A respeito de alguns textos (aqui) trazidos pelo Felipe Coelho nos comentários de um outro post do Deus lo Vult! sobre a Reforma Litúrgica, vale a pena tecer algumas considerações. Considero inegável que multidões de católicos perderam a Fé nas últimas décadas, muitas vezes sem sequer o perceber. No entanto, que tal se possa creditar ao «Novus Ordo» simpliciter, é um ponto francamente insustentável, como passaremos a demonstrar:
1. Os dois principais pontos apresentados nos textos acima linkados são i) que o «mysterium Fidei» foi deslocado das palavras da Consagração para imediatamente em seqüência a elas; e ii) que a «dimensão oblativa do Sacrifício da Missa», «significada pelo ofertório» tradicional, deixou de ser explicitada pelo do Novus Ordo. Estes constituem, aliás, em essência, o cerne das críticas que se costuma dirigir à Reforma: o “obscurecimento” de certas verdades distintivas do culto católico nos textos do Missal Reformado, mormente no Offertorium e no Canon Missae.
2. Ora, essas mudanças não poderiam jamais ter o condão de diminuir a Fé dos católicos medianos, por uma única e simples razão: na Missa Tradicional, todas essas orações eram proferidas em voz submissa pelo sacerdote somente, ou seja, o católico médio não tinha contato com elas no contexto da celebração da Santa Missa segundo as rubricas vigentes até 1969!
2.1. Tanto os católicos não tinham conhecimento do que o sacerdote falava ou deixava de falar no cânon que, p.ex., os católicos alemães da época da Reforma não perceberam quando os protestantes deixaram de o rezar, invalidando assim as Missas que eles assistiam! Isto é o que é contado pelo Mons. Klaus Gamber no seu livro sobre «A Reforma da Liturgia Romana»: «Quando por exemplo o reformador [Lutero] e seus partidários começaram a suprimir o cânon, ninguém se deu conta, pois, como se sabe, o cânon se dizia sempre em voz baixa» (op. cit., p. 24). O mesmo diz Sta. Catarina de Siena numa passagem d’O Diálogo que eu cito de memória, quando Deus diz à santa que muitos sacerdotes, por estarem em pecado e temerem comer a própria condenação caso comungassem o Santíssimo Corpo de Cristo, simplesmente deixavam de pronunciar as palavras da Consagração quando celebravam Missa. Como ninguém o percebia, o Altíssimo diz ainda à santa que ela poderia se precaver de adorar um simples pedaço de pão quando assistia Missa por meio de uma fórmula de adoração condicional: “adoro-Vos, Senhor, presente nesta Hóstia Consagrada, se este sacerdote pronunciou as palavras que deveria pronunciar”.
2.2. Os católicos medianos não tinham e não têm consciência do que o sacerdote rezava ou reza durante o Offertorium, pois ele, na Missa Antiga e na esmagadora maioria das Missas Novas, é rezado igualmente em voz baixa. Isso tanto é verdade que um sacerdote pode perfeitamente, p.ex., durante a celebração do Novus Ordo, trocar o Ofertório novo pelo tradicional, sem que os fiéis presentes sejam minimamente capazes de perceber a troca. Com semelhante mudança, aliás, a percepção da «dimensão oblativa» da Missa pelos fiéis presentes seria rigorosamente a mesma, sem tirar nem pôr, e uma vez que o acréscimo do Offertorium tradicional à celebração da Missa não é capaz de aumentar nos fiéis o sentido do seu caráter sacrifical, pela mesmíssima razão a sua retirada não pode ter sido capaz de lhes o diminuir.
2.3. É portanto totalmente contrário à realidade pretender que os católicos medianos tenham sido impactados por estas alterações nos livros litúrgicos, uma vez que eles não foram sequer capazes de percebê-las. Neste sentido “catequético”, aliás, a situação da Liturgia Reformada é até melhor, porque antes os fiéis não ouviam nada nem no Offertorium e nem no Canon, e agora continuam sem ouvir nada durante o Ofertório mas ao menos escutam em alto e bom som o Cânon da Missa, especialmente as palavras da Consagração.
2.4. Como todo efeito pede uma causa proporcionada, foge a toda razoabilidade pretender que a supressão de certas orações explicitamente sacrificais que constavam no Rito Tradicional possa ter minimamente afetado a Fé dos católicos comuns, uma vez que estes não as ouviam serem proferidas no Rito Antigo e, portanto, não podem, por óbvio, sentir a falta delas no Rito Moderno. Estas mudanças específicas foram completamente imperceptíveis para o grosso dos fiéis; logo, não podem ter feito jamais com que estes perdessem a Fé.
3. Deve portanto ser procurada em outro lugar a «causa» da perda da Fé dos fiéis médios. Na parte que cabe à crise da Liturgia, penso que esta deve forçosamente ser buscada naquilo que é perceptível aos fiéis, ou seja, não nas mudanças do Ofertório ou do Cânon, mas na sacralidade com a qual o Rito – qualquer que seja ele – é celebrado. Esta é aliás a opinião do então Card. Ratzinger:
“(…) Era de se esperar que os fiéis interpretem a liturgia a partir das formas concretas visíveis, e que sejam determinados espiritualmente por aquelas formas: os fiéis não penetram facilmente na profundidade da liturgia. As contradições e os contrastes que mencionamos não têm origem nem no espírito do Concílio, nem nos documentos conciliares. A ‘Constituição sobre a Sagrada Liturgia’ [do Concílio Vaticano II] não especifica nada sobre celebração virada para o altar ou para o povo; em tema de idioma, a Constituição recomenda que o latim seja mantido, mesmo dando um espaço maior para o vernáculo, ‘especialmente nas leituras e nas admonições, em algumas orações e nos cantos’ (Sacrosanctum Concilium, n. 36,2)”. Portanto, “a diferença entre velhos e novos livros litúrgicos é responsável somente em mínima parte pela crise da liturgia e a crise da Igreja, na qual se encontra há bastante tempo”. O verdadeiro ponto da questão é que houve uma mudança radical de mentalidade sobre a própria natureza da liturgia e até, em última análise, da Igreja. O Cardeal a sintetiza de forma peremptória: “O mistério sagrado foi substituído por uma criatividade selvagem”.
Dag Tessore,
“Bento XVI – Questões de Fé, ética e pensamento na obra de Joseph Ratzinger”,
pág. 85
4. Deste modo, à pergunta sobre «[q]ual foi, concretamente, o efeito da mudança [do texto] nas crenças do povo, na medida em que se pode avaliá-lo?», pode-se responder com bastante segurança: praticamente nulo. O fiel comum tinha pouquíssimo contato com os textos que foram mudados pela Reforma de Paulo VI. Os elementos da Liturgia que ele percebia e percebe mais diretamente sempre foram outros que não o texto: a dignidade dos paramentos, a posição do sacerdote, a língua, o canto. Nenhum desses últimos foi tocado pela Reforma Litúrgica. Não é, portanto, à «diferença entre velhos e novos livros litúrgicos» que se deve creditar a responsabilidade pela perda de Fé do comum dos fiéis.
5. Embora seja possível e útil analisar pormenorizadamente as questões levantadas sobre mudanças nas palavras da Consagração ou supressão dos elementos sacrificais do Offertorium – coisa que poderemos fazer oportunamente -, de antemão é possível dizer já duas coisas que, para o fim a que nos propusemos neste artigo, são mais do que suficientes:
5.1. que não há nenhuma dúvida séria entre os teólogos de que as palavras da Consagração da forma como se encontram hoje no Novus Ordo sejam suficientes para a confecção da Eucaristia e, portanto, as Missas celebradas com estas fórmulas são válidas, e igualmente que o caráter sacrifical da Missa Nova, ainda que ausente do Ofertório, está decerto presente em partes outras da Missa suficientes para lhe caracterizar enquanto culto católico; e principalmente
5.2. que nenhuma dessas mudanças pode ter jamais feito com que os fiéis comuns perdessem a Fé, uma vez que não foram sequer percebidas por eles; e portanto as causas da (inegável) crise de Fé hoje existente devem ser buscadas em outros lugares que não na simples mudança dos «textos» com os quais era celebrada a Santa Missa.
Possam estas considerações demonstrar como são infundadas certas acusações lançadas ao Missal de Paulo VI, como se ele fosse em si mesmo responsável por coisas que – como explicamos acima – não poderia absolutamente atingir nem mesmo que o intentasse explicitamente. Com isso, espera-se que as discussões sobre a [Reforma da] Reforma Litúrgica possam se voltar para os problemas reais e existentes, sem que sejam creditados a ela problemas que absolutamente não lhe cabem – coisa que nada contribui para a apreciação do assunto com a seriedade que ele exige e merece.