no novo Codex dispositivo correspondente, permanecia contudo a proibição aos católicos de ingressarem na maçonaria, sob pena não mais de excomunhão, mas de pecado grave.

Continuava e ainda continua vigente, não obstante, o cânon que prevê excomunhão automática para «o apóstata da Fé, o herege e o cismático» (CIC 1364). Portanto, se a adesão a uma loja maçônica ou a qualquer outra associação análoga importar em um pecado contra a Fé, o sujeito queda excomungado automaticamente: não mais pela inscrição na maçonaria (pena do antigo cânon 2335), mas pelo pecado contra a Fé Católica (pena do atual cânon 1364). É o mesmo raciocínio aplicável à questão da excomunhão dos comunistas.

IV. Pouco depois de um ano, em 1985, foi emitida pela CDF uma terceira declaração, mais longa que as anteriores. Esta é muito interessante e vale uma leitura na íntegra, porque distingue bem as questões morais (aquilo que é pecado) das penais (o subconjunto dos pecados ao qual são impostas determinadas penas pelo Direito Canônico). Além disso, explica detalhadamente os princípios que norteiam o parecer negativo da Igreja sobre a maçonaria:

Mesmo quando, como já se disse, não houvesse uma obrigação explícita de professar o relativismo como doutrina, todavia a força “relativizante” de uma tal fraternidade, pela sua mesma lógica intrínseca[,] tem em si a capacidade de transformar a estrutura do acto de fé de modo tão radical que não é aceitável por parte de um cristão, “ao qual é cara a sua fé” (Leão XIII).

Esta solução canônica, conclua-se, é a que está atualmente vigente: participar da maçonaria ou de outras sociedades secretas é pecado grave e, na medida em que esta participação leve a um pecado contra a Fé, conduz à excomunhão por heresia, apostasia ou cisma do cânon 1364.

V. Para fins informativos — pois os aspectos normativos vigentes são os que foram acima expostos — é interessante anotar o seguinte: um recente “questionário sobre a descrença” coloca a maçonaria (cf. q. 3.4) entre os «fenômenos ou movimentos para-religiosos»; e o Papa Francisco, quando esteve em Turim no ano passado, fez uma referência bem pouco positiva aos maçons:

[E]m finais do século xix a juventude crescia nas piores condições: a maçonaria estava no auge, até a Igreja nada podia fazer, havia o anticlericalismo, o satanismo… Era um dos momentos mais obscuros e um dos lugares mais tristes da história da Itália

VI. Em resumo, é possível sintetizar o que segue:

  • A mera inscrição na maçonaria ou em outras sociedades secretas não implica mais em uma pena de excomunhão automática.
  • Todavia, mesmo a mera inscrição é matéria de pecado grave, conforme reiteradas manifestações da Congregação para a Doutrina da Fé o afirmam (naturalmente, aplicam-se aqui os critérios morais genéricos dos pecados mortais, para cuja concretização exige-se conhecimento e livre consentimento).
  • Os princípios da maçonaria são irreconciliáveis com os da Fé Católica, de tal sorte que a adesão àqueles «tem em si a capacidade de transformar a estrutura do acto de fé» católico.
  • Na medida em que o católico inscrito na maçonaria tenha a sua fé deturpada, aplica-se-lhe a pena de excomunhão do cânon 1364 — não mais pelo mero ingresso na loja maçônica, mas sim pela deturpação da sua fé provocada por ela.

Com isso respondem-se as dúvidas colocadas sobre o assunto.

Reforma do processo de nulidade matrimonial I – O que é nulidade?

Foram dois os motu proprios recentemente publicados pelo Papa Francisco “sobre a reforma do processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio”: Mitis et misericors Iesus e Mitis Iudex Dominus Iesus. Os dois têm a mesma data – 15 de agosto de 2015 – e o mesmo objeto – as mudanças no processo de nulidade matrimonial. São dois porque o primeiro deles altera os cânones do Código das Igrejas Orientais e, o segundo, os do Codex Iuris Canonici vigente na Igreja latina. Um só, portanto, é o propósito da dupla publicação, havendo dois documentos porque duplo é o regime jurídico da Igreja Católica: oriental e ocidental.

Os documentos se propõem a facilitar o processo pelo qual se obtém a declaração de nulidade matrimonial. Atenção que as palavras são aqui importantes: processo, i.e., meio, procedimento, o que significa que não houve nenhuma modificação substantiva no tema, nenhuma (aliás impossível) alteração doutrinária, nenhuma mudança de posição da Igreja no que se refere ao assunto; declaração, i.e., um documento de natureza — como o próprio nome diz — meramente declaratória (e não constitutiva), que se limita a fazer uma afirmação a respeito da realidade sem a alterar de nenhuma maneira; e nulidade, e não anulação, ou seja, uma qualidade já desde o início presente no Matrimônio tentado, e não uma que se lhe confere ao fim do processo canônico.

Relembrando as aulas de teologia sacramental: todo Sacramento, para ser válido — i.e., para existir — precisa de três coisas: forma, matéria e ministro. Não é qualquer forma, senão apenas a forma adequada; nem qualquer matéria, mas somente a matéria válida; nem tampouco qualquer ministro, senão só o ministro capaz. Faltando uma dessas três coisas, então o Sacramento, por mais que exteriormente pareça, não é Sacramento de verdade.

O exemplo da Eucaristia é talvez o mais claro e ajude a enxergar o que se está querendo dizer aqui: todo mundo sabe que, para a Eucaristia ser válida — ou seja, para o pão e o vinho realmente se transformarem no Corpo e no Sangue de Cristo — é preciso que as palavras da Consagração sejam proferidas por um sacerdote validamente ordenado. Ou seja: se um sujeito que não é padre chegar numa igreja, paramentar-se corretamente, subir ao altar, proferir todas as orações e realizar todos os gestos previstos no Missal, pegar a hóstia e disser “isto é o Meu corpo”, o cálice e afirmar “este é o cálice do Meu sangue”, elevá-los, enfim, fizer tudo de modo exatamente igual a como um padre de verdade faria, ninguém que esteja observando “de fora” vai perceber, mas o pão vai continuar sendo pão e, o vinho, vinho. Não vai ocorrer a transubstanciação. Não vai ter havido o Sacramento.

O que se quer dizer é isto: todo sacramento é um sinal sensível de uma graça invisível, mas nem todo sinal sensível é um sacramento! A Hóstia, ainda que seja do tipo com o qual estamos acostumados — o disco branco, de espessura fina, geralmente ornado com símbolos cristãos –, ainda que esteja sobre o altar, ainda que seja elevada por um homem paramentado como sacerdote católico, ainda assim, se o homem não for um sacerdote validamente ordenado então ela vai continuar sendo apenas pão. Não é porque a coisa parece um sacramento que ela é um sacramento de verdade. E isto, que é fácil ver no Sacramento da Eucaristia, vale para todo Sacramento da Igreja Católica.

Até para o Matrimônio, e aqui chegamos ao ponto. Assim como é possível que uma hóstia não seja o Corpo de Cristo mesmo que, externamente, ela pareça ter sido consagrada, da mesma maneira é possível que um casal vivendo maritalmente não forme um Matrimônio Católico ainda que, externamente, os dois pareçam ter se casado. Da mesma forma como é possível que a Hóstia não tenha sido validamente consagrada, é possível que o Matrimônio não tenha sido validamente contraído — e ao Matrimônio inválido nós chamamos nulo. E ao procedimento que a Igreja emprega para investigar se, de fato, aquela situação que parece um casamento é realmente um Matrimônio Sacramental chama-se comumente de processo de nulidade, e foi isto que o Papa Francisco alterou recentemente.

Há somente algumas poucas razões pelas quais se pode imaginar que a Eucaristia tenha sido nula: ou o padre era um falso sacerdote, ou a hóstia era feita de alguma coisa outra que trigo (digamos, mandioca), ou o sacerdote queria não consagrar no momento em que proferiu as palavras da Consagração; além dessas hipóteses é difícil imaginar outras muito diferentes. O Matrimônio, por ser um contrato jurídico, é um pouco mais complicado. A partir do cânon 1073 do Código de Direito Canônico encontra-se uma longa lista de razões pelas quais um Matrimônio pode ser invalidamente contraído — i.e., não existir. À guisa de exemplificação:

  • não podem contrair matrimônio válido os homens antes dos dezesseis anos completos nem a mulher antes dos catorze também completos (Cân.1083);
  • os que tenham recebido ordens sacras também não conseguem casar (Cân. 1087);
  • não podem casar os que possuem parentesco em linha reta, em qualquer grau (Cân. 1092);
  • aqueles que “por causas de natureza psíquica não podem assumir as obrigações essenciais do matrimônio” também são incapazes de o contrair (Cân. 1095);
  • quem é enganado acerca de “qualidade da outra parte que, por sua natureza, possa perturbar gravemente o consórcio da vida conjugal” também não casa validamente (Cân. 1098);
  • é também “inválido o matrimônio celebrado por violência ou por medo grave (…) para se libertar do qual alguém se veja obrigado a contrair matrimônio” (Cân. 1103);
  • se o sacerdote que vai assistir o Matrimônio não é o pároco, então precisa de delegação, sob pena de o matrimônio não ser validamente contraído (Cân. 1108);
  • etc.

Qualquer uma dessas situações, presentes no momento em que se celebrava o Matrimônio, são capazes de fazer com que ele tenha sido inválido; há que se verificar, por exemplo, se o impedimento estava presente, se podia ser dispensado, se de fato o foi. É para responder a estas perguntas que existe o procedimento de investigação de nulidade matrimonial dentro da Igreja Católica. Ele não tem nada a ver com mudar a realidade do casamento — se o casamento foi válido então ele permanecerá válido para sempre e, se foi inválido, também nunca será um matrimônio até que os defeitos sejam sanados –, mas sim com conhecer a verdadeira natureza de uma união exteriormente parecida com um casamento católico (como, insista-se na comparação que parece elucidativa, uma hóstia não-consagrada é exteriormente parecida — indistinguível até — de uma que seja o Corpo do Senhor).

Em suma, à semelhança do que ocorre com a Eucaristia, também o Matrimônio pode ser inválido. Estes “casamentos” nunca foram casamentos antes da atual reforma do Papa Francisco, e continuariam sem o ser ainda que nada tivesse mudado nos processos de nulidade.

Portanto,

i) todo casamento validamente contraído é indissolúvel (há a exceção do privilégio petrino para os matrimônios ratos e não consumados, mas não cabe entrar em detalhes aqui; até porque os casos aos quais ele é aplicável — onde não houve consumação, i.e., conjunção carnal — são por si mesmos excepcionais);

ii) nem tudo o que externamente parece um casamento é um casamento de verdade;

iii) é através do “processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio” que a Igreja se pronuncia a respeito da validade ou nulidade de um Matrimônio;

iv) um casamento que tenha sido nulo jamais existiu;

v) a existência ou inexistência do vínculo matrimonial é independente do processo pelo qual a sua nulidade é conhecida (i.e., um casamento nulo é nulo ainda que nunca venha a receber uma sentença de nulidade, e inversamente um matrimônio verdadeiro é verdadeiro matrimônio ainda que o processo canônico afirme ter ele sido inválido).

Não há lugar para a dissolução do vínculo conjugal por poder terreno algum: isto a Igreja sabe muito bem. Desde Cristo até os tempos de Henrique VIII, e de lá até os dias de hoje, e até a consumação dos séculos. Mas há, sim, espaço para a investigação honesta e sincera a respeito da verdade das coisas. Não cabe falar em “dissolver” se o vínculo já não existe em primeiro lugar. As mudanças recentes feitas pelo Papa Francisco dizem respeito aos meios de investigação daquela nulidade capaz de fazer com que nunca tenha havido Matrimônio de verdade. Nem todo mundo que vive junto está realmente casado; e reconhecê-lo em nada atinge a indissolubilidade do casamento verdadeiro.