A religião é o ópio do povo

Hoje é a festa da Imaculada Conceição, e parece que o mundo entra em um saudável afastamento das coisas mundanas para se dedicar, com um pouco mais de afinco, às celestiais. Eu comentava mais cedo: à hora do almoço, a cobertura da Globo não versava sobre a crise econômica, sobre a carta-bomba de Michel Temer, sobre o Impeachment que está às portas, sobre nada disso. Ao contrário, a programação estava, ao vivo, no Morro da Conceição, aqui em Recife, mostrando imagens da festa, entrevistando os fiéis, com reportagens sobre a história da devoção etc.

A religião é o ópio do povo, diz a conhecida máxima marxista. A crítica é fruto de uma má compreensão. Na visão materialista, trata-se de atribuir uma qualidade negativa à religião porque ela “aliena”, porque ela afasta os seres humanos da sua capacidade de lutar por uma vida melhor e mais justa, porque ela tende a “acomodar” os indivíduos, mormente os mais fracos, à opressão que lhes impõem os poderosos: isso a torna o “ópio” que encarcera os miseráveis em sua miséria, que lhes impede assenhorear-se da própria história. À primeira vista parece até fazer sentido; no entanto, a concepção é equivocada. Trago três razões pelas quais ela se equivoca.

Em primeiro lugar, porque não existe verdadeira oposição entre a vida material e a vida espiritual: ambas se complementam e se interpenetram. O homem, que é corpo e alma, tem necessidades espirituais e as tem também materiais, e isso de tal sorte que, faltando uma delas, a outra adquire contornos desordenados. Os exemplos são bastante claros. A ênfase nas necessidades materiais alijadas de uma concepção espiritual degenera no consumismo desenfreado dos nossos dias. Por sua vez, uma supervalorização da espiritualidade — hipótese cuja existência é muito mais complicada e, por isso, mesmo os seus exemplos históricos são escassos — culminaria no desprezo ao mundo, típico dos cátaros medievais ou dos seguidores de Jim Jones. Em última análise, degeneraria no suicídio.

Um parêntese: é aliás interessante como o suicídio é encontrado nestes dois pólos aparentemente opostos, na “espiritualização” excessiva e desordenada como também na ultra-materialização da vida: as altas taxas de suicídio verificadas nos países nórdicos já se tornaram um lugar comum, a questionar incomodamente o mito do bem-estar material como característica suficiente para garantir qualidade de vida.

Em segundo lugar, porque a religião existe no mundo e, em um certo sentido, para o mundo. Sim, é óbvio que a religião é “para Deus” no sentido de que o culto é direcionado a Deus, digno de todo louvor, que o homem voltar-se ao Seu Criador é um dever de justiça et cetera; tudo isto é verdade e está fora de discussão aqui. Mas a religião não elide — ao contrário, pressupõe — os deveres dos homens para com os outros homens, para com a família e a pátria, os pobres e os desvalidos, as autoridades constituídas. É este o sentido da famosa apologia de Santo Agostinho: os que dizem que a Doutrina de Cristo é inimiga do Estado, dêem-nos soldados como a Doutrina de Cristo ensina que devam ser os soldados, pais e filhos como a Igreja ensina que devam ser os filhos e os pais, maridos como aquela Doutrina determina que sejam os maridos, esposas como ela ensina que devam ser as esposas, patrões e empregados, juízes e reis, contribuintes e cobradores de impostos como os forma a Doutrina de Cristo — e, depois, venham falar em oposição entre os interesses do Evangelho e os do Estado (cf. Carta 138, 15). À religião, portanto, ao menos à religião verdadeira, não cabe a censura de afastar os seres humanos dos cuidados do mundo. Ao contrário, ela exige este cuidado como condição para a salvação da própria alma, que é o dever máximo incutido nos espíritos dos fiéis pelos sermões que ecoam o Evangelho de Nosso Senhor.

Em terceiro lugar, por fim, e mais importante, porque a religião tem pretensão de universalidade: os seus destinatários não são somente os pobres e desvalidos (os quais fossem, talvez, induzidos a abaixar a cabeça e aceitar passivamente a injustiça da própria condição), mas igualmente os ricos e poderosos. Ora, a mesma doutrina que manda suportar as adversidades é aquela que diz que os homens devem suportar as cargas uns dos outros. A religião que exalta a pobreza é a mesma que manda os ricos venderem os seus bens para das aos pobres. De que maneira levar a sério a pregação de um, v.g., São João Crisóstomo — «Não fazer os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos» (cf. Catecismo, 2446) — poderia levar à manutenção do status quo degradante e excludente contra o qual a sensibilidade humana, com toda a razão, insiste em protestar? Na verdade, não é os pobres terem religião o que mantém o mundo injusto. Ao contrário, o mundo continua insuportavelmente injusto porque os ricos e poderosos não dão ouvidos ao que prega a Doutrina de Cristo!

Hoje é a festa da Imaculada Conceição; e esta festa, que hoje ganha espaço nos nossos meios de comunicação em meio à turbulência do noticiário político e econômico, tem na verdade uma divulgação muito menor do que mereceria. Se o Brasil acorresse aos pés da mãe de Deus, os males que hoje o afligem dissipar-se-iam qual névoa ao amanhecer. Em meio à atividade febril do dia a dia, portanto, importa que cada um de nós, brasileiros, não nos esqueçamos jamais de colocar no centro de nossa vida, no centro de nossa atenção, aquilo que é verdadeiramente importante: nossa Senhora da Conceição, rogai por nós, salvai o Brasil! Sem esta jaculatória constantemente nos lábios e no coração tudo o mais que façamos será inútil. Sem isso, não lograremos senão fatigarmo-nos em vão.

Por que não ataco o Papa Francisco? Ora, porque não sou papista!

As reações ao último texto daqui do blog ensejam uma reflexão oportuna. Sintetizando diversos comentários no mesmo sentido, um leitor acusou-me de escrever escondendo informações “importantes” e “embaraçosas” a respeito da atual situação da Igreja. Como exemplo paradigmático do tipo de informações que estão (no entender dele, injustificadamente) ausentes das minhas análises, ele afirmou o seguinte:

Você, por exemplo, nada comenta sobre a montanha de evidências que mostram o Papa Francisco favorável à comunhão dos recasados

Ora, isso não é de todo exato. Eu nada comento a respeito deste assunto e de outros correlatos, exceto quando é para dizer que aquilo de que acusam o Papa não é exatamente assim como estão dizendo — nestes casos, aliás, eu já comentei aqui muitíssimas vezes: à guisa de exemplo, eu poderia citar o que escrevi quando disseram que o Papa era a favor do desarmamento, que ele condenara taxativamente a pena de morte, que dissera que o inferno não existia e/ou eterno não era ou até mesmo — pasmem! — quando se levantou uma polêmica terrível, instaurada, claro, por S. S. o Papa Francisco, para se saber se os cãezinhos e gatinhos iam ou não para o Paraíso. Não é portanto exatamente verdade que eu nada comento sobre aquilo que é desabonador a Sua Santidade. O que é verdade — e que provavelmente é o que o autor do comentário quis dizer — é que eu não confiro ares de seriedade e importância a este tipo de informação. Não lhe concedo cidadania aqui no blog.

E isto, sim, eu assumo: não, não faço eco, não mesmo, aos boatos desabonadores a respeito do Vigário de Cristo, e nem acho que outras pessoas deveriam fazê-lo, porque isto — como disse ontem no comentário e desenvolvo melhor agora — é irrelevante para o Catolicismo, irreverente para com o Santo Padre e daninho às almas.

Em primeiro lugar é irrelevante porque o que o Papa pensa ou deixa de pensar privadamente, ou mesmo aquilo que ele insinua em conversas informais, não faz parte do Magistério da Igreja, não é de adesão obrigatória aos fiéis católicos e, portanto, não integra a “regra próxima da Fé” que deve ser seguida por todo fiel. O que o Papa diz (ou mesmo pensa) privadamente não interessa à Fé. Não faz o menor sentido, e para ninguém!, pretender que o Catolicismo seja uma religião que se constrói e apreende na coloquialidade com o Papa — ou, melhor dizendo, com o filtro que os meios de comunicação apresentam do Papa –, como se já não existissem montanhas de conhecimentos a respeito do Catolicismo, como se tudo isso não fosse desde sempre obrigatório a todo católico (inclusive ao Papa!) ou como se o Cristianismo de vinte séculos estivesse a todo momento periclitante, sempre dependendo da próxima entrevista pontifícia para ser confirmado ou ruir por terra.

A Doutrina Católica existe há dois mil anos! Ela não é uma terra virgem a ser desbravada — e só então conhecida –, palmo a palmo, pelas incursões midiáticas de Papa algum. O que o Papa Francisco supostamente disse — para ficar no exemplo mais recente — a respeito da Eucaristia para os luteranos não é elemento chave para a compreensão das regras católicas a respeito da communicatio in sacris. É deprimente até mesmo que isso esteja sendo discutido.

Ainda que o Papa fosse realmente favorável à comunhão dos recasados — concesso non dato –, corroborando a “montanha de evidências” que o meu leitor garante existir, ainda assim, isso em absolutamente nada alteraria as questões doutrinárias que estão na raiz da proibição da comunhão eucarística aos divorciados em segundas núpcias. A Doutrina Católica não está à mercê das entrevistas pontifícias, e hiperdimensionar estas manifestações informais do Romano Pontífice tem o único efeito de catalisar uma confusão que não deveria sequer existir (como se, caso o Papa “autorizasse” os divorciados recasados a comungarem, o adultério deixasse de ser pecado ou o estado de graça deixasse de ser pré-requisito para o acesso à Santíssima Eucaristia).

Agora, é mesmo o Papa pessoalmente favorável a isso ou aquilo? E se for? Façamos um pequeno exercício de imaginação. Se fôssemos imaginar um mundo em que não houvesse a facilidade das telecomunicações com as quais nos já acostumamos hoje em dia — e fazê-lo não é nem tão difícil, basta retrocedermos umas duas décadas –, se imaginássemos, dizia, um tal mundo, o que se poderia esperar de uma situação que fosse rigorosamente igual à presente (do Papa no encontro com os luteranos) em todo o resto? A esposa luterana desabafaria com o carismático líder católico, este lhe dirigiria algumas palavras anódinas de conforto e pronto. A coisa não ficaria sendo revivida e reproduzida, em texto, áudio e vídeo, nos quatro cantos do mundo, e nem ganharia a dimensão que adquire nos dias de hoje, com os teólogos de plantão esquadrinhando minuciosamente o discurso improvisado do Papa — e, pior ainda!, perscrutando-lhe implícitas intenções. Não se cogitaria de extrair contradições entre a resposta coloquial de Sua Santidade e a doutrina católica rígida e criteriosamente sistematizada nos manuais de teologia. Ora, a raiz do problema, aqui, decorre do fato (absolutamente contingente) de cada palavra do Papa ser gravada, reproduzida e analisada por um número indeterminado de pessoas e uma quantidade indefinida de vezes. Se a mesma balança pudesse ser aplicada aos Papas do passado… quem ousará dizer que Bergoglio seria o primeiro Papa a fazer-lhe o prato pender para o lado da ambiguidade?

“Papista” não é quem acha que se deva poupar o Papa do escrutínio católico. Papista, ao contrário, é quem imagina que todo e qualquer suspiro que o Papa solte, em toda e qualquer situação possível e imaginável, deva necessariamente conter a mais límpida, perfeita e impecável transmissão de toda a Doutrina Católica, sem a menor possibilidade de erro algum. E se, por acaso, o Papa falhar nesta exigência, então — diz o papista — qualquer um está autorizado a expôr a contradição, questionar a catolicidade do Papa e vaticinar um futuro terrível para a Igreja que se encontra tão mal representada.

E aqui chegamos ao segundo ponto, a irreverência. A regra da caridade para os católicos, da última vez que chequei, mandava creditar, aos outros, todo o bem de que se ouvisse minimamente falar, e não lhes atribuir senão o mal que fosse visto com os próprios olhos. Isso, que é devido a toda e qualquer pessoa, é elevado à sétima potência quando estamos falando dos membros da Igreja Docente e à “70 x 7″ª quando estamos diante do Vigário de Cristo!

“Quando se ama o Papa” — dizia São Pio X — “não se objeta que ele não falou muito claramente, como se ele estivesse obrigado a repetir diretamente no ouvido de cada um sua vontade e de exprimi-la não somente de viva voz, mas cada vez por cartas e outros documentos públicos”. E, principalmente, quando se ama o Papa (e, lembremo-nos, todo mundo está obrigado a amar o Papa!) não se faz dele o pior juízo possível, dirigindo-lhe — pelas costas e em público — os mais desabonadores epítetos existentes no mundo cristão.

Só no post imediatamente anterior a este o blog foi brindado com excelentes pérolas da espiritualidade cristã, como a referência ao “maldito Concílio Vaticano II (…) e os seus porcos documentos” ou ao “Sinédrio bergogliano”. Nos demais textos aqui publicados a respeito do Papa Francisco — por exemplo, nos que citei mais acima — são bastante recorrentes as invectivas ao Vigário de Cristo, referindo-se ao seu “desatino” ou às “asneira[s]” que ele fala, por exemplo. “Antipapa” e “herege” também aparecem aqui com relativa frequência, e eu muitas vezes apago — mas basta uma passagem rápida pelas páginas de comentários de outros blogs onde este comportamento, ao contrário daqui, é incentivado, para que se veja a institucionalização do desrespeito ao Soberano Pontífice e a violação sistemática do IV Mandamento erigida a exigência de bom catolicismo, fora da qual parece não ser possível encontrar a salvação.

Tal hábito — verdadeira segunda natureza em muitos — é daninho à salvação das almas, por diversas razões, das quais as três seguintes parecem-me de não pequena relevância. Primeiro porque o distintivo do cristão deve ser a caridade fraterna, e não a maledicência — e não há nada mais contrário à caridade cristã do que um bando de marmanjos na internet, qual comadres, xingando o Papa uns para os outros sem que disso advenha nada a não ser um estado de desconfiança cada vez maior para com o Romano Pontífice. E a submissão ao Romano Pontífice é absolutamente necessária à salvação de toda criatura humana, como reza a Unam Sanctam, e nada mais difícil do que submeter-se efetivamente ao Romano Pontífice quando parte substancial do seu apostolado é consumida nos xingamentos a ele, incitando contra ele o ódio e o desprezo.

Segundo porque isso afasta as pessoas da verdadeira Igreja, na medida em que, deparando-se com a histeria histriônica dos sedizentes últimos cavaleiros católicos do mundo lutando contra a abominação instaurada na Igreja Santa de Deus, e percebendo o quanto isso é ridículo, pessoas normais e sadias terminam por ser empurradas para o “lado oposto” do combate — e o lado oposto não é o Deus lo Vult!, blog de bem pequena relevância e alcance, mas sim o modernismo relativista mais abjeto. É, portanto, no mínimo, um erro de estratégia.

Terceiro e não menos importante, porque esta atitude retroalimenta, fortalece e legitima os relatos anticatólicos dos quais se nutre o progressismo eclesial, o qual, para se impôr, precisa valer-se de um “espírito” do Concílio (ou do “sínodo”), de uma “vontade” dos líderes da Igreja que se encontra para além dos textos e documentos oficiais. Este relato adquire tanto mais relevância e verossimilhança quanto mais pessoas sérias e alfabetizadas levantam as suas armas contra o conteúdo do relato ao invés de se baterem contra o relato em si mesmo — acusando-o de falso e mentiroso, de cretino e desonesto, de não corresponder à verdade e de ser uma tentativa sórdida e canalha de ganhar a guerra do discurso uma vez perdida a guerra da doutrina, como seria de se esperar. Ora, se aceitamos em público que existe realmente um espírito do Vaticano II anticatólico (ao invés de dizer que isso é uma invenção dos inimigos de Cristo para fazer valer a sua própria vontade contra a Igreja), ou qualquer outro conceito do tipo, nós já entramos no combate concedendo ao inimigo um amplíssimo terreno ao qual ele, absolutamente, não faz jus.

A Igreja de Cristo, fora da qual não há salvação e nem santidade, é aquela formada por uma tríplice comunhão: de Fé, de Sacramentos e de Governo. Isto é matéria do Catecismo das crianças. E a comunhão “de Governo” se manifesta na submissão às mesmas autoridades legítimas, em particular ao Santo Padre, o Papa. Ora, é verdadeiramente esquizofrênico imaginar que a submissão ao Papa seja compatível com a incitação à desconfiança para com o próprio Papa. E pretender que esta sujeição não seja necessariamente visível e concreta — a um Papa visível e de carne e osso, portanto — é requentar concepções eclesiológicas já condenadas desde o Concílio de Trento. A grande discussão do mundo católico contemporâneo — a discussão verdadeiramente importante — não pode ser esta besteira de caçar interpretações heterodoxas nos discursos [de improviso] do Papa e nem a inconsequência de perscrutar as intenções do Romano Pontífice por detrás do [que os meios de imprensa apresentam do] seu dia-a-dia. Se a alta intelectualidade católica encontra-se reduzida a isso… então estamos muito pior do que nos demos conta, e surge aos nossos olhos, com horror, aquela perturbadora pergunta de Cristo a respeito de se o Filho do Homem, quando retornar, encontrará acaso ainda Fé sobre a terra.

Urgentes orientações do Sínodo da Família sobre os casais de segunda união

Nas últimas semanas a mídia católica — mesmo a mídia católica que se reputava mais fidedigna e confiável — irrompeu em um surto de loucura a respeito do que o Sínodo dos Bispos (que se encerrou no final do mês passado) teria falado a respeito da comunhão dos divorciados recasados. Perplexos, deparamo-nos com manchetes e reportagens o mais disparatadas possível, vindas de órgãos de imprensa que, até então, sempre ou quase sempre tinham primado pelo equilíbrio e pela sensatez.

A Rádio Vaticano diz que a “comunhão aos divorciados recasados” é “uma questão aberta”. No estilo “em cima do muro” que lembra o pior da politicagem tupiniquim, o Cardeal de São Paulo afirma que “há muita divergência” sobre isso, que “questões complexas não podem ser respondidas simplesmente com um sim ou não”, que “o Sínodo, que não é ainda a palavra do Papa, não decidiu nada sobre isso”, que o Papa pode dizer uma coisa ou outra. Ou seja, a questão estaria “aberta” porque o Sínodo não determinou nada.

Aleteia, em manchete ainda pior, vai mais fundo e diz que o “Sínodo dos bispos abre portas para integrar divorciados recasados”. Perdida lá no corpo da matéria está a afirmação — esta, sim, relevante — de que “[o] texto [do Sínodo] não especifica se [os divorciados recasados] poderão realizar a comunhão”.

Por fim, Zenit coloca como chamada principal da matéria que “o acesso à eucaristia [dos “casais em segunda união”] deverá ocorrer na própria paróquia onde reside o casal” (!). No exercício do wishful thinking mais grosseiro, o autor do texto justifica a manchete dizendo que “o documento normativo do Sínodo, a ser elaborado pelo papa Francisco, numa exortação apostólica, eventualmente poderá estimular a verificação de caso a caso, para se aferir a responsabilidade subjetiva”. Ou seja: um eventual documento que o Papa Francisco porventura publique, em data incerta e não sabida, poderá estimular a avaliação caso a caso dos divorciados recasados — o que pode potencialmente levar os casais em segunda união a terem acesso à Eucaristia na própria paróquia onde residem! Tantas condicionantes, possibilidades, eventualidades, incertezas, indeterminações… ora, acaso isso é notícia? Em que mundo?

O mais perturbador disso tudo: nenhuma notícia diz que o Sínodo autorizou a comunhão aos divorciados recasados (primeiro porque o Sínodo, órgão consultivo, não pode “autorizar” nada e, segundo, porque, de fato, os documentos do Sínodo não mencionam em nenhum momento a possibilidade de admitir à comunhão eucarística os divorciados recasados) e, portanto, a rigor, todas as reportagens são formalmente verdadeiras. Mas o modo como elas foram escritas conduz o leitor incauto a imaginar que foram, sim, “abertas portas”, que estas portas são para o “acesso à eucaristia” dos divorciados recasados, que esta questão, outrora fechada, agora foi “aberta” pelo Sínodo e se está somente esperando a formalização pontifícia — que virá a qualquer momento! — para que os casais em segunda união possam, enfim, receber Nosso Senhor na Eucaristia. E, para quem não vai ler o Relatio Synodi (que, parece, só há em italiano…) nem esperar a Exortação Apostólica Pós-Sinodal, a impressão que fica é esta induzida pela mídia católica mesmo.

Esforcemo-nos um pouco para nos elevar acima da mediocridade que contaminou até mesmo a boa mídia católica. O que importa saber sobre o tema é, em resumo, o seguinte: o sínodo tem marcos teóricos muito sólidos, explicitados no próprio Relatio (nn. 42 – 46), entre os quais se destaca — como não poderia deixar de ser — a Familiaris Consortio de S. João Paulo II. Uma (re)leitura desse documento é de enorme importância para se compreender a Igreja hoje. Em particular o seu n. 84. Tudo, tudo ali se explica.

Senão vejamos: há um clamor popular e midiático enorme para que a Igreja se debruce sobre a questão dos divorciados recasados? Sim, trata-se de mal que se vai alastrando mesmo pelos ambientes católicos, e portanto “o problema deve ser enfrentado com urgência inadiável”.

Importa fazer com que a Igreja esteja mais preocupada em acolher do que em condenar? Sem dúvidas, porque a Igreja, “instituída para conduzir à salvação todos os homens e sobretudo os baptizados, não pode abandonar aqueles que – unidos já pelo vínculo matrimonial sacramental – procuraram passar a novas núpcias”.

Então, o que fazer? Estariam porventura estes excomungados? Absolutamente não; é um dever de toda a Igreja, dos pastores como dos fiéis, “ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto baptizados, participar na sua vida”. É fundamental que eles sejam “exortados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus”.

Conceder-se-lhes-á, então, participar da Ceia Eucarística? Aí não. “Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e actuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimónio”.

Mas não existe nenhuma exceção? Sim, existe, uma exceção que precisa ser avaliada caso a caso: a daquelas pessoas que, não podendo, por justa causa, abandonar o cônjuge ilegítimo (digamos, por conta dos filhos pequenos que possuam), decidem, conquanto mantendo a habitação em comum, abster-se dos atos sexuais adulterinos. Assim, “[a] reconciliação pelo sacramento da penitência – que abriria o caminho ao sacramento eucarístico – pode ser concedida só àqueles que, arrependidos de ter violado o sinal da Aliança e da fidelidade a Cristo, estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimónio. Isto tem como consequência, concretamente, que quando o homem e a mulher, por motivos sérios – quais, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar, «assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos actos próprios dos cônjuges»”.

Pronto. Com isso, se responde perfeitamente às notícias acima referidas, sem margens para dúvidas ou más interpretações:

  • A questão da comunhão eucarística aos divorciados recasados está aberta? Não, não está aberta, porque São João Paulo II, em texto sobre o assunto ao qual o Sínodo contemporâneo faz expressa referência, já reafirmou a praxis eclesiástica, “fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união” — e não há necessidade de se ficar, a todo ano, a toda reunião, repetindo explicitamente as mesmas coisas (sob pena de elas “deixarem de valer”). Isso não faz sentido algum.
  • Mas então os divorciados recasados devem ser acolhidos na vida da Igreja? Sem dúvidas, como São João Paulo II já disse explicitamente, é dever de todos os católicos tudo fazer para que os divorciados recasados “não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto baptizados, participar na sua vida”.
  • E o que é que deve ser analisado caso a caso? Ora, deve-se analisar individualmente aquelas situações em que as pessoas, não podendo por razões graves abandonar o falso cônjuge, comprometem-se a tentar levar “uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimónio” — i.e., com a abstinência dos atos próprios dos casais.

Tudo isso é porventura novidade? Não, tudo isso consta em um texto do início da década de 80! Qual a razão do alvoroço, qual o motivo do alarde, como se S.S. o Papa Francisco estivesse fazendo alguma coisa inaudita em vinte séculos de Cristianismo? Todas essas coisas — de não estarem excomungados os divorciados recasados, da importância de os integrar à vida da Igreja, da inadmissibilidade de se conceder a Comunhão Eucarística aos que vivem maritalmente com alguém que não é o seu cônjuge legítimo e da necessidade de se avaliar, individualmente, os casos daquelas pessoas que quiserem abandonar as práticas conjugais mantendo, contudo, a habitação comum — já fazem parte das disposições normativas da Igreja Católica há mais tempo do que eu próprio tenho de vida! Se não são obedecidas, e se portanto precisam ser reforçadas, é uma outra história; mas não se diga que a Igreja não tem respostas ao problema do divórcio e nem que Ela está procurando, agora, do nada, soluções para estas questões.

A Igreja é Mãe, e não é de hoje que Ela é Mãe. Os filhos da Igreja são rebeldes, e não é de hoje que esta rebeldia grassa entre aqueles pelos quais Cristo verteu o Seu Sangue na Cruz. Mas a Igreja, Esposa Fiel de Cristo, não vai trair jamais a confiança do Seu Divino Esposo, e isto significa duas coisas: que Ela não vai abandonar os homens por cuja salvação Cristo morreu, por um lado; mas que, pelo outro lado, tampouco vai abandonar a Doutrina por meio da qual somente aqueles homens se podem salvar. Eventuais tentativas de obscurecer qualquer dessas verdades desfigura o rosto da Igreja de Nosso Senhor, e devem portanto ser combatidas.

Encerrou-se a Assembléia Extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre a família. Mas, ao contrário do que a mídia insinua, não é necessário esperar para ver “o que o Papa vai fazer” com tudo isso. O documento normativo do Sínodo da Família, elaborado pelo Papa, já saiu em português: foi publicado aos 22 de novembro de 1981, e não há razões honestas para esperar nada diferente disso. Todas estas disposições aliás já podem — e devem — ser postas imediatamente em prática. Façamo-las conhecidas e efetivas. Não há tempo a perder.

No amor e na verdade

As manchetes ribombam mundo afora: Papa quer que divorciados casados de novo não sejam tratados como excomungadosPapa pede que divorciados não sejam tratados como excomungadosPapa: divorciados que casam novamente ‘não são excomungados’! Dir-se-ia alguma revelação fantástica, alguma novidade inaudita; trata-se, no entanto, do lugar-comum mais comezinho, que certamente todas as pessoas saberiam se tivessem prestado atenção em suas aulas de catequese – e que, com toda a certeza, os correspondentes de religião dos jornais tinham e têm obrigação de o saber de cor, se quiserem fazer jus ao trabalho que se propõem a fazer.

É evidente que os divorciados não estão “excomungados” (ao menos não pelo fato de serem divorciados recasados) e nem nunca o estiveram. Os adúlteros sempre foram merecedores das mais ásperas censuras, é fato, mas não me consta que tenham sido em alguma época fulminados de excomunhão – e, certamente, não o eram até ontem (ao contrário do que as manchetes dão a entender!), antes de a imprensa alardear como se fosse a maior novidade do mundo aquilo que os católicos sempre souberam.

Simplificando as coisas (uma vez que a similaridade entre as palavras “comunhão [eucarística]” e “excomunhão” pode levar a crer que não poder participar da comunhão eucarística é o mesmo que estar excomungado), existem dois tipos de pessoas: as que fazem parte da Igreja Católica e as que não fazem parte da Igreja Católica. A “excomunhão” é uma pena mediante a qual o sujeito, que fazia parte da Igreja, é d’Ela expulso e a Ela deixa de pertencer. Portanto, quem é excomungado não faz parte da Igreja Católica. Por não fazer parte da Igreja Católica, evidentemente, não pode participar dos Sacramentos, como não o podem um herege protestante, um pagão ou um ateu.

As pessoas que fazem parte da Igreja Católica – e aqui, por definição, está-se falando daquelas que não estão excomungadas – dividem-se entre as que estão em estado de graça e as que não estão em estado de graça. O estado de graça é a situação de amizade com Deus que se adquire com o batismo, se perde com o pecado mortal e se recupera com a confissão sacramental; portanto, quem comete pecado mortal e não se confessa não está em estado de graça. O adultério é pecado mortal. Os divorciados recasados estão em adultério. Logo, os divorciados recasados, enquanto não se confessarem, estão em pecado mortal, não estão em estado de graça.

Certos sacramentos – chamados sacramentos “de vivos” – exigem o estado de graça para serem licitamente recebidos. Exemplo máximo desta espécie de sacramentos é o Sacramento da Eucaristia, do qual S. Paulo falou que comia e bebia a própria condenação quem O comesse e bebesse indignamente. A recepção da Santíssima Eucaristia – a comunhão sacramental – exige o estado de graça. Quem está em pecado mortal não pode, portanto, comungar. Adultério é pecado mortal. Os divorciados recasados estão em adultério. Os divorciados recasados não estão em estado de graça e, portanto, não podem comungar.

Nem todo mundo que não pode comungar não o pode por não fazer parte da Igreja Católica! Quem não é católico (p.ex., quem está excomungado) não pode comunga, é evidente; mas quem não está em estado de graça, mesmo sendo católico, também não pode se aproximar da comunhão eucarística. Os divorciados recasados não podem comungar por conta deste segundo motivo. Não pelo primeiro. É óbvio.

Que isso não se trata de novidade nenhuma é coisa bastante fácil de se mostrar. Abra-se, por exemplo, a Sacramentum Caritatis. Exortação pós-sinodal, escrita há apenas oito anos. Ora, isso é já no terceiro milênio; não é crível que a realidade familiar contemporânea seja substancialmente diferente daquela de 2007. Pois bem. Lá, na década passada, um Sínodo dos Bispos já discutiu o “problema” da admissão dos divorciados recasados ao Sacramento da Eucaristia – que, hoje, quer-se fazer acreditar que é uma discussão importantíssima e inédita em vinte e um séculos de Cristianismo. Um Sínodo dos Bispos, dizia-se, já o discutiu um dia desses. E decidiu (negrito meu):

O Sínodo dos Bispos confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (Mc 10, 2-12), de não admitir aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o seu estado e condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados re-casados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos (Sacramentum Caritatis, 29).

Ora, dizer que os divorciados recasados «continuam a pertencer à Igreja» é a mesmíssima coisa que dizer que eles «não são excomungados». O que Bento XVI disse há oito anos, o Papa Francisco repetiu-o agora. À época, a mídia fez um escarcéu porque o Papa dissera que o divórcio era una piaga; hoje, a mídia faz uma festa para ocultar que o Papa disse que é preciso acolher os divorciados recasados no amor e na verdade.

No amor e na verdade! A expressão se encontra na catequese pontifícia (o itálico é meu): «é necessário um fraterno e atento acolhimento, no amor e na verdade, para com os batizados que estabeleceram uma nova convivência depois do fracasso do matrimônio sacramental». Amor na verdade. Lembra alguma coisa?

«A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira». Assim se inicia um outro documento de Bento XVI, a encíclica Caritas in Veritate. Tudo bem, é uma encíclica social. Mas veja-se se a introdução não serve como uma luva para as presentes celeumas a respeito de divorciados e acesso aos sacramentos:

Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente (Caritas in Veritate, 3).

E ainda, a se grafar em faixas enormes a serem estendidas a cada vez que alguém vier falar em dar a comunhão aos divorciados recasados:

Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo (CV 4).

Eis, portanto, o que significa acolher «na verdade» – e outra coisa não é possível fazê-lo significar. Não dentro da Igreja de Nosso Senhor – Aquela que, «fundada sobre Cristo, não obstante as inúmeras tempestades e os nossos muitos pecados, permanece fiel ao depósito da fé no serviço, porque a Igreja não é dos Papas, dos Bispos, dos padres e nem mesmo dos fiéis; é só e unicamente de Cristo» (Papa Francisco na homilia de 29/06/2015).

Decerto o mundo, inimigo da Igreja, havia de tentar obscurecer a mensagem do Evangelho; decerto a mídia anticlerical haveria de tentar semear a confusão. Não é a primeira vez, nem será a última. O que importa aos homens é permanecer firmes na Verdade, e não dar ouvidos às opiniões levianas que saem na mídia. Porque a Igreja, que não é nem mesmo dos Papas, muito menos o é da imprensa. Muito menos o é das reivindicações da moda. Por mais que rujam os demônios, a Igreja é e vai continuar sempre sendo «só e unicamente de Cristo». E, por mais que se tente, ninguém será capaz de vencer a força desta verdade.

Fala-se muito em como a Igreja deveria se portar; ninguém quer ouvir como a Igreja ensina que os homens devem proceder. Não engrossemos o coro dos primeiros. Ouvir a voz da Igreja outra coisa não é que ouvir a voz de Cristo. E felizes – mil vezes felizes! – os que, ouvindo esta Doutrina, puserem-na em prática.

“Se dizem cristãos, e fabricam armas!”

Perguntam-me o que houve, que já há mais de um mês não se vêem mais textos por aqui. Não houve nada. Por um lado, ocupações demasiadas – pessoais, profissionais, acadêmicas – a sugar-me o tempo cada vez mais exíguo; por outro lado, e talvez seja preciso dizê-lo, uma certa dificuldade em encontrar o que escrever.

Encontrar como posso ser útil a Cristo e à Santa Igreja…! Esta é uma necessidade sem dúvidas da maior importância, de primeira, primeiríssima!, ordem. No entanto, não é fácil. Talvez eu não disponha mais da agilidade necessária para acompanhar o turbilhão da mídia, cada vez mais vertiginoso e, por conta disso mesmo, cada vez menos importante. Um exemplo talvez paradigmático disso: há menos de 24h pululou uma manchete – absurda e sem sentido – dizendo que o Papa disse que fabricantes de armas não podem ser cristãos. Ora, é uma sentença perfeitamente estapafúrdia. O que se faria, aqui, neste blog, em tempos de normalidade?

Primeiramente, ir-se-ia à declaração original. A reportagem secular diz que isso aconteceu «durante um comício para milhares de jovens ao final do primeiro dia de sua visita à cidade italiana de Turim». A matéria, na cobertura da Canção Nova, é esta aqui; belíssima, piedosa, edificante, e nada diz a respeito de fabricantes de armas.

Fracassada a busca na mídia lusófona, ter-se-ia que recorrer ao original italiano. Está aqui. A parte das armas está lá, lá pelo meio do texto, na resposta à jovem Sara. “Se dizem cristãos, e fabricam armas!”, brada o Romano Pontífice. A pergunta? Desconfiança da vida. O contexto visado pelo Santo Padre? A guerra, em particular a Primeira Guerra, e «aquela hipocrisia de falar de paz e fabricar armas, e até mesmo vender armas a este que está em guerra com aquele e àquele que está em guerra com este!».

Contextualizada a celeuma, passar-se-ia à sua explicação, ao seu justo sentido, à elucidação do mistério. Mas, hoje, até mesmo a polêmica é de baixa qualidade. Não há o que discutir, porque os dois extremos são bastante evidentes.

É, por um lado, evidente que, do excerto, não é possível, ao menos não seriamente possível, inferir a excomunhão do velho Winchester ou o interdito sobre os clientes da Taurus. Não se fala das armas simpliciter, e sim das armas feitas para a guerra; e, mais ainda!, não apenas das armas feitas para a guerra, assim, abstratamente, mas sim daquelas comercializadas indistintamente para ambos os lados do conflito, promiscuamente, sem se preocupar com o restabelecimento da paz ou com a cessação da agressão injusta mas, ao contrário, tirando vantagem pecuniária do conflito armado para cuja perpetuação é economicamente interessante trabalhar. E aqui a outra evidência: é evidente, para além de toda a evidência, que quem tira proveito da morte e da carnificina não pode se dizer cristão. Que diferença, no entanto, entre isto e a manchete primeva! Feito todo o caminho, desaparece a razão do estranhamento original. O problema não está nos rifles de caça, nas academias de tiro, nas armas para a defesa pessoal ou para os agentes do Estado; o problema, o indiscutível problema, está naquilo que fazem os Sons of Anarchy. Era mesmo necessário gastar todo este latim?

Em suma, os motivos pelos quais venho progressivamente perdendo o gosto por este modus operandi podem ser sintetizados no seguinte:

  1. Está ficando humanamente impossível responder a toda besteira levantada contra a Igreja em geral (ou contra o Papa Francisco em particular), porque a taxa de surgimento de absurdos está ultrapassando – que digo? Há muito tempo já ultrapassou! – qualquer limite de razoabilidade.
  2. Devido à baixa, baixíssima qualidade dessa polêmica chinfrim, isso está deixando de ser intelectualmente recompensador. Uma coisa é o desafio de enfrentar um oponente de, pelo menos, alguma habilidade natural; outra, bem diferente, é ficar juntando lé com cré e demonstrando que, do fato de a indústria da guerra ser deplorável, não segue que o tiro esportivo igualmente o seja. Sinceramente, não é necessário que haja uma pessoa se dedicando a este serviço. Estou certo de que qualquer pessoa capaz de ler este blog e o compreender minimamente consegue, também, fazer por conta própria estes passos argumentativos aqui desenhados.
  3. Esta proliferação de alegações estapafúrdias que não resistem ao mais comezinho exame crítico está também provocando o descrédito da mídia e a sua progressiva desimportância: a enxurrada de abobrinhas é tamanha que, semana que vem, ninguém lembra mais do absurdo alardeado na semana passada. Oras, é melhor então deixar o bicho morrer sozinho do que o perseguir com estardalhaço. Não vale a pena perder tempo na caça diligente ao chacal mirrado e já moribundo do qual amanhã, de qualquer modo, só restará o cadáver putrefato.
  4. Ser reativo, às vezes, é até agradável. O tempo inteiro, contudo, é extenuante. Não acho que exista mais espaço para isso na internet pós-boom das redes sociais. O terreno está devastado pela mediocridade; não tem mais sentido arrancar laboriosa e pacientemente os cardos do campo. Cumpre dar as costas a esta porcaria toda e arranjar outra ocupação menos inglória a que se dedicar.

Que ocupação…? É este o ponto. Preciso encontrá-la. Como disse acima, preciso achar como posso ser útil à glória de Deus Nosso Senhor. Decerto escrevendo. Decerto aqui, neste espaço entrincheirado e protegido que a tantas duras penas conquistei. Deus lo Vult!, sem dúvidas. É questão, somente, de amolar a espada no rosário. É questão de dar os primeiros passos – o caminho se faz ao caminhar. É questão de voltar. Aproveitar melhor o tempo…! Levantemo-nos, vamos. Elevemos este lugar mais uma vez. Vejamos o que a Providência ainda não me reserva. Perscrutemos no horizonte que batalhas ainda não me é possível travar. AMDG. Semper.

O pêndulo sobre o esgoto

Sobre a recente polêmica envolvendo o apoio de autoridades eclesiásticas a projetos políticos escusos e a excomunhão latae sententiae prevista no Decretum Contra Communismum, a leitura deste texto do Rodrigo Pedroso é fundamental para um adequado entendimento do que está sendo discutido. Eu próprio, aliás, já defendi aqui, inclusive há poucos meses, a mesmíssima tese pugnada pelo advogado, à qual remeto os leitores.

Ainda sobre o mesmo assunto, ontem mesmo S. E. R. Dom Fernando Rifan publicou, na sua coluna semanal, um oportuno texto onde fala que «[n]a ânsia de defender coisas corretas, [alguns que se intitulam católicos] perdem o respeito devido às autoridades da Igreja e as desprestigiam, para alegria dos inimigos dela».

É o bastante para contextualizar os leitores. Há algo que julgo oportuno dizer sobre o assunto; porque parece que o comportamento humano (católico inclusive) segue um movimento pendular e, quando se aproxima de um dos extremos, retorna – e retorna por vezes violentamente – ao extremo oposto, atropelando o que estiver no caminho.

Concretamente, aqui, o terreno sobre o qual balança este pêndulo é a conivência promíscua [de parte considerável] das autoridades católicas com o esquerdismo degenerado que domina o cenário político nacional. Sim, está-se falando, principal mas não exclusivamente, do apoio que [muitos d]os senhores bispos do Brasil prestam ao Partido dos Trabalhadores.

Exemplo do apoio criminoso (que clama aos céus vingança!) das autoridades católicas aos detentores atuais do poder político é esta nota divulgada no final do mês passado, onde – no meio da maior crise política da história recente do país e onde a sra. presidente da República, por medo das manifestações populares, cogita cancelar a sua participação em uma cerimônia (da qual participarão inclusive autoridades internacionais) comemorativa fim da II Guerra Mundial – a Conferência faz uma tentativa patética de limpar a barra do Executivo Nacional dizendo que «[o] momento não é de acirrar ânimos, nem de assumir posições revanchistas ou de ódio». Ou seja: a julgar por essa nota, a CNBB pensa que a insatisfação popular extravasada em manifestações públicas como os “panelaços” ou as marchas “fora Dilma!” não passa de um revanchismo odioso e censurável.

Prova de que o Partido dos Trabalhadores é uma pústula nojenta, anticristã e indigna de receber o apoio, quer dos católicos, quer mesmo de qualquer pessoa minimamente civilizada, são os recentes cadernos de teses aprovados no V Congresso Nacional do partido. Sobre o tema, é suficiente citar este texto:

Finalmente, em um documento oficial membros do PT reconhecem querer estabelecer a ditadura do proletariado, pedindo coisas como cassação de Jair Bolsonaro, estatização da Rede Globo, estatização de todas as emissoras que tenham programas religiosos, inimputabilidade do MST e de outros órgãos paramilitares do PT, impeachment de todos ministros do STF que condenaram mensaleiros e daí por diante.

Tudo isso é de uma nojeira inaceitável, de uma podridão indescritível. Sobre este esgoto nauseabundo, balançam-se muitos católicos oscilando entre dois erros extremos. O primeiro deles é o de aceitar passivamente esta pouca vergonha, sob a argumentação de que os bispos devem ser respeitados. O segundo, achincalhar publicamente as autoridades constituídas da Igreja, sob o argumento de que aquela pouca vergonha não pode ser jamais aceita.

Ora, o problema, o grande problema em suma, é que os católicos mais apressados são forçados a uma escolha impossível. As duas fundamentações são perfeitamente sólidas. Não é possível aceitar o conluio promíscuo entre Igreja e poder secular corrupto. Não é possível insurgir-se contra as autoridades constituídas da Igreja. A questão só se resolve quando se toma distância para uma visão panorâmica do problema: para se rejeitar a vergonhosa participação das autoridades eclesiásticas nos bacanais de César não é necessário achincalhar-lhes publicamente, e recusar o linchamento moral dos Pastores da Igreja não implica em ser omisso diante das obscenidades escandalosas dos bispos católicos.

Isso parece bastante difícil, contraditório até. Porque parece que falar em «vergonhosa participação das autoridades eclesiásticas nos bacanais de César» é já promover «o linchamento moral dos Pastores da Igreja», e recusar o achincalhamento público das autoridades religiosas implica necessariamente em silenciar sobre «as obscenidades escandalosas dos bispos católicos». Para se separar essas coisas (que, conceda-se, andam entranhadas mesmo, como a luminosidade e o calor de uma vela; e cuja separação é mais uma operação do intelecto do que algo realizável empiricamente, mas vá lá), é preciso dizer, e sustentar com firmeza inquebrantável,

i) que não está [necessariamente] excomungado quem apóia o Partido dos Trabalhadores;

ii) que, do fato de não haver excomunhão para o apoio ao Partido dos Trabalhadores, não segue que tal apoio seja desejável, prudente ou mesmo legítimo;

iii) que a Conferência dos Bispos não tem legitimidade alguma para apoiar projetos políticos atentatórios contra a Fé Cristã;

iv) que, do fato da Conferência não ter legitimidade para apoiar políticas escandalosas, não segue que ela seja absolutamente ilegítima para todo o resto ou como tal possa ser tratada;

v) que os bispos católicos, por piores que sejam, devem ser sempre respeitados;

vi) que, do fato dos bispos deverem ser sempre respeitados, não segue que seja legítimo seguir-lhes em seus escândalos ou mesmo silenciar sobre estes;

vii) etc.

É, em suma, estreita esta senda – verdadeira corda bamba! – sobre a qual os católicos precisam caminhar! No entanto, não parece existir outra alternativa. Quem olha apenas para os pontos extremos do movimento do pêndulo erra, e pode errar profundamente, ao buscar dar-lhe um impulso contrário que termine por o levar ao extremo oposto. O problema, na verdade, é a situação de fato sobre a qual oscila, de um lado para o outro, em guerra fratricida inútil, este movimento pendular. É preciso desfazer o concubinato horrendo entre a CNBB e o PT, este é ponto fulcral aqui: porque, se esta obscenidade não existisse em primeiro lugar, se não houvesse a situação de fato absurda em que nos encontramos, nenhum desses erros opostos teria razão de existir.

Os detentos de Rebibbia não são modelos de virtude

Certo leitor do Deus lo Vult! dispara aqui no blog:

Bergoglio mostra para quem queira ver a sua estratégia.

Levou para a Santa Sé um travesti e lavou o pé do mesmo durante a cerimônia do Lava-Pés. Sabendo-se da repercussão negativa que isso teria para a sua imagem dentro da Madre Igreja, agora ele tenta consertar criticando de forma superficial, típica dos modernistas, a tal “teoria do gênero”.

Primeiramente, o Papa não levou ninguém “para a Santa Sé”. O que ele fez foi visitar (como aliás parece ser já tradição…), na Quinta-Feira Santa, um presídio nos arredores do Vaticano e, lá, celebrar a Missa da Ceia do Senhor.

Segundamente, e mais importante, há uma diferença enorme, gigantesca!, entre o militante LGBT que ostenta orgulhoso a sua transexualidade e o presidiário transexual. Ora, o que se esperaria encontrar num presídio? A nata da intelectualidade contemporânea? As vestais do mundanismo moderno? De maneira alguma. Em um presídio, encontram-se criminosos condenados!

Quais os crimes cometidos pelos detentos cujos pés foram lavados pelo Vigário de Cristo? Infeliz ou felizmente, nós não temos acesso à ficha criminal de cada um deles. Parece razoável imaginar que houvesse, lá, assaltantes e agressores, prostitutas e traficantes de drogas, talvez estupradores e assassinos. E se é legítimo lavar os pés a ladrões e traficantes, por que não haveria de ser, também, lavá-los a um transexual? Alguém acaso imagina que ir ao encontro de criminosos no cárcere é, de alguma maneira, condescender com o crime, apoiá-lo, legitimá-lo, diminuir-lhe a importância ou coisa do tipo? Se lavar os pés de criminosos condenados evidentemente não é apologia ao crime, por que lavar os pés de um transexual seria uma defesa do transexualismo?

É exatamente o que pergunta o blogueiro do Cigueña de la Torre. E a sua colocação é bastante pertinente: uma coisa é questionar a conveniência de o Papa celebrar a missa do Lava-Pés em um presídio, ou a evidente distorção do sentido das rubricas da Missa in Coena Domini (que mandam lavar os pés a viri selecti) em curso. Outra coisa bem diferente é se aferrar à especificidade do pecado de um dos criminosos ao qual o Santo Padre lavou os pés na última Quinta-Feira Santa e, munido disso, alardear um escândalo que de modo algum se depreende dos fatos passados em Roma!

Não é razoável esperar encontrar a fina flor do catolicismo em um presídio italiano, e nem faz o menor sentido pretender que os detentos de Rebibbia sejam modelos de virtude apresentados, pelo Vigário de Cristo, à imitação dos fiéis católicos. Tal interpretação dos fatos é evidentemente disparatada – e isso vale tanto para o transexual quanto para o assaltante ou estuprador. O crime não passa a ser moralmente lícito porque o Papa lavou os pés a criminosos. O mesmo para o transexualismo.

Vilipendiado o Sacramento da Confissão. Duas vezes.

Foi somente hoje que tomei conhecimento de que uma jornalista italiana, fingindo-se de penitente católica, frequentou confessionários, contou histórias inventadas, gravou tudo e depois publicou as conversas que teve com os sacerdotes católicos que a atenderam. A história se reveste de uma malícia assustadora por algumas razões.

É de uma falta de respeito desmedida para com um ritual que os católicos têm por sagrado, antes do mais. Ninguém precisa da Fé Católica e Apostólica para entender o seguinte: para se aproximar de um sacramento, ao qual os católicos atribuem o poder de perdoar os pecados, contando premeditada e deliberadamente uma mentira – i.e., uma coisa que a Doutrina Católica classifica como «pecado» – com o intuito de redigir uma matéria sensacionalista, é preciso um profundo desprezo pela sensibilidade religiosa alheia.

Isso não é uma coisa, insista-se, que para se evitar seria necessário possuir convicções religiosas profundas. É questão de capacidade básica de convivência social, onde um mínimo respeito às convicções dos outros é exigido para evitar a multiplicação de conflitos desnecessários. Que ninguém invente, aqui, de dizer que os católicos são uns intolerantes que estão a exigir de todo mundo que se comporte em conformidade com as suas – dos católicos – crenças! Porque o que se percebe com clareza é que o anticlericalismo moderno – do qual o caso aqui em análise é paradigmático – atingiu assustadores limites de falta de noção.

Porque – é outra coisa que salta aos olhos quando tomamos contato com a matéria – parece que a sra. Alari não vê o menor problema nem com o sacrilégio bárbaro que cometeu, nem com as ulteriores reações que se lhe seguiram. Ela age como se não tivesse feito nada demais e como se as críticas enérgicas de personagens tão díspares quanto o Arcebispo de Bologna e a Ordem Profissional Italiana de Jornalistas não fossem dirigidas a ela, não lhe dissessem respeito. Um sociopata não demonstraria mais desdenhosa indiferença pelo seu entorno.

Se a maneira de obter a matéria já enoja, o seu conteúdo é de estarrecer. O único texto primário sobre o tema que encontrei foi esta postagem (da semana passada) do blog di Laura Alari. Aqui não há a história completa; trata-se, simplesmente, de um texto que trata – é o título – sobre a ida ao confessionário no papel de uma divorciada recasada que pede para receber a Comunhão Eucarística. O post é somente a transcrição do diálogo, particularmente macabro, entre Don Marco e a personagem que a Laura interpreta.

“Eu comungo sempre que vou à Missa. O senhor julga que cometo um pecado assim tão terrível?”. O padre, de início, não o nega taxativamente; mas a sua tergiversação quase equivale a uma negativa tácita, como que preparando o terreno para o que virá à frente: “Você faz uma coisa que a Igreja diz para não fazer”.

O começo da conversa parece animador. “Se vocês vivem como irmãos e irmãs não há problema”, diz o padre. Corretíssimo. “Verifique se não há razões para que o seu primeiro matrimônio tenha sido nulo”. Perfeitamente. Poderia ter terminado por aqui – quantas graças o bom Deus não deve ter concedido ao padre para que ele calasse a boca neste instante trágico! Mas Don Marco, infelizmente, não conseguiu se conter. As graças atuais passaram. E o padre continuou por conta própria: “Estou lhe dizendo o que a Igreja pede, mas no final é você que deve escolher”.

Silêncio. O padre acrescenta: “Se duas pessoas divorciadas decidem passar juntas o resto de suas vidas, eu não vejo nada de mal; antes é uma coisa positiva. Ainda mais porque, no caso de vocês, estamos falando de pessoas maduras envolvidas em um relacionamento sério, fundado sobre sentimentos verdadeiros; quem já sofreu uma vez não torna a fazer as coisas com superficialidades”. Isso é serviço que preste um Sacerdote do Deus Altíssimo no Tribunal Sagrado da Penitência Sacramental?

“Se falamos de sacramentos, é claro que, na minha posição, eu não direi nunca que tu podes receber a comunhão, uma vez que a Igreja reconhece apenas um Matrimônio. Mas tampouco te direi, jamais, que não podes recebê-la”. “Por quê?”, pergunta a incrédula. “Porque quando a vida acaba nós não nos pomos diante da Igreja, mas sim de Deus, e é a Ele que prestaremos contas de nossas ações”.

O padre ainda pergunta o que aconteceria se, no próximo Sínodo da Família, as coisas mudassem. “Não acontecerá!”, ele garante em seguida. “Mas, ainda que acontecesse, todos nós continuaríamos sendo as mesmas pessoas, com a nossa história particular a colocar diante do Bom Deus”.

“Mas padre,” – insiste por fim a mulher – “isto é andar contra as regras da Igreja”. E a cereja do bolo: “Isso tudo que estou dizendo não significa infringir as regras nem diminuir o problema. Em vez disso, significa olhá-lo de frente e lidar com ele de outros pontos de vista, que é o que estou tentando fazer: oferecer a você outras perspectivas”. Fim de post. Cai o pano. La commedia è finita; la tragedia tuttavia sigue.

Vistas as coisas em seu conjunto, a insistência de Don Marco em dizer à falsa penitente que não comungue não passa de uma piada de mau gosto, de uma hipocrisia farisaica grosseira. Afinal, dizer que a Igreja lhe manda não comungar ao mesmo tempo em que tenta por todos os meios persuadir-lhe de que isso não tem tanta importância – não deve ser levado tão a sério assim… – uma vez que i) a situação dela é linda e maravilhosa, ii) cada um deve agir de acordo com a própria consciência, iii) no final não prestaremos contas a Igreja mas sim ao Bom Deus e iv) oferecer outras perspectivas para enfrentar o problema não significa ir contra as regras (?), outra coisa não significa que desdizer indiretamente o que, contudo, algum formalismo meramente protocolar ainda manda dizer com todas as letras. O que vale, o que fica, não é o que confessor diz, e sim o que ele insinua. Qualquer pecador reticente o perceberia sem nem mesmo precisar de que o padre falasse tanto.

Ao sacrilégio da jornalista segue-se, de maneira terrível, esta horrenda prevaricação de um sacerdote da Igreja…! Que o Altíssimo tenha misericórdia de nós. Sim, a sra. Alari não faz a menor idéia do que significa o Sacramento da Confissão para os católicos, como se dizia acima. É verdade. Contudo, a julgar pelo que acabou de se ver, nem o reverendíssimo pe. Marco o sabe – e este caso é muito, muito mais grave do que o primeiro.

Por quê, afinal de contas, um Deus amoroso criou o Inferno?

Recentemente, iniciou-se uma interessante discussão no Deus lo Vult! a respeito da existência real (e eterna) do Inferno, bem como da sua compatibilidade com a noção de um Deus justo e amoroso. Como o assunto vez por outra surge aqui e em outros lugares, vale talvez a pena buscar sistematizá-lo um pouco.

Basicamente, as objeções dos incréus são duas:

a) é totalmente desproporcional impôr uma punição infinita por uma ofensa finita; e

b) um Deus amoroso não poderia torturar eternamente um Seu filho no inferno.

É até possível respondê-las por via direta. Assim, parece-me que a apologética tradicional tem se esmerado por mostrar a) que uma ofensa à majestade infinita de Deus não é “finita” e sim infinita, uma vez que a gravidade da ofensa mede-se, também, pela dignidade do ofendido (e assim, v.g., um mesmo murro que eu desferisse contra três homens diferentes seria gradativamente mais grave conforme o esmurrado fosse um jovem colega de trabalho, um ancião ou o meu pai) – e a justiça exige alguma proporção entre crime e castigo. Do mesmo modo, b) Deus é amor mas é também, em igual – e infinita – medida, justiça, e é precisamente o amor d’Ele que permite aos Seus filhos optarem por O renegar; de modo que, rigorosamente falando, é possível dizer, em alternativa a “Deus condena as almas ao tormento eterno”, que “as almas rejeitam a Deus e se condenam, portanto, à separação definitiva d’Ele”.

Mas fica parecendo que essas coisas não se compreendem perfeitamente quando não se tem uma noção clara dos seus fundamentos: dito de outra maneira, as perguntas acima estão mal-formuladas. O que importa, na verdade, não é que Deus tenha criado o Inferno, e sim que Ele tenha feito homens livres e, portanto, capazes quer de mérito, quer de culpa. Quando se entende isso com todas as suas necessárias consequências, todo o resto do quebra-cabeça se encaixa sem maiores dificuldades intelectuais.

O que é ser «livre»? É poder ser responsabilizado por suas escolhas e, por conseguinte, ser por elas premiado ou castigado. É evidente que a liberdade humana não é “absoluta” porque o seu conhecimento é limitado e a sua vontade é fraca; isso não está em discussão. O fato é que existe alguma liberdade no homem e, portanto, em alguma medida ele é capaz de mérito ou demérito, de prêmio ou de castigo.

 «Mérito» e «culpa» estão aqui empregados no sentido mais direto de um prêmio devido por uma ação moralmente virtuosa e uma punição imposta em consequência de uma atitude moralmente condenável. As duas coisas estão em estreita relação de mútua dependência: uma vez que ambas dependem daquela liberdade fundamental de optar pelo bem ou pelo mal, não é possível haver mérito se não existir possibilidade de culpa (uma vez que a virtude de uma escolha reside precisamente na rejeição à possibilidade de se fazer a escolha oposta – caso contrário, não haveria liberdade verdadeira) e não é possível existir culpa se não houver possibilidade de mérito (vice-versa). Ambas emanam, direta e imediatamente, da liberdade humana: só há mérito/culpa porque há liberdade e, se há liberdade, há também e necessariamente mérito e culpa.

A raiz, portanto, do prêmio e da punição está na liberdade humana, é-lhe inerente e, aliás, faz parte da sua própria definição: ser livre é ser responsável por seus atos, e ser responsável por seus atos é ser capaz de receber, por eles, retribuições positivas ou negativas. Se qualquer um desses três termos – liberdade, mérito e culpa – deixasse de existir, os outros dois cessariam de haver no mesmo exato instante. Ou os três existem, ou não existe nenhum. Por definição. Não dá para ser diferente.

Ora, qual a característica central da Criação de Deus no que concerne ao ser humano? É que Ele nos fez à Sua imagem e semelhança, i.e., fez-nos dotados de inteligência e de vontade, de livre-arbítrio, fez-nos capazes de mérito e culpa. E a liberdade é um bem: por isso que Deus a criou. E é um dom precioso, preciosíssimo: por isso é que foi por amor a nós que Ele no-lo concedeu. E o livre-arbítrio nos foi concedido para que optássemos por Deus. Se há homens que optam livremente por O rejeitar, aí já é uma coisa cuja possibilidade – pela própria natureza da liberdade humana – não pode ser afastada.

E quanto ao Inferno ser eterno? Ora, só há duas opções: ou a capacidade humana de ganhar méritos e acumular culpas – de ser premiado e castigado – cessa em algum momento, ou ela não cessa jamais, et tertium non datur. Se ela cessa em algum momento (v.g. com a morte – é a posição católica), então as pessoas que estão no Paraíso nele não podem mais pecar para o perder e, pela mesma razão, as que estão no Inferno não podem se arrepender para de lá sair. E, se ela não cessa em momento algum, então não deixará jamais de haver culpas a serem expiadas, posto que sempre haverá novos pecados em almas eternamente capazes de pecar. Em qualquer dos dois casos, portanto, o Inferno precisa ser eterno. A diferença é apenas se algumas pessoas ficarão lá de uma vez por todas ou se todas as pessoas ficarão eternamente entrando e saindo de lá. Olhadas as coisas por esse ângulo, não parece que a segunda hipótese seja melhor do que a primeira, não é verdade?

Vez por outra me perguntam por que raios Deus colocou a árvore do conhecimento do bem e do mal no meio do jardim do Éden, onde Adão poderia facilmente alcançar-lhe os frutos. Ora, os pais terrestres mantêm as facas de cozinha e os produtos químicos fora do alcance das suas crianças: por que motivo Deus, Pai Perfeitíssimo, fez exatamente o contrário disso com Adão e Eva? A resposta é que Adão e Eva não eram crianças sem uso da razão, e sim seres humanos inteligentíssimos e extremamente aptos, adultos capazes de auto-determinação. Eles não comeram do fruto proibido como uma criança que se machuca sem querer com uma tomada, mas exatamente ao contrário: o Pecado Original foi cometido livre e deliberadamente, com plena consciência e manifesta vontade. É exatamente por isso que é pecado.

E por quê, ainda, Deus permitiu que os nossos Primeiros Pais tivessem a possibilidade de cometer uma coisa tão horrenda como o Pecado? Por tudo o que já se disse até aqui, a resposta é imediata: porque Deus os amava e, amando-os, queria premiá-los com a participação na Sua Eterna Bem-Aventurança a título de mérito, e para que os homens merecessem (na medida contingente de sua natureza de criatura) a Vida Eterna era necessário que eles pudessem, ao mesmo tempo, rejeitar a oferta de Deus. Liberdade, mérito e culpa existem sempre e necessariamente os três juntos, lembremo-nos. Eis aqui, pois, nascidos ao mesmo tempo, de um mesmo gesto de liberalidade divina, o livre-arbítrio, o Céu e o Inferno.

Num dos primeiros cantos (o terceiro, se a memória não me falha) da Comédia de Dante, o poeta coloca no frontispício da porta que conduz às profundezas do Hades uma inscrição que diz ter sido o Amor Supremo quem criou o Inferno. E foi exatamente isso o que aconteceu: foi por Amor que Deus criou os homens livres, e é da liberdade humana que decorre a possibilidade de amar a Deus ou de O rejeitar, de ir ao Céu ou ao Inferno. O verso do poeta é perfeito, e não significa que um sadismo divino criou, para próprio capricho, arbitrariamente, um lugar para torturar os homens: não, nada disso. Significa, isso sim!, que o Amor queria premiar os homens com a Vida Eterna – e, para que tal fosse possível, por uma necessidade imperiosa daquilo mesmo que essas palavras significam, era necessária esta porta pela qual se pode chegar à morada das dores. Uma vez que se entenda isso, aquelas objeções iniciais deixam de fazer sentido; e, em contrapartida, sem que se compreenda a história completa, nenhuma explicação parcial da justiça do Inferno é capaz de convencer.

A quem interessa exigir a “posição oficial” da Igreja a respeito de tudo?

A respeito desta matéria cuja manchete alardeia que um “Diretor de jornal católico ataca PT e defende saída de Dilma”, talvez valha a pena fazer algumas considerações.

Antes de qualquer coisa, é preciso esclarecer que as informações a respeito do jornal católico (“O São Paulo”, da Arquidiocese de São Paulo) estão todas truncadas. O texto do blog do Roldão Arruda diz o seguinte:

O jornal ainda não defendeu o impeachment. Em editorial sobre o escândalo na Petrobrás, publicado na semana passada, com o título Mãos Sujas de Petróleo, o seu diretor escreveu: “Os hábeis marqueteiros do governo querem desviar os olhos da população para o que, de fato, importa: nunca se montou um esquema tão aparelhado, tão ‘profissional’, para desviar dinheiro público.”

Ora, a edição mais recente do jornal – da “semana passada”; o texto do Estadão foi publicado ontem, 11 de março – não traz nada disso. Em sua “Edição 3042 | 11 a 17 de março de 2015”, O São Paulo tem um editorial intitulado “Oposição é necessária e faz bem”. É um texto curto, bastante equilibrado, que fala sobre o pronunciamento da sra. presidente no domingo último e o protesto «ao som da batida de panelas vazias» que se lhe seguiu. E conclui dizendo que qualquer democracia exige «um povo que não se acomode, nem perca a capacidade de se indignar com o que é injusto, e, por fim, que não transforme diferenças de opiniões em ódio de classes». Não há aqui sombra de ataque a partido algum.

O editorial referido está na “Edição 3029 | 26 de novembro a 2 de dezembro de 2014”do final do ano passado portanto. Nele, sim, encontra-se a passagem que o Roldão cita em seu texto. No entanto, também aqui não há sombra de defesa a nenhum movimento de impeachment (até porque seria extemporâneo procurá-la em um texto produzido no final de novembro último, quando o movimento que promete ir às ruas no próximo domingo não estava ainda delineado).

Ainda: no corpo do texto, na passagem já citada, é dito claramente que «[o] jornal ainda não defendeu o impeachment». A redação, verdadeiramente péssima, induzindo o leitor a cogitar coisas totalmente inverídicas, talvez nos autorize a indagar sobre o verdadeiro propósito do seu autor: se é passar informações fidedignas a respeito do pe. Michelino ou se, ao contrário, objetiva associar um órgão de comunicação oficial da Arquidiocese de São Paulo ao golpismo antidemocrático do qual está sendo desde o início chamado o clamor pelo impeachment da Dilma Rousseff.

Um: o jornal não defendeu o impeachment, ponto. Ao colocar que ele «ainda não defendeu», o escritor leva a crer que o periódico esteja em vias de o defender, e que a ausência de um texto conclamando os católicos a apoiarem o impedimento da sra. Rousseff é uma mera falha técnica prestes a ser sanada. Tudo isso é puro delírio do autor do texto. Dois: uma vez que o padre disse, com todas as letras – e isso está consignado no próprio texto do blog -, que «suas manifestações nas redes sociais refletem o que ele pensa como cidadão» e «não refletem necessariamente a posição editorial de O São Paulo», é gratuita a alusão ao Semanário da Arquidiocese que permeia todo o texto. Três: questões políticas concretas de impeachment e congêneres não demandam manifestações “oficiais” da Igreja Católica, como eu expliquei aqui recentemente. E, no fundo, parece ser esse o intuito do sr. Roldão: “enquadrar” o que ele chama de “posição católica” em algum dos dois “lados” do litígio, para forçar as autoridades eclesiásticas a o confirmarem ou rejeitarem. Afinal, após despejar as suas ilações político-religiosas, ele termina o seu texto quase que solicitando esta manifestação da Igreja:

Oficialmente, a Igreja Católica ainda não se manifestou sobre o debate…

É preciso rejeitar, liminarmente, por princípio, não apenas a tentativa de empurrar a Igreja hierárquica para o lado “pró” ou “contra” o impeachment mas também a própria noção de que é possível haver uma “posição oficial” da Igreja a respeito dessas coisas. Os católicos que porventura estejam se organizando para se manifestar no próximo domingo pedindo o impedimento da presidente estão fazendo isso enquanto cidadãos brasileiros, e não “enquanto católicos”. Isso precisa ficar muito claro.

A “posição da Igreja” existe em relação àquelas coisas que, em seu conjunto, integram o Seu patrimônio doutrinário e moral: daí, por exemplo, que «ninguém pode ser ao mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista»; que é necessário a todos empenhar-se para que «as leis e as instituições do Estado não lesem de modo algum o direito à vida, desde a sua concepção até à morte natural, mas o defendam e promovam»; ou que «todos os fiéis são obrigados a opor-se ao reconhecimento legal das uniões homossexuais»A tentativa de multiplicar “posições oficiais” da Igreja a respeito de miudezas políticas – como a marcha pelo impeachment ou o abaixo-assinado pela reforma política – não passa de um artifício capcioso para obscurecer a clareza da Sua posição sobre aquilo que é verdadeiramente obrigatório e inegociável para os cristãos na sociedade: afinal, se a Igreja Se manifesta sobre tudo, então Ela fica reduzida ao papel dos “formadores de opiniões” contemporâneos que hoje dizem uma coisa e, amanhã, o seu contrário. Se a Igreja “compra” as brigas pequenas – aquelas que, no fundo, podem ser perdidas sem grande prejuízo -, então Ela não precisa ser levada tão a sério quando se pronunciar a respeito das brigas grandes. Em uma palavra: associando-Lhe em demasia às coisas que passam, terminam por Lhe enfraquecer o peso da manifestação quando Ela se manifesta pelas coisas que não passam. E isso os católicos não podem admitir apaticamente. Essas armadilhas, cumpre denunciar com vigor.