Mudanças na Cerimônia do Lava-Pés — o que significam?

Hoje, no site do Vaticano, foram tornados públicos dois documentos: uma carta que o Papa Francisco enviara ao prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos no final de dezembro de 2014, onde solicitava uma alteração nas rubricas do Missal Romano referentes à Missa da Quinta-Feira Santa para que estas autorizassem o uso de mulheres na cerimônia do Lava-Pés (e não apenas fiéis do sexo masculino — viri selecti — como se dispunha até então); e o Decretum daquela Congregação determinando a mudança do Rito, datado de seis de janeiro p.p. (em italiano aqui). Uma tradução não-oficial da carta pontifícia pode ser encontrada aqui, e é de onde tiro o seguinte excerto:

[D]esde há já algum tempo que estou a reflectir sobre o Rito do “lava pés”, inserido na Liturgia da Missa in Coena Domini, com a finalidade de aperfeiçoar o modo com que se realiza, para que exprima plenamente o significado do gesto realizado por Jesus no Cenáculo, a sua entrega “até ao fim” para a salvação do mundo, a sua caridade sem fronteiras.

Antevendo as críticas, talvez não seja despiciendo lembrar aquela declaração solene do Concílio de Trento segundo a qual «a Igreja sempre teve o poder de, ao administrar os sacramentos, determinar e mudar, salva [sempre] a sua substância, o que julgar conveniente à utilidade dos que os recebem e à veneração dos mesmos sacramentos, conforme a variedade dos tempos e lugares» (Trento, Sessão XXI, Cap. 2 (931)). Portanto, não há espaço para os já tradicionais rasgar de vestes de um lado e lançar confetes do outro, como se o Papa estivesse dilapidando o patrimônio divino do Cristianismo ou abrindo enfim as portas da Igreja às reivindicações do mundo moderno. Desde que o mundo é mundo que a Igreja pode «mudar (…) o que julgar conveniente» em Seus ritos litúrgicos. O Papa está, portanto, no mais pacífico exercício do seu munus de governar a Igreja. O resto é tentativa desprezível de capitalizar as atitudes papais em benefício da própria agenda político-ideológica. Não merece atenção.

São outras as coisas que aqui merecem uma consideração mais atenta. Primeiro, uma consideração de ordem, digamos, sociológica: da forma como as normas litúrgicas são recebidas no seio das Igrejas Particulares. No interior do caos litúrgico em que nós infelizmente vivemos, a presença de mulheres na celebração de Lava-Pés não se pode chamar de novidade inaudita. Em parte devido à terrível ignorância dos católicos — conticuit populus meus eo quod non habuerit scientiam… –, em parte pelo aberto descontentamento de alguns a respeito da posição da Igreja sobre a diferença entre os sexos, o fato é que a utilização de mulheres entre os viri selecti exigidos pelas rubricas já se havia constituído em um verdadeiro costume contra legem.

A idéia de legalizar o abuso para o coibir não é indene a críticas, principalmente porque ela evoca — mutatis mutandis — certas práticas de política criminal pouco honestas que intentam reduzir os índices de criminalidade por meio da descriminalização dos crimes. No entanto, dela se pode ao menos dizer que é mais honesta e coerente do que a situação anterior, onde o Papa vinha a público lavar os pés de mulheres quando as rubricas expressamente o proibiam. Sendo o Papa a autoridade competente em matéria litúrgica para determinar quais os pés que se podem lavar na Missa In Coena Domini, não fazia o menor sentido que ele, podendo mudar a lei, insistisse na sua violação. Por mais que se trate de um aspecto que alguém pode dizer de somenos importância, a fidelidade é de ser buscada mesmo nas pequenas coisas. Com o Decretum do início deste mês, o Papa Francisco deixa de praticar abusos litúrgicos neste quesito — o que não deixa de provocar um certo alívio.

Uma segunda coisa importante a ser considerada é o motivo pelo qual as rubricas previam que apenas homens fossem escolhidos para o Lava-Pés. A argumentação tradicional ia na linha de que aquela cerimônia estava inserida no contexto da Última Ceia, para a qual Nosso Senhor não convocou senão os Apóstolos — homens todos eles. É o argumento, aliás, usado para vedar às mulheres o acesso ao sacerdócio ministerial: foi Cristo quem expressamente as excluiu deste ministério específico, não obstante as tenha enviado para fazer uma centena de outras coisas importantes (como, por exemplo, serem testemunhas privilegiadas da Ressurreição). À parte quaisquer discordâncias interpretativas que possa haver aqui, o fato histórico inconteste é que, na primeira Quinta-Feira Santa, apenas homens tiveram os seus pés lavados por Nosso Senhor.

Pode-se lamentar o fato de que esta mudança litúrgica, além de negligenciar a exatidão histórica dos fatos que na Semana Santa se celebram, possa enfraquecer o sentido do sacerdócio ministerial. Afinal (já ouço os inimigos da Igreja bradarem…), se até mesmo ao Lava-Pés as mulheres se fazem presentes, por que excluí-las da Ceia que vem logo em seguida? Não seria o caso de se repensar a Ordinatio Sacerdotalis?

Em resposta a este sofisma vem a terceira coisa importante desta mudança litúrgica. Com ela, o Papa Francisco introduziu oficialmente uma clivagem na celebração da Última Ceia, explicitando uma distinção teológica que, conquanto fosse evidente, não tinha ainda — ao menos não neste contexto — expressão litúrgica que lhe correspondesse.

Na Quinta-Feira Santa há duas cenas distintas e muito bem definidas. Em uma delas, Nosso Senhor lava os pés aos Apóstolos; na outra, oferece o Sacrifício do Seu Corpo e Sangue sob as espécies do Pão e do Vinho. Na primeira delas proclama o mandamento do serviço; na segunda, institui o sacerdócio ministerial. Parece bastante óbvio que os destinatários de ambas as mensagens não são os mesmos: embora apenas os sacerdotes ordenados tenham o poder de oferecer o Santo Sacrifício da Missa, é a todos os cristãos que se estende o mandato do serviço expresso no «também vós deveis lavar-vos os pés uns aos outros». Na mesma Noite, em seus dois momentos distintos, os Apóstolos estão representando parcelas diferentes do povo de Deus. À Mesa, enquanto convivas que recebem o Pão e o Vinho das mãos do Divino Redentor, fazem as vezes dos sacerdotes ordenados; mas enquanto servidos por Cristo que, toalha à cintura, lava-lhes os pés, representam a totalidade dos cristãos. Apenas os sacerdotes têm o poder e o dever de celebrar a Missa; mas o mandatum da Caridade, têm-no todos os católicos — homens e mulheres, velhos e jovens, doentes e sãos, leigos, clérigos e religiosos — e não apenas os sacerdotes ordenados. Sob essa ótica, a separação dos dois momentos antes distingue que confunde os papéis.

Há sem dúvidas a possibilidade de que homens maliciosos empreguem a mudança para tentar rediscutir sentenças definitivas do Magistério da Igreja; cumpre, portanto, desautorizá-los desde já. O Papa pediu que aos fiéis que fossem escolhidos para o Lava-Pés «seja dada uma explicação adequada do significado do próprio rito»; o Decretum que o regulamenta manda também, explicitamente, aos pastores «istruire adeguatamente sia i fedeli prescelti sia gli altri» — instruir adequadamente tanto os fiéis escolhidos quanto os outros. Sejam, portanto, todos devidamente informados. O mandatum caritatis, expresso no Lava-Pés, é coisa distinta do potestas sacerdotalis conferido ao partir do Pão. Tendo o Romano Pontífice distinguido claramente as duas coisas, não seja dada aos lobos a oportunidade de confundir o rebanho do Senhor.

Da conveniência de uma Liturgia Universal

Confesso ter certa dificuldade com uma coisa que, em tempos normais, não deveria ser capaz de angustiar católico algum: assistir a Santa Missa em um lugar distinto do habitual. Se a Igreja é Católica — i.e., Universal — e se a Liturgia é o serviço público da Igreja (“público” aqui tem o sentido de “oficial”), seria de se esperar que esta catolicidade se refletisse, também e talvez até principalmente, na maneira como a Igreja presta o Seu culto a Deus, independente do lugar em que se desse a celebração do Santo Sacrifício.

Eu entendo o argumento de que o Evangelho não é uma cultura pronta e acabada mas, ao contrário, uma força capaz de orientar para Cristo tudo aquilo que é verdadeiramente humano — e, portanto, tem em Si próprio a força de elevar a Deus qualquer cultura. Mas disso não me parece decorrer que o culto a Deus deva reproduzir as particularidades de cada povo, de cada grupo social, de cada costume local (ainda que legítimo). Ao contrário: penso que, no que diz respeito à Sagrada Liturgia, a catolicidade da Igreja deve se sobrepôr à legítima particularidade dos fiéis que do culto divino tomam parte em um momento histórico específico e em um lugar determinado do globo terrestre. Há, penso, diversas razões para que isto deva ser dessa maneira, das quais as três a seguir não são as menos importantes.

Em primeiro lugar, por uma questão de, se é possível chamar assim, sacramentalidade. O sacramento é um sinal e isto significa que a Liturgia da Igreja é, ela toda, uma linguagem. Para além da graça eficaz que é inerente a todo Sacramento, há uma mensagem que a Liturgia precisa transmitir — e esta mensagem precisa falar à inteligência, à compreensão de cada fiel. Ora, esta mensagem é por definição extraordinária: a linguagem da qual ela se reveste, portanto, para ser proporcionada ao conteúdo que se presta a transmitir, precisa ser, ela também, extraordinária. Precisa se afastar do quotidiano, das coisas do dia-a-dia, dos símbolos usados ordinariamente para tratar das coisas da vida: a Liturgia precisa, assim, distanciar-se dos costumes e usos sociais legitimamente vigentes em cada sociedade. Isso é necessário para que o católico veja, na Liturgia, já ao primeiro vislumbre, algo diferente do comum dos dias: é a clássica distinção entre o sagrado e o profano, difícil de exprimir hoje em dia porque o segundo termo adquiriu um caráter pejorativo que não se pode ignorar. O que quero dizer é simplesmente o seguinte: nem tudo o que é humanamente legítimo é adequado à Sagrada Liturgia e nem tudo o que não cabe no Culto Divino é, por isso mesmo, pecaminoso ou indigno. Esta é uma compreensão que se precisa urgentemente resgatar: munidos dela, os católicos seriam mais comedidos em introduzir nas suas celebrações estes elementos estranhos ao espírito da Liturgia e que tanto atrapalham a frutuosa participação dos fiéis.

Em segundo lugar, porque todo legítimo processo de inculturação é mais passivo do que ativo: isto significa que os homens mais têm a sua cultura purificada pela Igreja e moldada ao vigor do Evangelho do que constroem, eles próprios, o seu contributo pessoal ao Catolicismo, o seu tijolo personalizado a integrar as muralhas da Cidade Santa de Deus. O contato transformador com o Evangelho não é um exercício imaginativo ou uma experiência inefável com um fantasma amorfo: se os primeiros cristãos encontraram-se com um Cristo verdadeiramente humano, com um rosto próprio e uma voz particular, é com uma Igreja concreta que se prolonga na História este encontro salvífico — e esta Igreja tem a Sua própria face e a voz que indistintamente é d’Ela. Tem Seus símbolos e Sua linguagem, que A identificam e sem os quais não é possível haver verdadeiro encontro entre os filhos de Deus e a Esposa de Cristo. Se é verdade que há muitas características distintas que cabem no conceito de “homem”, é igualmente verdade que no Verbo de Deus encarnado encontram-se características humanas específicas — uma dada cor de pele, um específico tom de voz, determinada cor de olhos e de cabelos etc. Ora, é claro que há incontáveis elementos humanos com os quais se poderia conceber uma instituição que anunciasse o Evangelho; mas a Igreja, que é o Corpo de Cristo, possui alguns elementos determinados e específicos que respondem por Sua individualidade histórica e por Sua natureza encarnada. E da mesma forma que todo ser humano encontra-se em Cristo Encarnado sem que Ele precise ter ao mesmo tempo todas as distintas características físicas de cada indivíduo, toda cultura humana encontra-se na Igreja de Cristo sem que Ela precise reproduzir em Si mesma todas as culturas — ou cultura nenhuma.

Em terceiro lugar, por fim, por uma questão de catolicidade. A unidade de rito faz com que todo católico, em qualquer parte do mundo em que se encontre, possa vivenciar a Liturgia do modo que está acostumado. Isso complementa admiravelmente o que se dizia acima: se por um lado o católico precisa sentir-se sempre um pouco estrangeiro ao adentrar na igreja da sua terra natal, por outro ele precisa experimentar sempre um ar de familiaridade ao ingressar na igreja de uma terra estranha. O rito católico, justamente por ser universal, não é de lugar algum e é simultaneamente de todos: não existe nenhum fiel capaz de pretender que aquele rito reflita exatamente os costumes particulares do seu povo ou do seu grupo, mas também ninguém pode dizer tratar-se de celebração alienígena que em tudo lhe é estranha. A Sagrada Liturgia é de todos exatamente por não ser de ninguém em particular; esta manifestação sensível de catolicidade fortalece a Igreja e contribui para que todo fiel possa viver melhor a sua Fé. Fazer diferente disso não é enriquecer a cultura particular do fiel, mas ao contrário: é sepultar a cultura universal de todo católico e, fechando-lhe o acesso ao fiel, privá-lo de uma dimensão de eclesialidade que não se pode satisfatoriamente substituir.

Eu pensava nessas coisas porque, em viagem, precisei recentemente assistir a Santa Missa em lugar que eu não conhecia. Mas os meus temores não se concretizaram: Deus foi misericordioso comigo, e me presenteou com uma Missa impecável, celebrada por um sacerdote zeloso cujos olhos estavam o tempo inteiro voltados para Deus. Que o Altíssimo abençoe e recompense aquele padre, que me proporcionou uma bela Missa. Uma Missa sóbria, reverente, comedida, sem invencionices, que poderia ter sido celebrada em qualquer lugar do mundo, por qualquer sacerdote — e, justamente por isso, uma Missa tão católica.

Na Sexagésima, saiu o semeador a semear sua semente

Todo mundo certamente travou contato, em algum momento do antigo Segundo Grau, durante os seus estudos da literatura barroca brasileira, com aquele que é o mais famoso dos sermões do Pe. António Vieira: o Sermão da Sexagésima. O que nem todo mundo sabe – eu, mesmo, só o vim saber muito tempo depois de velho… – é o que significa “Sexagésima”.

Surpresa: a Sexagésima é um domingo específico do ano, escondido dos católicos pela Reforma Litúrgica de 1969. Imediatamente antes da Quaresma – a Quadragesima – há três domingos: na ordem, do mais distante para o mais próximo da Quarta-Feiras de Cinzas, os domingos da Septuagésima, da Sexagésima e da Quinquagésima.

Mais especificamente, o Domingo da Sexagésima é o último domingo antes do de Carnaval. Ou seja, foi ontem.

Ontem, na Santa Missa, eu ouvi a leitura do Evangelho que o pe. António Vieira leu naquele longínquo ano de 1655. A Wikipedia lusófona, aleatoriamente, diz que o tema do sermão – a parábola do semeador – foi extraído «duma passagem bíblica escolhida para a ocasião». Puro devaneio. A passagem não foi “escolhida” coisa nenhuma, ela é a leitura prescrita pelos livros litúrgicos para o domingo anterior àquele que antecede a Quarta-Feira de Cinzas: o domingo da Sexagesima. Não é meditação sobre uma passagem escolhida ao acaso ou à conveniência. É sermão concernente ao tempo litúrgico em que ele é pregado.

Não achei a data exata do sermão; a referida enciclopédia colaborativa diz, tão-somente, “março de 1655”. Não parece que seja verdade. Podemos aplicar os algoritmos para calcular o dia da Páscoa; com isso, descobrimos que, naquele ano, ela caiu no dia 28 de março. O domingo da Sexagesima, assim, foi no dia 31 de janeiro – e é esta, portanto, a data mais provável em que o conhecido sermão foi pela primeira vez pregado. É até possível que ele, após escrito, tenha sido burilado nas semanas posteriores e tenha recebido a sua forma definitiva – a escrita final, que nos chegou – em meados de março mesmo; mas não tem o menor cabimento imaginar que o sermão da Sexagésima retumbou nas paredes da Capela Real portuguesa em março de 1655 – quase à Páscoa! Seria como dizer que um Sermão de Natal fora proferido no início de fevereiro.

Ontem eu ouvi de novo o milenar Evangelho: «Ecce exiit qui seminat, seminare». Na verdade, ouvi-o diretamente em português, naquela que é quiçá a mais elegante das traduções bíblicas para o vernáculo de Camões: «Saiu o semeador a semear sua semente». A aliteração é deliciosa; a cadência da frase, serpentinando, parece mostrar que o semeador segue em zigue-zague, titubeando, andando de lá para cá – e isso explica a semente caindo ao acaso na estrada, na terra seca, entre os espinhos. Se eu tivesse que escolher uma feliz tradução dos Evangelhos, tal seria este versículo.

Mas o original é sempre o original, e eis porque ele não deve ser jamais posto de lado: há uma belíssima exegese, do próprio Pe. António Vieira, no mesmo sermão citado, que é impossível de ser feita a partir do versículo em português que nos acostumamos a ouvir. Assim ressoou um dia na Capela Real:

A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é acção; e as acções são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as acções, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo.

E é por isso que vale a pena o esforço para preservar o latim litúrgico mesmo nas leituras das Escritura Sagradas, é por isso que vale a pena perscrutar a sabedoria dos antigos: muito se perde ao simplesmente verter uma língua n’outra, e a pior forma de ignorância é a de quem acha que já sabe. Aquele antigo adágio do traduttore, traditore! tem mil modos de demonstrar o seu acerto. E, em se tratando da palavra de Deus, não se pode fazer pouco caso dos tesouros que ela tem para nos ofertar. Não podemos deixar que o vernáculo quotidiano oculte as pedras preciosas das Sagradas Escrituras que os antigos já nos garimparam.

A Epifania da Igreja

No último Domingo, Epifania do Senhor, o padre, após a proclamação do Evangelho e antes da homilia, fez a leitura do Noveritis. É a solene proclamação, dentro da primeira Missa dominical do ano (*), de todas as festividades móveis que terão lugar neste ano que inicia. A versão latina, abaixo, peguei no blog do pe. Z; também lá encontrei, neste De publicatione Festorum mobilium, as partituras gregorianas do cântico para os últimos anos.

[(*) A Epifania é o dia de Reis, que se celebra, a rigor, no dia 06 de janeiro. Contudo, em alguns países – entre os quais o Brasil -, a festa da Epifania é sempre celebrada no primeiro domingo depois do dia primeiro de janeiro. Será, portanto, o primeiro domingo do ano na maior parte das vezes, salvo quando dia 01/01 for ele próprio um domingo – e, então, a Epifania fica no segundo domingo do ano.]

Epiphania 2015

Todo mundo sabe que todo ano tem alguns feriados móveis; a Quarta-Feira de Cinzas é sempre uma quarta-feira, Corpus Christi é sempre numa quinta e, a Sexta da Paixão, como o próprio nome diz, cai sempre e insistentemente numa sexta-feira. O que nem todo mundo sabe é que todos esses feriados, embora móveis em relação ao calendário civil, são fixos entre si mesmos. Ou seja: determinado um deles, determinam-se todos os outros.

A festividade-mor, da qual decorrem todas as outras, é a Páscoa da Ressurreição. Ela é marcada com base em um calendário lunar: o domingo de Páscoa é o primeiro domingo após a primeira lua cheia do equinócio de primavera (do hemisfério norte). Assinalada a data da Páscoa, marcam-se automaticamente todos os outros feriados: quarenta dias para trás, temos a Quarta-Feira de Cinzas (o que determina também o Carnaval); cinqüenta dias à frente, Pentecostes. Na segunda quinta-feira após Pentecostes, Corpus Christi.

Duas coisas são interessantes aqui:

1. Durante muito tempo, quando o acesso a calendários não era massificado como nos nossos dias, a primeira Missa do ano foi o momento no qual a maior parte das pessoas era informada a respeito dos feriados móveis. Para além da função óbvia de rezar, ia-se à Missa para saber quais os dias, no corrente ano, em que ocorreriam festas como a Páscoa e o Carnaval. E o nosso século materialista e ateu é constrangido, ainda, a prestar este tributo à Igreja de Cristo: ainda hoje, o calendário civil, para assinalar os seus feriados, depende do que a Igreja vai cantar no Noveritis do primeiro domingo do ano.

2. Assim como estes feriados civis – v.g. o Carnaval, a Semana Santa, Corpus Christi – decorrem do Calendário Litúrgico (o que é um belo símbolo da justa submissão de César à Esposa de Cristo), também há uma hierarquia no interior do ano eclesiástico: todas as festividades decorrem da Páscoa. É ela o ápice do Ano Litúrgico, é com referência a ela que todas as outras festas são marcadas, é ela que determina todo o resto, é em torno dela que orbitam todas as festas móveis católicas. Mistagogia é aprender a Fé cristã a partir do culto católico; e que bela maneira de fazer «catequese litúrgica» essa, mostrando que todo o culto da Igreja, ao longo de todo o ano, está orientado para a Páscoa do Senhor!

No Domingo, festa da Epifania, a Igreja se assenhoreia do tempo profano e, do alto do púlpito, assinala as datas às quais o calendário civil deve aquiescer. Epifania, palavra que significa manifestação: em primeiríssimo lugar do Menino-Deus aos Reis Magos, é evidente, mas também da Igreja à sociedade civil – da Igreja cuja celebração da Páscoa se estende para além das fronteiras eclesiásticas e dita os rumos do ano de César. Um dia, Magos do Oriente vieram adorar um Recém-Nascido numa manjedoura, oferecendo-Lhe presentes. Cedendo-Lhe alguns dias do ano, ainda hoje, na mesma data, os poderosos do mundo prestam deferência à legítima Herdeira do legado d’Ele.

Os herdeiros dos que já se foram

Todos conhecemos, das aulas de Catecismo, a tríplice “divisão” (permitamo-nos essa impropriedade terminológica em se tratando da Igreja Una) da Igreja em Militante, Triunfante e Padecente. Os fiéis que nos encontramos ainda no caminho desta vida, lutando contra o pecado a fim de, um dia, merecermos o convívio dos eleitos; os fiéis que já se encontram diante do Trono do Altíssimo, gozando da visão beatífica para a qual a infinita bondade de Deus os chamou; e os fiéis que, tendo morrido na amizade de Deus mas ainda com penas a pagar pelos seus pecados, encontram-se no Purgatório a expiar as suas faltas, preparando-se para a entrada definitiva na Jerusalém Celeste. Os primeiros são lembrados na Solenidade de Cristo-Rei; os segundos, comemoram-se na Festa de Todos os Santos; aos últimos dirige-se a Liturgia do dia de hoje, do dia de Finados.

Os fiéis defuntos! É de um misto de tristeza e alegria o dia dos Mortos: dizê-lo é uma banalidade. Sim, é triste porque eles partiram e gostaríamos que estivessem ainda conosco. Mas é feliz por conta da esperança da Vida Eterna, em cuja ante-sala os nossos entes queridos se encontram (ou, ao menos, temos a esperança de que se encontrem). Mas é mais do que isso: há uma certa incompreendida justiça no dia de hoje.

Porque este é o dia em que a presença dos que já partiram se prolonga no tempo para além do curso de sua existência terrestre, e nos atinge com a força de uma realidade inamovível: recusamo-nos a esquecer. O esquecimento, acho que alguém já disse, é pior do que a morte. Há uma certa tendência (cada vez mais institucionalizada, eu diria) a tratar como se nunca tivessem existido aqueles que não existem mais: eu o percebia dia desses, no Facebook, quando procurava certa postagem feita por um amigo há poucos meses falecido. Rolei e rolei o grupo sem encontrar o que procurava; de repente me dei conta de que o perfil dele havia sido apagado e, com isso, todas as suas intervenções simplesmente desapareceram da rede social, como se nunca houvessem estado lá. E podem dizer que são mórbidos “perfis de gente morta”, observação com a qual eu talvez até concorde; mas que os registros da passagem de um nosso ente querido pelo mundo sejam apagados a ponto de alguém não ser capaz de saber que ele existiu… tal é profundamente injusto e, do contrário disso, ninguém será capaz de me convencer.

finados

Hoje, na Missa de Finados, diante da Essa mortuária liturgicamente colocada na nave central da igreja, eu pensava nessas coisas. A vida passa num átimo, disso eu já me apercebera há algum tempo; mas o dia de hoje nos diz mais do que isso. A celebração dos fiéis defuntos nos ensina que é necessário um esforço consciente a fim de não deixarmos cair no esquecimento a memória dos que nos precederam no caminho desta vida. Importa que eles sejam lembrados! É, como eu dizia, uma questão de justiça. Afinal de contas, o mundo só é do jeito que é por conta das contribuições, pequenas ou grandes, que lhe fizeram os que hoje celebramos (isso é particularmente verdadeiro para os nossos entes queridos, mas tem validade universal). De fato, há diversos caminhos que poderiam, teoricamente, ter nos conduzido até aqui; mas foi um caminho específico e determinado o que nós percorremos; e reconhecê-lo nos faz mais humanos. As estradas que agora trilhamos foram abertas pelos que vieram antes de nós, para com os quais temos uma dupla dívida: por um lado, temos que lhes ser gratos e, por outro, temos que lhes continuar a luta. Afinal, até aqui eles nos trouxeram. Temos que deixar os que nos sucederão um pouco mais além.

No dia de Finados, é momento de elevar ao Altíssimo algumas orações em sufrágio pelas almas dos que padecem no Purgatório. Que o Bom Deus tenha misericórdia deles! Que lhes conceda o descanso eterno, a luz e a paz. E que nos ajude, a nós, a honrarmo-lhes a memória. A nós, que ficamos, e temos o dever de sermos um pouco mais do que nós mesmos: temos o dever de ser um reflexo dos que já não são. Somos os herdeiros dos que hoje comemoramos: não o esqueçamos. Que eles nos olhem com orgulho e admiração. Que descansem em paz.

Não temos o direito de abandoná-Lo

Deparo-me, vez por outra, com a alegação de que os católicos estão desobrigados de cumprir o preceito dominical caso não disponham de uma missa específica (v.g. uma Missa Tridentina) para assistir. Ora, tal alegação é falsa e ímpia, e demonstrá-lo não é difícil. Porque os que alegam semelhante temeridade fazem-no com base no pressuposto de que tal ou qual missa (v.g. uma repleta de abusos litúrgicos, ou uma Missa Nova, ou mesmo – pasmem – uma Missa Tridentina celebrada de acordo com a faculdade concedida pelo Summorum Pontificum (!)) seja capaz de causar dano à Fé de quem dela participa. Ora:

1. Que uma Missa explicitamente autorizada pela Igreja visível possa em si mesma ser daninha à Fé contraria a infalibilidade da Igreja em matéria litúrgica. Se tal fosse possível, estar-se-ia então desobrigado não só de assistir a determinada Missa, senão todas elas, porque a Igreja, tal qual como A conheceu vinte séculos de Cristianismo, teria deixado de existir.

2. Ainda que se diga, para salvaguardar o munus sanctificandi da Igreja, que a nocividade de tal ou qual Missa é-lhe não intrínseca, mas acidental, ainda assim tal dispensa não pode ser deixada ao alvitre de cada um. Seria o caso da impossibilidade moral de que falam os antigos moralistas, cuja determinação precisa exige i) uma situação concreta; e ii) o juízo da autoridade competente (v.g. o pároco). Se se diz – p.ex. – que “toda missa celebrada de acordo com o Novus Ordo Missae é nociva”, então se recai no ponto 1. acima (uma vez que um acidente que se verifica inalterável em todos os entes de uma determinada espécie não pode de maneira alguma ser tratado como acidente vere et proprie).

3. Ainda: se não for caso de impossibilidade moral, mas meramente de conveniência – digamos, que a alegação seja a de que uma Missa má celebrada predisponha a alma a tratar com desleixo as coisas sagradas etc. -, então das duas uma: ou a pessoa tem consciência de estar sendo conduzida à tibieza, ou é a ela conduzida sem disso ter consciência, et tertium non datur. Se a pessoa não tem consciência do perigo a que (alegadamente) se expõe, então é evidente que não pode pleitear uma dispensa com base numa ameaça que ignora – na verdade, ela não pode nem mesmo imaginar a necessidade da dispensa. Se, ao contrário, a pessoa tem conhecimento o bastante para saber que tal ou qual situação a conduz à impiedade e ao enfraquecimento da Fé, então ela está em condições de resistir a estas influências e, portanto, não ser por elas afetada de modo suficientemente grave para justificar a dispensa. Trata-se aqui, na verdade, de um paradoxo da fundamentação impossível: as pessoas ignorantes que poderiam em princípio ser conduzidas para longe da Fé por conta de certas omissões ou ambiguidades em determinada celebração estão, por conta da ignorância mesma, incapazes de pedir a dispensa ou mesmo de imaginar que ela possa existir; ao contrário, as pessoas que têm suficiente conhecimento litúrgico para identificar aquelas omissões e ambiguidades, pelo fato mesmo de as identificarem, não estão sujeitas a terem a sua Fé por elas enfraquecida.

4. Por fim, se o caso for da ilicitude de se participar dos sacramentos – mesmo válidos e intrinsecamente santificantes – dos não-católicos (alegando-se, v.g., que os que celebram a Missa em tais ou quais condições não possuem a Fé Católica e, portanto, estar-se-ia cometendo uma communicatio in sacris proibida se se lhes assistisse às celebrações), trata-se aqui de donatismo totalmente extemporâneo e injustificado. Santo Tomás de Aquino distingue explicitamente entre os que estão privados de ministrar sacramentos por «sentença divina» (ex sententia divina) e por «sentença eclesiástica» (ex sententia Ecclesiae), e diz que somente das missas destes últimos é proibido ao fiel católico tomar parte:

Porque os hereges, cismáticos e excomungados estão privados do exercício de consagrar por sentença eclesiástica – pelo que peca todo aquele que ouça suas Missas ou deles receba os Sacramentos. Mas nem todos os pecadores estão privados do exercício dessa potestade por sentença da Igreja. De tal modo que, ainda que [alguns] estejam suspensos por sentença divina, não o estão no que diz respeito aos demais [fiéis] por sentença eclesiástica. De onde se segue que seja lícito receber deles a comunhão e ouvir as suas missas até que a Igreja pronuncie a Sua sentença.

Summa, IIIa, q.82, a.9., Resp.

Rejeitem-se, portanto, todos os arrazoados que intentem dispensar por conta própria os católicos do cumprimento de seus deveres religiosos. Mandamento é o que o próprio nome diz: é Mandamento, e é precisamente quando é difícil que o seu cumprimento se torna mais necessário. É particularmente duro ser católico nos dias de hoje; poucas coisas conduzem menos a alma à adoração do que as nossas missas medianas, medíocres de símbolos e repletas de abusos. Poucos ambientes são mais hostis à oração do que as nossas paróquias repletas de palmas, de baterias barulhentas, de leigos no altar. No entanto, é exatamente por ser mais difícil descobrir Nosso Senhor por debaixo da mundanidade eclesiástica que o nosso ato de Fé é mais meritório.

É à obediência da Fé que somos chamados, e não temos o direito de dar as costas à graça de Deus porque a indignidade dos Seus ministros nos ofende. Garanto que muito mais ofende a Cristo, e mesmo assim Ele não hesita em Se doar de novo e de novo debaixo do pandemônio litúrgico contemporâneo. Se Cristo permanece lá, nós não temos o direito de abandoná-Lo. Uma coisa justa e meritória é enxugar o rosto chagado de Cristo; outra, completamente diferente, é debandar do Calvário por não suportar os escarros que lançam sobre Sua Sagrada Face.

Também o Papa Francisco celebra versus Deum

Já faz quase uma semana, mas eu não queria deixar de registrar que o Papa Francisco, na Festa do Batismo do Senhor, celebrou versus Deum na Capela Sistina. A foto abaixo é do pe. Z:

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A notícia me deixou sobremaneira feliz por dois motivos.

O primeiro é que, ao contrário do que aconteceu no túmulo de João Paulo II, aqui não há mais desculpas de ordem pragmática. “No túmulo de João Paulo II não dava pra colocar uma mesa”, disseram alguns à época; pois bem, ainda que isso seja verdade, na Sistina dava e o Papa dessa vez não a colocou. Celebrou, assim, versus Deum podendo ter escolhido celebrar versus populum. Celebrou porque quis.

O segundo é porque foi precisamente na Capela Sistina que o Papa Francisco resolveu colocar uma mesa na sua primeira Missa celebrada como Romano Pontífice. Lembro-me de que registrei dolorosamente o fato aqui no Deus lo Vult! e, agora, é como se uma espinha se nos tivesse sido arrancada da garganta, como se os fios houvessem percorrido o caminho inverso para desatar o nó: na Sistina um dia o Papa deu as costas ao Altar, na Sistina hoje o mesmo Papa celebra tendo diante de si o Juízo Final.

É óbvio que isso não significa o menor desmerecimento, por parte do Sumo Pontífice, da Missa celebrada de frente para o povo, e é igualmente óbvio que o Papa Francisco não vai adotar agora o ad orientem como posição oficial das celebrações pontifícias. O ponto não é esse. O que este gesto do Papa mostra é que não existe da parte dele a menor hostilidade para com o versus Deum. Não há nenhum preconceito ideológico – tão comum nos nossos dias! – com o padre celebrar “de costas para o povo” e, embora o Vigário de Cristo possa pessoalmente preferir celebrar na posição que se popularizou nas últimas décadas, entende que outros elementos litúrgicos extraordinários têm lugar na catolicidade da Igreja.

O Papa tanto entende que é legítimo celebrar ad orientem que ele próprio celebrou dessa maneira, para o mundo inteiro ver! Calem-se portanto os “liturgistas” modernos com suas teorias estapafúrdias, dêem lugar os ideólogos da moda ao exemplo que se nos chega do próprio Vigário de Cristo. Também o Papa Francisco celebra versus Deum. Aprendamos com o seu exemplo, respeitemos o que ele demonstra respeitar.

Jornal “A Tarde” publica matéria sobre Missa Tridentina em Salvador

[A Missa Tradicional celebrada em Salvador – cujo aniversário de dois anos foi anunciado aqui – foi assunto de uma simpática matéria no “A Tarde”, conhecido jornal da Bahia. Reproduzo abaixo o .pdf que recebi por email, agradecendo ao meu caro amigo soteropolitano pela gentileza do envio.

Maravilhosa a explicação do pe. Gilson: “O sacerdote não está de costas para o povo, mas, com o povo, olha o oriente”. E isso, que não ouvimos nas nossas paróquias, exposto assim com clareza e sem preconceitos num jornal secular! São as pedras falando, porque se calaram os que tinham o dever de instruir o povo de Deus.

Cliquem nas fotos (ou aqui) para obterem o arquivo .pdf em maior resolução.]

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Dois anos de Missa Tridentina em Salvador!

É com alegria que comunico aos leitores do blog o aniversário da Missa Tridentina em Salvador! Conforme recebi por email de um amigo,

neste dia 08 de dezembro, domingo, Festa de Nossa Senhora da Conceição, em Salvador/BA, Sé Primacial do Brasil, às 08h30min da manhã, estaremos comemorando 02 anos de nossa Missa Tradicional na Capela Nossa Senhora da Vitória (antigo Colégio Maristas do Canela), situada na Rua Araújo Pinho, nº 39, a qual será celebrada pelo Padre Gilson Magno!

Anunciei aqui o início destas santas celebrações. Já faz quase dois anos… graças ao bom Deus! Os amigos de Salvador sabem os percalços que precisaram enfrentar ao longo deste tempo. Mas eles não esmoreceram e, graças ao bom Deus, já é o segundo aniversário da Forma Extraordinária do Rito Romano na Sé Primacial do país.

Que ela se multiplique no tempo e no espaço: que venham ainda muitos anos, e muitas outras dioceses possam seguir os piedosos passos de São Salvador da Bahia. No próximo domingo, Imaculada Conceição da Santíssima Virgem, é também dia de entoar o Te Deum solene, em agradecimento pela Missa Gregoriana. Na Sé Primaz do Brasil. Quem diria que chegaríamos até aqui… Bendito seja Deus para sempre!

A “reforma histórica” do Papa Francisco (I) – A Liturgia

Diz-nos a mídia secular que o Papa Francisco está para fazer uma “reforma histórica”. Nós bem sabemos o quão estapafúrdia é a cobertura da grande mídia em assuntos eclesiásticos; inobstante, por detrás de cada manchete mentirosa ou reportagem deturpada há sempre alguma coisa de verdade que convém escarafunchar, quer seja para desmentir os prognósticos disparatados da imprensa, quer seja para nos informarmos realmente sobre o que está acontecendo – esta que deveria ser a função da imprensa, mas que ela obviamente não cumpre e, portanto, sobra para nós corrermos atrás dos fatos por conta própria.

O que há de verdade neste burburinho que ouvimos ao nosso redor? O Papa vai fazer algumas coisas. Fato, aliás, completamente simples e banal: é lógico que o Papa está sempre fazendo coisas, pois precisa administrar uma Igreja com um bilhão de fiéis e, se nunca houvesse nada a ser feito, não seria necessário sentar um monarca plenipotenciário no Trono de São Pedro. O Papa vai tomar as decisões de governo que compete a ele como Romano Pontífice: é lógico que vai. Chamar isso de «reforma», contudo, é a primeira armadilha midiática que precisamos evitar como o diabo: «reforma» é uma palavra que traz em si um programa, indicando que as coisas vão mal e é necessário “mudar tudo” para colocá-las novamente nos eixos.

Quando a mentalidade contemporânea pensa em «reforma», ela pensa automaticamente em abandonar coisas velhas para abraçar novas coisas: dificilmente “reformar” uma casa, por exemplo, significa – como se deveria esperar pelo étimo da palavra – conduzi-la novamente ao que ela era quando foi originalmente construída. Reformar uma casa é mudá-la: é construir um outro cômodo, é substituir toda a cozinha, é levantar um outro pavimento, et cetera. Na vida da Igreja é tudo muito diferente: a reforma do Carmelo, por exemplo, é o retorno à espiritualidade carmelita original. Ora, se é a mídia quem está falando em «reforma», convém entender a expressão no sentido corriqueiro do termo. O que a imprensa está aventando é que o Papa vai fazer «coisas novas» na Igreja.

Eu infelizmente não acredito que o Papa Francisco vá fazer uma «reforma» no sentido teresiano. Precisamos rezar, e muito, pelas decisões de governo que ele vem tomando e está na iminência de tomar, porque antevejo incontáveis mudanças plausíveis que ele poderia introduzir na Igreja, e das quais eu sinceramente não consigo enxergar o bem que poderia advir.

Por exemplo, com relação à Sagrada Liturgia. É bem sabido que o Papa Francisco distancia-se bastante do estilo de Bento XVI; para ficar apenas em dois exemplos que são de partir o coração, ele colocou uma mesa na Capela Sistina no dia em que foi eleito para não precisar celebrar versus Deum, e adotou o italiano nas liturgias pontifícias em abandono ao latim que o seu predecessor restaurara. Possui igualmente uma estética litúrgica à qual eu me permito fazer um comentário: embora os paramentos que enverga tenham aquela «nobre simplicidade» que minimamente se exige no Rito Romano, é de se lamentar o virtual abandono das vestes antigas. Bento XVI – disse o «Departamento das Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice» em 2010 – «apresenta[va] um modelo em suas celebrações, quando usa[va] tanto vestes de estilo moderno como, em alguma ocasião solene, as “clássicas”, também usadas por seus antecessores». Enche-me de tristeza que este «exemplo do escriba (…), comparado por Jesus com um chefe de família que tira do seu tesouro nova et vetera» não seja compartilhado pelo atual Vigário de Cristo.

Sobre o mesmo assunto, são angustiantes estas duas notícias, uma delas por enquanto apenas um rumor, mas a segunda, já um fato consumado. O fato: «os consultores da Oficina de Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice foram todos – T.O.D.O.S – removidos dos seus postos». Foi uma remoção sutil, que consistiu somente na não-renovação da provisão de cinco anos que detêm todos os cargos consultivos da Cúria, mas ainda assim uma dolorosa remoção: está desfeita a retaguarda teórica que Bento XVI constituíra na Cúria Romana para zelar pelas liturgias pontifícias. O rumor: o arcebispo Piero Marini – não confundir com D. Guido Marini, [por enquanto ainda] cerimoniário pontifício do Papa Francisco – pode ser nomeado a qualquer instante «como novo Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos». O “mau Marini” era cerimoniário pontifício à época de João Paulo II, e foi o responsável direto pela situação deplorável à qual por incontáveis vezes se reduziram as celebrações do Bem-Aventurado Pontífice. A se confirmar esta malfadada nomeação, será um duro golpe em todos os católicos que têm amor pela Sagrada Liturgia e que entendem a importância da «reforma da Reforma» para a solução da crise atual.

Nuvens negras se assomam no horizonte! Precisamos rezar com mais afinco, que aparentemente ainda não estamos fazendo o bastante. Como dizem estas felicíssimas palavras do padre Tim Finigan citando S. Vicente Ferrer que o Fratres recentemente traduziu, «se você discorda do Papa, a oração não é simplesmente um conforto sentimental piedoso, mas o curso de ação apropriado, uma vez que ela é um apelo ao seu superior imediato». Rezemos pelo Papa, rezemos pelo bem da Santa Madre Igreja.