Os burros, os mal-intencionados e os convertidos à Fé Católica

Um leitor do blog perguntou aqui se o fato de ele não alcançar a verdade histórica do Cristianismo fazia com que ele não fosse «uma pessoa honesta». A pergunta é excelente porque reflete um equívoco infelizmente comum aos dois lados da relação, tanto religiosos como descrentes.

Como todo grande equívoco, ele radica em uma grande verdade: neste caso, que o ser humano é capaz de Deus. Afinal, o Todo-Poderoso, Ser Perfeitíssimo, simplesmente não poderia exigir das Suas criaturas o culto a Ele se o próprio conhecimento deste culto e desta necessidade lhes fosse de todo impossível. Seria uma incoerência atroz. Uma vez que os homens precisam da Fé para se salvarem, uma vez que a Fé é por definição um ato livre — a Fé é essencialmente aquele ato de vontade mediante o qual a inteligência movida pela graça aquiesce às verdades reveladas — e uma vez que a responsabilização pelos próprios atos pressupõe e exige a liberdade de agir ou deixar de agir, a conclusão de que o homem tem que rejeitar a Fé para se condenar impõe-se de modo bastante consistente a quem considera todas essas coisas.

Ora, o ato de Fé é um ato complexo, uma vez que envolve as duas potências da alma humana: envolve a inteligência, que apreende a verdade da Fé, e envolve a vontade, que livremente dá crédito — acredita — a esta verdade. Parece, portanto, que para rejeitá-la é preciso vulnerar a vontade, a inteligência ou ambas.

Acontece que ninguém rejeita verdadeiramente aquilo que não leva a sério: é uma queixa bastante feita pelos incrédulos. Do homem médio contemporâneo não se pode propriamente dizer que ele rejeite, digamos, a existência de duendes ou do Saci-Pererê. Essas coisas não entram no seu universo de conhecimento como se fossem coisas reais, mas ao contrário: carregam inerentemente a nota da fantasia e do lendário. Não existe, aqui, um juízo valorativo a respeito da veracidade ou falsidade da informação: o próprio conhecimento é já apreendido com a sua nota de “fantasioso”, “mítico”, “não-verdadeiro”. E é sob esta clave que alguns ateus, segundo dizem, enxergam o Deus Todo-Poderoso.

Ora, eu naturalmente concedo que algumas pessoas possam imaginar o Criador nestes termos; concedo até que, em alguns casos, elas o façam sem malícia. O que não dá para conceder, de maneira alguma, é que tenham alguma razão nesta idéia. E é aqui que entra a história do burro ou do mal-intencionado: semelhante compreensão é tão estapafúrdia, tão distante da realidade, tão incompatível com o que ensina quer a teologia natural, quer as doutrinas religiosas, que aderir a ela — parece — só é possível se o fulano for muito burro ou estiver com muita má vontade.

Contudo, isto é um reducionismo que se deve evitar, tanto porque é impreciso (pelas razões que serão expostas mais embaixo) quanto porque é contraproducente (por razões óbvias: a pessoa apodada de burra ou mal-intencionada não costuma se mostrar muito receptiva a ouvir o que o seu interlocutor tem a dizer). É sim verdade que a Fé Católica, como ato para cuja concretização convergem a inteligência e a vontade, é alcançável a todo ser humano que esteja com as adequadas disposições intelectuais e volitivas. Contudo — e aqui está a raiz do problema –, nem toda dificuldade intelectual é sinônimo de burrice e nem todo problema da vontade significa que o sujeito está mal-intencionado.

O pe. Leonel Franca tem um excelente livro sobre o assunto (“A psicologia da Fé”), onde ele disserta sobre o que a Doutrina Católica convencionou chamar de praeambula fidei — que são aqueles assuntos alcançáveis à inteligência natural e reconhecíveis por todos os seres humanos, independente de eles terem Fé ou não, e que distingue completamente o Deus Todo-Poderoso do Saci-Pererê acima referido. Afirma o prelado que os obstáculos à Fé são de duas naturezas: de ordem intelectual e de ordem moral, i.e., respectivamente da ordem do conhecimento e da ordem da vontade. E compreender as coisas sob esta ótica muda radicalmente o assunto.

A questão não é meramente de nomenclatura: burrice e má intenção são substantivos de conotação pejorativa e, mais do que isso!, que implicam num certo juízo de censura sobre quem detém essas características. No caso da burrice talvez não se o perceba tanto, mas no da intenção má esta característica é evidente: o sujeito que está mal-intencionado é pessoalmente responsável pela prática deliberada de um ato reprovável. Já um obstáculo não é assim: aqui o termo é mais neutro, e a diferença terminológica reflete uma diferença de realidade muito importante. A pessoa pode fingir que não entende o Cristianismo, sim, mas essa não é a única fonte possível da incredulidade. Um sujeito pode deter muito honestamente uma gama de conhecimentos equivocados, e pode fazê-lo com bem pouca (ou até mesmo nenhuma) culpa própria particular. Pode, por conta disso, levar um determinado estilo de vida — as coisas que nós fazemos são condicionadas por aquelas nas quais acreditamos — incompatível com as exigências da Fé, e o primeiro impulso de preservar sua visão de mundo particular é perfeitamente humano e saudável. Tudo isso são obstáculos à crença; nem tudo é igualmente reprovável; e decerto os modos de superar os diversos obstáculos à Fé são bastante diferentes entre si.

Em suma, nem todo não-católico é pessoalmente desonesto. Pode acontecer — e ouso imaginar que é esta a maior parte dos casos — de ele partir de premissas incompatíveis com as do Catolicismo e, mediante métodos de inferência perfeitamente honestos, chegar a conclusões incompatíveis com as da Igreja. Obviamente, há premissas corretas e premissas equivocadas; mas a questão da veracidade ou falsidade dos pressupostos básicos de nossas visões de mundo é um pouco mais complicada do que o reducionismo “você é burro ou mal-intencionado” induz a acreditar. Sim, todo ser humano é chamado por Deus à Fé Católica, e é portanto capaz de responder-Lhe; sim, aquilo que impede o ser humano de oferecer ao Deus Onipotente o seu obséquio da inteligência e da vontade que caracteriza o ato de fé é um obstáculo, quer intelectual, quer moral; sim, o nosso papel deve ser, sempre!, o de fazer o que estiver a nosso alcance para retirar as barreiras que impedem os nossos próximos de viver a liberdade dos filhos de Deus. Mas não é possível subsumir igualmente toda descrença à deficiência mental de quem é um completo parvo ou à perversidade moral de quem se recusa a aceitar o que sabe ser verdadeiro. O papel de todo cristão, repita-se, é levar todas as almas à Fé. E, para fazê-lo, é fundamental que as coisas sejam compreendidas e apresentadas como de fato são — sem reducionismos fáceis, nem maniqueísmos cômodos.

Deus e o ônus da prova

Um leitor do blog afirma que reclamar provas da inexistência de Deus é “inversão do ônus da prova” e “desonestidade intelectual”. O raciocínio dele, imagino, é que compete a quem faz uma alegação oferecer os fundamentos nos quais tal alegação se baseia: portanto, não é verdade que a crença ateísta e a Fé em Deus estejam no mesmo patamar epistemológico, quando menos porque uma das duas proposições detém um ônus que a outra não possui. Ora, esta pretensão não tem sentido, pelos motivos que passo a expôr.

Em primeiro lugar, cabe apontar que isto aqui não é uma lide jurídica, onde o Magistrado deve distribuir os encargos probatórios entre as partes e julgar desfavoravelmente àquela que não se desincumbir do ônus da prova. O Direito é eficiente para a solução de conflitos jurídicos, mas o seu método não deve ser aplicado indistintamente a tudo quanto existe no mundo. Em particular, aliás, é importante ter em vista que uma coisa não se torna “falsa” porque o seu patrono não a conseguiu provar em juízo: é perfeitamente possível que alguém não se desincumba do ônus da prova e, mesmo assim, factualmente, a sua alegação seja integralmente verdadeira. Nos termos mais genéricos que se já tornaram clássicos: ausência de evidência não é evidência de ausência. A frase, a propósito, é de Carl Sagan, que não é propriamente um fanático religioso.

Em segundo lugar, existem incontáveis provas da existência de Deus: o problema é que a crença irreligiosa as rejeita por princípio! Os maiores pensadores da humanidade, desde que o mundo é mundo, sempre se esmeraram por elaborar provas de que Deus existe. Há-as aos borbotões. Aristóteles universalizou o conceito de Primeiro Motor Imóvel. Duns Scotus abordou o problema em diversos lugares de sua obra. Santo Agostinho também esboçou a sua prova da existência de Deus n’O Livre Arbítrio. Santo Tomás de Aquino tem as clássicas Cinco Vias (em vídeo aqui). Santo Anselmo tem o argumento ontológico e, Leibniz, o cosmológico. Descartes escreveu as suas Meditações Metafísicas com o mesmo intuito. Enfim, para onde quer que olhemos, deparamo-nos sempre com o engenho humano que, nos mais arrojados vôos do intelecto, no ápice do pensamento de cada época, esforça-se por fazer teologia natural.

O problema, portanto, não é que os crentes em Deus se eximem de apresentar aos céticos as “razões de sua esperança”. O problema é que a cosmologia cética rejeita a priori tudo aquilo que seja com ela incompatível — e nisso ela é indistinguível de qualquer outra religião. A crença atéia não admite a investigação metafísica, e isso não porque falte à metafísica rigor metodológico ou envergadura intelectual, mas simplesmente porque a metafísica é, em princípio, incompatível com a crença atéia. Nisso os seus adeptos reproduzem perfeitamente a caricatura que de modo brilhante lhes fez Chesterton:

A questão histórica contra os milagres é muito simples. Ela consiste em considerar os milagres impossíveis, e então afirmar que apenas um idiota acredita em impossibilidades: então declarar que não há nenhuma clara evidência a favor dos fatos miraculosos. Todo o truque é feito por meio do uso alternado da objeção filosófica e da objeção histórica. Se dizemos que os milagres são teoricamente possíveis, eles dizem: “Sim, mas não há evidência deles.” Quando coletamos todos os registros da raça humana e dizemos “Eis nossa evidência”, eles dizem: “Mas esses povos eram supersticiosos, eles acreditavam em coisas impossíveis.” (Chesterton, G. K. Milagres e a Moderna Civilização).

Finalmente, em terceiro — e mais importante — lugar, se é no geral verdade que o ônus da prova cabe a quem afirma, este princípio comporta algumas importantes exceções. Uma coisa é a alegação isolada e extravagante de Sagan de que há, em sua garagem, um dragão invisível. Uma outra coisa, completamente diferente, é a convicção universal — de virtualmente todos os homens, de todos os tempos e lugares, povos e culturas — de que existe um (ou mais) Deus(es) a responder pela Criação. As duas coisas não estão, absolutamente!, no mesmo patamar epistemológico; e quem ainda não entendeu isso precisa, urgentemente, pôr a cabeça para fora da seita atéia onde anda enfurnado e cogitar ao menos a possibilidade de que exista vida inteligente fora dos seus estreitos círculos de referência intelectual.

Para explicar como pode ser falsa uma alegação extravagante de um indivíduo isolado — como o dragão de Carl Sagan ou o bule de chá de Bertrand Russell –, basta classificar o seu propagador de louco, ou de ignorante ou de mentiroso, e não há nenhum problema com isso. É perfeitamente razoável que um único indivíduo se engane, ou que tenha a intenção de enganar terceiros, ou que detenha alguma deficiência dos sentidos ou do intelecto que lhe faça acreditar em coisas que não são verdadeiras. No entanto, uma alegação feita unanimemente por um número incontável de pessoas, das mais diversas classes sociais, das culturas as mais díspares, dos hábitos o mais incompatíveis possível, uma alegação, em suma, para a qual convergem, independentes entre si, «tantos povos distantes no tempo e no espaço» exige uma explicação mais convincente do que “essa gente era supersticiosa”. O erro de um único indivíduo é uma coisa perfeitamente natural, prosaica até, e que se aceita sem maiores dificuldades; o erro universal, no entanto, no qual teimam em incorrer os seres humanos mais diferentes do mundo, é uma coisa verdadeiramente extraordinária. E alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias. Quem afirma, portanto, que estavam — e estão — erradas multidões inumeráveis de seres humanos, dos mais simplórios às mentes mais extraordinárias, dos humildes aos poderosos, detém, sim, o ônus de provar esta alegação extravagante. É óbvio que detém, e não se pode considerar irrefutavelmente demonstrada a sua tese por meio de um lacônico “ah, essa gente é ignorante” que raia a puerilidade.

E os grandes expoentes do ateísmo sabem perfeitamente que o precisam demonstrar. Tentam-no. Que outra coisa é o Blind Watchmaker de Dawkins senão uma hipótese metafísica alternativa à Quinta Via tomista? Em quê as diatribes lançadas por Christopher Hitchens às religiões no seu “Deus não é grande” são diferentes da apologética religiosa tradicional que almeja apresentar a própria visão de mundo superior às demais? As contrarrazões que Dawkins — ainda ele — tenta apresentar à teologia natural no seu “Deus, um delírio”, não são porventura o reconhecimento simultâneo tanto de que os crentes têm historicamente apresentado evidências que dão suporte às suas crenças quanto de que os incrédulos precisam, igualmente, demonstrar o seu ponto de vista?

A cosmologia incrédula é, ela própria, uma alegação, e precisa portanto ser demonstrada. É uma alegação, aliás, extraordinária — como pode a noção da existência de Deus se ter generalizado, espontânea e independentemente, por toda a humanidade? Como pode a admirável ordem do Universo ter surgido ao acaso de todas as infinitas possibilidades de configurações da existência? Por que existe algo e não o nada? Como podem existir e continuar existindo coisas que não têm em si mesmas a razão da própria existência? — e que por conseguinte demanda evidências extraordinárias em seu favor. É louvável que os partidários do ateísmo busquem argumentar em defesa de suas crenças. Mas não se pode pacificamente pretender que tenham já logrado êxito em provar as suas alegações com o rigor que o assunto exige. Merecem, sim, um lugar no panteão da humanidade; imaginar que lhes caiba mais do que um nicho neste templo, no entanto, e pretender impô-lo a todos, aí já é fanatismo delirante, que é dever civilizacional combater.

Campanha para o lançamento do livro “Jesus Cristo: Rei do Universo”

O Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo é uma dos temas mais pungentes — na minha opinião — do momento histórico que nós vivemos. E isto por uma dupla razão: por um lado, porque o fato de Cristo ser Rei do Universo inteiro é um dado da Doutrina que somente a muito esforço é possível obscurecer. Por outro, porque, paradoxalmente, a necessidade de que Cristo reine também no mundo social é um assunto sobre o qual muito pouco se fala atualmente, mesmo dentro de ambientes católicos.

“Toda autoridade me foi dada no céu e na terra”, disse Nosso Senhor antes de subir aos céus (Mt 28, 18). Contorcionismos interpretativos à parte, o fato é que “toda autoridade” — omnis potestas — não pode significar outra coisa que todo poder, i.e., toda função de governo, comando, cujo exercício é necessário à manutenção da ordem no mundo criado; e isto em qualquer esfera. Porque o pronome “todo”, quer signifique “qualquer um”, quer signifique “por inteiro”, contém inafastável de si a idéia de totalidade, completude, plenitude; é dizer, não há autoridade terrena que não tenha sido dada a Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. E, se Ele detém toda autoridade, é um ultraje e um acinte que o governo do mundo seja exercido de modo indiferente — contrário até! — aos preceitos do Evangelho. Pior: é uma impiedade que tal se trate com generalizada indiferença, mesmo entre os católicos!

Omnis potestas é todo poder, e aqui não se faz a menor distinção entre a esfera secular e a religiosa. Comentando a referida passagem, São Jerônimo nos ensina que “Aquele que antes reinava apenas no Céu, agora deve, pela fé dos que n’Ele crêem, reinar também na terra” (Catena Aurea). Outro não é o ensinamento do Magistério Pontifício: “É Ele [Cristo] só quem dá prosperidade e felicidade verdadeiras, tanto para os indivíduos quanto para as nações: porque a felicidade da nação não procede de fonte distinta que a felicidade dos cidadãos, uma vez que a nação outra coisa não é que o conjunto concorde de cidadãos. Não se neguem, pois, os governantes das nações a dar, por si mesmos e pelo povo, demonstrações públicas de veneração e obediência ao império de Cristo, se querem conservar incólume sua autoridade e fazer a felicidade e fortuna da sua pátria.” (Pio XI, Quanta Cura, 16) Outras provas e argumentações poderiam ser aduzidas, mas bastem estas para atiçar a curiosidade e dispôr os ânimos para a campanha que aqui se vem anunciar.

É por tudo isto que considero importantíssima esta obra do Dr. Rafael Vitola Brodbeck, delegado de polícia e famoso apologeta católico: “Jesus Cristo: Rei do Universo”. O livro está sendo colocado no mercado editorial via crowdfunding: i.e., o financiamento colaborativo é condição para o seu lançamento. Não se trata da aquisição de um exemplar de um livro já lançado e disponível nas editoras, mas da colaboração para que tal livro, que está escrito mas não publicado, venha a ser lançado. Colaboração esta que não é gratuita: atingido o necessário para o lançamento do livro, os colaboradores receberão, privilegiadamente, um ou mais exemplares do livro, a depender da forma que escolham de colaborar.

Este blog apóia a campanha de lançamento do “Jesus Cristo: Rei do Universo” e a recomenda aos seus leitores, por algumas razões. Primeiro porque o tema, como expus acima, é importante e pouco trabalhado; segundo porque o autor é pessoa de reconhecida ortodoxia e experiência no apostolado público (quem não o conhece tem, agora, uma excelente oportunidade de o conhecer). Terceiro porque é importante que livros assim sejam colocados à disposição dos católicos de língua lusófona, adentrando definitivamente no mercado editorial — por vezes tão carentes de boas obras. Quarto porque o preço está justo, sendo uma excelente oportunidade para adquirir uma obra que tanto pode ser usada para referência, em casa, quanto para presentear amigos e familiares. Quinto, por fim, e mais importante, para que Deus seja servido, que este é o fim e a razão de todo apostolado. Deus é glorificado quando a Sua doutrina é conhecida e defendida; e outro não é o propósito do livro do Rafael que aqui se recomenda.

Para adquirir a obra basta clicar aqui. Mas atenção: faltam apenas 16 dias para o fim da campanha e, se até lá o valor total não for arrecadado, a obra não poderá ser lançada. Estamos atualmente com 51% da meta. Entrem lá, conheçam, colaborem, compartilhem, recomendem.

Aqui é possível ver um vídeo do autor explicando a obra e a campanha:

Aqui, um trecho da obra, inédito!, para dar um gostinho e incitar a vontade de a ler na íntegra:

A Tradição Apostólica é unânime em proclamar Cristo Rei do Universo, concordando com ela a Sagrada Escritura. Cumpre notar que o Reino é espiritual, não material: ‘O meu Reino não é deste mundo.’ (Jo 18,36) Já existe pela Igreja e tornar-se-á pleno quando Jesus vier em glória. Todavia, Seu Reinado espiritual comunica-se com as realidades temporais, uma vez que nós, Seus súditos, não somos puro espírito, e também porque vivemos no mundo, na matéria, criada igualmente por Deus. O Reino é espiritual, mas domina todas as coisas criadas e deve influenciar as várias obras temporais: a política, o direito, a ciência, a cultura, as artes. Não pode alguém afirmar-se cristão em sua vida privada e atuar publicamente em contradição com a Lei de Deus. Absurdo um médico católico que interrompa uma gravidez, mesmo amparado por uma legislação permissiva, alegando que a fé é meramente espiritual e de foro íntimo. Como igualmente errôneo um político que se diga seguidor de Cristo e que aprove uma lei autorizando o ‘casamento’ homossexual, invocando a autonomia do Estado frente a Igreja para ‘justificar’ sua ação.

Aqui a exposição da campanha no Facebook do autor, com uma lista das pessoas que colaboraram com a obra e a recomendam: “Tenho um recado importante para ti”.

Entrem no site e verifiquem a colaboração que mais lhes parecer adequada; há-as várias, de somente o arquivo digital (em .pdf), passando pelo livro físico, até um combo de diversos livros. Especialmente digna de sugestão, a propósito, é a “Recompensa #6”:

recompensas_jesus_cristo_rei_do_universo-06

R$ 300,00: 4 exemplares em brochura + seu nome impresso nos agradecimentos do livro + 1 exemplar de A Ordem Natural + 1 exemplar de A Guerra dos Cristeros + 1 exemplar de A Fé da Igreja + 1 exemplar de Sentir com a Igreja + 1 exemplar de Para Conhecer e Viver as Verdades da Fé + vídeo-aula com o autor.

É a mais recomendada não apenas porque é a que mais generosamente contribui para o bom êxito da campanha, mas também porque é a que apresenta o melhor custo-benefício (são nove livros, a um preço total médio de R$ 33,00 por exemplar): além de possibilitar presentear os amigos com o livro do Rafael (são quatro deles), ainda vêm no pacote outros volumes preciosos (por exemplo, o “A Guerra dos Cristeros” eu já resenhei aqui no blog), de leitura mais que recomendada. Mas há colaborações para todos os gostos: o livro físico, exemplar único, sai por R$ 48,00 — frete já incluso.

Que o bom Deus abençoe esta iniciativa tão louvável! E você, leitor, que se interessou pelo material aqui postado, não perca tempo e apoie “Jesus Cristo: Rei do Universo” hoje mesmo. O mundo cultural católico agradece.

«O que foi cortado, não pode ser tratado nem curado».

A Igreja Católica é o «Sacramento da Salvação» (cf. Lumen Gentium 48), e isso significa dizer que Ela é o canal somente através do qual (*) as graças divinas chegam aos seres humanos. A expressão utilizada pelo Concílio Vaticano II equivale, desta maneira, a uma outra expressão mais clássica dentro da doutrina católica que diz que a Igreja é aquela «fora da qual não há salvação e nem santidade». Não se trata de triunfalismo arrogante, mas de humilde reconhecimento daquilo que é uma das verdades mais basilares da nossa Fé: Cristo veio ao mundo para fundar uma determinada comunidade de homens e, se Ele, Deus libérrimo, quis assim dispôr as coisas, nós, meros mortais, não temos autoridade para estabelecer outros “caminhos” diferentes para o Céu. Cristo, o Homem-Deus, fundou a Igreja! Ao invés de torcermos o nariz à insolência papista, melhor faríamos em nos esforçar, zelosamente, para seguirmos com escrupulosa observância a vontade manifesta de Nosso Senhor.

[(*) A comparação da Igreja com um «Sacramento», claro, é metafórica. Os sacramentos são sinais sensíveis e eficazes da graça de Deus e, stricto sensu, como declarou o Concílio Tridentino, são não mais e nem menos do que sete: Batismo e Crisma, Confissão e Unção dos Enfermos, Eucaristia, Ordem e Matrimônio. Se há portanto evidente diferença entre os Sete Sacramentos e o «Sacramento da Salvação», é necessário que tal seja levado em consideração quando formos derivar as conseqüências de se dizer a Igreja «Sacramento da Salvação» em ordem aos canais da Graça e sua exclusividade – a fim de não cairmos em erro.

Porque, embora os Sacramentos – os Sete – sejam sinais eficazes da Graça de Deus (i.e., todo Sacramento, se validamente celebrado, produz a Graça que significa), nem toda a Graça nos vem mediante os Sete Sacramentos: recebemos graças atuais o tempo inteiro, como nos ensinam os manuais de Teologia e a experiência espiritual mais comezinha. Solução distinta, contudo, é a que se dá ao problema da salvação “fora” da Igreja: os que se salvam sem fazerem materialmente parte dos quadros visíveis da Igreja Católica são, no entanto, formalmente católicos ainda que disso não tenham consciência explícita – salvam-se, assim, pela Igreja e na Igreja. Portanto, em se tratando da Salvação, não existe graça extra-eclesial análoga às graças extra-sacramentais. Entender o caráter analógico da formulação do Concílio Vaticano II é fundamental para que as conseqüências soteriológicas da sacramentalidade da Igreja sejam tiradas mutatis mutandis.]

No tradicional discurso à cúria romana que o Santo Padre faz todos os anos por ocasião do Natal, o Papa Francisco proferiu, na semana passada, uma prédica incomumente dura. Dedicou a maior parte da sua fala a enumerar e descrever o que chamou de «doenças curiais», males do espírito que são um obstáculo ao serviço a Deus que todos os católicos – e de modo particularíssimo os membros da cúria – são chamados a desempenhar. O Jornal Nacional não perdeu a oportunidade de dizer que o Papa fez «duras críticas a (sic) cúpula da Igreja»; e, de fato, não há como negar que as suas palavras tenham sido duríssimas! Não me parece possível, no entanto, dizer que a saraivada pontifícia tenha sido disparada «sem piedade».

Primeiro porque “piedade” é aquele dom do Espírito Santo que nos torna leve e agradável o nosso relacionamento com Deus; ou, nos dizeres do Aquinate, aquele «pelo qual, reverenciando a Deus, fazemos o bem para com todos» (Summa I-IIae, q.68, a.4, ad.2). Ora, um exame de consciência – como o que propôs o Papa – é um evidente exercício que se propõe a melhorar a nossa relação com Deus e, portanto, é piedoso no sentido mais católico da palavra.

Segundo porque o Papa em momento algum se exclui dos destinatários de suas duras palavras. É regra de boa pregação aquela história de que o pregador, antes de qualquer outra coisa, deve pregar a si mesmo: e, com Sua Santidade o dizendo explicitamente (v.g. «queria que este nosso encontro e as reflexões que partilharei convosco se tornassem, para todos nós, apoio e estímulo para um verdadeiro exame de consciência»), não me parece possível deduzir que ele se coloque n’alguma posição de alegada superioridade moral para, de lá, apontar um dedo acusador para os outros sem se dar conta de que talvez também a ele caibam [ao menos alguns d]os vícios que ele se esmera em perfilar.

Terceiro, por fim, porque faltam palavras duras na Igreja! Nós o cansamos de dizer e repetir, e quando o Vigário de Cristo abandona as suas características bonacheirices para falar a sério e acerbo vamos, também e ainda, continuar a reclamar? Bem que poderíamos seguir os conselhos do Papa e fazer, para o nosso próprio bem!, um minucioso exame de consciência diante do sacrário. Talvez seja isso o que mais nos falte.

Mas o que me chamou mais profundamente a atenção nas “Felicitações de Natal” foi uma frase de Sto. Agostinho que o Papa Francisco cita lá para o final do discurso: «Enquanto uma parte adere ao corpo, a sua cura não é impossível; pelo contrário, o que foi cortado, não pode ser tratado nem curado».

Isso tem tudo a ver com o que se falava acima, com a Igreja Católica enquanto única Igreja de Cristo, fora da qual não há nem salvação e nem santidade – fora da qual só há os sarmentos secos que não servem senão para ser atirados ao fogo.

Isso tem tudo a ver com aquela concepção da Igreja de Roma como Aquela que sempre esteve disposta a tolerar até onde fosse possível os hereges, a fim de salvaguardar a unidade – em oposição à Igreja do Oriente, que sempre se caracterizou por esfacelar a unidade em defesa da[quilo que cada grupo considera a] Ortodoxia.

Isso tem tudo a ver com aquela visão negativa do então Card. Ratzinger a respeito da excomunhão de Lutero, como se os danos à Cristandade pudessem ter sido muito menores se tivesse sido possível à Igreja manter o monge rebelde sob as Suas asas maternais: e, neste ponto, vejo uma admirável confluência de pensamento entre os dois Papas.

Isso tem tudo a ver, enfim, parece-me, com a maneira com que o Papa Francisco costuma tratar os [que ele julga] equivocados: critica-os, exorta-os, chama-os, transfere-os, até mesmo – vá lá! – humilha-os; mas faz questão de os manter na Igreja, debaixo dos seus olhos: porque sabe que é o Papa e sob o seu cajado é que se forma a Igreja de Cristo, fora da qual as almas não podem ser tratadas e nem curadas. Mais “romanista” impossível.

Os profetas das desgraças podem vir às ruas com as suas chiacchiere: nada poderão dizer contra a concepção bergogliana da necessidade da Igreja, que o Papa Francisco faz tanta questão de alardear ao mundo sempre que tem oportunidade. Podem até acusá-lo de querer fazer a Igreja abarcar promíscua e indiscriminadamente o mundo inteiro: ainda assim, contudo, é a sob o pálio do Sucessor de Pedro que ele quer reconduzir o mundo! E isso já é segurança e tranquilidade suficientes para nós: porque isso – vejam só! – é mais catolicismo do que a maior parte dos inimigos da Igreja está disposta a aceitar.

A terrível e sangrenta polêmica sobre se os animais vão ao Céu

O Diário de Pernambuco publicou recentemente uma matéria sob a manchete «Cães e gatos podem ir ao céu? Frase do Papa Francisco reabre discussão»; lê-la é uma daquelas experiências que nos dão alguma dimensão de o quanto o homem moderno está perdido, sem fazer a mais remota idéia daquilo do que fala.

O nonsense perpassa a reportagem inteira. Logo no subtítulo, é possível se ler que o «[t]ema é controverso na Igreja Católica, com opiniões contrárias e a favor». Ora, isso é um completo disparate: não há e nem pode haver controvérsia alguma com relação a isso, que envolve aspectos tão básicos do Cristianismo  que qualquer conhecimento mínimo seu revela, de maneira cabal e evidente, o quanto a discussão toda é embaraçosamente estapafúrdia e sem lógica.

“Céu”, no sentido estrito, é o estado de amizade definitiva com Deus do qual gozam os Bem-Aventurados. Amizade, na medida que envolve uma relação entre duas pessoas, pressupõe e exige uma natureza racional: dotada de inteligência e vontade, capaz de conhecer o outro e querê-lo. Não tem lógica absolutamente nenhuma perguntar-se, por exemplo, se uma pedra ou uma árvore pode “gozar da amizade de Deus” (!): tais seres não possuem a natureza necessária ao estabelecimento de uma relação interpessoal – e, por conseguinte, nem muito menos podem “ir ao Céu”, que é a realidade relacional por excelência.

Os únicos seres capazes do Céu são, portanto, por definição de «Céu», aqueles que possuam natureza racional: que sejam dotados de inteligência e de vontade. A única possibilidade, assim, de “animais irem ao Céu”, para que essa pergunta fizesse algum sentido, seria se os animais fossem seres espirituais, capazes de estabelecer uma relação pessoal com os seres externos a eles. E, embora haja de fato quem queira atribuir inteligência a – e.g. – golfinhos, o fato totalmente indiscutível é que, no âmbito da filosofia católica, semelhante hipótese não foi jamais aventada. Nenhum santo, Papa ou mesmo teólogo católico afirmou, nunca, que os animais possuíssem alma racional. O tema não é controverso: é ponto pacífico mesmo entre as mais distintas correntes heterodoxas que a História viu surgirem em vinte séculos de Cristianismo. Ninguém, no Oriente ou no Ocidente, na antiguidade ou no mundo contemporâneo, entre os protestantes ou os ortodoxos orientais, ninguém jamais pretendeu que os animais possuíssem alma como a do homem!

Fiz questão de destacar alma racional e como a do homem acima porque (e isso é também ponto pacífico na filosofia católica) todos os seres vivos possuem alma. As pedras, por exemplo, são seres inanimados; mas as plantas possuem alma vegetativa, os animais, sensitiva, e, o homem, intelectiva (também dita racional, ou espiritual). Isso é outra coisa sobre a qual ninguém discute; confira-se a Summa, I-a Pars, q.78. Não é, portanto, verdade que o «Papa João Paulo II causou frisson em 1990 ao dizer que os animais possuíam alma», como afirmou o Diário de Pernambuco: quem disse isso foi Santo Tomás na Idade Média, repetindo o que Aristóteles já dissera na Antiguidade Clássica, e tal jamais provocou “frisson” algum – porque é óbvio!

São, portanto, três coisas bastantes simples, fáceis de entender e sobre as quais não há nem nunca houve controvérsia alguma na Igreja:

  • todos os seres vivos – as plantas e os animais inclusive – possuem “alma”;
  • apenas os seres humanos possuem alma racional;
  • “pecado”, “salvação” e “Céu” são realidades somente aplicáveis aos seres racionais.

A conclusão, evidente, é que não existe sentido nenhum em se perguntar se os cães e gatos podem “ir ao céu”, e nem muito menos em rematar uma matéria nonsense sobre o assunto afirmando que «[o] Papa Francisco está escrevendo uma encíclica sobre questão (sic) ambientais, mas não se sabe se ele vai tocar no assunto». Ora, não há um “assunto” aqui para ser tocado. Ler uma coisa dessas dá vergonha.

E o pior é que haveria espaço para se escrever alguma coisa lógica sobre o tema. Por exemplo, “Paraíso” é uma expressão multívoca, que designa tanto o estado de visão beatífica das almas que morrem na amizade de Deus quanto o próprio mundo material criado que se há de transformar após o Juízo Final: os «novos céus e nova terra» de que fala o Apocalipse. Sobre estes, ensina o Catecismo (cf. até o parágrafo 1060):

1046. Quanto ao cosmos, a Revelação afirma a profunda comunidade de destino entre o mundo material e o homem:

Na verdade, as criaturas esperam ansiosamente a revelação dos filhos de Deus […] com a esperança de que as mesmas criaturas sejam também libertadas da corrupção que escraviza […]. Sabemos que toda a criatura geme ainda agora e sofre as dores da maternidade. E não só ela, mas também nós, que possuímos as primícias do Espírito, gememos interiormente, esperando a adopção filial e a libertação do nosso corpo» (Rm 8, 19-23).

1047. Assim, pois, também o universo visível está destinado a ser transformado, «a fim de que o próprio mundo, restaurado no seu estado primitivo, esteja sem mais nenhum obstáculo ao serviço dos justos», participando na sua glorificação em Jesus Cristo ressuscitado.

Algumas perguntas poderiam ser colocadas aqui: como será esse cosmos «restaurado no seu estado primitivo»? De que maneira se dará essa transformação do «universo visível»? De modo mais específico: o quê, exatamente, haverá nos «novos céus e nova terra»? Árvores? Plantas? Rios e cachoeiras? Animais…?

Note-se que a pergunta sobre se haverá animais após a Ressurreição da Carne é completamente diferente da primeira, se os «cães e gatos podem ir ao céu»! Nesta, eles seriam sujeitos da Redenção, o que é um completo absurdo e nonsense; naquela, pergunta-se qual o papel do mundo visível (incluídos aí os animais, mas também as plantas e o mundo inorgânico) no mundo futuro que Deus tem planejado para os que O amam. E, não, perguntar se ainda haverá praias e montanhas após o Juízo Final não é o mesmo que perguntar se as montanhas e praias “vão ao Céu” quando deixam de existir. Ser incapaz de separar uma coisa da outra não é senão um sinal de que não se sabe (mais) o que é o homem, o que o mundo, o que é o Paraíso – e, mesmo assim, tem-se a pretensão de informar os outros sobre o assunto.

Bento XVI desautoriza o professor Ratzinger a respeito da comunhão dos divorciados

Há alguns meses, o Card. Kasper começou a fazer alvoroço em público com as suas teses a respeito da admissibilidade dos divorciados recasados à comunhão eucarística. Conhecemos a história: em um seu artigo publicado no início do ano, o prelado apresentava as suas idéias e coligia os fundamentos que julgava possível apresentar na defesa delas.

O passo do prelado, contudo, foi maior do que as suas pernas. Ele poderia ter somente defendido a sua posição particular nesta seara; para angariar maior força de persuasão, contudo, julgou preferível trazer para junto de si a opinião abalizada de um dos maiores teólogos da atualidade. Resolveu defender «la práctica de la tolerancia pastoral, de la clemencia y de la indulgencia» baseando-se em ninguém mais, ninguém menos do que Joseph Ratzinger.

À época, Kasper desenterrou um artigo publicado em 1972 pelo então prof. Ratzinger, e o apresentou aos seus leitores da seguinte maneira:

A Igreja dos primórdios dá-nos uma indicação que pode servir como caminho para escapar a este dilema, ao qual o professor Joseph Ratzinger já fez menção em 1972. […] Nas Igrejas locais havia um direito consuetudinário, de acordo com o qual os cristãos que viviam um segundo vínculo [matrimonial], mesmo que o primeiro cônjuge ainda estivesse vivo, depois de um tempo de penitência tinham à sua disposição […] não um segundo matrimônio, mas – através da participação da comunhão [eucarística] – uma tábua de salvação. […]

[…]

J. Ratzinger sugeriu [em 1972] retomar de maneira nova essa posição de [São] Basílio. Pareceria uma solução apropriada, solução esta que está na base das minhas reflexões.

As conclusões agora apresentadas por Kasper apoiavam-se, de fato, em um nome vultoso. A solução que ele ressuscitava agora tinha o inegável mérito de ter sido já defendida, na década de 70, pelo acadêmico Joseph Ratzinger. O arranjo fora muito bem preparado. Kasper só não contava com um pequeno detalhe: Bento XVI ainda estava vivo, lúcido e não gostou nem um pouco da maneira como o seu artigo (de há mais de quatro décadas) fora citado.

A honestidade intelectual é uma virtude delicada; ela exige que não utilizemos as palavras de terceiros de modo a apresentar um retrato do seu pensamento com o qual eles próprios não concordariam. E, após ter já publicado – enquanto cardeal e enquanto Papa – diversos trabalhos nos quais concluía a respeito da inadmissibilidade da comunhão eucarística aos recasados, Bento XVI não se reconheceu nos textos que escrevera no início dos anos 70, agora requentados para defender uma bandeira com a qual, em absoluto, o antigo Papa não concorda.

E a resposta veio nos últimos dias [p.s.: ver abaixo]: o Bispo Emérito de Roma republicou o seu artigo de 1972, com uma retractatio em sua parte final redigida agora em 2014, onde revisa a sua posição anterior. A atitude me surpreendeu por diversos motivos.

Primeiro porque tal não seria a rigor necessário, uma vez que a posição de Bento XVI a respeito do tema era já suficientemente clara a partir dos seus textos posteriores (entre os quais merece menção, para ficar somente em um exemplo, esta carta assinada de próprio punho pelo Card. Ratzinger em 1994). Mas parece que o acadêmico sentiu-se particularmente ofendido com a mera possibilidade de ter o seu nome associado às teses de Kasper e, portanto, julgou oportuno fazer a retratação.

Segundo porque penso que o fato é inédito. Não me recordo de nenhuma outra ocasião em que Bento XVI tenha rechaçado explicitamente as posições que assumira nos anos anteriores ao cardinalato e à presidência da Congregação para a Doutrina da Fé; pelo contrário, já o ouvi até dizer que foi a revista Concilium (de cuja fundação o jovem Ratzinger participou e que se consagrou mais tarde como um famoso veículo de doutrinas pouco católicas) quem mudou de orientação, e não ele próprio. O gesto abre um importante precedente (que era óbvio, mas a respeito do qual não se pode mais, agora, alegar dúvidas): não é possível transpôr acriticamente os antigos escritos do teólogo Ratzinger para os dias atuais, passando por cima dos debates teológicos que se travaram ao longo das últimas décadas e em cujo cerne o autor – primeiro como prefeito do Santo Ofício e, depois, como Papa – ocupou muitas vezes um lugar de indiscutível proeminência.

Terceiro, por fim, porque a decisão de Bento XVI coloca o seu conterrâneo em uma verdadeira saia justa. Rompendo o silêncio do seu pontificado emérito, ele desautoriza simultaneamente as teses de Kasper e os expedientes do qual este lançou mão para as fazer valer: tomando importante partido nesta importantíssima discussão contemporânea, não faltou quem dissesse que Bento XVI, agora, provoca uma reviravolta e passa a pautar o Sínodo da Família. Não me parece que tenha sido a atitude mais deferente do mundo; contudo, parece que estamos em uma daquelas situações em que se exige que a defesa categórica da Fé seja colocada acima da polidez política. Que seja bem-vindo o auxílio do Pontífice do passado.

[P.S.: Na verdade, a retratação não é assim tão recente e, portanto, não pode ser associada diretamente aos acontecimentos do Sínodo. Em uma entrevista publicada no último domingo (07/12) por um jornal alemão, «[o] jornalista lhe perguntou [a Bento XVI] se desta maneira [com a revisão do artigo] quis adotar uma postura no Sínodo dos Bispos sobre a família, recentemente celebrado no Vaticano, e o Papa emérito qualificou esta afirmação como sendo um absurdo total, já que não interveio nem quis intervir nas questões tratadas no sínodo extraordinário sobre a família e a revisão do volume foi feita antes do Sínodo». Deve ser lida assim, penso eu, como uma resposta aos ensaios de Kasper a respeito da comunhão dos divorciados recasados (feitos já no começo do ano), mas não diretamente ao dissenso cardinalício que se instaurou imediatamente antes e durante o Sínodo recém-encerrado.]

E isso sem falar da humildade necessária para se fazer assim, já no fim da vida, uma retratação pública de repercussão tão ampla: Bento XVI é realmente uma personalidade assombrosa, cuja envergadura intelectual não pode ser posta em dúvida. Nem tampouco a sua dedicação à Igreja…! Nem tampouco o amor à Verdade que o levou a grafar aquele Cooperatores Veritatis em seu brasão episcopal. Sim, há homens para os quais a Verdade está acima de sua imagem e prestígio pessoais. Que as novas gerações o aprendam deste ancião admirável.

A terceira via (*) entre socialismo e capitalismo

[(*) P.S.: Percebi depois que a expressão, mal escolhida, poderia conduzir a dois equívocos (nenhum dos quais escrevi, a propósito, mas cuja possibilidade de serem inferidos a partir da leitura realmente existia, como os comentaristas me fizeram notar), para evitar os quais acho oportuno escrever esta pequena nota prévia:

i) a “terceira via” não está aqui dita como se fosse um “meio-termo” entre o liberalismo e o socialismo, [alegadamente] conjugando o que há de melhor em cada uma das ideologias (v.g. a social-democracia);

ii) a “terceira via” não é a Doutrina Social da Igreja, como se esta fosse um sistema econômico pertencente à mesma categoria do capitalismo ou do comunismo; na verdade, uma vez que a DSI é mais propriamente um conjunto de princípios aos quais se devem adequar quaisquer sistemas político-econômicos concretos que se pretendam compatíveis com o catolicismo, melhor seria falar em “terceiras vias”, no plural, significando com isso quaisquer formas de organização da vida pública que, fugindo aos erros quer do liberalismo individualista, quer do socialismo coletivista, fosse informada pelos ditames da Doutrina Social católica (e, nesse sentido, o próprio distributismo citado nos comentários, se é conforme à DSI, com ela contudo não se identifica, sendo sempre possível conceber um outro pensamento que não seja idêntico ao distributismo mas igualmente respeite o que por aquela Doutrina é apregoado).

Em suma, o que este texto intentava era, simplesmente, apontar para a necessidade – tão amiúde negligenciada – de não se cair em uma defesa irrestrita do capitalismo ao se combater o comunismo (ou vice-versa); e o pretendia fazer sem apontar a social-democracia (de maneira alguma!) como uma solução concreta e sem nem mesmo insinuar que a Igreja tivesse um regime econômico pronto, monolítico e universalmente válido a implantar. Aos que se confundiram com essas coisas, minhas sentidas desculpas.]

Faz muitos anos que li “O problema da liberdade” de Fulton Sheen, mas uma de suas frases ficou-me impressa na memória: segundo o prelado, o liberalismo (capitalismo) queria concentrar a maior parte dos ovos em poucas cestas, o comunismo queria quebrar todos os ovos e espalhar o produto pelas cestas todas e, a Igreja, defendia a distribuição mais justa dos ovos inteiros pelas cestas existentes. Acredito que tenha sido a primeira vez que li um ensaio que defendesse uma terceira via como resposta ao clássico embate entre capitalismo e socialismo. É de se lamentar, no entanto, que a senda aberta pelo arcebispo americano não tenha sido melhor explorada pelos católicos que o sucederam.

No afã – justíssimo – de combater o comunismo, muitas vezes acabamos empurrados para o erro oposto. Não é verdade que o católico precise defender intransigentemente o capitalismo ou mesmo possa ser liberal sem reservas: se é indiscutível que se deve no geral apoiar a economia de livre mercado, não é menos verdade que certa intervenção estatal é exigida para o correto funcionamento das forças econômicas em prol do bem comum. Neste sentido, recomenda-se a leitura dos parágrafos 347-350 do Compêndio de Doutrina Social da Igreja; o qual, alguns parágrafos adiante, termina por sintetizar que «[o] livre mercado pode produzir efeitos benéficos para a coletividade somente em presença de uma organização do Estado que defina e oriente a direção do desenvolvimento econômico» (Compêndio, 353). Isso talvez seja um terror para o libertarianismo puro; no entanto, como se disse acima, o católico não pode ser liberal simpliciter.

O espírito do capitalismo, aliás, segundo Weber, é próprio da ética protestante, para usar o título de sua provavelmente mais famosa obra. Uma das situações narradas pelo sociólogo alemão para explicar a diferença entre conservadores e liberais é bem curiosa. Sob a ótica econômica, incentiva-se a venda de uma mercadoria aumentando-se o valor que por ela se está disposto a pagar: são as leis básicas da oferta e da demanda. Se o trabalho é visto como uma mercadoria, então seria de se esperar que aumentar os salários incentivasse os trabalhadores a trabalharem mais. No entanto, Weber notou que exatamente o oposto disso verificava-se com certos indivíduos: recebendo mais, eles passavam a trabalhar menos, porque passavam a conseguir o mesmo salário de antes com um dispêndio menor de horas de trabalho.

Semelhante mentalidade não é favorável à atividade econômica racional que caracteriza o capitalismo, ou pelo menos não lhe é tão favorável quanto a outra mentalidade daquele que, diante de melhores salários, enxergue nisso mais uma oportunidade de aumentar o pão que de diminuir o suor do rosto. No entanto, é fato sociológico que os nossos – de nós, os católicos – antepassados europeus no geral preferiram trabalhar menos a acumular mais, e isso talvez seja digno de mais atenção do que até agora se lhe tem dispensado. Talvez devêssemos buscar melhores soluções para o problema dos ovos e das cestas, cuja importância não parece ter diminuído nas últimas décadas.

O problema maior que vejo na exaltação ingênua do capitalismo é o seguinte: dada ela, alguém não poderia pretender que o socialismo seja capaz de passar por um processo semelhante ao que atravessou o liberalismo: qual seja, o metamorfosear-se tanto que as razões da censura eclesiástica original deixem de subsistir (ou, pelo menos, transformem-se em elementos acidentais sem cuja presença seja possível a concepção filosófica continuar existindo)? Esta pergunta não pode ser respondida ao modo leviano ao qual as condescendências que atualmente fazemos ao liberalismo podem levar o observador incauto. Em uma palavra: não podemos abraçar tão acriticamente o capitalismo liberal que isso conduza a uma legitimação – ainda que meramente retórica – da adesão ao socialismo “mitigado”. Não é somente verdade que, numa escala de erros, o marxismo está mais alto que o liberalismo; não é uma questão meramente quantitativa. Nessa argumentação [precisa] entra[r] também o fato de que as idéias liberais não podem ser assumidas sem ressalvas. E, nisto, parece-me que temos sido um pouco relapsos.

Na Octogesima adveniens, o Papa nos ensina que, mesmo diante da multiplicidade de formas nas quais o marxismo atualmente se apresenta, «seria ilusório e perigoso mesmo, chegar-se ao ponto de esquecer a ligação íntima que [a]s une radicalmente, e de aceitar os elementos de análise marxista sem reconhecer as suas relações com a ideologia» (OA, 34). No entanto, no parágrafo seguinte é feita uma recomendação análoga no que toca ao liberalismo, à qual infelizmente se tem concedido muito menos importância que à primeira:

Mas, os cristãos que se comprometem nesta linha [da renovação da ideologia liberal] não terão também eles tendência para idealizar o liberalismo, o qual se torna então uma proclamação em favor da liberdade? Eles quereriam um modelo novo, mais adaptado às condições atuais, esquecendo facilmente de que, nas suas próprias raízes, o liberalismo filosófico é uma afirmação errônea da autonomia do indivíduo, na sua atividade, nas suas motivações e no exercício da sua liberdade. Isto equivale a dizer que a ideologia liberal exige igualmente da parte deles um discernimento atento (id. ibid., 35).

Cuidemos, portanto, para não subestimar o Magistério da Igreja, e para que a nossa involuntária aquiescência seletiva não induza outras pessoas a preterirem o ensino católico seguro em favor das doutrinas da moda. A resposta ao problema da liberdade não está em nenhuma das ideologias que assolaram o mundo das revoluções burguesas para cá. No nosso labor apologético, é preciso dar mais ênfase à terceira via entre socialismo e capitalismo que a uma – extemporânea e muitas vezes errônea – defesa demasiado crédula do liberalismo contemporâneo.

Papa Francisco põe a imprensa a serviço de Cristo

A carta que o Papa Francisco enviou recentemente ao Eugenio Scalfari já começa a dar frutos. Foi publicada na edição de hoje do La Repubblica (original aqui, em inglês aqui; em português só encontrei esta tradução do Fratres in Unum) uma entrevista «exclusiva» que o fundador do jornal realizou com o Vigário de Cristo.

Foi o próprio Papa quem o convidou: «mercoledì non posso, lunedì neppure, le andrebbe bene martedì?» “Sim”, respondeu o ateu, «va benissimo». E lá se foram os dois veneráveis anciãos conversar sobre a Fé e sobre os problemas do mundo atual.

Problemas cuja expressão máxima o Papa identifica, logo de saída, com a falta de transcendência do mundo moderno: «si può vivere schiacciati sul presente?» “É possível viver esmagado pelo presente”, sem passado e sem futuro? Aqui o «desemprego» da juventude é mais acídia do que questão trabalhista e, a «solidão» da velhice, mais desespero do que carência emocional. Uma vez que se elimina Deus do mundo, uma vez que o materialismo é erigido como norte da vida humana, os velhos estão encurralados diante de um abismo que conduz ao nada e os jovens não se sentem motivados a trilhar o caminho que conduz a este crepúsculo inglório que eles já hoje enxergam nos seus pais e avós. Os dois extremos são, assim, parte de um só e mesmo problema: se a vida caminha inexoravelmente para a velhice e esta não tem sentido, então o próprio «caminho» não tem sentido. A vida se transforma numa estrada estúpida que conduz a lugar nenhum: é natural que muitos não tenham portanto sequer vontade de a trilhar. Não têm as coisas que dão sentido à vida, «e il guaio è che non li cercano più». “E o problema é que sequer as procuram mais”, como disse o Papa Francisco.

Ele não quer fazer proselitismo: «[o] mundo é cruzado por vias que se aproximam e se separam, mas o importante é que elas levem ao Bem». Grifo: levem, verbo conjugado no subjuntivo, que expressa desejo, dever, e não levam, no presente do indicativo, como se se tratasse já de um fato consumado. No original italiano, «portino», para não deixar dúvidas. É óbvio que as vias não necessariamente conduzem, assim em ato, ao Bem; mas é importante que elas conduzam para Ele. A história de nossas vidas não necessariamente nos há de levar para Deus. Mas, se existe algum Fim Último na História, o que importa é que as nossas histórias concretas conduzam a Ele. É esta a missão da Igreja. É esta a contribuição concreta que Ela pode dar à triste situação poucas linhas atrás delineada.

Para explicá-lo melhor, o Papa parafraseia Sto. Tomás: “Cada um de nós tem uma visão do bem e do mal. Temos que encorajar as pessoas a caminhar em direção ao que elas consideram ser o Bem”. No original italiano: «Noi dobbiamo incitarlo a procedere verso quello che lui pensa sia il Bene». É o mesmíssimo ensinamento que o Aquinate expõe de maneira lapidar na Summa: «hay que decir sin reservas que toda voluntad que está en desacuerdo con la razón, sea ésta recta o errónea, siempre es mala» (I-IIae, q. 19, a. 5, resp.). E se é evidente que Santo Tomás não é um relativista, tampouco o é o Papa Francisco. Ele sabe muito bem que, embora nem sempre desculpe (cf. id. ibid., a.6), a consciência – mesmo errônea – sempre obriga; e portanto é mister incentivar a segui-la. Simplesmente não há outro caminho.

Porque o papel da Igreja obviamente não é obrigar as pessoas a agirem contra a própria consciência, e sim levá-las a uma verdadeira conversão, uma metanóia, uma “mudança de mente”, de consciência, a fim de que façam o que é certo não como uma imposição exterior, mas em harmoniosa obediência ao mais íntimo do seu ser. Para isso precisam encarar a Fé Católica não como um conjunto desconexo de normas e proibições, mas como um encontro com uma Pessoa: Jesus Cristo. E para isso é preciso à Igreja “ir ao encontro” delas, usando uma expressão cara ao Papa Francisco, a fim de que possa mostrar-lhes o Bem a que elas almejam. Para isso é preciso «conhecer um ao outro, ouvir um ao outro e melhorar o nosso conhecimento do mundo ao nosso redor», como ele falou ao Scalfari nesta entrevista, e como já o repetiu tantas outras vezes de outras formas ao longo do seu pontificado.

E a conversa prossegue: Igreja, santos, mística, graça. Alfineta o Sumo Pontífice: «Mesmo o senhor, sem o saber, poderia ser tocado pela graça». O ateu diz que não acredita em alma. «[M]as você tem uma», riposta com maestria o Vigário de Cristo. O ateu sente o chão faltar-lhe aos pés e corta a conversa: «Santidade, o senhor disse que não tem a intenção de tentar me converter e não acho que o senhor conseguiria». E o Papa: «Questo non si sa», “isto não se sabe”, não dá para saber.

O Papa Francisco então pergunta no que crê o velho ateu. Ele responde: «Acredito no Ser, que está no tecido do qual surgem as formas e o corpos». Insiste o Vigário de Cristo: «Mas você pode definir o que você chama de Ser?». E a resposta do Scalfari é digna de ser reproduzida na íntegra, em português e no original italiano, para que se tenha uma noção do quão confusa é a única cosmogonia a que foi capaz de chegar um intelectual ateu após longos 89 anos de vida:

Ser é uma fábrica de energia. Energia caótica, mas indestrutível e caos eterno. As formas emergem da energia quando ela atinge o ponto de explosão. As formas têm as suas próprias leis, os seus campos de magnetismo, os seus elementos químicos, que combinam aleatoriamente, evoluem e eventualmente são extintos, mas a sua energia não é destruída. O homem é provavelmente o único animal dotado de pensamento, ao menos, no nosso planeta e no sistema solar. Disse que ele é guiado por instintos e desejos, mas eu acrescentaria que ele também contém dentro de si uma ressonância, um eco, uma vocação de caos.

[L’Essere è un tessuto di energia. Energia caotica ma indistruttibile e in eterna caoticità. Da quell’energia emergono le forme quando l’energia arriva al punto di esplodere. Le forme hanno le loro leggi, i loro campi magnetici, i loro elementi chimici, che si combinano casualmente, evolvono, infine si spengono ma la loro energia non si distrugge. L’uomo è probabilmente il solo animale dotato di pensiero, almeno in questo nostro pianeta e sistema so-lare. Ho detto è animato da istinti e desideri ma aggiungo che contiene anche dentro di sé una risonanza, un’eco, una vocazione di caos.]

Aqui a entrevista praticamente termina. Diz o Papa, em tom condescendente: «Está certo. Não quero que você me faça um resumo de sua filosofia e o que você me disse é o suficiente». Um pouco antes das afabilidades finais, uma última coisa disse o Papa Francisco:

Demos um passo à frente em nosso diálogo. Observamos que na sociedade e no mundo em que vivemos o egoísmo tem aumentado mais do que o amor pelos outros, e que os homens de boa vontade precisarão trabalhar, cada qual com os seus pontos fortes e experiência, para garantir que o amor aos outros aumente até que seja igual e possivelmente exceda o amor por si mesmo.

Na redação que lhe conferiu o fundador do La Repubblica, este é o clímax da entrevista, o ponto de chegada ao qual ela conduz. E um jornal secular estampando na primeira capa uma reportagem onde se fala de deveres morais, de santos, de mística, de graça, e que termina conclamando as pessoas a se esforçarem por amar mais ao próximo do que a si próprias é uma vitória e tanto do Sumo Pontífice. Pela primeira vez em muito tempo, talvez a primeira vez desde que eu me entendo por gente, um Papa pautou o tom das reportagens sobre ele ao invés de ser pautado por elas. Bravo, bravissimo! Que Deus abençoe o Papa neste terreno pantanoso em que ele se move com tão assombrosa desenvoltura. Que os inimigos dele sejam confundidos e dispersados diante desta Rocha imponente contra a qual não prevalecerão as portas do Inferno. Que, olhando para ele, o mundo creia e se coloque aos pés do Crucificado. A fim de que (re)encontre o caminho. A fim de que seja salvo.

Outro Papa escreve a outro ateu

À semelhança do que o Papa Francisco fez recentemente, Bento XVI também escreveu uma carta a um ateu italiano. Piergiorgio Odifreddi é matemático e escreveu um livro – Caro Papa, ti scrivo – onde expõe as suas opiniões no formato de uma missiva ao Bispo de Roma que, hoje emérito, dignou-se dirigir-lhe uma resposta. A íntegra da carta assinada por Bento XVI tem 11 páginas, algumas das quais foram publicadas pelo La Repubblica. O Marcio Campos traduziu-lhe alguns trechos e os colocou no Tubo de Ensaio. Destaco somente um:

[S]e o senhor quer substituir Deus com “a Natureza”, fica uma questão: quem, ou o que é essa Natureza. O senhor não a define em nenhum ponto; ela aparece, então, como uma divindade irracional que não explica nada. Queria, então, acima de tudo deixar claro que na sua religião da Matemática ficam de fora três temas fundamentais da existência humana: a liberdade, o amor e o mal. Eu me surpreendo com o fato de o senhor, em uma única tacada, destruir a liberdade, que foi e é um valor fundamental da época moderna. O amor, em seu livro, não aparece; e mesmo sobre o mal não há nenhuma informação. Independentemente do que as neurociências digam ou deixem de dizer sobre a liberdade, no drama real de nossa história ela está presente como realidade determinante, e deve ser levada em consideração. Mas a sua religião matemática não conhece informação alguma sobre o mal. Uma religião que despreze essas perguntas fundamentais se esvazia.

E, como eu já tive a oportunidade de dizer outras vezes no Deus lo Vult! [p.ex. aqui], simplesmente dizer que não há causas ou atribuí-las a entes indefinidos (a “Natureza”, o “Acaso”, etc.) não é explicar rigorosamente nada. É na verdade o contrário mesmo de uma explicação: é um atestado de ignorância, é se esquivar a enfrentar as perguntas para as quais, por vias complementares, Filosofia e Religião sempre se empenharam em buscar respostas. Que certas pessoas imaginem poder calar dúvidas históricas do ser humano à força de repetir «não sei» é um evidente indício de decrepitude da razão, e não de florescimento intelectual.

Mas o mais engraçado dessa história é a genial perspicácia da nossa classe jornalística, rasa como um pires barato. A foto abaixo é a abordagem que o recifense Jornal do Commercio fez hoje sobre o assunto:

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Não vou nem mencionar a obviedade estampada na manchete (raios, o que eles esperavam que o Papa dissesse?!). Destaco o seguinte trecho, já no penúltimo parágrafo: «os textos [a carta anterior do Papa Francisco e esta agora de Bento XVI] mostram que o papa e o papa emérito têm a mesma opinião sobre determinados assuntos e alimentam especulações de que estejam trabalhando em conjunto».

Em nenhum momento parece ter passado pela cabeça do autor deste período que a «opinião» de ambos sobre Deus e o ateísmo é a mesma porque, ora bolas, todos os dois são católicos. O fato de ambos seguirem uma mesma religião parece não ser suficiente para explicar o curiosíssimo fato de todos os dois pensarem a mesma coisa a respeito do ateísmo. Ao invés disso, a opinião mais provável, a dar crédito ao Jornal do Commercio, é que os dois Papas «estejam trabalhando em conjunto»!

Eis o “senso crítico” que a mídia anda formando. A expressão não poderia ser mais exata: o senso adquirido por quem se acostuma a ler essas coisas é «crítico» como o estado de quem se encontra com uma doença terminal. Talvez já tenha até morrido há muito tempo e ainda não saiba. Que tempos…!