Cientistas à caça da “prova científica” da existência da alma

Recebi hoje por email esta notícia que narra as aventuras de dois pesquisadores na busca da prova científica da existência da alma. São “o médico americano Stuart Hamerroff e o físico britânico Sir Roger Penrose”; segundo a reportagem,

eles explicaram que a alma de uma pessoa está dentro das células cerebrais em um lugar chamado microtúbulo. Os microtúbulos, segundo os livros de biologia, são estruturas proteicas que fazem parte do citoesqueleto das células. Elas ajudam no transporte celular pelo corpo humano.

Bom, em primeiro lugar, é preciso deixar claro que a alma não “está” em nenhum lugar específico do corpo. Aliás, como explica Santo Tomás na Summa, ao invés de postular que o corpo contém a alma o mais exato é dizer que a alma contém o corpo (Summa, Ia, q.8, a.1, ad.2). E, em outro lugar (id., q.76, a.8, resp.), que se fosse para falar “onde” a alma se encontra no corpo humano, dever-se-ia dizer que ela está totalmente em todo o corpo e em cada uma de suas partes.

Localizar a alma em alguma parte específica do corpo humano (p.ex., digamos, o cérebro) só seria possível se ela (a alma) estivesse unida ao corpo somente como motor, teoria que o Aquinate demonstra ser insustentável por várias razões na mesma questão da Summa. Ao contrário, Santo Tomás – seguindo Aristóteles – afirma que a alma está unida ao corpo enquanto sua forma substancial, sendo assim o homem uma unidade substancial composta de corpo e alma. À luz desta concepção do ser humano é totalmente sem sentido pretender “encontrar” a alma em alguma parte do corpo humano. Talvez gostem desta teoria os espíritas ou os adeptos da metafísica de Descartes, mas ela não é compatível com a antropologia católica.

Segundo os pesquisadores, os microtúbulos têm energia quântica do universo. Essa energia seria a alma e ajudaria a formar a consciência de uma pessoa durante toda a sua vida. Portanto, quando a pessoa morre, essa energia quântica voltaria ao universo, de onde veio. Isso seria, portanto, a alma.

Eu torço o nariz sempre que leio “energia quântica do universo” aplicada neste sentido que beira o esoterismo. Concedo que, para os leigos, isto decorre da maneira pouco rigorosa que sói se usar para explicar a mecânica quântica fora dos círculos acadêmicos. Por exemplo, lembro-me de que eu passei muito tempo da minha adolescência achando que o Princípio da Incerteza de Heisenberg era um absurdo porque o compreendia como se o elétron fosse um Boo de Super Mario, que parava de se mover e cobria o rosto quando o personagem se virava para ele, voltando a andar somente quando aquele lhe dava as costas. Daí até eu chegar na faculdade e aprender que “observação” pressupõe o “contato físico” [= sensível] com o elétron (não sendo simplesmente “olhar” para ele) e que era desta interação entre a partícula e o instrumento de medida que surgia a perturbação de estado responsável pela incerteza postulada por Heisenberg passou-se um bocado de tempo. E tenho intimamente a convicção de que muita gente acha que a Física Quântica é uma espécie de mágica na qual, de alguma maneira, “cabem” igualmente o natural, o sobrenatural e os absurdos metafísicos.

De todo modo, não sei o teor exato das alegações dos drs. Hamerroff e Penrose, que comento somente à luz da citada matéria da INFO Online. Pode ser que eles tenham uma explicação científica rigorosa relacionando [o que chamam de] “consciência” com a “energia quântica do universo”. Sei, no entanto, que para o leitor médio esta correlação implica quase sempre em erros conceituais graves.

Não é a priori impossível que se detecte alguma perturbação sensível provocada pela alma, o que contudo não autoriza a confundir esta perturbação com a alma em si. Tratar-se-ia, mutatis mutandis, de alguém que olhasse para um eletrocardiograma e dissesse que o coração humano é um feixe de ondas elétricas detectável por aquele equipamento específico que o traduz graficamente. Ora, a atividade elétrica é provocada sim pelo coração humano, mas ela não é o próprio coração humano. Igualmente, parece-me em princípio não haver óbice a que a alma humana unida ao corpo provoque alguma espécie de movimento sensível que seja detectado sob a forma de energia quântica ou de qualquer outra natureza. Daí a igualar os efeitos às causas, contudo, vai um passo enorme que a ciência não está autorizada a dar. Sobre este assunto, vale igualmente tudo o que eu já falei aqui sobre as provas científicas da existência de Deus. Toda prova “científica” a respeito da existência da alma sempre vai ser – e por definição só pode ser – uma prova indireta.

E toda vez que são provocados por um pesquisador, eles respondem com a teoria das pessoas que são ressuscitadas depois de uma parada cardíaca e sempre voltam com uma história do momento da morte.

Para eles, a história nada mais é do que a experiência dessa energia quântica indo embora do corpo e se vendo obrigada a voltar – já que a pessoa conseguiu sobreviver ao acidente cardíaco.

 Já este argumento me parece nonsense por pelo menos duas razões. A primeira é que eu – como cético sobre Experiências de Quase-Morte – questiono a sua natureza, e me pergunto se não é possível explicá-las à luz de argumentos materialistas. A segunda é que… bom, ainda que tais experiências sejam verdadeiramente espirituais, disso não me parece decorrer necessariamente a existência das tais “energias quânticas” a explicá-las. Permanece aberto o abismo entre as ciências empíricas – inclusive as que estudam a energia quântica do universo – e as realidades espirituais; e, como eu já disse por diversas vezes, uma “ciência” auto-mutilada e reduzida àquilo que é mensurável e empiricamente verificável não será nunca capaz de o transpôr.

Venerável Padre Rodolfo Komórek

Conheci a história do Venerável Pe. Rodolfo Komórek (1890 – 1949) quando estivem em São José dos Campos, a visitar um amigo. Lembrei-me dele porque recebi recentemente por email a sua carta mortuária, cuja leitura é bem interessante e piedosa (trata-se não de uma carta do próprio pe. Rodolfo, mas sim de um irmão religioso escrevendo sobre a morte dele), prestando-se a boa referência biográfica sobre o sacerdote. P. ex., sobre o seu gosto pelas penitências:

De seu espírito de penitência fala ainda Mons. Ascânio Brandão, escritor de renome e conhecido em todo o Brasil Católico: “O seu espírito de penitência foi notável. Por mais que o procurasse ocultar, via-se logo a que austeridades se entregava continuamente. Dormia no chão duro. Tinha horror ao leito macio. Quando a obediência o obrigava a se acolher ao leito, sobre tábuas duras havia de repousar”.

De São José dos Campos eu trouxe um pequeno “santinho” do Padre Rodolfo, com uma pequena biografia e uma oração. Reproduzo-as abaixo, a quem se interessar, para que a história deste heróico salesiano possa ser conhecida e divulgada, e – quiçá, se o Bom Deus o permitir – inspirar sentimentos verdadeiros de piedade nos homens dos nossos tempos, tão sedentos das coisas do Alto.

Hoje é dia de Todos os Santos – mesmo dos não canonizados… – e, mesmo sem a chancela definitiva e segura de uma canonização, gosto de pensar que hoje é um dia apropriado para se celebrar também as virtudes do Venerável Padre Rodolfo Komórek, a cuja intercessão eu recorro, pedindo por mim próprio, por este meu apostolado virtual, pelos parentes e amigos, pela Santa Igreja de Deus, pelo bem do Brasil.

* * *

Dados Biográficos

PADRE RODOLFO nasceu em Bielsko (Polônia), dia 11 de outubro de 1890. Depois de uma infância edificante, vivida entre o lar, a igreja e a escola, ingressou no seminário diocesano e, após brilhantes estudos, ordenou-se sacerdote em 1913.

Deixou para o povo de sua terra natal exemplos admiráveis de zelo, piedade profunda e surpeendente espírito de penitência. Na guerra de 1914, foi capelão militar em hospitais e no campo de batalha. Sempre benquisto de todos os militares, recebeu duas condecorações do governo austríaco.

Voltando à pátria, prosseguiu seu trabalho apostólico no ministério paroquial. Desejando ser missionário, entrou na Congregação Salesiana de Dom Bosco, sendo, em 1924, destinado ao Brasil para cuidar dos colonos poloneses de Dom Feliciano (RS). A população dessa localidade chamava-o de “padre santo”. O mesmo aconteceu em outros lugares: Niterói (RJ), Luís Alves (SC) e Lavrinhas (SP).

No seminário salesiano de Lavrinhas apareceram-lhe os primeiros sintomas de moléstia pulmonar. Transferido então para São José dos Campos (SP), ali despendeu suas últimas energias, entregando-se com total doação ao cuidado espiritual e físico dos pobres e dos doentes de hospitais, asilos e pensões sanatoriais. Era de fato “um para todos”.

Muitos ainda recordam o virtuoso sacerdote, humilde, comedido e atencioso que, sem nunca elevar a voz, foi um semeador de alegria e de paz.

Faleceu em 11 de dezembro de 1949. Seu sepultamento foi uma comovente apoteose promovida por grande multidão agradecida. Os restos mortais do “padre santo” encontram-se hoje na chamada “Casa das Relíquias”, em São José dos Campos.

Reconhecendo a heroicidade de suas virtudes, a Santa Sé declarou-o Venerável em 6 de abril de 1996. Aguarda-se um “milagre” para o prosseguimento do Processo de Beatificação e Canonização.

* * *

Oração

Para pedir a intercessão e a glorificação do Padre Rodolfo

Glorificai, Senhor,
o Vosso servo padre Rodolfo Komórek,
que em vida,
pelo amor que Vos teve,
imolou-se pelo bem do próximo,
sobretudo dos pobres e doentes,
deixando-nos admiráveis exemplos
de pobreza, penitência e humildade.
Concedei-me, por sua intercessão,
a graça que confiante Vos peço
(fazer o pedido).

Amén.

As graças recebidas pela intercessão do Pe. Rodolfo sejam comunicadas à

Casa Padre Rodolfo
Rua Padre Rodolfo, 28 – Vila Ema
12243-080 – São José dos Campos – SP

As questões espirituais estão para muito além do alcance da ciência

Eu sempre fiquei impressionado com a capacidade que os cientistas alegam possuir de fazer inferências comportamentais complexas a partir de vestígios arqueológicos ínfimos. Já comentei aqui outro dia sobre o gay pré-histórico, mas este é apenas o exemplo mais extremado. Coisas mais simples, como a habilidade de construir ferramentas ou a prática de um “estilo de vida parcialmente arbóreo” dos nossos antepassados são divulgadas quase todos os dias por nossos meios de comunicação. Não raro, eles pensam fazer com isto um importante trabalho de “desmistificação” da realidade, às vezes com ataques mais ou menos velados aos que insistem em se afirmar religiosos a despeito de todo este avanço científico acumulado pela humanidade.

Naturalmente, eu não tenho muita coisa contra estes exercícios adivinhatórios que, vá lá, na maior parte dos casos são bem razoáveis mesmo e se apresentam à razão humana quase que como uma decorrência necessária do que se tem diante dos olhos, sem a necessidade de nenhum Sherlock Holmes para fazer a dedução oculta e dizer “elementar”. Por exemplo, digamos, encontrar uma tigela muito antiga com vestígios de comida do lado de dentro e de carvão do lado de fora nos autoriza, sim, a deduzir com bastante segurança que estamos diante de uma panela rudimentar e que, se alguém um dia a utilizou, certamente foi para algum exercício primitivo da milenar arte da culinária. É igualmente aceitável dizer que isto revela uma certa sensibilidade gastronômica dos homens primitivos, uma vez que eles provavelmente faziam um cozido para tornar a carne da caça mais saborosa, e não por razões de ordem profilática então pouco ou nada conhecidas. O que extrapolaria os limites arqueológicos seria, por exemplo, encontrar uma tigela dessas que fosse muito grande e, com base nisso, passar a fazer ilações sobre a gula pré-histórica, demonstrando por a + b que os homens da tribo tal não tinham questões morais sobre a necessária temperança à mesa – supondo que mesas houvesse à época.

A rigor, nem mesmo a existência de indícios fortes sobre a disseminação de uma certa prática num determinado povo (indícios, aliás, cuja existência é inversamente proporcional à distância temporal que nos separa de tal povo, por conta do decurso dos séculos que costuma ser bem eficiente em produzir escassez de vestígios) nos autoriza a fazer qualquer afirmação sobre o juízo moral que este povo fazia de tal prática. Por exemplo, algum arqueólogo que, estudando os hábitos dos judeus da época do Reino de Israel com base em vestígios não-escritos, chegasse à conclusão (correta) que a idolatria era comum àquele povo, enganar-se-ia redondamente se extrapolasse a sua “descoberta” para sentenciar que os filhos de Abraão não tinham nenhum interdito moral ao politeísmo. Um hábito é somente um hábito, e a sua classificação como virtuoso ou vicioso para quem o pratica não se pode depreender da mera constatação de que ele se realiza. Isto é bastante óbvio, mas por alguma estranha razão as coisas óbvias às vezes fogem à percepção de quem se deslumbra com a idéia de ser um Dr. Holmes a desvendar os mistérios de civilizações perdidas no tempo – cujos membros não estão mais aqui para se defender das barbaridades que falam sobre eles. Em uma palavra: as questões morais – que perfazem a fronteira mais indevidamente atravessada pelos fanáticos irreligiosos que se dizem cientistas – estão, tanto por princípio quanto por limitação de método, para muito além do alcance da ciência. Como é possível que haja verdadeira oposição entre ela e a Fé?

Eu pensava sobre isto ao ler Chesterton que, genial como sempre, criticava em um artigo a idéia de que descobertas científicas pudessem abalar as crenças de alguém. Ora, as ciências físicas e as realidades espirituais pertencem a ordens distintas de conhecimentos. Do mesmo modo que é absurdo defender, p.ex., que a Lei da Gravitação Universal possa ser modificada à força de novas investigações teológicas sobre as relações entre a Graça e o Livre-Arbítrio, é igualmente nonsense pretender que a soteriologia católica tenha se tornado menos verdadeira depois que Einstein propôs a Teoria da Relatividade Especial. O avanço científico não restringe os horizontes da Fé, e isto independe completamente de quaisquer limitações contingentes do acúmulo do conhecimento humano em um determinado momento histórico. Nas eloqüentes palavras do polemista inglês:

Um homem pode ser um cristão até o fim do mundo, pelo mesmo motivo de que um homem poderia ter sido um ateu desde o começo do mundo. O materialismo das coisas está na cara das coisas; não requer nenhuma ciência para encontrar. Um homem que viveu e amou cai morto e as minhocas o comem. Isso é Materialismo, se você preferir. Isso é Ateísmo, se você preferir. Se a humanidade apesar disso tem crido, ela pode crer apesar de todas as coisas. Mas por que nossa sina humana se torna mais desesperada porque nós sabemos os nomes de todas as minhocas que comem ele, ou o nome de todas as partes dele que são comidas, é para uma mente pensativa algo difícil de descobrir.

Esta é a resposta definitiva aos que vaticinam o fim iminente da Religião sob o império da Ciência, estas são as noções que precisam ficar bem claras para quem se propõe a fazer filosofia natural ou teologia. O resto são falácias grosseiras de pseudo-cientistas ou histerias descabidas de falsos crentes.

Palestra do Dr. Ives Gandra: as minorias governando segundo suas próprias opiniões

Foi realizada ontem à noite em São Paulo – e transmitida simultaneamente para o Círculo Católico de Pernambuco – uma palestra do Dr. Ives Gandra Martins sobre as recentes decisões polêmicas do Supremo Tribunal Federal e assuntos correlatos (PNDH-3, Reforma do Código Penal).

O renomado jurista iniciou a sua preleção fazendo uma retrospectiva dos quadros da Suprema Corte do Brasil. Explicou como este tribunal mudou radicalmente a sua postura, ao longo dos últimos anos, passando de guardião da Constituição para legislador positivo. Segundo o dr. Ives Gandra, as atitudes dos novos ministros nomeados (bem como o relativamente curto intervalo entre as nomeações) colaboraram bastante para esta mudança: antigamente, quando um novo ministro era nomeado, ele costumava passar algum tempo acompanhando as votações da Suprema Corte, até entrar em sintonia com o espírito tradicionalmente empregado pela Casa na examinação das matérias. Este mecanismo natural de manutenção da linha de entendimento do STF – que é, acrescento eu, o fundamento da segurança jurídica do país – foi destruído quando os novos ministros nomeados passaram a tomar a iniciativa de já chegar votando de acordo com suas concepções ideológicas particulares, muitas vezes em desacordo com os demais membros do Supremo.

E assim, de nomeação em nomeação, de repente todos os ministros do STF eram novos, sem que houvessem jamais se adaptado ao pensamento do Tribunal, e não havia mais uma corrente de entendimento característica da Casa: a partir de então, cada qual poderia e deveria apreciar as matérias como melhor lhe aprouvesse. Por conta disso, o Supremo modificou a sua linha interpretativa tradicional e se transformou – a expressão digo eu, e não o Dr. Ives – na Casa da Mãe Joana que hoje ameaça o nosso Brasil.

Depois de discorrer com eloqüência sobre julgamentos polêmicos como os da destruição de seres humanos em pesquisas com células-tronco embrionárias, da equiparação da mancebia gay à Família formada pela união entre o homem e a mulher e da autorização do aborto eugênico de crianças deficientes, o Dr. Ives Gandra dedicou uns minutos à leitura de alguns dos artigos da recente proposta de Reforma do Código Penal. Cômicos, se não fossem trágicos: um dos exemplos mais claros do escárnio à população brasileira em que consiste esta proposta (ontem mencionado pelo Dr. Ives) é que deixar de socorrer uma criança atropelada é punível com prisão de um a seis meses, ou multa, enquanto deixar de socorrer um cachorro igualmente atropelado gera pena de prisão de um a quatro anos (aliás, sobre o mesmo assunto, vale a pena ler o Carlos Ramalhete ou ouvir o Miguel Reale Júnior). Sem contar os diversos problemas com a legalização do aborto, a criminalização da homofobia, a liberação das drogas, a permissão do terrorismo (se “por propósitos sociais ou reivindicatórios” – Art. 239 §7), etc. Todos abordados pelo palestrante diante da perplexidade do auditório. Ora, a mera propositura de semelhantes disparates deveria ser mais do que suficiente – em qualquer lugar sério do mundo – para uma imediata exoneração desonrosa dos responsáveis pela palhaçada. No Brasil, no entanto, a gente precisa gastar tempo e energia discutindo este absurdo nos meios de comunicação e em eventos Brasil afora, enquanto o Congresso aprecia a matéria com ares de seriedade e os revolucionários que estão no poder chamam isso de maravilhas do processo democrático brasileiro!

Ao final da noite, ficamos com a convicção – renovada em alguns e, quiçá, por outros percebida pela primeira vez – de que estamos vivendo tempos sombrios. E de que é preciso, talvez mais do que nunca, fazermos ouvir a nossa voz: a de milhões e milhões de brasileiros cujos valores estão sendo abertamente vilipendiados por uma minoria de (auto-intitulados) intelectuais empenhados na destruição do Brasil para que seja erigido um “mundo novo” no seu lugar. Só que este “mundo novo” – como o do romance de Huxley – não tem nada de admirável. Mais uma vez, os bárbaros estão à ronda das muralhas da Civilização, ansiosos por fazê-la sucumbir; importa que cada um tome a parte que lhe cabe na defesa do patrimônio civilizatório que a história da humanidade nos legou.

Afinal, que diferença faz se Cristo foi ou não casado?

Têm recebido uma significativa repercussão as notícias a respeito da descoberta de um papiro que sugere que Nosso Senhor tenha sido casado. Vi a matéria hoje na INFO e ouvi, pela manhã, o assunto na CBN; ontem eu já vira a mesma notícia no site da Terra.

O que dizer sobre o assunto? É de se espantar o sensacionalismo com o qual a mídia costuma tratar qualquer velharia como se fosse a última descoberta científica de uma novidade revolucionária sobre a qual nunca se ouviu falar antes! É verdadeiramente impressionante: como é possível tratarem com tanto frisson um fragmento de texto antigo que alude a uma genérica “mulher de Jesus”, quando já se conhecem (e há muito tempo) textos que dão nome e sobrenome a esta alegada “esposa”?

O Apócrifo de Filipe fala de Maria Madalena como “companheira” de Jesus e afirma que Ele a beijava com freqüência – “na boca”, alguns gostam de completar em um impressionante exercício de leitura adivinhatória de lacunas. E, na Idade Média, nós sabemos que os cátaros foram acusados, justamente, de afirmarem que Cristo tinha um relacionamento com Maria Madalena (ora como esposa, ora como concubina). Se estas referências são eruditas demais para a nossa classe jornalística, temos aquele mega-best-seller, “O Código Da Vinci”, contando exatamente a mesma história caquética. Por qual motivo ela só agora seria digna de crédito?

[E antes que me venham com chorumelas dizendo que as comparações são injustas, respondo logo que, muito pelo contrário, são a mesmíssima coisa: historietas de comadres em tempo algum levadas a sério pelos cristãos. Continuemos.]

Com relação a este novo papiro antigo, uma reportagem de G1 diz que ele é questionado por especialistas. E estes questionamentos, parece, já produziram resultados: ontem o documento era do século II (Terra) e, hoje, já é do século IV (EFE, via INFO)! A continuar com este prodigioso processo de envelhecimento datacional, na próxima semana descobrem que o papiro se trata, na verdade, dos primeiros rascunhos do Dan Brown lançados fora pelo escritor em um surto de bom senso infelizmente passageiro. Mas, da matéria de G1, interessa-me particularmente a declaração do porta-voz da Santa Sé:

“Não muda em nada a visão sobre Cristo e os Evangelhos. Este acontecimento não tem influência alguma sobre a doutrina católica”, enfatizou.

Se ele fala do papiro, é verdade: não muda nada porque uma fábula espúria antiga não se torna verdadeira só pelo fato de estar escrita num fragmento de texto velho. Mas, se ele fala do alegado relacionamento de Cristo com Maria Madalena ou com qualquer outra, aí é preciso dizer que muda, sim, muita coisa.

Afinal de contas, durante séculos – melhor, milênios! – os cristãos professaram unanimemente que Nosso Senhor veio ao mundo para redimir a humanidade, e esta Sua missão redentora passou pelo sacrifício de Si na Cruz do Calvário. Jamais se afirmou que a missão do Redentor houvesse passado pela constituição de uma família, e isto importa sim. Tomar uma esposa não é um acidente de percurso na existência humana, como o seria por exemplo um jantar em Betânia ou um passeio de barco pelo Mar da Galiléia. Aqui sim, se Nosso Senhor certa feita jantou na casa de um coxo em Jericó ou se ele retirou-Se alguma vez para rezar sozinho no meio do Mar Morto, não faz de fato diferença alguma.

Mas um casamento não é um aspecto acidental da vida humana: é uma vocação positiva, um elemento constituinte do papel assinalado por Deus para cada um nesta terra. A plena realização do ser humano, a sua santificação, o tornar-se aquilo que Deus quer que ele se torne, passa estruturalmente pelas núpcias que ele contrai ou deixa de contrair. Se Cristo houvesse sido casado e a Igreja tivesse ignorado ou escondido este fato, isto representaria uma lacuna incompreensível na missão do Salvador, uma negligência injustificável sobre o papel do Sagrado Matrimônio: coisas que simplesmente não podem existir na indefectível Igreja de Cristo. Portanto, este assunto não é “indiferente”, porque um Matrimônio nunca é “indiferente”. Cristo não Se casou, porque assim sempre o afirmou a Igreja de Deus.

Quanto às estórias espúrias – por antigas que sejam – que digam diferente, elas por certo não conseguirão jamais abalar a solidez das referências documentais que temos a respeito da história de Cristo. Mas é preciso cuidar também para que elas não lancem dúvidas sobre o papel que o seu estado de vida exerce na salvação de cada ser humano concreto, sobre o lugar privilegiado que ocupa o Sagrado Matrimônio na economia da Salvação. Dizer que “tanto faz” é aviltar a concepção cristã de casamento e de família. Dos inimigos da Igreja (que tampouco têm consideração alguma pela Família) é esperado que pensem assim. Mas os cristãos não têm o direito de professar semelhante acinte à ordem que o Onipotente estabeleceu para a Sua criação.

O rosto feio de Satanás

Ao mesmo tempo em que uma pesquisa científica descobre a pólvora ao anunciar que a música piorou nas últimas décadas, dezenas de milhares de pessoas acompanham no Líbano esta execução do Panis Angelicus diante do Romano Pontífice:

A escolha desta peça para ser cantada diante do Papa mostra-nos que ainda há esperança. Indica-nos (mais uma vez) que as pessoas mantêm a capacidade de reconhecer a beleza, mesmo apesar do mau gosto generalizado que se tenta impôr como se fosse a norma estética do nosso tempo. As pessoas têm sede de beleza, e – como eu já disse aqui – o Belo conduz a Deus.

Sufoca-se o Bonum por meio do incentivo à imoralidade e, o Verum, pelo relativismo atroz. Mas, curiosamente, hoje me parece que o Pulchrum é mais resistente do que se poderia julgar à primeira vista. Não sei, talvez porque o mal revista-se facilmente de prazer e, a mentira, de atalho fácil para evitar o sofrimento; mas o feio não me parece ter nenhum atrativo próprio que o torne particularmente agradável aos homens.

É como o Demônio travestido de anjo de luz: a maldade e a falsidade podem ser “escondidas” sob uma casca de “beleza”, sob algum reflexo de Pulcritude que engana os incautos; mas o rosto feio de Satanás não tem como se apresentar agradável fingindo-se Bom ou Verdadeiro e então, “despojado” de transcendentais, provoca mais facilmente a repulsa e a fuga das pessoas.

E isso nos dá esperanças. Talvez os russos estejam certos. Talvez, afinal, a Beleza vá mesmo salvar o mundo.

Os homens conseguem reconhecer – e valorizar – a beleza artística sim!

Todos devem ter visto aquela senhora que destruiu uma pintura do século XIX na sua tentativa de restaurá-la. Como eu comentei com uns amigos então, era evidente que a idosa não queria escarnecer de Nosso Senhor nem nada do tipo: claro estava que ela agiu com a melhor das intenções, cheia de boa-vontade. O que faltou foi, precisamente, alguém que lhe chamasse à realidade e lhe dissesse, caridosamente, que ela estava fazendo uma grande besteira. O que faltou foi alguém que afastasse o “yes, you can!” moderno que certamente ressoava em seus ouvidos para lhe dizer “não, querida, tu não podes”.

A história me fez lembrar imediatamente do início do “Ortodoxia” de Chesterton, onde ele critica o chavão vigente de que as pessoas que acreditavam em si mesmas estavam fadadas ao sucesso. O inglês diz (com uma clarividência impressionante) precisamente o oposto: as pessoas que acreditam em si mesmas estão é no hospício. De novo: não tenho dúvidas de que Cecilia Giménez acreditava na sua capacidade de restaurar a pintura espanhola… e aí deu no que deu. Faltou alguém que a fizesse duvidar um pouco de si. Faltou alguém que, com um pouco menos de respeito humano, recusasse a ajuda – evidentemente inadequada – da boa idosa.

Um detalhe, contudo, merece um pouco mais de ênfase: a história virou piada mundial e a pobre senhora se transformou rapidamente em motivo de chacota. Ora, isto tudo serve para demonstrar que as pessoas conseguem sim distinguir entre uma obra de arte bonita e uma ridícula. O pecado desta “restauração” não foi simplesmente ter imposto à obra anterior um outro estilo artístico diferente, mas o de fazer um desenho grosseiro, tosco e disforme, cuja feiúra a comparação com o Ecce Homo original só fazia acentuar.

Lembrei-me do assunto quando vi, hoje, esta imagem comparativa e provocativa no Facebook: a “restauração” que ganhou notoriedade recentemente e uma capa de um livro de um conhecido artista católico, o Cláudio Pastro. A semelhança é inegável; mas da sra. Giménez a gente pode ao menos dizer que ela fez o melhor que pôde.

Que o lamentável episódio espanhol possa servir para lançar um pouco de luz sobre este vergonhoso “relativismo estético” dos nossos dias que não poupa nem mesmo as nossas igrejas. Foi perdida a pintura de Elías García Martínez, mas não necessariamente o nosso bom gosto. Aliás, esta é uma excelente oportunidade para que o possamos afirmar em público e defender com coragem.

Miscelânea de comentários ligeiros

Houve recentemente em Londrina uma caminhada pró-vida, à qual se fizeram presentes alguns jovens levando um cartaz. Nele se podia ler: “SOU CATÓLICO, não voto em partido abortista”. Mensagem mais sucinta e coerente impossível. Era de se esperar que algumas pessoas não gostassem da manifestação, mas o que causou espécie foi saber que um padre condenou o cartaz. Um padre! O comentário do Wagner Moura é bem pertinente:

Fico imaginando esses garotos do banner pró-vida, coitados, se sentindo repreendidos por serem meramente católicos. Se estivessem com um banner enorme do Che Guevara correriam sério risco de serem homenageados, hein?

Mas é o Brasil. É o campo – por cheio de abrolhos que se encontre – que o Senhor nos deu por partilha. É o combate que somos chamados a travar. Ele não nos deixará desamparados.

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– “A crença no sobrenatural é perigosa”, diz psicólogo. Contraditório, superficial e grosseiro; para ficar num só exemplo: o sujeito escreve que “presenciamos o declínio da crença no sobrenatural” para, duas linhas abaixo, afirmar que hoje “poucos abdicam de crenças sobrenaturais e aceitam a ciência como ferramenta para explicar o universo”. É um disparate que não se presta senão a atacar gratuitamente. Mas merece um pouco de reflexão a última frase do psicólogo:

Se há um Deus, ele me deu um cérebro para pensar. Meu pecado seria usá-lo para raciocinar e buscar explicações? Um ser benevolente não me puniria por utilizar bem as armas que me concedeu.

Ora, há hoje em dia (e aliás sempre houve) incontáveis homens de ciência que nunca julgaram necessário abandonar a sua crença em Deus – ao contrário, repudiaram com energia semelhante idéia. E isso muito tempo depois de que “se acreditou que a Terra viajava pelo cosmo no lombo de um elefante” (!), como diz o psicólogo em uma comparação totalmente anacrônica e sem sentido – a qual aliás dá a entender que, para o psicólogo, o mundo todo achava que estávamos em um safári cósmico sobre o lombo de um mastodonte até a Revolução Industrial. Como é possível que este sujeito acredite sinceramente que isto é “usar bem” (!!) a inteligência que o Todo-Poderoso lhe concedeu?

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A cruz de Cristo, a quem incomoda?, por Frederico Viotti. Fazendo (entre outras coisas) uma elegante e sutil alusão ao célebre artigo de Rui Barbosa (sobre o qual eu já falei aqui) que trata da Justiça moderna à luz dos julgamentos pelos quais passou Cristo, o articulista vai ao ponto fulcral aqui:

Na realidade, o “Estado-juiz”, ao pretender retirar os crucifixos, está demonstrando abraçar outros valores, diversos daqueles que estão representados no Crucifixo.

E é exatamente isto. Não existe “vácuo moral” na gênese da cultura de um povo; a Parede Vazia é um símbolo do ateísmo. A guerra travada contra os símbolos religiosos no Brasil, assim, não é (e nem nunca foi) uma questão de “respeito” aos que não comungam da Fé Católica; trata-se de um ferrenho combate travado contra a cultura ocidental, contra a moral judaico-cristã, contra enfim a própria civilização que nos foi legada por nossos antepassados e à qual devemos todos os bens que nos separam da barbárie.

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– Em tempos onde o nosso Governo planeja pôr em prática políticas de “redução de danos” (como se isto fosse possível…) para aborto ilegal, vale a pena ler esta carta publicada no ano passado na Revista PET Farmácia. As palavras do leitor aplicam-se com maestria à situação que vivemos hoje e bem que poderiam ser dirigidas aos nossos governantes:

A citada “política de redução de danos” (p. 34) é um acréscimo de eufemismo, um modo perverso de justificar a necessidade de se liberar o aborto provocado. Mostrando-o como inevitável, torna injustificável aplicar recursos em educação básica e em melhoria do atendimento médico e curativo. Simplesmente, se é inevitável, então vamos legalizar e apoiar. É um caminho para se destruir a sociedade e corromper os costumes.

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– 10 razões pelas quais o “casamento” homossexual é prejudicial e deve ser combatido, no IPCO. Destaco:

7. O “casamento” homossexual desvirtua a razão pela qual o Estado beneficia o casamento

Uma das principais razões pelas quais o Estado confere inúmeros benefícios ao casamento é que, por sua própria natureza e desígnio, o casamento proporciona as condições normais de uma atmosfera estável, afetuosa, e moral, que é benéfica para a educação dos filhos, frutos do mútuo afeto dos pais. Ele ajuda a perpetuar a nação e fortalecer a sociedade, o que é um evidente interesse do Estado.

O “casamento” homossexual não fornece essas condições. Seu desígnio principal, objetivamente falando, é a gratificação pessoal de duas pessoas, cuja união é estéril por natureza. Não tem direito, portanto, à proteção que o Estado concede ao casamento verdadeiro.

Ou seja: o Estado confere uma série de benefícios à Família não porque seja “bonzinho” ou para “alegrar” os apaixonados nem nada do tipo. Há uma série de direitos tradicionalmente conferidos à família porque ela é a célula-mater da sociedade e, como tal, tem uma série de deveres (em particular, a geração e educação da prole, produzindo cidadãos para o Estado) importantes para a vida em sociedade – que a dupla homossexual, absolutamente, não é capaz de assumir – cujo cumprimento o Estado deve facilitar. É isso. O resto é balela do movimento gay.

* * *

– Vale a pena ler, mesmo que esteja em espanhol, esta história da conversão do filósofo Paul Williams do Budismo para o Catolicismo. Excerto:

Williams explica rapidamente a teoria do karma: alguns males e alguns bens que experimentas são [alegadamente] conseqüência do que fizeste em uma vida passada. Mas em qual sentido se pode dizer que o ditador cruel e maligno que foste em outra vida eras tu? “A idéia de que um bebê sofre uma doença dolorosa por algo que outra pessoa fez, incluindo se o bebê é de alguma maneira un renascimento desta pessoa, não pode ser vista como satisfatória. Não se pode dizer, como alguém já fez, que seja a resposta mais aceitável ao problema do mal. O bebê não é quem fez os atos malvados, da mesma forma que eu não sou uma barata após a minha execução.

Santo Agostinho já ofereceu resposta ao problema do mal. As fábulas reencarnacionistas, além de não explicarem nada, são grosseiras e sem sentido. Diante da vastidão da produção intelectual cristã sobre o assunto, as “explicações” baseadas em karma têm a profundidade teológica de um pires.

“How can I join you?” [Chesterton – O Homem que foi Quinta-Feira]

[Faz muito tempo que eu li este “O homem que foi Quinta-Feira” de Chesterton; tanto tempo que eu nem me lembrava mais da qualidade de alguns dos diálogos do livro, como estes que vêm transcritos e representados abaixo.

Talvez os inimigos da Igreja nunca tenham entendido o porquê d’Ela ser intransigente nos princípios mas tolerante na prática. Contudo, esta é racionalmente a melhor atitude que pode ser tomada: a única que consegue salvaguardar, simultaneamente, o presente e o futuro. A única que consegue, simultaneamente, mover as pessoas em busca da virtude e conservá-las vivas a despeito dos seus vícios. A transigência nos princípios fecharia os horizontes à possibilidade de melhoras, enquanto que a intransigência nos atos levaria ao extermínio dos que ainda têm algo a melhorar. A Igreja, ao contrário, é sábia a ponto de saber que é preciso crer e amar. Por isso a Igreja tem em Si este dinamismo civilizador; por isso o Cristianismo foi capaz de construir o mundo em que vivemos: por saber que é preciso, ao mesmo tempo, conservar radicalmente o mundo que existe e apresentar com intransigência um ideal de mundo.]

Nós acreditamos em uma conspiração puramente intelectual, que logo ameaçaria a própria existência da civilização: que o mundo científico e o mundo artístico estão marcando secretamente uma cruzada contra a Família e o Estado. Nós formamos uma corporação especial de policiais, policiais que também são filósofos. É nossa função investigar as origens desta conspiração.

Os ladrões respeitam a propriedade. Só que desejam que a propriedade seja deles, para que eles a possam respeitar muito mais. Mas os filósofos detestam a propriedade como propriedade; eles desejam destruir a própria idéia de propriedade privada. Os bígamos respeitam o casamento, ou eles não iriam tolerar plenamente a árdua formalidade cerimonial da bigamia. Mas os filósofos desprezam o casamento como casamento. Assassinos respeitam a vida humana; eles só querem obter uma maior perfeição de vida humana em si mesmos pelo sacrifício daqueles que lhes parecem vidas inferiores. Mas os filósofos odeiam a vida em si. Tanto a sua própria quanto a dos outros.

Tradição, tradições e conservadorismo – por Carlos Ramalhete

[Excelente intervenção do Carlos Ramalhete em um papo privado sobre Tradição Católica, tradições cristãs e conservadorismo. Publico na íntegra a resposta dele, que delineia bem o papel que nos compete – a todos nós! – diante do mundo moderno, na situação em que nós o encontramos.]

O fato de haver uma diferença entre a Tradição – que é fundamentalmente doutrinal – e tradições – aplicações provadas pelo tempo desta Tradição ao mundo, dela dependentes e a ela apontando – não faz com que nem se justifique um minimalismo doutrinal que as tornaria irrelevantes nem, muito menos, com que se possa acusar todo conservadorismo de confusão entre aquela e estas.

Num momento como este em que vivemos, em que os poderosos tentam criar uma sociedade nova a golpes de leis e novelas, o conservadorismo nada mais é que o reconhecimento de que “qualquer evolução dos costumes e qualquer gênero de vida devem ser sempre mantidos dentro dos limites impostos pelos princípios imutáveis fundados nos elementos constitutivos e nas relações essenciais de cada pessoa humana, elementos e relações que transcendem as contingências históricas” (Dz-H 4580; é Paulo VI, nada de rad-tradismo…). A palavra chave é “mantidos”, que poderia ser traduzida também como “conservados”. Conservadorismo é isso. Como há, sim, uma enorme riqueza cultural de que somos, ou deveríamos ser, herdeiros, espelhando e expressando de várias formas o possível e o impossível nesta conservação de limites, preservá-la é sim dever nosso.

Como filhos fiéis da Igreja, o nosso dever é procurar *conservar*, sim, o que resta da civilização cristã, até para que no futuro mais ou menos próximo possa se erigir uma *outra* civilização cristã. Não se trata, como é evidente e eu não me canso de repetir (quer dizer, canso, sim: confesso que torra a paciência ter que dizer sempre a mesma coisa…), de voltar a qualquer passado tido como utópico, mas de procurar manter a sociedade “dentro dos limites impostos pelos princípios imutáveis”.

Isso quer dizer, na prática, que, como já ocorreu 1600 anos atrás, é função da Igreja (e nós somos Igreja, assim como o clero e os seminaristas de cuja formação se está falando) *conservar* o imenso tesouro de sabedoria humana, já depurado pelo confronto com a Revelação, que compõe o currículo de humanidades clássicas que eu mencionei ser importante. Quer dizer *conservar* o valor da vida humana, o valor da mulher (cada vez mais reduzida a ou um pseudo-homem ou a uma máquina de prazer sexual), o valor da hierarquia, o valor do respeito à sabedoria dos idosos, etc. E conservar Cícero, Dante, Ortega. E, por que não, mesmo que como exemplo negativo, Rawls, Marx ou Rand?

Isso não quer dizer que seja um herege quem não aprecia o valor de Dante ou de Cícero. Quer dizer apenas que é um idiota. E já há idiotas o bastante nas telas de tevê, para que se os queira também nos presbitérios.

No meu apostolado, eu não chego ao ponto de assistir TV, embora até leia sobre o que está passando nela; falta-me paciência. No meu trato com catecúmenos e com o público em geral, procuro apresentar como novidade, em geral apoiando-me unicamente na razão, as obviedades que só o são por terem já chegado a esta situação pela sua repetição ao longo dos séculos; é sabedoria humana, sim, mas é sabedoria, e sabedoria burilada pela Igreja ao longo dos séculos. E ela tem que ser, sim, conservada, ou estaremos como o muçulmano que manda queimar a biblioteca de Alexandria por que ou repete o Corão é assim desnecessária, ou o nega e é assim blasfema.

Cada geração de jovens pode aprender de novo, e precisa aprender de novo, descobrir de novo aquilo que é sua herança. Cada uma. Ano passado um aluninho de filosofia de seus 15 anos de idade veio, sério como só um rapaz desta idade pode ser, me dizer que resolvera tornar-se um estóico. Ótimo. Melhor estóico que fã do BBB ou fanqueiro. Isso quer dizer que o contato com o estoicismo é necessário para sua salvação? Não, mas pode perfeitamente bem ser instrumental. A chance de o ser é muito maior que a do contato com Tati Quebra-Barraco. Ou, pior ainda, de achar que “descobriu” alguma coisa ao abandonar-se aos mais baixos instintos, como sói ocorrer com quem não percebe que não é o primeiro ser humano a sentir atração sexual. O estoicismo, tal como nos chegou após depurado pela Igreja ao longo dos séculos – nas palavras de Padre Antônio Vieira, “um estóico é como um cristão de antes de Cristo” – é uma semente do Verbo, algo que abre para a graça.

Já temos problemas demais com idiotas que, por falta desta mesma cultura clássica que estou defendendo, confundem pudor com a moda de 1950. Não precisamos de uma reação igualmente inane, que se arrepia ao ouvir falar de conservadorismo por achar que há perigo de confusão entre Tradição e tradições, como se tanto estas quanto aquela não fossem, hoje, animais em risco de extinção.