O nascimento de um ateu

Inicio hoje uma pequena série de despretensiosas considerações sobre o ateísmo. Se é verdade que sempre, desde que o mundo é mundo, existiram pessoas que não acreditavam em Deus, é igualmente verdade que, hoje em dia, o número dos que abraçam semelhante tese é bem mais considerável do que já foi em outras épocas. Acredito que seja também verdade que nunca na história houve um – chamemo-lo assim – “ateísmo militante” tão violento como o que vemos hoje em dia. De onde vem semelhante descrença? Qual é, na verdade, o cerne da discussão entre ateus e teístas? Tais perguntas que se apresentam não possuem respostas triviais. De maneira alguma pretendo esgotar o assunto; o meu objetivo é tão-somente expôr algumas (em grande parte, particulares) opiniões sobre esta realidade.

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O nascimento de um ateu

Já ouvi por algumas vezes alguém dizer que o ateísmo é a “condição natural” do ser humano, porque ele nasce sem acreditar em Deus e, só depois, com a educação que recebe, com a influência da cultura onde vive, passa a abraçar tal ou qual religião. Não acredito que a tese possa ser subscrita assim, simpliciter, por uma razão bastante simples: se é óbvio que uma criança não tem nenhuma ciência da existência de Deus, ela igualmente não tem nenhuma ciência da Sua não-existência. Uma criança recém-nascida não é “atéia”; ela simplesmente ignora a existência de Deus, como ignora também uma série de outras coisas que só com o tempo vai passar a conhecer. O ateísmo não se apresenta, até onde eu saiba, como a “ignorância” de Deus (se bem que ele possa muito bem ser assim definido, mas deixemos isso para uma outra oportunidade), e sim, ao contrário, como o conhecimento de que Deus não existe. E este conhecimento, é óbvio que as crianças não possuem.

Deveriam, portanto, os ateus, que se vangloriam de serem racionais, pararem de equiparar a ignorância infantil à afirmação madura, consciente e deliberada de que Deus não existe. São duas coisas completamente diferentes. O ateísmo não se apresenta como “não saber que Deus existe”, e sim como “saber que Deus não existe”: a posição da partícula negativa na frase faz toda a diferença. Ninguém, portanto, “nasce” ateu; a pessoa passa a ser atéia quando, após atingir a idade da razão, após considerar por conta própria o problema da existência de Deus dentro da cultura na qual está inserida, opta por acreditar na Sua não-existência – exatamente como qualquer processo de “nascimento” de um religioso. O ateísmo não está imune à influência externa que ele tanto critica na formação da consciência religiosa. Também ele é construído, e não inato, como algumas vezes quer pretender.

Dizem-nos, por vezes, que “você é cristão porque nasceu no Ocidente; caso houvesse nascido em algum país do Oriente Médio, seria muçulmano e, portanto, a religião é meramente um produto cultural determinado pela aleatoriedade do lugar onde a pessoa nasceu e foi educada”. Se formos aceitar isso em suas linhas gerais [porque é óbvio que não existe este determinismo absoluto sentenciado, haja vista a existência, p.ex., de cristãos no Oriente Médio e de muçulmanos no Ocidente], poderemos igualmente dizer ao nosso interlocutor: você só é ateu porque nasceu no século XX do Ocidente descristianizado, e esta sentença não seria menos verdadeira do que a primeira. Alguns ateus gostam de pensar que, se tivessem nascido na Idade Média, seriam queimados nas fogueiras da Inquisição; eu julgo isso muitíssimo pouco provável, e tal erro é decorrente da mania que têm os ateus de analisarem-se a si próprios “isolados” da cultura onde nasceram. Se tivessem nascido na Idade Média, os ateus de hoje seriam, em sua grande maioria, cristãos e bons cristãos. Porque aí eles respirariam cristianismo desde a mais tenra infância, e não seriam envenenados pela triste cultura que hoje vivemos.

Parece-me fora de qualquer discussão que a cultura na qual vivemos propicia e enseja o surgimento de ateus, de um modo análogo àquele segundo o qual a cultura cristã da Europa Medieval propiciava e ensejava o surgimento de católicos. Se, no entanto, os ateus quiserem julgar o mundo inteiro com base em um modelo que não aceitam aplicar a si próprios, então eles não estão dispostos a discutirem seriamente – simples assim. Não é honesto utilizar dois pesos e duas medidas. Se os ateus querem enfatizar a importância da cultura no nascimento dos religiosos – coisa que, até onde eu saiba, é indiscutível -, devem também enfatizar a importância da mesma no nascimento de si próprios.

“Ah, mas se o meio cultural do Ocidente do século XX provocasse o surgimento de ateus, então estes seriam a maior parte da população, como os católicos o eram na Idade Média”, alguém pode dizer. Negativo, por três motivos. Em primeiro lugar, porque não existe determinismo na escolha religiosa [ou irreligiosa] dos indivíduos; influência, sim, mas necessidade, não. Em segundo lugar, porque hoje em dia existe ainda, embora em menor escala, a influência religiosa [principalmente – ainda! – no seio familiar], de modo que esta é capaz de oferecer uma opção [graças a Deus, ainda abraçada por muitos] à descrença. Em terceiro lugar, porque o ateísmo é – digamo-lo francamente – uma escolha que repugna a razão, de modo que são necessários grandes esforços para enfiá-la na cabeça das pessoas. Voltaremos a este último ponto mais adiante. Agora, falemos um pouco sobre o porquê da civilização ocidental descristianizada ser terra fértil para o aparecimento dos ateus, sem a qual o número destes não chegaria jamais a ser significante.

Janua Coeli – In Annuntiatione Domini

Die 25 martii

In Annuntiatione Domini

[Visitem o SanctaMissa.org]

HONRAR A MÃE É HONRAR O FILHO

Confessar que Maria é mãe de Deus, é preservar a doutrina do Apóstolo São João que nos diz: “o que vimos e ouvimos vo-lo isso anunciamos” (1Jo 1, 3), fugindo de qualquer subterfúgio; é a pedra de toque com que detectamos as pretensões dos maus espíritos, do “Anticristo que entrou no mundo” (cf. 1Jo 4, 3). Essa confissão declara que Ele é Deus, implica que Ele é homem, sugere que Ele segue sendo Deus, mesmo se fazendo homem; e que é verdadeiro homem, mesmo sendo Deus.

Quando os hereges voltaram a surgir no século XVI, não encontraram tática mais certeira para seus perversos propósitos de destruir a fé verdadeira, ridicularizando e blasfemando contra as prerrogativas de Maria, pois tinham por certo que, se conseguissem que o mundo desonrasse a Mãe, disso se seguiria a desonra do Filho. A Igreja Católica e Satanás estavam de acordo com isso: o Filho e a Mãe estão intimamente ligados; a experiência de quatro séculos confirmou seus testemunhos, pois os católicos que honraram a Mãe seguem adorando o Filho, enquanto os protestantes, que deixaram de confessar o Filho, começaram a zombar da Mãe.

Percebe-se nesse exemplo a coerente harmonia que há na doutrina revelada, como uma verdade repercute sobre a outra. Exaltar Maria é honrar Jesus. Convinha que Maria, que era somente criatura – sendo a mais excelsa de todas – tivesse de levar a cabo a tarefa de instrumento. Como outros, Ela veio ao mundo para realizar uma obra; tinha uma missão a cumprir; possui a graça e a glória não por si mesma, mas por seu Criador. A Maria foi confiada a custódia da Encarnação. A tarefa lhe é encomendada: “Eis que uma Virgem está grávida e dará à luz um filho e dar-lhe-á o nome de Emanuel” (Is 7, 14).

Quando estava na terra cuidou pessoalmente de seu Filho, levou-o em seu seio, abrigou-o com seus braços, alimentou-o em seu peito, agora também – até o último momento da vida da Igreja – seus privilégios e a devoção dirigida a Maria proclamam e definem a fé reta acerca de Jesus como Deus e como Homem. Uma igreja dedicada, um altar que se erige em seu nome, uma imagem, uma ladainha que a louva, uma Ave Maria que se reza, comunica-nos a memória d’Aquele que, sendo louvado desde a eternidade, “não desprezou as entranhas de uma Virgem”, para benefício dos pecadores. Por isso, como a Igreja a proclama, Maria é a Torre de Davi, é a defesa alta e poderosa do verdadeiro Rei de Israel; por isso, a Igreja diz também em uma antífona: “Só Ela destruiu [sozinha] todas as heresias no mundo inteiro”.

[…]

MARIA, PORTA DO CÉU

Maria é chamada Porta do Céu porque foi o caminho que o Senhor escolheu para do céu descer à terra. O profeta Ezequiel, profetizando sobre Maria, diz: “Este pórtico ficará fechado. Não se abrirá e ninguém entrará por ele, porque por ele entrou Iahweh, o Deus de Israel, pelo que permanecerá fechado. O Príncipe, contudo, se sentará aí” (Ex 44, 2-3).

Pois bem, isso se cumpriu, não porque Nosso Senhor tomou a carne de Maria tornando-se seu filho, e sim porque Ela ocupou um lugar na economia da Redenção; cumpriu no espírito e na vontade, como em seu corpo. Eva participou da queda do homem, sendo Adão quem nos representou e seu pecado nos fez pecadores. Foi Eva quem tomou a iniciativa e tentou Adão. A Escritura diz: “A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava, e ele comeu” (Gn 3, 6). Convinha, pois, à misericórdia de Deus que, como pela mulher começou a destruição do mundo, também fosse pela mulher que começasse a reconstrução; e como Eva abriu o caminho à obra fatal de Adão, também Maria abrisse o caminho à obra prima do segundo Adão, Nosso Senhor Jesus Cristo, que veio salvar o mundo morrendo na Cruz. Por isso, Maria é chamada pelos Santos Padres, segunda e perfeita Eva, porque deu o primeiro passo na salvação da humanidade que Eva havia levado à ruína.

Como e quando tomou Maria parte inicial, na restauração do mundo? Quando o anjo Gabriel apareceu para lhe dar a conhecer a excelsa dignidade que ia ter. São Paulo diz: “que ofereçais vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: esse é o vosso culto espiritual” (Rm 12, 1). Devemos não só rezar com os lábios, jejuar, fazer penitência exterior, ser castos em nossos corpos, mas também devemos ser obedientes e puros de espírito. Com respeito à Santíssima Virgem, foi desejo de Deus que aceitasse voluntariamente e com pleno conhecimento ser Mãe de Nosso Senhor, não que fosse um mero instrumento passivo cuja maternidade não teria mérito nem recompensa. Quanto mais altos são nossos dons, mais alta é nossa responsabilidade. Não foi uma carga leve estar tão intimamente próxima do Redentor dos homens e a Virgem a experimentou quando sofreu junto com Ele. Por isso, ponderando bem as palavras do anjo antes de dar uma resposta, primeiro perguntou se uma missão tão excelsa, suporia a perda da virgindade que Ela havia consagrado a Deus. Quando o anjo lhe respondeu que de nenhuma maneira, então, com o pleno consentimento de um coração cheio do amor de Deus, com humildade disse: “Eis a serva do Senhor; faça-se m mim segundo tua palavra” (Lc 1, 38). Com esse consentimento se converteu na Porta do Céu.

[Cardeal Newman, “Reflexões sobre a Virgem Santíssima”, pp. 19-21; 64-66. Editora Formatto, São Paulo, 2006]

Curtas diversos

– Sobre os preservativos e a AIDS, parece que a ONU finalmente deu o braço a torcer e condescendeu com o óbvio: fidelidade e abstinência previnem HIV. Como a Igreja sempre disse. Não tive, contudo, acesso ao comunicado original; ao que parece, a ONU continua insistindo, sim, no uso dos preservativos. Tem gente que não aprende nunca…

– Olavo de Carvalho falou sobre o deus dos palpiteiros; não entendi muito bem a parte positiva da argumentação dele, que me pareceu aliás subjetivista e errônea (Longe de poder ser investigado como objeto do mundo exterior, Deus também é definido na Bíblia como uma pessoa, e como uma pessoa sui generis que mantém um diálogo íntimo e secreto com cada ser humano e lhe indica um caminho interior para conhecê-La. Só se você procurar indícios dessa pessoa no íntimo da sua alma e não os encontrar de maneira alguma, mesmo seguindo precisamente as indicações dadas na definição, será lícito você declarar que Deus não existe.); mas a parte negativa está precisa: “Se Deus é definido como onipotente, onisciente e onipresente, é desse Deus que você tem de demonstrar a inexistência, e não de um outro deus qualquer que você mesmo inventou conforme as conveniências do que pretende provar”.

– Vale muito a pena também conhecer a Declaração de Madrid contra o aborto, excelente “manifesto dos 300” que já conta com mais de 1200 assinaturas de “professores de universidade, pesquisadores, acadêmicos, e intelectuais de diferentes profissões”. Um aborto não é só a «interrupção voluntária da gravidez», mas um ato simples e cruel de «interrupção de uma vida humana»: eis os fatos como eles são. Que Deus nos livre do aborto; como diz a mesma declaração, “[u]ma sociedade indiferente à matança de perto de 120.000 bebês ao ano é uma sociedade fracassada e doente”.

Mais sobre as Campanhas da Fraternidade

Já há quase um mês, comentei aqui sobre a Campanha da Fraternidade. Volto ao assunto agora, que estamos em meados da Quaresma; vou tentar (reconhecendo de antemão a dificuldade da empreitada) ser o mais sincero possível e o mais condescendente possível.

Primeiro, uma retrospectiva: no site da CNBB tem os cartazes de todas as Campanhas da Fraternidade de todos os anos desde 1964. Clicando nas figuras, é possível ver o “objetivo geral” de cada um dos anos. Peguemos uma campanha ao acaso; digamos, 1984, que foi o ano em que eu nasci.

Lema: Comunicação para a verdade e a paz.

Objetivo Geral: Despertar a consciência crítica do receptor no uso da mídia, como atitude interior necessária para a comunicação da verdade e da paz. Quer também conscientizar os receptores sobre seu papel de agentes de influência na orientação de programas nos meios de comunicação.

Um ano é uma amostragem muito pequena. Peguemos ao acaso outro ano; à frente. Digamos, 1999, quinze anos depois.

Lema: Sem trabalho… Por quê?

Objetivo Geral:  Contribuir para que a comunidade eclesial e a sociedade se sensibilizem com a grave situação dos desempregados, conheçam as causas e as articulações que a geram e as conseqüências que dela decorrem;

Denunciar, conseqüentemente, modelos sócio-político-econômicos, tais como certas formas de neoliberalismo sem freios éticos, que causam desemprego quer estrutural quer não estrutural e, igualmente, impõem padrões de consumo insaciável e exacerbem a competição e o individualismo;

Anunciar uma sociedade baseada em novos paradigmas, onde a pessoa humana seja o centro, a vida não se subordine à lógica econômica idolátrica e o trabalho não se reduza à mera sobrevivência, mas promova a vida, em todas as suas dimensões;

Abrir, assim, perspectivas sobre novas relações e novas formas de trabalho prenunciadas para o Novo Milênio;

Incentivar amplo movimento de solidariedade para manter viva a esperança dos que enfrentam diretamente o problema do desemprego, promovendo iniciativas concretas de geração de trabalho e renda, no paradigma da solidariedade cristã;

Mobilizar a própria Igreja para se colocar mais ainda profeticamente a favor da justiça e da solidariedade, principalmente em relação aos desempregados e às desempregadas.

Ainda mais um exemplo; para trás, agora, do ano do meu nascimento. Fomos quinze anos para frente, vamos um pouco menos para trás: dez anos. 1974.

Lema: Onde está teu irmão?

Objetivo Geral:  A vida é o dom que mais fortemente ambicionamos e mais desesperadamente defendemos, a partir do próprio instinto de sobrevivência. A vida é o dom que mais devemos respeitar e promover em nossos irmãos.

Toma-se aqui a vida nos mais diversos níveis e circunstâncias: a vida da graça, a vida moral, a vida da honra, a vida do nascituro, a vida do enfermo e do velho, a vida do pobre e do faminto, a vida vítima de violência e injustiças… É este o dom que devemos construir, e em muitos casos, reconstruir como modernos samaritanos.

Está de bom tamanho. Agora, perguntemo-nos o que é a Quaresma. De acordo com o Catecismo Maior de São Pio X:

499) Para que fim foi instituída a Quaresma?
A Quaresma foi instituída a fim de imitarmos, de algum modo, o rigoroso jejum de quarenta dias que Jesus Cristo observou no deserto, e a fim de nos prepararmos, por meio da penitência, para celebrar santamente a festa da Páscoa.

Pois bem. Eu posso até conceder – embora particularmente seja de opinião frontalmente contrária – que haja alguma relevância n’alguns dos temas escolhidos pela CNBB para serem tratados na Campanha da Fraternidade (embora parte considerável deles seja simplesmente uma porcaria). No entanto, qualquer um há de convir que mesmo o melhor dos temas (da nossa amostragem acima, é de longe o de 1974, único a falar em “vida da graça”…) não nos ajuda (ao contrário, atrapalha) a “imitarmos, de algum modo, o rigoroso jejum de quarenta dias que Jesus Cristo observou no deserto, e (…) nos prepararmos, por meio da penitência, para celebrar santamente a festa da Páscoa”, que, afinal, são os motivos pelos quais foi instituída a Quaresma!

Isto é uma evidência impossível de ser negada: a Campanha da Fraternidade não ajuda nada, absolutamente nada, os católicos a viverem melhor a Quaresma. O problema não está somente nos temas (horríveis) algumas vezes escolhidos; afinal de contas, dêem uma olhada nos cartazes de todas as Campanhas da Fraternidade desde 1964 até o ano presente: qual a relação que existe entre qualquer uma delas e a Quaresma? No meio do lixo, há sem dúvidas temas que pode[ria]m ser bem explorados (como “A Família”, 1994; ou a própria “Fraternidade e Defesa da Vida”, do ano passado). No entanto, nenhum, nenhum deles, nem mesmo os melhores, tem relação direta com a Quaresma.

Onde está o tema “Jejum e Oração: únicos remédios para alguns pecados”? Ou o tema “Oração: alimento para alma”? Ou o tema “Penitência, penitência, penitência”? Ou o tema “Esmola, ato concreto de caridade cristã”? Não existe nada nem parecido com isso nos últimos [mais de] quarenta anos de Campanhas da Fraternidade! Portanto, mesmo quando os temas escolhidos pela CNBB são católicos (o que já é uma coisa rara) ou são catolicamente abordados (o que é tão raro que pode chegar a ser considerado um milagre), eles não são conexos com a Quaresma e, por conseguinte, não ajudam os católicos a viver bem este tempo litúrgico. Ao contrário, estas Campanhas da Fraternidade até atrapalham – por melhores que sejam elas, repito (coisa que, repito também, é muitíssimo rara) -, na medida em que dispersam os católicos, fazendo-os prestarem atenção em temas que não guardam relação direta com o tempo litúrgico no qual as campanhas estão inseridas. É preciso, portanto, afirmar claramente e com muita sinceridade: a Campanha da Fraternidade, atualmente, presta-se a impedir os católicos de viverem realmente a Quaresma. Esta é a verdade nua e crua.

Eu disse no início do artigo que ia ser condescendente; qual a única condescendência possível? Antes de qualquer coisa, parece-me óbvio que a Campanha da Fraternidade precisa urgentemente ser retirada da Quaresma. No entanto, eu concedo [como já disse, discordo, mas concedo] que, nas atuais conjunturas, alguns temas sociais possam ser objeto de alguma campanha da Igreja, contanto que (a) esta campanha não fale besteiras (como sói acontecer na Campanha da Fraternidade – à guisa de exemplo, veja-se este artigo sobre a atual campanha) e (b) ela seja colocada em algum outro período do ano que não a Quaresma (p. ex., como já ouvi sugestões de sacerdotes, um “mês temático” organizado em algum momento (distinto da Quaresma) do ano). Isso sim é possível: o que não dá para fazer é deixar as coisas como estão, porque está realmente insuportável.

Atualmente, estas Campanhas não passam de coisas das quais os verdadeiros católicos têm vergonha, que não servem à glória de Deus e nem tampouco à salvação das almas, que impedem os católicos de viverem a Quaresma. Isso precisa mudar. É pedir muito que as autoridades eclesiásticas do Brasil preocupem-se com as coisas de Deus? É pedir muito que possamos viver o tempo quaresmal de acordo com os motivos pelos quais a Igreja o instituiu? É pedir muito que não precisemos nos envergonhar das campanhas idealizadas por nossos bispos? É pedir muito que possamos ser católicos em paz… ?

Nota sobre Confissões Comunitárias

[Agradeço ao Fratres in Unum, onde encontrei o documento – que pode ser encontrado também no site da Diocese de Garanhuns – de Sua Excelência Reverendíssima Dom Fernando Guimarães, Bispo de Garanhuns (a cuja posse, aliás, estive presente no ano passado), proibindo a celebração das “confissões comunitárias” durante a Quaresma em sua diocese. Reproduzo-o com muita alegria aqui; os negritos são do original.

A questão reveste-se de particular importância porque é muito comum encontrar confissões comunitárias sendo celebradas fora das condições prescritas pelo Código de Direito Canônico e, faltando estas, a confissão celebrada é inválida e não apenas ilícita. O Sacramento da Confissão é um Sacramento que exige jurisdição da Igreja para que seja válido (não apenas para que seja lícito) e ninguém tem jurisdição – nem os bispos têm potestade para concedê-la – para dar uma absolvição comunitária válida fora das condições que a Igreja prescreve para tanto. Portanto – e isso precisa ser dito com clareza -, as confissões comunitárias que são indevidamente celebradas não são verdadeiros sacramentos, não conferem a Graça, não perdoam os pecados.]

NOTA SOBRE CONFISSÕES COMUNITÁRIAS

Aos Sacerdotes e Fiéis da Diocese de Garanhuns,

Saudações em Cristo Jesus.

No início da Quaresma, tempo de preparação espiritual para a Páscoa do Senhor, especialmente dedicado à penitência e à confissão de nossos pecados, desejo apresentar a todos as seguintes reflexões.

  1. A forma habitual da celebração do Sacramento da Reconciliação ou da Confissão, segundo as normas da Igreja, é a confissão sacramental, com acusação individual dos próprios pecados, seguida pela absolvição concedida pelo Sacerdote a cada pessoa que se confessa (cf. cânon 960). A absolvição coletiva só pode ser concedida, excepcionalmente, quando se realizam simultaneamente todas as condições previstas pelas normas canônicas, competindo ao Bispo julgar quando tal situação se configura (cf. cânon 961, §§ 1-2).
  2. Tanto o Servo de Deus Papa João Paulo II, como o atual Sumo Pontífice Bento XVI, têm insistido repetidas vezes acerca da importância da confissão individual na vida cristã, pedindo que se restabeleça a legítima norma litúrgica, onde se introduziram abusos.
  3. No uso das minhas atribuições episcopais, após considerar com atenção todas as circunstâncias e reconhecendo não existirem entre nós as condições previstas pelo Código de Direito Canônico, proíbo definitiva e peremptoriamente a celebração das assim chamadas “confissões comunitárias” no território da Diocese de Garanhuns.
  4. As Paróquias, segundo a disponibilidade dos Sacerdotes, estabeleçam horários fixos de atendimento de confissões, podendo as mesmas ser precedidas por uma preparação comunitária, à qual, porém, devem seguir necessariamente a confissão e a absolvição individuais.
  5. Nos tempos fortes do Ano Litúrgico (Advento e Quaresma), bem como nas proximidades das grandes festas, o Setor Pastoral organize os “mutirões” de confissão, concentrando os Padres da redondeza cada dia em uma Paróquia para atendimento das confissões, as quais podem seguir a modalidade indicada no número anterior.
  6. Os Párocos aproveitem o período da Quaresma para explicar bem aos fiéis a doutrina católica acerca do Sacramento da Confissão, de maneira que ele possa ser vivido de maneira sempre mais proveitosa.

Esta Nota seja lida em todas as Santas Missas dominicais dos dias 26 e 27 de Fevereiro próximo, Primeiro Domingo da Quaresma, e as disposições nelas contidas têm efeito imediato.

Garanhuns, na sede da Cúria Diocesana, aos 26 de Fevereiro de 2009

X Fernando Guimarães

Bispo Diocesano de Garanhuns

Sermão da Primeira Dominga da Quaresma

“Mostrou o demônio a Cristo todos os reinos do mundo e suas glórias; disse-lhe que tudo aquilo lhe daria de uma vez se lhe dobrasse o joelho. Parece que faz estremecer a grandeza desta tentação! Mas o demônio é o que havia de tremer dela. Desarmou-se a si e armou-nos a nós. Tu, demônio, ofereces-me de um lanço todo o mundo, para que caia, para que peque, para que te dê a minha alma: logo a minha alma, por confissão tua, vale mais que todo o mundo. A minha alma vale mais que todo o mundo? Pois não te quero dar o que vale mais pelo que vale menos: Vade retro! Pode-nos o demônio dar ou prometer alguma coisa que não seja menos que o mundo? Claro está que não! Pois aqui se desarmou para sempre; nesta tentação perdeu todas, se nós não temos perdido o juízo”.

Padre António Vieira,
“Sermão da Primeira Dominga da Quaresma”
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“A coroa de espinhos” – Meditação de Santo Tomás de Aquino

[Fonte: Permanência]

A COROA DE ESPINHOS

6a. feira depois das Cinzas

«Saí, filhas de Sião, e vêde o rei Salomão com o diadema de que sua mãe o coroou no dia do seu casamento e no dia do júbilo do seu coração» (Ct 3, 11)

É a voz da Igreja que convida as almas dos fiéis a contemplar quão admirável e belo é seu Esposo. Pois as filhas de Sião são iguais às filhas de Jerusalém, almas santas, habitantes do Reino de Deus, que gozam, com os anjos, da paz perpétua e da contemplação da glória do Senhor.

I. — Saí, ou seja, deixai a vida turbulenta deste mundo, para que, com o espírito livre, possais contemplar aquele a quem amais. E vêde o rei Salomão, isto é, o verdadeiro e pacífico Cristo. Com o diadema de que sua mãe o coroou; que é como se dissesse: considerai o Cristo, que, por nós, se fez carne, que tomou a carne da carne de sua Virgem Mãe. O diadema é sua carne, carne que tomou por nós, carne na qual morreu, destruindo o império da morte; carne na qual ressuscitou, deixando-nos a esperança da ressurreição.

Deste diadema, diz o Apóstolo (Heb 2, 9): « Mas aquele Jesus, que por um pouco foi feito inferior aos anjos, nós o vemos, pela paixão da morte, coroado de glória e de honra ». Diz-se que sua mãe o coroou, pois a Virgem Maria deu-lhe a carne de sua carne.

No dia do seu casamento, isto é, no tempo de sua Encarnação, quando a si uniu a Igreja, sem mácula nem ruga; ou quando Deus uniu-se ao homem. No dia do júbilo do seu coração. A alegria e o júbilo de Cristo é a salvação e a redenção do gênero humano; « e, indo para casa, chama os seus amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Congratulai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha » (Lc 15, 6).

II. — Pode-se, também, aplicar tudo isso à Paixão de Cristo, segundo a letra. Com efeito, Salomão, prevendo em espírito a Paixão de Cristo muito antes, adverte as filhas de Sião, isto é, o povo Israelita: Saí, filhas de Sião, e vede o rei Salomão, isto é, o Cristo; com o diadema, ou a coroa de espinhos, que sua mãe, a sinagoga, o coroou no dia do seu casamento, quando a si uniu a Igreja, e no dia do júbilo do seu coração, quando rejubilou-se por ter, por sua Paixão, redimido o mundo do poder do inferno.

Saí, portanto, e deixai as trevas da infidelidade, e vede, isto é, compreendei que aquele que sofre como homem, é Deus verdadeiramente. Ou ainda: saí para fora de sua cidade para o verdes, crucificado, sobre o monte Calvário.

Expositio in Canticum canticorum, III

Mais sugestões de leituras diversas

– Não lembro (perdoem-me a minha amnésia pós-carnaval) se já linkei isto aqui antes, mas este texto de um jornal português sobre “Excomunhão e Tolerância” ilustra bem o que se pode falar sobre o caso Williamson. Muitíssimo feliz o autor na forma utilizada para criticar a censura anti-qualquer-coisa-referente-ao-Holocausto:

Num mundo que gosta de se anunciar sem preconceitos e repudia a censura, existe um bloqueio drástico sobre o Holocausto. Comentar o horror nazi não pode ser feito fora da versão oficial. São admitidas todas as opiniões, menos essa. O pior é a forma inquisitorial, fanática e abespinhada com que o assunto é enfrentado. Quem nega as câmaras de gás deveria ser tratado com um sorriso pela ignorância e uma gargalhada pela tolice. Hoje o disparate é tanto que não merece mais. Em vez disso todos estes democratas e republicanos, supostamente tolerantes, condenam da forma mais persecutória o Papa por ele terminado o castigo canónico. Parece que Williamson devia ser excomungado de novo, agora não por insubordinação mas por opinião histórica. E Bento XVI também, mesmo não concordando com ele.

– Dois textos do Heitor de Paola sobre o aborto: “Alguns mitos e fatos científicos no debate sobre o aborto” e “Quando começa a vida”. Excelentes, porque argumentam sob uma ótica estritamente científica, evitando ao máximo (julgo eu, propositalmente) qualquer referência ética ou religiosa a fim de que o discurso seja assimilável por qualquer um e se evitem as cretinas acusações de “ingerência religiosa” e “estado laico” e blá-blá-blá. Do segundo:

[É] inevitável concluir que o aborto é uma espécie de homicídio, ou filicídio, de um ser já com individualidade que tem, in potentia, todas as condições de se desenvolver plenamente. Qualquer decisão, seja pessoal, seja jurídica, não deve evitar este conhecimento.

– Mais do Krause: uma tréplica ao artigo de Lucas Camarotti, no Jus Navigandi. A tréplica chama-se Laicismo antimetafísico e o colapso do Ocidente. O cara é muito bom! Excerto:

Tal conceito [de “laicidade ateu e materialista”], além de insustentável do ponto de vista lógico, é propugnado por uma fragorosa minoria, ainda que influente na sociedade. Nele, vislumbra-se a aversão às religiões positivas e a aversão à metafísica, tão cara aos grandes filósofos gregos. Por melhor que seja Richard Rorty, estou certo de que, diante de Aristóteles, que tanto se preocupou com a “filosofia primeira”, posteriormente denominada “metafísica”, ele é um menino de colo.

– O Gustavo teceu uns comentários sobre o III Fórum Mundial de Teologia e Libertação. A matéria completa está lá (para quem tiver estômago); os comentários sensatos do meu amigo, intercalados ao longo do texto, ajudam a torná-lo menos indigesto.

Querer “desenvolver” (isto é: inventar) uma teologia que sirva às nossas pretensões é desonestidade. É como iniciar uma pesquisa científica com uma conclusão pré-fabricada; é ir a campo querendo apenas coletar dados que corroborem o resultado que se quer obter

– O Marcio colocou no Tubo de Ensaio um texto longo, mas que vale muitíssimo a pena, sobre a controvérsia na qual esteve envolvido Galileo; trata-se de uma resenha de um livro publicado recentemente no Brasil pela Loyola. Recomendo fortemente, por ser um compêndio bem interessante e completo (tanto quanto é possível) sobre o assunto.

O tempo mostrou que Galileu tinha razão – mas as descobertas recentes sobre seu processo desmentem vários mitos e mostram que é impossível dividir os personagens do episódio em mocinhos e bandidos. Então, por que ainda hoje existem pessoas (inclusive professores) que continuam a afirmar coisas como “Galileu foi morto na fogueira”? “Quem tem algum preconceito contra a Igreja vai perpetuar os mitos porque sequer vai procurar conhecer os fatos, ou os argumentos contrários. Enquanto o mundo for mundo, essa postura permanecerá”, avalia dom Sérgio.

Mensagem de Quaresma – Bento XVI

[Quarta-Feira de Cinzas, abrindo a Quaresma. Para fins de registro, trago a – já deve ter sido lida por vocês – mensagem de Sua Santidade o Papa Bento XVI para a Quaresma de 2009. Nestes dias em que caminhamos para as comemorações da Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor, que a Virgem Santíssima nos conceda a graça de nos prepararmos bem para a Semana Santa.

“Memento, homo, quia pulvis es…” – lembra-te, ó homem, de que és pó… – Se és pó, por que te há de incomodar que te pisem? (Sulco, 281)]

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MENSAGEM DE SUA SANTIDADE
O PAPA BENTO XVI
PARA A QUARESMA DE 2009

“Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e,
por fim, teve fome”
(Mt
4, 1-2)

Queridos irmãos e irmãs!

No início da Quaresma, que constitui um caminho de treino espiritual mais intenso, a Liturgia propõe-nos três práticas penitenciais muito queridas à tradição bíblica e cristã – a oração, a esmola, o jejum – a fim de nos predispormos para celebrar melhor a Páscoa e deste modo fazer experiência do poder de Deus que, como ouviremos na Vigília pascal, «derrota o mal, lava as culpas, restitui a inocência aos pecadores, a alegria aos aflitos. Dissipa o ódio, domina a insensibilidade dos poderosos, promove a concórdia e a paz» (Hino pascal). Na habitual Mensagem quaresmal, gostaria de reflectir este ano em particular sobre o valor e o sentido do jejum. De facto a Quaresma traz à mente os quarenta dias de jejum vividos pelo Senhor no deserto antes de empreender a sua missão pública. Lemos no Evangelho: «O Espírito conduziu Jesus ao deserto a fim de ser tentado pelo demónio. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome» (Mt 4, 1-2). Como Moisés antes de receber as Tábuas da Lei (cf. Êx 34, 28), como Elias antes de encontrar o Senhor no monte Oreb (cf. 1 Rs 19, 8), assim Jesus rezando e jejuando se preparou para a sua missão, cujo início foi um duro confronto com o tentador.

Podemos perguntar que valor e que sentido tem para nós, cristãos, privar-nos de algo que seria em si bom e útil para o nosso sustento. As Sagradas Escrituras e toda a tradição cristã ensinam que o jejum é de grande ajuda para evitar o pecado e tudo o que a ele induz. Por isto, na história da salvação é frequente o convite a jejuar. Já nas primeiras páginas da Sagrada Escritura o Senhor comanda que o homem se abstenha de comer o fruto proibido: «Podes comer o fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás» (Gn 2, 16-17). Comentando a ordem divina, São Basílio observa que «o jejum foi ordenado no Paraíso», e «o primeiro mandamento neste sentido foi dado a Adão». Portanto, ele conclui: «O “não comas” e, portanto, a lei do jejum e da abstinência» (cf. Sermo de jejunio: PG 31, 163, 98). Dado que todos estamos estorpecidos pelo pecado e pelas suas consequências, o jejum é-nos oferecido como um meio para restabelecer a amizade com o Senhor. Assim fez Esdras antes da viagem de regresso do exílio à Terra Prometida, convidando o povo reunido a jejuar «para nos humilhar – diz – diante do nosso Deus» (8, 21). O Omnipotente ouviu a sua prece e garantiu os seus favores e a sua protecção. O mesmo fizeram os habitantes de Ninive que, sensíveis ao apelo de Jonas ao arrependimento, proclamaram, como testemunho da sua sinceridade, um jejum dizendo: «Quem sabe se Deus não Se arrependerá, e acalmará o ardor da Sua ira, de modo que não pereçamos?» (3, 9). Também então Deus viu as suas obras e os poupou.

No Novo Testamento, Jesus ressalta a razão profunda do jejum, condenando a atitude dos fariseus, os quais observaram escrupulosamente as prescrições impostas pela lei, mas o seu coração estava distante de Deus. O verdadeiro jejum, repete também noutras partes o Mestre divino, é antes cumprir a vontade do Pai celeste, o qual «vê no oculto, recompensar-te-á» (Mt 6, 18). Ele próprio dá o exemplo respondendo a satanás, no final dos 40 dias transcorridos no deserto, que «nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt 4, 4). O verdadeiro jejum finaliza-se portanto a comer o «verdadeiro alimento», que é fazer a vontade do Pai (cf. Jo 4, 34). Portanto, se Adão desobedeceu ao mandamento do Senhor «de não comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal», com o jejum o crente deseja submeter-se humildemente a Deus, confiando na sua bondade e misericórdia.

Encontramos a prática do jejum muito presente na primeira comunidade cristã (cf. Act 13, 3; 14, 22; 27, 21; 2 Cor 6, 5). Também os Padres da Igreja falam da força do jejum, capaz de impedir o pecado, de reprimir os desejos do «velho Adão», e de abrir no coração do crente o caminho para Deus. O jejum é também uma prática frequente e recomendada pelos santos de todas as épocas. Escreve São Pedro Crisólogo: «O jejum é a alma da oração e a misericórdia é a vida do jejum, portanto quem reza jejue. Quem jejua tenha misericórdia. Quem, ao pedir, deseja ser atendido, atenda quem a ele se dirige. Quem quer encontrar aberto em seu benefício o coração de Deus não feche o seu a quem o suplica» (Sermo 43; PL 52, 320.332).

Nos nossos dias, a prática do jejum  parece ter perdido um pouco do seu valor espiritual e ter adquirido antes, numa cultura marcada pela busca da satisfação material, o valor de uma medida terapêutica para a cura do próprio corpo. Jejuar sem dúvida é bom para o bem-estar, mas para os crentes é em primeiro lugar uma «terapia» para curar tudo o que os impede de se conformarem com a vontade de Deus. Na Constituição apostólica Paenitemini de 1966, o Servo de Deus Paulo VI reconhecia a necessidade de colocar o jejum no contexto da chamada de cada cristão a «não viver mais para si mesmo, mas para aquele que o amou e se entregou a si por ele, e… também a viver pelos irmãos» (Cf. Cap. I). A Quaresma poderia ser uma ocasião oportuna para retomar as normas contidas na citada Constituição apostólica, valorizando o significado autêntico e perene desta antiga prática penitencial, que pode ajudar-nos a mortificar o nosso egoísmo e a abrir o coração ao amor de Deus e do próximo, primeiro e máximo mandamento da nova Lei e compêndio de todo o Evangelho (cf. Mt 22, 34-40).

A prática fiel do jejum contribui ainda para conferir unidade à pessoa, corpo e alma, ajudando-a a evitar o pecado e a crescer na intimidade com o Senhor. Santo Agostinho, que conhecia bem as próprias inclinações negativas e as definia «nó complicado e emaranhado» (Confissões, II, 10.18), no seu tratado A utilidade do jejum, escrevia: «Certamente é um suplício que me inflijo, mas para que Ele me perdoe; castigo-me por mim mesmo para que Ele me ajude, para aprazer aos seus olhos, para alcançar o agrado da sua doçura» (Sermo 400, 3, 3: PL 40, 708). Privar-se do sustento material que alimenta o corpo facilita uma ulterior disposição para ouvir Cristo e para se alimentar da sua palavra de salvação. Com o jejum e com a oração permitimos que Ele venha saciar a fome mais profunda que vivemos no nosso íntimo: a fome e a sede de Deus.

Ao mesmo tempo, o jejum ajuda-nos a tomar consciência da situação na qual vivem tantos irmãos nossos. Na sua Primeira Carta São João admoesta: «Aquele que tiver bens deste mundo e vir o seu irmão sofrer necessidade, mas lhe fechar o seu coração, como estará nele o amor de Deus?» (3, 17). Jejuar voluntariamente ajuda-nos a cultivar o estilo do Bom Samaritano, que se inclina e socorre o irmão que sofre (cf. Enc. Deus caritas est, 15). Escolhendo livremente privar-nos de algo para ajudar os outros, mostramos concretamente que o próximo em dificuldade não nos é indiferente. Precisamente para manter viva esta atitude de acolhimento e de atenção para com os irmãos, encorajo as paróquias e todas as outras comunidades a intensificar na Quaresma a prática do jejum pessoal e comunitário, cultivando de igual modo a escuta da Palavra de Deus, a oração e a esmola. Foi este, desde o início o estilo da comunidade cristã, na qual eram feitas colectas especiais (cf. 2 Cor 8-9; Rm 15, 25-27), e os irmãos eram convidados a dar aos pobres quanto, graças ao jejum, tinham poupado (cf. Didascalia Ap., V, 20, 18). Também hoje esta prática deve ser redescoberta e encorajada, sobretudo durante o tempo litúrgico quaresmal.

De quanto disse sobressai com grande clareza que o jejum representa uma prática ascética importante, uma arma espiritual para lutar contra qualquer eventual apego desordenado a nós mesmos. Privar-se voluntariamente do prazer dos alimentos e de outros bens materiais, ajuda o discípulo de Cristo a controlar os apetites da natureza fragilizada pela culpa da origem, cujos efeitos negativos atingem toda a personalidade humana. Exorta oportunamente um antigo hino litúrgico quaresmal: «Utamur ergo parcius, / verbis, cibis et potibus, / somno, iocis et arcitius / perstemus in custodia – Usemos de modo mais sóbrio palavras, alimentos, bebidas, sono e jogos, e permaneçamos mais atentamente vigilantes».

Queridos irmãos e irmãos, considerando bem, o jejum tem como sua finalidade última ajudar cada um de nós, como escrevia o Servo de Deus Papa João Paulo II, a fazer dom total de si a Deus (cf. Enc. Veritatis splendor, 21). A Quaresma seja portanto valorizada em cada família e em cada comunidade cristã para afastar tudo o que distrai o espírito e para intensificar o que alimenta a alma abrindo-a ao amor de Deus e do próximo. Penso em particular num maior compromisso na oração, na lectio divina, no recurso ao Sacramento da Reconciliação e na participação activa na Eucaristia, sobretudo na Santa Missa dominical. Com esta disposição interior entremos no clima penitencial da Quaresma. Acompanhe-nos a Bem-Aventurada Virgem Maria, Causa nostrae laetitiae, e ampare-nos no esforço de libertar o nosso coração da escravidão do pecado para o tornar cada vez mais «tabernáculo vivo de Deus». Com estes votos, ao garantir a minha oração para que cada crente e comunidade eclesial percorra um proveitoso itinerário quaresmal, concedo de coração a todos a Bênção Apostólica.

Vaticano, 11 de Dezembro de 2008.

BENEDICTUS PP. XVI

24 – Simone Weil

24 frases de Simone Weil. Não a conhecia; sei que é escritora francesa, filha de “judeus não-praticantes”, agnóstica na infância, religiosa no final da vida (embora não católica). Encontrei a seguinte frase como de sua autoria: “Eu não sou católica; mas considero a idéia cristã, que tem suas raízes no pensamento grego e no curso de séculos tem alimentado todas as nossas civilizações européias, como algo ao qual não se pode renunciar sem se tornar degradado”.

As frases a seguir foram retiradas deste original inglês e traduzidas pelo prof. Carlos Ramalhete; são em número de 24, uma para cada hora do dia, das 00:00 às 23:00. A despeito do comentário feito por um amigo, segundo o qual a primeira frase tem teor gnóstico, publico por três motivos; primeiro, porque no geral o conteúdo das frases é muito bom, segundo porque o deslize doutrinário da primeira frase pode-se justificar pelo fato de não ser católica a autora e, terceiro, porque é possível encontrar um sentido não-gnóstico na frase: afinal, em certo sentido, é bem verdade que as coisas visíveis escondem as invisíveis…

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24 frases de Simone Weil

1. Deus só pôde criar escondendo-Se. De outro modo, só haveria Ele.

2. Uma ciência que não nos aproxima de Deus de nada vale.

3. Uma doutrina não serve para nada por si só, mas é indispensável se não quisermos ser enganados por falsas doutrinas.

4. Um ato cruel é a transferência a outros da degradação que trazemos em nós mesmos.

5. Uma mente fechada na linguagem está presa.

6. Todos os pecados são tentativas de preencher vazios.

7. A beleza sempre promete, mas nunca dá nada.

8. O mal, quando estamos em seu poder, não é percebido como mal, mas como necessidade, ou até dever.

9. Quando dois seres que não são amigos estão perto um do outro não há encontro, e quando amigos estão distantes não há separação.

10. O poder é tão impiedoso para com quem o tem, ou crê tê-lo, quanto para com suas vítimas; estas ele esmaga, aquele ele intoxica. Na verdade, ninguém o tem.

11. O humanismo não estava errado ao pensar que a verdade, a beleza, a liberdade e a igualdade tem valor infinito, mas ao pensar que o homem pode obtê-los para si sem a graça.

12. Lutando contra a angústia, nunca se produz serenidade; a luta contra a angústia produz apenas novas formas de angústia.

13. Nada pode ter como destino algo diverso da sua origem. A ideia contrária, a ideia de progresso, é um veneno.

14. A genialidade verdadeira nada mais é que a virtude sobrenatural da humildade no campo do pensamento.

15. A forma contenpoânea da grandeza verdadeira é baseada em uma civilização estabelecida sobre a estpiritualidade do trabalho.

16. A destruição do passado talvez seja o maior de todos os crimes.

17. O mais alto êxtase é a mais completa atenção.

18. Há uma, e só uma, coisa na sociedade moderna que é mais hedionda que o próprio crime, e é a justiça repressiva.

19. Para ser um herói ou heroína, é preciso dar uma ordem a si mesmo.

20. Estar enraizado talvez seja a necessidade mais importante e menos reconhecida da alma humana.

21. Colocar como padrão de moralidade pública uma noção que não pode ser definida ou concebida é abrir as portas a todo tipo de tirania.

22. O que um país chama de interesses vitais não é o que ajuda seu povo a viver, mas o que o ajuda a guerrear.

23. Menosprezar a inteligência é degradar o ser humano por inteiro.

24. A partir do momento em que um certo tipo de gente foi colocado pelas autoridades temporais e espirituais fora do rol daqueles cuja vida tem valor, nada é mais natural ao homem que o assassinato.