Os verdadeiros cristãos são os filhos da Igreja e da Virgem Maria

Há duas frases tradicionais que sintetizam de maneira admirável a necessidade da Fé Católica para agradar a Deus, entre as quais há uma bonita relação de paralelismo que faz com que, uma vez que as tenhamos aprendido (talvez, numa catequese infantil), delas não nos esqueçamos mais. Uma: não pode ter Deus por Pai no Céu quem não tem a Igreja por Mãe na Terra, de São Cipriano de Cartago (De Ecclesiae Catholicae unitate, 6). A outra: quem não tem a Virgem Maria por Mãe, não tem Deus por Pai, de (certamente entre outros) S. Louis de Montfort (Tratado da Verdadeira Devoção, 30).

A Virgem Mãe de Deus e a Igreja, longe das quais não é possível encontrar a Nosso Senhor Jesus Cristo! A Igreja Católica e a Santíssima Virgem, cuja maternidade é essencial àqueles que se pretendam filhos de Deus neste mundo e no vindouro! As frases podem soar um pouco politicamente incorretas nesta época de caricata tolerância religiosa em que vivemos (como se “tolerância” fosse sinônimo de dizer “está tudo muito bem e qualquer coisa é a mesma coisa”); não obstante, são profundamente verdadeiras e atravessam os séculos com o mesmo vigor original – uma vez que obtêm a sua força do sagrado Depositum Fidei, que não muda ao sabor dos ventos de opiniões de cada momento histórico.

Quem quer ser filho de Deus tem que ser filho da Igreja, quem quer ser filho de Deus precisa ser filho da Virgem Maria: é o que dizem os santos de todos os tempos. Trata-se, perceba-se, de uma forma indireta de repetir o dogma – mil-vezes odiado! – de que fora da Igreja não há salvação. É a mesma coisa: dizer que é preciso ser filho da Igreja e filho da Virgem Santíssima é o perfeito equivalente (*) de dizer que é necessário ser Católico Apostólico Romano. Hoje parece ser um pecado imperdoável repetir que fora da Igreja Católica não é possível encontrar salvação. Contudo, parece que o mundo ainda se permite ouvir que é mister ser filho da Igreja e da Virgem Maria.

[(*) A primeira parte – filho da Igreja – exclui, sem sombra de dúvidas, todos os não-cristãos. A Igreja, mesmo em sentido lato, é uma instituição cristã por essência e sequer se concebe usar o mesmo termo para se referir às (eventuais) estruturas institucionais de religiões outras que o Cristianismo. A segunda parte – filho de Maria – exclui, inequivocamente, os protestantes, ao menos a imensíssima maior parte dos protestantes que desconhecem a veneração dos santos – e, em particular, o culto de hiperdulia que é devido à Santíssima Virgem Mãe de Deus. Sobram, talvez, expandindo a interpretação, os cismáticos orientais, que perfazem Igrejas Particulares e guardam a veneração devida à SSma Virgem. Este sentido é, parece-me, o único em que talvez seja possível afirmar imperfeita a equivalência entre as duas sentenças e o nulla salus. Mesmo assim, elas abarcam a esmagadora maior parte daquilo a que se refere o dogma – e, portanto, dizê-las é já dizer muito.]

Onde ressoam, ainda hoje, essas expressões [que se diriam] tão anacrônicas?! De que obscuro gueto saem essas pregações [consideradas] tão intolerantes? Não é [somente] na blogosfera ultra-radical ou nas seitas cripto-cismáticas dos saudosistas dos tempos passados. Essas palavras reverberam na Praça de São Pedro e, de lá, para todo o orbe. Quem as pronuncia é o homem que sempre se encontra nas capas dos veículos de imprensa mundo afora. É o Papa Francisco – o Papa mais amado e bajulado pelos inimigos da Igreja de todos os naipes – quem o afirma com todas as letras: é preciso ser filho de Maria! Não existe Cristo sem a Igreja!

Deixemos falar o Papa Francisco (itálicos no original, negritos meus):

E, para além de contemplar a face de Deus, podemos também louvá-Lo e glorificá-Lo como os pastores, que regressaram de Belém com um cântico de agradecimento depois de ter visto o Menino e a sua jovem mãe (cf. Lc 2, 16). Estavam juntos, como juntos estiveram no Calvário, porque Cristo e a sua Mãe são inseparáveis: há entre ambos uma relação estreitíssima, como aliás entre cada filho e sua mãe. A carne de Cristo – que é charneira da nossa salvação (Tertuliano) – foi tecida no ventre de Maria (cf. Sal 139/138, 13). Tal inseparabilidade é significada também pelo facto de Maria, escolhida para ser Mãe do Redentor, ter compartilhado intimamente toda a sua missão, permanecendo junto do Filho até ao fim no calvário.

Maria está assim tão unida a Jesus, porque recebeu d’Ele o conhecimento do coração, o conhecimento da fé, alimentada pela experiência materna e pela união íntima com o seu Filho. A Virgem Santa é a mulher de fé, que deu lugar a Deus no seu coração, nos seus projectos; é a crente capaz de individuar no dom do Filho a chegada daquela «plenitude do tempo» (Gl 4, 4) na qual Deus, escolhendo o caminho humilde da existência humana, entrou pessoalmente no sulco da história da salvação. Por isso, não se pode compreender Jesus sem a sua Mãe.

Igualmente inseparáveis são Cristo e a Igreja, porque a Igreja e Maria caminham sempre juntas, sendo isto exactamente o mistério da mulher na comunidade eclesial, e não se pode compreender a salvação realizada por Jesus sem considerar a maternidade da Igreja. Separar Jesus da Igreja seria querer introduzir uma «dicotomia absurda», como escreveu o Beato Paulo VI (cf. Exort. ap. Evangelii nuntiandi, 16). Não é possível «amar a Cristo, mas sem amar a Igreja, ouvir Cristo mas não a Igreja, ser de Cristo mas fora da Igreja» (Ibid., 16). Na verdade, é precisamente a Igreja, a grande família de Deus, que nos traz Cristo. A nossa fé não é uma doutrina abstracta nem uma filosofia, mas a relação vital e plena com uma pessoa: Jesus Cristo, o Filho unigénito de Deus que Se fez homem, morreu e ressuscitou para nos salvar e que está vivo no meio de nós. Onde podemos encontrá-Lo? Encontramo-Lo na Igreja, na nossa Santa Mãe Igreja hierárquica. É a Igreja que diz hoje: «Eis o Cordeiro de Deus»; é a Igreja que O anuncia; é na Igreja que Jesus continua a realizar os seus gestos de graça que são os sacramentos.

Esta acção e missão da Igreja exprimem a sua maternidade. Na verdade, ela é como uma mãe que guarda Jesus com ternura, e O dá a todos com alegria e generosidade. Nenhuma manifestação de Cristo, nem sequer a mais mística, pode jamais ser separada da carne e do sangue da Igreja, da realidade histórica concreta do Corpo de Cristo. Sem a Igreja, Jesus Cristo acaba por ficar reduzido a uma ideia, a uma moral, a um sentimento. Sem a Igreja, a nossa relação com Cristo ficaria à mercê da nossa imaginação, das nossas interpretações, dos nossos humores.

Papa Francisco, HOMILIA.
in Solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus
1º de janeiro de 2015.

A Igreja Católica é a fiel depositária de um determinado conjunto de verdades imutáveis, as quais tem o mandato divino de anunciar ao mundo como as recebeu de Cristo – sem as aumentar nem as diminuir. Os dogmas não ficam nunca “ultrapassados”, a Doutrina Cristã não “deixa de valer” jamais. E o Papa – qualquer que seja o Papa! – é o guardião da Fé. Não deveria ser estranho que o Vigário de Cristo agisse como Vigário de Cristo. Nestes tempos que correm, no entanto, e como há um evidente empenho em sequestrar o Papa Francisco, é importante registrar e documentar com bastante cuidado: o Papa Francisco é Papa católico. E, por mais que o desejem os anti-clericais, ele não pode ser outra coisa. Não gostam de ouvir o Pontífice Argentino falar? Que ouçam, portanto, o que fala o Papa Francisco! Que o ouçam e, ouvindo-o, se convertam. Pois – Franciscus dixit! – não é possível separar Cristo de Sua Mãe Santíssima. Porque – Bergoglio garante! – não se encontra a Cristo fora da Igreja Católica e Apostólica.

Que a SSma. Virgem, Aquela «que deu uma face humana ao Verbo eterno, para que todos nós O pudéssemos contemplar» (Papa Francisco, id. ibid.), rogue pela Igreja, pelo Papa Francisco e por todos nós. Que Ela, de novo e mais uma vez, nos traga o Seu Divino Filho, diante do qual as Trevas não podem subsistir. Que Ela nos possa sempre valer, em meio às tentações desta vida conturbada. Que nos livre, sempre, das ciladas que o Maligno nos arma nestes dias difíceis em que vivemos.

A Epifania da Igreja

No último Domingo, Epifania do Senhor, o padre, após a proclamação do Evangelho e antes da homilia, fez a leitura do Noveritis. É a solene proclamação, dentro da primeira Missa dominical do ano (*), de todas as festividades móveis que terão lugar neste ano que inicia. A versão latina, abaixo, peguei no blog do pe. Z; também lá encontrei, neste De publicatione Festorum mobilium, as partituras gregorianas do cântico para os últimos anos.

[(*) A Epifania é o dia de Reis, que se celebra, a rigor, no dia 06 de janeiro. Contudo, em alguns países – entre os quais o Brasil -, a festa da Epifania é sempre celebrada no primeiro domingo depois do dia primeiro de janeiro. Será, portanto, o primeiro domingo do ano na maior parte das vezes, salvo quando dia 01/01 for ele próprio um domingo – e, então, a Epifania fica no segundo domingo do ano.]

Epiphania 2015

Todo mundo sabe que todo ano tem alguns feriados móveis; a Quarta-Feira de Cinzas é sempre uma quarta-feira, Corpus Christi é sempre numa quinta e, a Sexta da Paixão, como o próprio nome diz, cai sempre e insistentemente numa sexta-feira. O que nem todo mundo sabe é que todos esses feriados, embora móveis em relação ao calendário civil, são fixos entre si mesmos. Ou seja: determinado um deles, determinam-se todos os outros.

A festividade-mor, da qual decorrem todas as outras, é a Páscoa da Ressurreição. Ela é marcada com base em um calendário lunar: o domingo de Páscoa é o primeiro domingo após a primeira lua cheia do equinócio de primavera (do hemisfério norte). Assinalada a data da Páscoa, marcam-se automaticamente todos os outros feriados: quarenta dias para trás, temos a Quarta-Feira de Cinzas (o que determina também o Carnaval); cinqüenta dias à frente, Pentecostes. Na segunda quinta-feira após Pentecostes, Corpus Christi.

Duas coisas são interessantes aqui:

1. Durante muito tempo, quando o acesso a calendários não era massificado como nos nossos dias, a primeira Missa do ano foi o momento no qual a maior parte das pessoas era informada a respeito dos feriados móveis. Para além da função óbvia de rezar, ia-se à Missa para saber quais os dias, no corrente ano, em que ocorreriam festas como a Páscoa e o Carnaval. E o nosso século materialista e ateu é constrangido, ainda, a prestar este tributo à Igreja de Cristo: ainda hoje, o calendário civil, para assinalar os seus feriados, depende do que a Igreja vai cantar no Noveritis do primeiro domingo do ano.

2. Assim como estes feriados civis – v.g. o Carnaval, a Semana Santa, Corpus Christi – decorrem do Calendário Litúrgico (o que é um belo símbolo da justa submissão de César à Esposa de Cristo), também há uma hierarquia no interior do ano eclesiástico: todas as festividades decorrem da Páscoa. É ela o ápice do Ano Litúrgico, é com referência a ela que todas as outras festas são marcadas, é ela que determina todo o resto, é em torno dela que orbitam todas as festas móveis católicas. Mistagogia é aprender a Fé cristã a partir do culto católico; e que bela maneira de fazer «catequese litúrgica» essa, mostrando que todo o culto da Igreja, ao longo de todo o ano, está orientado para a Páscoa do Senhor!

No Domingo, festa da Epifania, a Igreja se assenhoreia do tempo profano e, do alto do púlpito, assinala as datas às quais o calendário civil deve aquiescer. Epifania, palavra que significa manifestação: em primeiríssimo lugar do Menino-Deus aos Reis Magos, é evidente, mas também da Igreja à sociedade civil – da Igreja cuja celebração da Páscoa se estende para além das fronteiras eclesiásticas e dita os rumos do ano de César. Um dia, Magos do Oriente vieram adorar um Recém-Nascido numa manjedoura, oferecendo-Lhe presentes. Cedendo-Lhe alguns dias do ano, ainda hoje, na mesma data, os poderosos do mundo prestam deferência à legítima Herdeira do legado d’Ele.

A natureza não passa de palha diante da graça

Somos todos filhos de Deus. Acho que eu já disse isso aqui, citando São Pio X: dá-se a Deus o nome de Pai «porque Deus é Pai de todos os homens, que Ele criou, conserva e governa» (Terceiro Catecismo da Doutrina Cristã, Q. 24). Se «Deus é pai de todos os homens», portanto, por exigência lógica incontornável, a relação pode ser expressa ao revés: e, assim, é verdade que todos os homens são filhos de Deus.

Claro, sabe-se que a filiação divina é uma realidade que se reveste de particulares características no âmbito da ação santificante da Igreja Católica e, no sentido de filhos adotivos «pela graça», somente dos cristãos Deus é pai. As duas coisas, no entanto, não se confundem e nem se excluem: de todos os homens Deus é pai, mas pai pela graça Ele o é somente dos cristãos.

Aqui cabe também, parece-me, aquela máxima da teologia católica de que a graça não destrói mas, ao contrário, aperfeiçoa a natureza. A filiação divina que obtemos por meio da regeneração do Santo Batismo aperfeiçoa aquela outra filiação divina genérica, comum a todos os homens que Deus «criou, conserva e governa». Não se trata de uma paráfrase orwelliana segundo a qual todos seriam filhos de Deus, mas alguns filhos seriam mais filhos do que os outros: trata-se, ao contrário, de distintos modos de se dizer, dos homens, que são filhos de Deus Pai Todo-Poderoso.

Mas e quanto aos pagãos e aos ateus, aos judeus e aos muçulmanos, a toda essa multidão de homens cujas almas não estão marcadas com o sinal da Fé: não se corre o risco de que eles “se contentem” em serem filhos de Deus em sentido amplo e, julgando já suficiente a filiação “comum” a todos os homens, desprezem o dom que a Igreja não cessa de oferecer aos que n’Ela quiserem ingressar pela porta do Batismo? Não se corre o risco de menosprezar a filiação divina pela graça ao se falar que todos os homens, pelo simples fato de serem homens, são já filhos de Deus?

Penso que semelhante mesquinharia espiritual não é própria dos seres pelos quais Cristo morreu numa Cruz. É o inverso: penso que uma realidade chama a outra como os ensaios da peça pedem pela apresentação triunfal, exigem-na e, sem ela, parece que fica faltando alguma coisa. Tem validade universal aquele «feciste nos ad Te» de Santo Agostinho: e todos os homens, por distantes que estejam da Fé, não descansam enquanto o seu coração não repousa em Deus. Em uma palavra, contentar-se com a natureza não é o bastante para homens que são chamados à graça, e os monumentos das praças públicas da Cidade dos Homens não são capazes de satisfazer as almas que foram feitas para os altares da Cidade de Deus.

Dizer aos que não têm Fé que eles são «filhos de Deus» não é fechar-lhes as portas à Igreja: ao contrário, é abri-las e convidá-los a que por elas adentrem depressa! Porque bem fácil se percebe que ser criado, conservado e governado é muito pouco quando se tem a oportunidade de ser redimido; que a natureza não passa de palha diante da graça; e que aquele “filho de Deus” genérico não tem sentido em si mesmo, mas aponta para a filiação adotiva que só se obtém mediante a graça, e reclama o Batismo que nos torna efetivamente filhos de Deus.

A terrível e sangrenta polêmica sobre se os animais vão ao Céu

O Diário de Pernambuco publicou recentemente uma matéria sob a manchete «Cães e gatos podem ir ao céu? Frase do Papa Francisco reabre discussão»; lê-la é uma daquelas experiências que nos dão alguma dimensão de o quanto o homem moderno está perdido, sem fazer a mais remota idéia daquilo do que fala.

O nonsense perpassa a reportagem inteira. Logo no subtítulo, é possível se ler que o «[t]ema é controverso na Igreja Católica, com opiniões contrárias e a favor». Ora, isso é um completo disparate: não há e nem pode haver controvérsia alguma com relação a isso, que envolve aspectos tão básicos do Cristianismo  que qualquer conhecimento mínimo seu revela, de maneira cabal e evidente, o quanto a discussão toda é embaraçosamente estapafúrdia e sem lógica.

“Céu”, no sentido estrito, é o estado de amizade definitiva com Deus do qual gozam os Bem-Aventurados. Amizade, na medida que envolve uma relação entre duas pessoas, pressupõe e exige uma natureza racional: dotada de inteligência e vontade, capaz de conhecer o outro e querê-lo. Não tem lógica absolutamente nenhuma perguntar-se, por exemplo, se uma pedra ou uma árvore pode “gozar da amizade de Deus” (!): tais seres não possuem a natureza necessária ao estabelecimento de uma relação interpessoal – e, por conseguinte, nem muito menos podem “ir ao Céu”, que é a realidade relacional por excelência.

Os únicos seres capazes do Céu são, portanto, por definição de «Céu», aqueles que possuam natureza racional: que sejam dotados de inteligência e de vontade. A única possibilidade, assim, de “animais irem ao Céu”, para que essa pergunta fizesse algum sentido, seria se os animais fossem seres espirituais, capazes de estabelecer uma relação pessoal com os seres externos a eles. E, embora haja de fato quem queira atribuir inteligência a – e.g. – golfinhos, o fato totalmente indiscutível é que, no âmbito da filosofia católica, semelhante hipótese não foi jamais aventada. Nenhum santo, Papa ou mesmo teólogo católico afirmou, nunca, que os animais possuíssem alma racional. O tema não é controverso: é ponto pacífico mesmo entre as mais distintas correntes heterodoxas que a História viu surgirem em vinte séculos de Cristianismo. Ninguém, no Oriente ou no Ocidente, na antiguidade ou no mundo contemporâneo, entre os protestantes ou os ortodoxos orientais, ninguém jamais pretendeu que os animais possuíssem alma como a do homem!

Fiz questão de destacar alma racional e como a do homem acima porque (e isso é também ponto pacífico na filosofia católica) todos os seres vivos possuem alma. As pedras, por exemplo, são seres inanimados; mas as plantas possuem alma vegetativa, os animais, sensitiva, e, o homem, intelectiva (também dita racional, ou espiritual). Isso é outra coisa sobre a qual ninguém discute; confira-se a Summa, I-a Pars, q.78. Não é, portanto, verdade que o «Papa João Paulo II causou frisson em 1990 ao dizer que os animais possuíam alma», como afirmou o Diário de Pernambuco: quem disse isso foi Santo Tomás na Idade Média, repetindo o que Aristóteles já dissera na Antiguidade Clássica, e tal jamais provocou “frisson” algum – porque é óbvio!

São, portanto, três coisas bastantes simples, fáceis de entender e sobre as quais não há nem nunca houve controvérsia alguma na Igreja:

  • todos os seres vivos – as plantas e os animais inclusive – possuem “alma”;
  • apenas os seres humanos possuem alma racional;
  • “pecado”, “salvação” e “Céu” são realidades somente aplicáveis aos seres racionais.

A conclusão, evidente, é que não existe sentido nenhum em se perguntar se os cães e gatos podem “ir ao céu”, e nem muito menos em rematar uma matéria nonsense sobre o assunto afirmando que «[o] Papa Francisco está escrevendo uma encíclica sobre questão (sic) ambientais, mas não se sabe se ele vai tocar no assunto». Ora, não há um “assunto” aqui para ser tocado. Ler uma coisa dessas dá vergonha.

E o pior é que haveria espaço para se escrever alguma coisa lógica sobre o tema. Por exemplo, “Paraíso” é uma expressão multívoca, que designa tanto o estado de visão beatífica das almas que morrem na amizade de Deus quanto o próprio mundo material criado que se há de transformar após o Juízo Final: os «novos céus e nova terra» de que fala o Apocalipse. Sobre estes, ensina o Catecismo (cf. até o parágrafo 1060):

1046. Quanto ao cosmos, a Revelação afirma a profunda comunidade de destino entre o mundo material e o homem:

Na verdade, as criaturas esperam ansiosamente a revelação dos filhos de Deus […] com a esperança de que as mesmas criaturas sejam também libertadas da corrupção que escraviza […]. Sabemos que toda a criatura geme ainda agora e sofre as dores da maternidade. E não só ela, mas também nós, que possuímos as primícias do Espírito, gememos interiormente, esperando a adopção filial e a libertação do nosso corpo» (Rm 8, 19-23).

1047. Assim, pois, também o universo visível está destinado a ser transformado, «a fim de que o próprio mundo, restaurado no seu estado primitivo, esteja sem mais nenhum obstáculo ao serviço dos justos», participando na sua glorificação em Jesus Cristo ressuscitado.

Algumas perguntas poderiam ser colocadas aqui: como será esse cosmos «restaurado no seu estado primitivo»? De que maneira se dará essa transformação do «universo visível»? De modo mais específico: o quê, exatamente, haverá nos «novos céus e nova terra»? Árvores? Plantas? Rios e cachoeiras? Animais…?

Note-se que a pergunta sobre se haverá animais após a Ressurreição da Carne é completamente diferente da primeira, se os «cães e gatos podem ir ao céu»! Nesta, eles seriam sujeitos da Redenção, o que é um completo absurdo e nonsense; naquela, pergunta-se qual o papel do mundo visível (incluídos aí os animais, mas também as plantas e o mundo inorgânico) no mundo futuro que Deus tem planejado para os que O amam. E, não, perguntar se ainda haverá praias e montanhas após o Juízo Final não é o mesmo que perguntar se as montanhas e praias “vão ao Céu” quando deixam de existir. Ser incapaz de separar uma coisa da outra não é senão um sinal de que não se sabe (mais) o que é o homem, o que o mundo, o que é o Paraíso – e, mesmo assim, tem-se a pretensão de informar os outros sobre o assunto.

Bento XVI desautoriza o professor Ratzinger a respeito da comunhão dos divorciados

Há alguns meses, o Card. Kasper começou a fazer alvoroço em público com as suas teses a respeito da admissibilidade dos divorciados recasados à comunhão eucarística. Conhecemos a história: em um seu artigo publicado no início do ano, o prelado apresentava as suas idéias e coligia os fundamentos que julgava possível apresentar na defesa delas.

O passo do prelado, contudo, foi maior do que as suas pernas. Ele poderia ter somente defendido a sua posição particular nesta seara; para angariar maior força de persuasão, contudo, julgou preferível trazer para junto de si a opinião abalizada de um dos maiores teólogos da atualidade. Resolveu defender «la práctica de la tolerancia pastoral, de la clemencia y de la indulgencia» baseando-se em ninguém mais, ninguém menos do que Joseph Ratzinger.

À época, Kasper desenterrou um artigo publicado em 1972 pelo então prof. Ratzinger, e o apresentou aos seus leitores da seguinte maneira:

A Igreja dos primórdios dá-nos uma indicação que pode servir como caminho para escapar a este dilema, ao qual o professor Joseph Ratzinger já fez menção em 1972. […] Nas Igrejas locais havia um direito consuetudinário, de acordo com o qual os cristãos que viviam um segundo vínculo [matrimonial], mesmo que o primeiro cônjuge ainda estivesse vivo, depois de um tempo de penitência tinham à sua disposição […] não um segundo matrimônio, mas – através da participação da comunhão [eucarística] – uma tábua de salvação. […]

[…]

J. Ratzinger sugeriu [em 1972] retomar de maneira nova essa posição de [São] Basílio. Pareceria uma solução apropriada, solução esta que está na base das minhas reflexões.

As conclusões agora apresentadas por Kasper apoiavam-se, de fato, em um nome vultoso. A solução que ele ressuscitava agora tinha o inegável mérito de ter sido já defendida, na década de 70, pelo acadêmico Joseph Ratzinger. O arranjo fora muito bem preparado. Kasper só não contava com um pequeno detalhe: Bento XVI ainda estava vivo, lúcido e não gostou nem um pouco da maneira como o seu artigo (de há mais de quatro décadas) fora citado.

A honestidade intelectual é uma virtude delicada; ela exige que não utilizemos as palavras de terceiros de modo a apresentar um retrato do seu pensamento com o qual eles próprios não concordariam. E, após ter já publicado – enquanto cardeal e enquanto Papa – diversos trabalhos nos quais concluía a respeito da inadmissibilidade da comunhão eucarística aos recasados, Bento XVI não se reconheceu nos textos que escrevera no início dos anos 70, agora requentados para defender uma bandeira com a qual, em absoluto, o antigo Papa não concorda.

E a resposta veio nos últimos dias [p.s.: ver abaixo]: o Bispo Emérito de Roma republicou o seu artigo de 1972, com uma retractatio em sua parte final redigida agora em 2014, onde revisa a sua posição anterior. A atitude me surpreendeu por diversos motivos.

Primeiro porque tal não seria a rigor necessário, uma vez que a posição de Bento XVI a respeito do tema era já suficientemente clara a partir dos seus textos posteriores (entre os quais merece menção, para ficar somente em um exemplo, esta carta assinada de próprio punho pelo Card. Ratzinger em 1994). Mas parece que o acadêmico sentiu-se particularmente ofendido com a mera possibilidade de ter o seu nome associado às teses de Kasper e, portanto, julgou oportuno fazer a retratação.

Segundo porque penso que o fato é inédito. Não me recordo de nenhuma outra ocasião em que Bento XVI tenha rechaçado explicitamente as posições que assumira nos anos anteriores ao cardinalato e à presidência da Congregação para a Doutrina da Fé; pelo contrário, já o ouvi até dizer que foi a revista Concilium (de cuja fundação o jovem Ratzinger participou e que se consagrou mais tarde como um famoso veículo de doutrinas pouco católicas) quem mudou de orientação, e não ele próprio. O gesto abre um importante precedente (que era óbvio, mas a respeito do qual não se pode mais, agora, alegar dúvidas): não é possível transpôr acriticamente os antigos escritos do teólogo Ratzinger para os dias atuais, passando por cima dos debates teológicos que se travaram ao longo das últimas décadas e em cujo cerne o autor – primeiro como prefeito do Santo Ofício e, depois, como Papa – ocupou muitas vezes um lugar de indiscutível proeminência.

Terceiro, por fim, porque a decisão de Bento XVI coloca o seu conterrâneo em uma verdadeira saia justa. Rompendo o silêncio do seu pontificado emérito, ele desautoriza simultaneamente as teses de Kasper e os expedientes do qual este lançou mão para as fazer valer: tomando importante partido nesta importantíssima discussão contemporânea, não faltou quem dissesse que Bento XVI, agora, provoca uma reviravolta e passa a pautar o Sínodo da Família. Não me parece que tenha sido a atitude mais deferente do mundo; contudo, parece que estamos em uma daquelas situações em que se exige que a defesa categórica da Fé seja colocada acima da polidez política. Que seja bem-vindo o auxílio do Pontífice do passado.

[P.S.: Na verdade, a retratação não é assim tão recente e, portanto, não pode ser associada diretamente aos acontecimentos do Sínodo. Em uma entrevista publicada no último domingo (07/12) por um jornal alemão, «[o] jornalista lhe perguntou [a Bento XVI] se desta maneira [com a revisão do artigo] quis adotar uma postura no Sínodo dos Bispos sobre a família, recentemente celebrado no Vaticano, e o Papa emérito qualificou esta afirmação como sendo um absurdo total, já que não interveio nem quis intervir nas questões tratadas no sínodo extraordinário sobre a família e a revisão do volume foi feita antes do Sínodo». Deve ser lida assim, penso eu, como uma resposta aos ensaios de Kasper a respeito da comunhão dos divorciados recasados (feitos já no começo do ano), mas não diretamente ao dissenso cardinalício que se instaurou imediatamente antes e durante o Sínodo recém-encerrado.]

E isso sem falar da humildade necessária para se fazer assim, já no fim da vida, uma retratação pública de repercussão tão ampla: Bento XVI é realmente uma personalidade assombrosa, cuja envergadura intelectual não pode ser posta em dúvida. Nem tampouco a sua dedicação à Igreja…! Nem tampouco o amor à Verdade que o levou a grafar aquele Cooperatores Veritatis em seu brasão episcopal. Sim, há homens para os quais a Verdade está acima de sua imagem e prestígio pessoais. Que as novas gerações o aprendam deste ancião admirável.

Sobre a inadmissibilidade da pena de morte

Um leitor do blog me envia o seguinte comentário/pergunta:

O papa disse que a pena de morte é inadmissível. Isto que é interpretar corretamente o NÃO MATARÁS!!!

Respondamos com calma. A notícia à qual faz referência o meu interlocutor é esta que diz que o «Papa Francisco considera inaceitável para um cristão apoiar a pena de morte». Manchete, permita-se o comentário, reducionista e sensacionalista; data venia, o discurso de Sua Santidade «à Delegação da Associação Internacional de Direito Penal» – que pode ser encontrado na íntegra, em português, no site do Vaticano – é um pouco mais amplo do que isso.

Não teve lá muita repercussão porque, sinceramente, trata-se de um texto bastante genérico e protocolar, falando de maneira superficial sobre os lugares-comuns da doutrina penal contemporânea. Basicamente, o Papa Francisco apresenta alguns elementos em favor do Princípio da Legalidade – defende ele uma «concepção do direito penal como ultima ratio (…) limitado aos factos mais graves contra os interesses individuais e colectivos mais dignos de protecção» – e passa a elencar algumas medidas concretas que devem servir de limites à “face violenta do Estado”.

Não vejo possibilidade de discordância alguma, nem política e nem doutrinária, no que concerne às exposições de princípios. É evidente que o Direito Penal é e deve ser a ultima ratio; é incontestável que, historicamente, a pena estatal revestiu-se de requintes de crueldades hoje completamente extemporâneos e anacrônicos; é inegável que o já referido princípio da legalidade é uma conquista e uma proteção ao ser humano frente ao poder do Leviatã – de cujas arbitrariedades mesmo a história contemporânea nos dá, a cada dia, exemplos tristemente eloquentes.

Já quanto às incursões papais no terreno dos detalhes mais específicos, explique-se-lhes o sentido em que devem ser lidas com um exemplo paradigmático. Sobre a pena de morte, por cuja abolição – segundo o Papa – «todos os cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar», diga-se quanto segue.

algum material no Deus lo Vult! sobre o assunto; para não me alongar em demasia, respondo que a Doutrina Moral católica é feita de princípios imutáveis que devem ser aplicados em situações de fato, contingentes; e que, embora os princípios não mudem, as situações mudam, sim, e com incômoda freqüência, de modo que é perfeitamente possível que o mesmo princípio implique em duas respostas completamente diferentes, se completamente diferentes forem as duas situações nas quais ele é aplicado.

Praticamente nenhum dos pronunciamentos eclesiásticos das últimas décadas a respeito da pena de morte tem caráter principiológico, porque neste campo a situação já está mais do que resolvida há séculos: é prego batido e ponta virada. Na formulação do recente Catecismo, a «doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor» (CCE §2267). Isso, absolutamente, não está em discussão. O que se discute é, exatamente, a situação contingente atual: será que as atuais circunstâncias são tais que, nelas, o recurso à pena de morte é a única solução para a eficaz defesa da sociedade contra um injusto agressor?

Perceba-se que se trata aqui de um juízo de fato e, por isso mesmo, i) nem as manifestações nesta seara obrigam à Fé num nível mesmo análogo às promulgações dogmáticas; e ii) nem elas se revestem do caráter de irrevogabilidade que é próprio de matéria doutrinária. Em uma palavra, é simplesmente nonsense afirmar que a Igreja tenha revisto a Sua posição a respeito da pena capital, porque exposição racional de princípios e aplicação de princípios a situações concretas são duas esferas que de maneira alguma se confundem entre si. Na primeira delas, é legítimo, em abstrato, ao poder temporal punir os criminosos inclusive com a morte; na segunda, é perfeitamente possível que, nos Estados modernamente constituídos e com a sensibilidade contemporânea, não haja espaço para a aplicação daquela pena máxima. Como diz o poeta, mudaram as estações; nada mudou.

Todas as demais intervenções pontifícias no referido discurso – sobre questões de maioridade penal, de situações dos presídios, de punições a pessoas vulneráveis (v.g. idosos, doentes, mulheres grávidas) etc. – resolvem-se do mesmíssimo modo. Todas elas são juízos prudenciais a respeito de como se devem aplicar os princípios da Teologia Moral às questões contemporâneas, da maneira como elas concretamente se apresentam ao homem moderno – e, claro, como o Vigário de Cristo as percebe. Não são exposições de princípios  morais (e nem muito menos apresentações de novos princípios morais contrários aos anteriormente vigentes), e sim, no sentido mais clássico, casuísticas. Servem para auxiliar a razão prática, não engessá-la.

A Igreja é infalível em Fé e em Moral, sem dúvidas. Mas são bem raras as coisas que sempre são legítimas independente de qualquer coisa, ou que nunca são permitidas de nenhuma maneira (como, v.g., matar diretamente um inocente, que nunca é lícito); a maior parte delas envolve a consideração de princípios imutáveis vis-à-vis situações contingentes. E uma lista exaustiva de todas as possíveis situações de fato é obviamente irrealizável; não é a isto que se propõe a Igreja de Cristo! A Doutrina Católica é um facho de luz que devemos usar para iluminar os nossos passos, e não um sucedâneo do caminhar humano.

Se São Pedro tinha sogra, por que o Papa não pode casar?

Alguém me pergunta: Se Nosso Senhor curou a sogra de Pedro, é sinal de que ele era casado. Por que, então, o Papa não pode casar?

O raciocínio está corretíssimo quanto à primeira parte. Sim, é óbvio que S. Pedro, se sogra tinha, é porque era ou fora casado e não pode ser jamais de maneira diversa. O erro se faz presente quanto ao non sequitur elíptico: o argumento desdobrado tem a seguinte forma:

SE o primeiro Papa foi casado ENTÃO os próximos o deveriam [poder] ser também.

E a conclusão não segue das premissas. Não, não é porque S. Pedro tinha sogra que os outros papas deveriam ter também. Não é porque S. Pedro era ou fora casado, do mesmo modo, que os seus sucessores deveriam poder igualmente casar.

São Pedro tinha barba, como já ouvi alguém jocosamente retrucar. Disso evidentemente não decorre que os Papas precisem ser barbudos. Decerto eles podem sê-lo; mas – é este o ponto principal aqui – se fosse emitida uma regra canônica que instituísse a figura do Barbeiro Pontifício, sob cujo encargo ficaria manter sempre lisa e lustrosa a face do Romano Pontífice, isso poderia até ser visto por alguns como uma extravagância; mas decerto ninguém sustentaria haver, aqui, uma contradição com o que está consignado nos Evangelhos. Por que com relação às sogras as coisas são diferentes?

Ser celibatário não é uma condição para alguém ser validamente Papa; não se trata de uma imposição análoga àquela que exige, p.ex., que se seja batizado para receber os demais sacramentos. Outro exemplo talvez mais claro: uma mulher não pode ser “Papisa” porque o Papa precisa ser Bispo, e o Episcopado é um dos graus do Sacramento da Ordem, o qual não pode ser validamente ministrado senão a varões. Assim, uma mulher não pode ser “bispa” (“não pode”, aqui, significando verdadeira impossibilidade metafísica: nada pode ser feito que confira o caráter sacerdotal a uma mulher) e, se fosse – por engano – eleita ao sólio pontifício, não se trataria verdadeiramente de “sucessora de Pedro” com as prerrogativas que lhe são próprias (não gozaria, por exemplo, da infalibilidade).

Coisa distinta é ser casado / celibatário, relação (categoria aristotélica) que por si só não implica nem em condição para se ser Sucessor de Pedro e nem em impedimento ontológico para ascender ao Sumo Pontificado. Pode ser validamente ordenado o «vir baptizatus» (CIC 1024); é ser varão e batizado o que faz S. Pedro – e todos os seus sucessores – poder(em) ter sido Papa, e não o ser(em) casado ou celibatários.

Quando o Matrimônio é a solução para o concubinato

Não me lembro agora quem foi aquele sábio contemporâneo que disse, certa vez, que os jornalistas eram as pessoas mais desinformadas que ele conhecia. A veracidade da sentença é passível de ser confirmada à mais banal e corriqueira observação da realidade; é incrível como este ramo de atividade humana – responsável justamente pela propagação da informação – pode contar com tantas e tantas pessoas absolutamente ineptas em suas fileiras.

Uma matéria recente do Estadão fala que o “Papa realiza casamento de casais que já moram juntos e têm filhos”. O primeiro parágrafo, dando o tom de toda a matéria, dispara que o Papa Francisco «celebrou o casamento de 20 casais neste domingo [14/set], alguns dos quais já vivem juntos e tem filhos, no mais recente sinal de que o pontífice argentino quer que a Igreja Católica seja mais aberta e inclusiva».

Custa crer que exista alguma pessoa na face da terra que ignore que a Igreja, desde que é Igreja, casa casais. [Na verdade, quem celebra o Matrimônio são os nubentes e não o sacerdote que o assiste, como o sabe qualquer catequizando adolescente; mas seria demais exigir esse nível de refinamento de quem se espanta com o fato de casais que «já vivem juntos e tem (sic) filhos» casarem…] Custa crer que alguém enxergue nessa coisa banal e prosaica um sinal de que a Igreja deseje ser «mais aberta e inclusiva».

Ora, desde que o mundo é mundo, a Igreja regulariza as situações de fato que encontra. As pessoas que podem se casar são, apenas e justamente, os casais que ainda não estão casados! Um absurdo inaudito, digno de manchetes, seria se fosse diferente. Se um homem e uma mulher vivem juntos maritalmente e não estão ainda casados – nem, óbvio, estão impedidos de casar por algum matrimônio prévio, por votos religiosos ou por qualquer outra razão -, então é lógico que a situação deles regulariza-se, da maneira mais simples possível, com a celebração do seu casamento. Isso sempre foi assim e qualquer pessoa com um mínimo de vivência eclesial sabe disso. No fato da Igreja casar casais que ainda não estão casados não se encontra nenhum sinal de “inclusividade”, no péssimo sentido que esta palavra tem na novilíngua contemporânea, mas sim da catolicidade da Igreja que, sempre, convida a Si todos os homens e anseia por congregar a todos no Seu seio.

Aqui, nos sertões do nosso Nordeste, uma das coisas que frei Damião fazia com suas missões [cf. “Em defesa da Fé”] era, justamente, ajustar o casamento dos que viviam amancebados. Ou seja: trata-se de prática extremamente “reacionária”, no sentido de que se preocupa com as formas tradicionais [= o matrimônio religioso] em preferência às novas configurações de fato [= o amor livre]. Na verdade, casar pessoas que já vivem juntas e têm filhos não é “incluir” essa realidade marginal – o concubinato – na Igreja Católica, mas precisamente o contrário: é arrancar o homem à mancebia para reintroduzi-lo nas práticas santas da religião católica, é elevar a amásia e concubina a cônjuge e esposa legítima. É, em suma, dizer que não se aceita que os casais simplesmente “vivam juntos e tenham filhos”, mas que, além disso, é imperioso que eles contraiam matrimônio válido e lícito diante da autoridade religiosa competente. Trata-se, evidentemente, de [mais] uma condenação do concubinato, e não de uma sua “inclusão” na Igreja.

Uma Igreja “aberta e inclusiva”, na mentalidade moderna, seria uma Igreja que permitisse o sexo fora do casamento, que aceitasse o casamento gay ou permitisse que divorciados tornassem a casar. Ora, não consta que as pessoas que recentemente se casaram diante do Papa Francisco tivessem algum impedimento canônico; não eram gays mas, muito ao contrário, casais de verdade, com filhos próprios inclusive; e o fato mesmo do Papa exigir-lhes o casamento é, por si só, sinal evidente de que faltava algo à situação de «vive[re]m juntos» em que já se encontravam. Muito ao contrário, portanto, de ser um “sinal” dessa realidade apocalíptica pela qual anseiam em vão os bárbaros modernos, o recente gesto do Papa Francisco foi uma reafirmação da Doutrina Católica: longe de ser uma realidade social dotada de valor, o concubinato é um mal que deve ser sanado – se possível, com o Matrimônio. E o Papa quis passar clara e abertamente essa mensagem para o mundo. E esta verdade é suficientemente inclusiva para valer para todos os homens.

Sobre forma e conteúdo: maus comentários e o caso Ciudad del Este

A respeito do último texto do Blogonicvs, que comenta um post daqui do blog, eu gostaria de esclarecer quanto segue:

1. Não foi o Danilo quem comentou aqui no Deus lo Vult! (e nem eu disse que tinha sido), e sim o Renato, um sedevacantista que já é figurinha conhecida e carimbada entre os leitores do blog, conhecido por simplesmente cuspir links aleatórios com frases do tipo “veja isso, Jorge!”, “abra os olhos enquanto é tempo, Jorge!” e congêneres, quase sempre sem nenhuma propensão ao debate ou à crítica construtiva, quase sempre com mero animus de semeador do caos e arauto sorridente de más notícias, pouca diferença fazendo se supostas ou verdadeiras.

2. Por conseguinte, também não foi o texto do Blogonicvs (nem na íntegra e nem no excerto aqui citado) que apodei de “exemplo de mau comentário”, e sim o referido comentário do Renato, que consistia simplesmente em copiar-e-colar um link de pertinência (no mínimo) controversa. Eu o disse no próprio texto, ao esclarecer (logo no início) que recebera comentários (cito-me recursivamente, pedindo perdão pelo excesso de aspas) «exatamente naquele estilo que eu deplorei aqui de «mera reprodução de conteúdo»». E o que tem neste link, a que me referia, é o seguinte:

Contudo, procurarei ser também mais criterioso: se o texto principal não é espaço para mera reprodução de conteúdo, tampouco a área de comentários deve ser usada para simples divulgação do que quer que seja.

O “exemplo de mau comentário”, portanto, não era o texto do Blogonicvs (nem nenhum dos outros textos citados no post). Os maus comentários eram os do Renato, copiando e colando links aleatórios, sem nenhum comentário, sem nada, e despejando-os em posts daqui do Deus lo Vult! com os quais aqueles pouco tinham a ver. A questão, destarte, é e sempre foi precipuamente de mera forma, sem entrar no mérito do conteúdo divulgado.

3. Eu não comento em quase nenhum outro blog fora este aqui, mas os leio. Não com a maior fidelidade do mundo, mas leio. O Danilo, aliás, desde os tempos do Igreja Una. Inclusive aqui, no rodapé do Deus lo Vult!, entre outros blogs, estão o próprio Blogonicvs e o Fratres in Unum, de onde saíram dois dos três textos criticados naquele post que ensejou esta celeuma. Não subscrevo tudo o que eles escrevem (na verdade, as únicas coisas que eu subscrevo sem reservas são as que eu escrevo de próprio punho ou as que digo explicitamente subscrever); do Fratres, a propósito, eu discordo muito mais do que com ele concordo. Não obstante, no contexto da internet católica contemporânea têm inegável relevância. Por mais que se possa (e em alguns casos até se deva) discordar deles, é importante conhecê-los. Penso que somos todos crescidos o suficiente para conviver em relativa harmonia. Oremus pro invicem.

4. Entrando por fim no mérito dos textos, com a devida vênia, extrapolar de um anúncio de uma visitação apostólica a uma Diocese que abriga um sacerdote acusado de abuso sexual de menores (tema particularmente candente nas últimas décadas cujo combate mereceu atenção, digamos, “midiática” (no sentido de que se percebeu a importância, mais do que simplesmente fazer, de também dizer ao mundo que se estava fazendo) nos dois últimos pontificados) um suposto revanchismo do Papa Francisco e (outro) exemplo de seu combate acirrado contra tudo o que é tradicional é, convenhamos, um pouco paranóico sim. Os motivos da visitação até onde eu saiba não foram anunciados, os seus resultados não podem ser conhecidos antes de decorrerem do fato que ainda não se deu e, portanto, todo o texto que pinta o Papa Francisco – Sumo Pontífice gloriosamente reinante – com as cores de um Bicho-Papão devorador de tradicionalistas é especulativo e infundado. Enseja uma atitude de desconfiança do fiel católico simples para com o Vigário de Cristo, estado de espírito absolutamente inconveniente para o católico e que não deve, portanto, ser incentivado. Merece esta crítica, sim, que fiz en passant no outro texto (uma vez que o foco lá era desencorajar a prática de copiar-e-colar links na caixa de comentários do Deus lo Vult!), mas que detalho um pouco mais agora.

5. Por fim, ainda sobre Ciudad del Este, pouco ou nada sei sobre a exuberante vida tradicional abrigada na Diocese, mas sei de uma coisa: é óbvio que existe hoje em dia um enorme preconceito (inclusive e infelizmente eclesial) contra o catolicismo sério. Quem portanto toma sobre os ombros o fardo de ser um facho bruxuleante de luz que seja em meio ao caos generalizado em que nos encontramos não pode, de nenhuma maneira, abrir flanco a ataques dos inimigos de Cristo. À mulher de César não basta ser mulher de César, sabe-se muito bem, e ao católico que quer ser exemplo no meio da crise (ou mesmo que não queira – quem se encontre de repente como exemplo, ainda que por conta da generalizada aridez ao redor!) não basta ser católico exemplar, tem que o parecer também. Assim, é de uma imprudência sem tamanhos acolher um sacerdote acusado de pedofilia e – pior ainda! – conferir-lhe cargos de importância. Não importa se o acusado é inocente, não importa se a Diocese não tem nada a ver com as coisas das quais ele é acusado: importam as cores tétricas com as quais esta Diocese torna-se passível de ser pintada diante da opinião pública e, junto com ela, todo o catolicismo tradicional que ela encarna, que é difícil de distinguir dela própria e, por isso mesmo, que sai injustamente enlameado dessa história. As filhas do Pe. Maciel são muito mais daninhas ao catolicismo do que os de Fernando Lugo, exatamente por causa da imagem de católico que o primeiro detinha e com a qual o último nunca se preocupou. Exposto isso, é de dar graças a Deus que seja um Visitador Apostólico a chegar em Ciudad del Este. Muito pior seria se fosse um Roberto Cabrini.

A Igreja não pode ser pautada pelos que a Ela se opõem

Pediram-me um comentário a respeito da notícia de que o Papa Francisco estaria “sinalizando” a nomeação de mulheres para cargos importantes na cúria. Vejam, o que realmente importa nesta pergunta – assim interpreto eu os sentimentos dos que se sentem angustiados com este tipo de notícias – não é o que ela denota objetivamente. A rigor e analisada em si mesma, essa notícia (1) não possui substância alguma e, (2) ainda que possuísse, seria algo de extremamente banal e corriqueiro.

Por que digo que a notícia não possui substância? Porque ela faz todo um escarcéu em cima de uma frase solta numa entrevista à qual provavelmente nem o próprio Papa Francisco deu a importância que os microscópios da mídia artificialmente lhe conferem. Existe uma mulher concreta cujo nome está sendo cogitado pelo Papa? Não. Existe um cargo concreto que o Papa pretende conceder a uma mulher? Não. Existe um prazo definido dentro do qual passará a haver mulheres – ou pelo menos uma mulher – nomeadas para os dicastérios romanos? Não. Existe ao menos a certeza de que o Papa vai realmente fazer isso? Também não. Não há absolutamente nada, portanto, exceto o Papa dizendo em uma conversa privada com outro padre que “deve” nomear uma mulher «porque [elas] são mais inteligentes que os homens». Isso, sim, é literal: por que não apareceu ninguém, então, para criticar a novidade doutrinária de que as mulheres possuem uma inteligência metafisicamente superior à dos homens?

“Porque isso é besteira”, alguém haverá de dizer, “mas o empoderamento das mulheres em uma instituição tradicionalmente conduzida por homens tem um importante valor simbólico para a luta dos movimentos feministas”. E este é o ponto relevante aqui.

Os que se preocupam com essa notícia (e outras análogas) estão, na verdade, preocupados não com ela, mas sim com o “valor simbólico” do (possível) gesto noticiado. Mais ainda: estão, na verdade, preocupados com a instrumentalização, por parte de grupos revolucionários tradicionalmente avessos à Igreja, do (possível) gesto, conferindo-lhe um valor simbólico que ele absolutamente não possui e utilizando-o para justificar um sem-número de barbaridades (no caso em pauta, ordenação feminina e abolição das diferenças entre os sexos, p.ex.) que ele absolutamente não justifica. O problema, portanto, não está com o Papa, o problema não está nas mulheres trabalhando ou deixando de trabalhar nos órgãos da Santa Sé: o problema está naquelas pessoas que não estão nem um pouco preocupadas com a Doutrina Católica, mas são ávidas em pinçar palavras, atitudes e gestos do Romano Pontífice para dar (aparência de) força à sua concepção de mundo particular. O problema, em suma, não é o Papa nomear mulheres para cargos importantes na cúria. O problema é as pessoas usarem indevidamente uma coisa banal e corriqueira dessas em benefício de sua própria agenda ideológica.

E por que digo que é uma coisa banal e corriqueira? Por diversas razões. Primeiro, porque o trabalho administrativo nos órgãos da cúria não tem nada a ver, nem remotamente, com nada da doutrina (ou mesmo da disciplina) da Igreja Católica. Segundo, porque as mulheres ocupam desde sempre um lugar de especialíssima proeminência dentro do universo doutrinário católico – basta pensar na Santíssima Virgem Maria, referência de todo fiel, do menor dos leigos aos Papas. Terceiro, porque historicamente já foram concedidas a mulheres posições de poder totalmente inimagináveis mesmo pelo mundo laico contemporâneo. Quarto, porque já existem mulheres trabalhando nos dicastérios romanos, é óbvio, sempre devem ter existido: se elas não ocupam os cargos mais altos – de prefeitos, secretários etc. – é por razões de ordem sacramental e não sexista: a reserva é aos sacerdotes em preferência aos leigos, e não aos homens em preferência às mulheres. Quinto, porque isso é uma mera convenção em si indiferente que poderia ser de um sem-número de outras maneiras.

O problema, em suma, é a tentativa de enquadrar a Igreja – ou, melhor dizendo, aspectos desconexos da Igreja – em uma clave que A deforma e termina por A retratar de uma maneira totalmente infiel à realidade. Há uma quantidade potencialmente infinita desse expediente pouco criterioso: se um Papa não permite a ordenação de mulheres então é um misógino, se cogita dar algumas responsabilidades a uma mulher então é porque é um feminista revolucionário, se é contra a camisinha favorece a AIDS, se diz que o uso de preservativos por parte de um prostituto é o menor dos problemas morais nesta situação envolvidos então é um libertino querendo entronizar a revolução sexual na Igreja, se celebra versus populum é um modernista, se celebra versus Deum é um tridentino retrógrado, se condena o comunismo é um porco capitalista, se protesta contra as injustiças sociais é porque é um agente da KGB infiltrado.

Isso acontece, isso é feito o tempo inteiro pelos inimigos da Igreja e pior: isso tem dado certo. Há hoje muitas e muitas pessoas que odeiam a Igreja por Ela ser misógina, por ser esquerdista, por ser antiquada em excesso, por ser modernosa demais, por ser muito rígida, por ser muito lassa, por oprimir os ricos, por desprezar os pobres, por tudo: e só uma minoria ínfima odeia a Igreja por Ela ser o que Ela de fato é. Fulton Sheen dixit. E ele estava certíssimo. As pessoas via de regra não são contra a Igreja Católica. São contra a imagem desfigurada que elas têm da Igreja Católica.

O texto já vai longo, e arremato: a solução desse problema não passa por se abster de fazer as coisas em atenção às leituras distorcidas que pessoas ignorantes ou mal-intencionadas farão dessas coisas feitas. Isso é um erro monumental e absolutamente injustificável. Ninguém pode deixar de venerar a Santíssima Virgem para não ser acusado de idolatria, ninguém pode deixar de celebrar a Santa Missa com decoro e diligência para evitar ser olhado como a um fariseu. E, pela mesmíssima razão, para não ser confundido com um TL não é legítimo a ninguém esquecer que negar ao trabalhador o salário justo é um pecado que clama aos Céus vingança. Pela mesmíssima razão, ninguém pode determinar o que vai fazer ou deixar de fazer em função das reações do movimento feminista a esta ação ou omissão.

Se a Igreja tem que preservar a Sua independência, Ela a precisa preservar também (e talvez até principalmente) contra esses reducionismos maniqueístas tão em moda hoje em dia. A Igreja não pode ser pautada pelos que a Ela se opõem, isso é bastante evidente. Mas não é tão evidente assim que há formas mais sutis de pautar o comportamento de outrem, e também contra estas é preciso se precaver. A Igreja não pode ser coagida pelos “católicos” de esquerda a sancionar as teses já condenadas da teologia da libertação, é óbvio. Mas Ela também não pode negar que a pobreza evangélica seja um valor – ou que existam deveres de caridade para com os pobres que são mandatórios para todo cristão, por exemplo. É preciso combater o lobby modernista que é feito diuturnamente contra Igreja. Mas é igualmente preciso perceber que evitar fazer coisas em si legítimas para não ser visto como modernista é também uma forma de se ser influenciado. E a liberdade de anunciar o Evangelho não pode conhecer esses limites. Os inimigos da Igreja não podem ditar o que Ela pode fazer, é claro. Mas também não podem determinar – nem mesmo indiretamente – o que Ela não deve fazer.