O Reino de Deus não é comida nem bebida

Um leitor desafia:

Aliás, por que não comenta a diferença [nas regras do jejum e da abstinência] do Código de Direito Canônico de 1917 com o atual?

Façamos melhor! Comparemos o Código Pio-Beneditino com a praxis ortodoxa e com a cristã primitiva. Que tal?

Para o Código de 1917, de acordo com esta excelente sistematização:

  • faz-se abstinência toda sexta-feira do ano;
  • faz-se jejum todos os dias da Quaresma;
  • faz-se jejum e abstinência em algumas datas específicas («na Quarta feira de Cinzas, em toda Sexta-feira e Sábado da Quaresma e das Quatro Têmporas, nas vigílias de Pentecostes, da Assunção da Mãe de Deus ao Céu, de Todos os Santos e da Natividade do Senhor»).

Para os ortodoxos:

  • faz-se «jejum normal às quartas e sextas-feiras» do ano todo (com algumas exceções: p.ex., «entre o Domingo do Fariseu e do Publicano e o do Filho Pródigo»);
  • seguem-se complicadas regras de abstinência para a Quaresma (v.g. na primeira semana, além do jejum, é permitido «comer apenas vegetais cozidos com água e sal, e também coisas como frutas, nozes, pão e mel»; na Quinta-Feira Santa, «uma refeição é permitida com vinho e óleo»; no Sábado Santo, «ao fiel que permanecer na igreja para a leitura dos Atos dos Apóstolos, para sustentar suas forças é dado um pouco de pão e frutas secas, com um copo de vinho»; etc.).

Para os primitivos cristãos:

  • fazia-se jejum toda semana, na quarta-feira e na sexta-feira;
  • o jejum «consistia na abstenção de todo o alimento e de toda a bebida até a hora nona, isto é, até o meio da tarde»;
  • além destes, os «jejuns que precediam a Páscoa (…) foram fixados em quarenta dias, em memória do jejum que Cristo fez no deserto».

Que conclusões podemos tirar dessas informações? Que os cismáticos ortodoxos são os que mais se aproximam da Igreja fundada por Nosso Senhor? Que o Código Pio-Beneditino era de um relaxamento modernista criminoso em comparação com as regras do jejum praticadas em outros tempos e lugares? Que a Igreja vem passando, ao longo dos séculos, por um gradual processo de degeneração no que concerne à pureza das práticas penitenciais que os Apóstolos legaram aos primeiros cristãos?

Nada disso. A única coisa que é legítimo concluir desse ligeiro excurso histórico-geográfico é que a Igreja de Cristo, naquilo que não é de direito divino, sempre teve o poder de moldar a Sua disciplina às diversidades dos tempos e lugares, aos usos e costumes legítimos, tendo em vista o que julga mais propício a conduzir as almas a Deus – este, sim, que é o fim mediato de toda a penitência cristã.

Em si mesmo, não adianta passar um terço do ano a pão e água, não adianta comer apenas nozes e lentilhas em determinados dias do ano, não adianta passar cinco dias com somente duas refeições. Não adianta, porque «o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e gozo no Espírito Santo» (Rm 14, 17). E atenção, que com isso não se está negando a importância da penitência na vida cristã; mas se está, sim, atacando a mentalidade que parece querer reduzir a ascese ao número anual de dias de abstinência obrigatória de carne no calendário oficial da Igreja.

Se o Código de Direito Canônico de 1983 for modernista e ilegítimo meramente porque prescreve uma disciplina mais relaxada do que a do Código de 1917, então o Pio-Beneditino também o é porque dispõe regras de jejum e abstinência muito mais brandas do que as mantidas – até hoje! – pelos cismáticos orientais. E os cismáticos orientais, ao complicar o jejum seguido pelos cristãos dos primeiros séculos (ao mesmo tempo, aliás, ao que parece, em que o abrandava em muitos dos dias da Quaresma), também são réus da corrupção da pureza dos costumes antigos e, por conseguinte, cabe-lhes a mesma censura. A seguir tal lógica, então, nunca houve fidelidade entre as autoridades eclesiásticas de nenhuma parte do mundo, e a história da Igreja é um enorme suceder de progressivas conspurcações da mensagem evangélica. Semelhante raciocínio, por óbvio, não tem o menor cabimento, é aliás ímpio e blasfemo, e ofende aos ouvidos pios que ele seja sequer cogitado.

Contra essa mentalidade neo-farisaica que julga encontrar a graça divina no mero cumprimento material de normas disciplinares, levantam-se, vigorosas, as palavras de S. Paulo: non est regnum Dei esca et potus! O valor das penitências não se mede pela magnitude daquilo que é sacrificado, mas pelo espírito com o qual se o sacrifica. Afinal de contas, a razão última de toda penitência é o conformar-se a Cristo, é o aproximar-se de Deus. Para quem ainda não se apercebeu dessa verdade elementar, infelizmente, nem todos os jejuns e abstinências do mundo haverão de servir.

O Inferno continua eterno como sempre esteve

Foi recentemente divulgado, nas redes sociais, em tom elogioso, um artigo da lavra do Juan Arias e republicado pelo Unisinos que é abertamente herético. Sob o título “O Papa Francisco revisa a teologia do Inferno” (!), o articulista se esmera por demonstrar que Sua Santidade teria defendido a tese de que o inferno não é eterno.

Não sei se o mais impressionante é o sr. Arias mentir na cara dura, haver pessoas que acreditem na canalhice do sr. Arias ou haver pessoas que comemorem o disparate inventado pelo sr. Arias como se fosse um “avanço” para a Igreja Católica. Quanto a estes últimos, tolos!, não percebem que a beleza da Igreja Católica é justamente a Sua intransigência diante do furor das Potências do mundo, é precisamente a Sua solidez inabalável enquanto, ao seu redor, rebentam os vagalhões açodados pela procela do Século. Não entendem que, no instante em que a Igreja começar a “revisar” matéria teológica que seja, deixa de existir qualquer razão para alguém acreditar na Igreja Católica, uma vez que cessa de haver qualquer garantia de que a nova doutrina não vá também ser alterada na semana que vem.

Mas – ó, surpresa…! – ainda não foi dessa vez que a Igreja de Cristo prevaricou. O texto de Unisinos começa dizendo que o Papa Francisco «aproveitou, dias atrás, seu discurso aos novos cardeais para recordar-lhes que o castigo do inferno com o qual a Igreja atormenta os fiéis não é “eterno”». A alegação é simplesmente disparatada; quase tão incrível quanto aquela outra, evidentemente falsa, que circulou há um ano e onde era dito, na maior sem-cerimônia, que o Papa dissera que não há fogo no Inferno e Adão e Eva não são reais.

E, hoje, existe internet…! Com cinco minutos de Google qualquer pessoa consegue acessar, no site do Vaticano, o discurso do Papa aos novos cardeais. A homilia do Consistório (à qual cheguei primeiro), do dia 14 de fevereiro, não diz nada nem remotamente parecido com o que o Juan está falando. Achei-o no dia seguinte, na Santa Missa com os novos cardeais, celebrada pelo Papa aos 15 de fevereiro. Lá pelas tantas, o Papa Francisco dispara:

O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. Isto não significa subestimar os perigos nem fazer entrar os lobos no rebanho, mas acolher o filho pródigo arrependido; curar com determinação e coragem as feridas do pecado; arregaçar as mangas em vez de ficar a olhar passivamente o sofrimento do mundo. O caminho da Igreja é não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero; o caminho da Igreja é precisamente sair do próprio recinto para ir à procura dos afastados nas «periferias» essenciais da existência; adoptar integralmente a lógica de Deus; seguir o Mestre, que disse: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos que Eu vim chamar ao arrependimento, mas os pecadores» (Lc 5, 31-32).

É difícil saber até mesmo por onde começar. Em primeiro lugar, a palavra “Inferno” não consta nem no período e nem em nenhuma outra parte da homilia. Na passagem, aliás, o Papa fala – muito claramente – de coisas concretas como o perdão concedido àquelas pessoas que o pedem arrependidas, não havendo esforço hermenêutico possível que o possa colocar, nesta passagem, fazendo digressões escatológicas sobre os Novíssimos. Em uma palavra, o Papa está dizendo que a Igreja perdoa os que Lhe pedem perdão, e não que o Inferno não é eterno. Sobre «derramar a misericórdia de Deus», a propósito, o Papa faz questão de dizer, na imediata sequência da frase, que isso se faz «sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero». Ou seja, a Igreja perdoa as pessoas que – partícula que introduz oração subordinada adjetiva restritiva – pedem a misericórdia de Deus com coração sincero, e não “todas as pessoas” e nem “em todas as circunstâncias”. O tema não tem nada a ver com o inferno ser eterno ou temporário, evidentemente não tem, e é preciso muita estreiteza intelectual ou deformidade de caráter para interpretar dessa maneira ou assim divulgar. Sim, há quem negue a eternidade do inferno; mas esses são os hereges de todos os séculos, e não o Papa Francisco.

E o texto é ainda repleto de inverdades grosseiras, mas tão grosseiras que parecem saídas da pena de um prosélito irreligioso carente de níveis mínimos de erudição. Por exemplo, a seguinte frase é digna de um lunático:

Até o século III a Igreja nunca defendeu a doutrina da eternidade do inferno.

Um relincho desses só pode ter sido escrito por alguém que nunca ouviu falar em uns livros chamados Evangelhos. Porque qualquer pessoa que tivesse alguma vez na vida se preocupado em abrir as Escrituras Sagradas encontraria, lá, entre outras, a seguinte sentença peremptória capaz de pôr fim à celeuma:

Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: – Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. (São Mateus 25, 41)

Fogo eterno. Na Vulgata – cujos termos a ascendência latina do nosso português não nos permite compreender errado -, in ignem æternum. Ora, se o próprio Cristo, nos livros tidos como sagrados pelos cristãos, disse, com todas as letras possíveis, que o fogo ao qual estavam destinados o demônio e seus anjos era eterno, como pode ser possível que a Igreja nunca tenha defendido até o século III aquilo que é ipsissima verba Christi?

Ao contrário do que o lenga-lenga do autor do texto leva o leitor incauto a acreditar, por conseguinte, o Inferno é sim eterno, e é nesses moldes que a Igreja sempre o entendeu: dos primeiros cristãos ao Papa Francisco inclusive. Qualquer um pode dizer o contrário disso, é verdade. Mas querer arregimentar em favor do seu devaneio o Papa Francisco ou a Igreja Primitiva, aí não! Aí já é cretinice sem a menor correspondência com a realidade – e que, portanto, urge desmascarar.

E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – III (Final)

Finalmente, após a epopéia iniciada na terça e ontem continuada, qual é o resumo da ópera? Afinal de contas, e se a renúncia de Bento XVI tiver sido inválida mesmo, o que acontece?

Pois bem. De acordo com o ensino da Igreja, provavelmente é preciso sustentar que, ainda que Bento XVI tenha sido forçado a renunciar, ainda que a renúncia proferida há dois anos passados tenha sido real e verdadeiramente nula, não muda absolutamente nada e S.S. o Papa Francisco é o Vigário de Cristo gloriosamente reinante mesmo assim.

O porquê disso é simples: razões de segurança espiritual exigem que a infalibilidade da Igreja se estenda àqueles fatos que estão tão conexos com a Revelação que, sem eles, o próprio acesso à Verdade Revelada ficaria comprometido. Categoria deste «objeto secundário da infalibilidade» é a que engloba os assim chamados fatos dogmáticos (facta dogmatica), dos quais a legitimidade da eleição de um Papa é provavelmente o exemplo por antonomásia.

A necessidade disso é fácil de ser vista por um exemplo. Todo mundo sabe que não pode negar a Imaculada Conceição da SSma. Virgem, posto que é dogma de Fé proclamado pelo Bem-Aventurado Papa Pio IX. No entanto, para que esse dogma tenha de fato o condão de obrigar o católico à Fé, é preciso que Pio IX tenha sido Papa verdadeiro – caso contrário, a “proclamação” ocorrida em 1854 seria tão-somente um teatro pomposo, sem a menor relevância para a vida espiritual dos católicos do orbe.

O mesmo pode ser dito com relação a qualquer outra coisa da vida da Igreja. O Magistério é a regra próxima da Fé; mas seria completamente sem sentido que se devesse obedecer o Magistério e, ao mesmo tempo, não fosse nunca possível ter certeza a respeito de se aquilo que se apresenta como o Magistério – e o Magistério Pontifício é o Magistério por excelência – é, realmente, de fato e de direito, o Magistério da Igreja Católica. A submissão às legítimas autoridades eclesiásticas seria um flatus vocis na impossibilidade prática de reconhecer tais autoridades legítimas. A regra próxima da Fé seria absurda, um mandamento impossível de ser cumprido.

Ludwig Ott assim se expressa a respeito dos fatos dogmáticos (negritos meus, itálico no original):

Al objeto secundario de la infalibilidad pertenecen: a) las conclusiones teológicas de una verdad formalmente revelada y de una verdad de razón natural; ß) los hechos históricos, de cuyo reconocimiento depende la certidumbre de una verdad revelada («facta dogmatica»).

E, em outro ponto:

Entre las verdades católicas se cuentan:

[…]

2. Los hechos dogmáticos (facta dogmatica). Por tales se entienden los hechos históricos no revelados, pero que se hallan en conexión íntima con una verdad revelada, v.g., la legitimidad de un Papa o de un concilio universal, el episcopado romano de San Pedro. En sentido más estricto se entiende por hecho dogmático el determinar si tal o cual texto concuerda o no con la doctrina de fe católica. La Iglesia no falla entonces sobre la intención subjetiva del autor, sino sobre el sentido objetivo del texto en cuestión; Dz 1350: «sensum quem verba prae se ferunt».

Não é portanto possível haver dúvidas com relação à legitimidade da eleição de um Papa. A infalibilidade da Igreja de Cristo se estende também ao resultado dos seus conclaves; pertence ao conjunto das verdades católicas crer que aquela pessoa que se apresenta como Papa é de fato o Papa da Igreja. Não fosse assim, repita-se, seria impossível ter certeza a respeito de todo o resto.

Os próprios sedevacantistas, a propósito, registre-se, dizem que a aceitação de uma pessoa por toda a Igreja como Papa faz com que ele seja Papa verdadeiro:

Sim, se a Igreja universal com unanimidade moral aceita pacificamente um homem como Papa legítimo, ele realmente deve ser um Papa legítimo. A razão disso é que o Papa é a regra próxima da fé. Os fiéis aceitam o ensinamento doutrinal do Papa e, se a Igreja inteira aceitasse uma falsa regra da fé, Cristo estaria expondo Sua Igreja ao erro, o que não pode acontecer.

John S. DALY, Bento XVI e a aceitação pacífica pela Igreja inteira, 2006,
trad. br. por F. Coelho, São Paulo, fev. 2012, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-1gg

A aceitar a argumentação que o John Daly emprega em sequência para fugir da necessidade de reconhecer o Papa como Papa – a de que os papas conciliares na verdade não gozam de “aceitação pacífica pela Igreja inteira” -, não haveria sentido em restringir a sua aplicação ao Papa Francisco. Por força de conseqüência, o mesmo teria que ser dito dos outros Papas (inclusive Bento XVI). Não se sustenta, portanto, esta espécie de “sedevacantismo restrito”, que nega a legitimidade somente ao Papa Francisco e não aos seus predecessores imediatos. Na prática, a aceitação da qual goza o Papa Francisco não é significativamente diferente – nem quantitativa nem qualitativamente – da que gozava Bento XVI ou S. João Paulo II. O murmurinho pela ilegitimidade do Papa Francisco, quer se baseie na invalidade da renúncia de Bento XVI, quer em defeitos processuais ocorridos na condução do conclave, é obra de uma minoria sinceramente inexpressiva para além dos palanques que é próprio da internet conceder a qualquer pessoa. Não é relevante. Não a ponto de valer o risco à salvação da própria alma que a insubmissão ao Romano Pontífice acarreta.

Portanto, mesmo que o Papa Bento XVI tivesse sido forçado a renunciar, mesmo que a Declaratio de 2013 não tivesse surtido efeitos jurídicos, Bento XVI teria deixado de ser Papa no dia da fumata bianca do fim do conclave que elegeu o Papa Francisco, no instante em que ele foi apresentado na sacada da Basílica de São Pedro e recebido como Papa pelos católicos do mundo inteiro. Isso porque a Igreja não pode ter senão um Papa, e se o homem que toda a Igreja reconhece como Papa é Papa verdadeiro, então o Papado pertence a ele e não a nenhum outro. A situação de fato sobrepõe-se à de direito e, neste caso, confere eficácia jurídica à situação que por si mesma seria ilegítima. Para que fosse diferente, o Papa legítimo precisaria reclamar o sólio petrino. Bento XVI jamais o fez.

Por fim, uma última dúvida. Na hipótese de que Bento XVI seja realmente o Papa verdadeiro, o que aconteceria se – Deus o livre! – ele viesse a morrer amanhã?

a) A Sé ficaria vacante, posto que o Papa Francisco não teria sido eleito legitimamente?

b) O Papa Francisco se tornaria imediatamente Papa, posto que o único obstáculo a que ele ocupe a Sé Apostólica é o fato de ela já se encontrar regularmente ocupada?

O primeiro caso recai no sedevacantismo clássico, sendo-lhe portanto imputável todas as críticas e dificuldades que por décadas dirigimos aos sedevacantistas. No segundo caso… então a legitimidade do governo da Igreja está atrelada à contingência biológica de morrer um ancião que tem gastado os últimos anos da vida a repetir em público que o Papa a quem é devida a submissão católica não é ele próprio, mas sim o Papa Francisco? Os que adotam semelhante tese, então, não possuem nenhuma perspectiva quanto ao futuro, estando apenas aguardando o Bispo emérito de Roma morrer para a situação da Igreja ipso facto se regularizar – é isso mesmo? Que sentido isso faz?

E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – II

Ontem eu dizia que há diversos problemas na hipótese de o Trono de S. Pedro estar atualmente ocupado por um impostor. Acho que vale a pena insistir ainda um pouco no assunto.

O ponto para o qual estou tentando chamar a atenção não é a mera hipótese da existência de um Antipapa. Não há novidade alguma nisso, Antipapas já existiram na história da Igreja. O verdadeiro problema aqui é a hipótese de aquele que é reputado Sumo Pontífice pela virtual totalidade da Igreja visível não ser Papa verdadeiro – e isso é um pouco diferente das outras situações históricas pelas quais a Barca de Pedro já passou nesses dois milênios tumultuosos de sua existência.

Certo, a Igreja passou quase setenta anos no cativeiro em Avignon. Mas – e isso é o mais importante – em Avignon havia Papas legítimos reclamando o sólio pontifício! O problema de não ser possível identificar qual o Papa legítimo entre dois (ou mais) pretendentes à cátedra de São Pedro é uma coisa; o problema de não ser Papa legítimo a única pessoa que se pretende Papa e como Papa é reconhecido – pública e pacificamente – por toda a Igreja é outra coisa completamente diferente. Que fosse talvez necessário escolher – entre fulano e sicrano – um Papa para se submeter é uma realidade que já se apresentou historicamente. Que a escolha deva ser feita entre fulano e o Trono Vazio, no entanto, é uma novidade absolutamente inaudita.

(Eu sei que, no caso particular de Antipapado em que a renúncia de Bento XVI tenha sido inválida, a escolha é entre o Papa Francisco e o Bento XVI, e não entre aquele e a Sé Vacante. No entanto, para a maior parte do sedevacantismo existente nos dias de hoje, a opção que se faz é pelo Trono Vazio em oposição ao que nele se assenta mesmo. Ademais, a hipótese do “Antipapa Francisco”, nos moldes de “Bento XVI ainda é Papa”, precisa lidar com o fato, então, de que pode ser canônica e teologicamente possível que seja Papa alguém que faz questão de dizer, em público e repetidas vezes, que não é Papa! O inusitado da situação exige que sejam apresentados argumentos fortes em defesa da tese. O ônus é de quem faz alegação, e é tanto maior quanto mais extraordinária for a alegação feita.)

Note-se, um Antipapa não é simplesmente um falso Papa. Um Antipapa é uma pessoa que se arroga falsamente o título de Papa em oposição a um Papa verdadeiro. É assim que está na Wikipedia, é assim que explica a Enciclopédia Católica, é somente assim que faz sentido. Não fosse assim, como ninguém jamais viu um conclave (à exceção dos cardeais-eleitores), estar-se-ia sempre na dúvida de se um determinado Papa é realmente Papa ou não – e tal insegurança não pode subsistir na Igreja que é coluna e sustentáculo da Verdade. Sim, a Sé de Roma pode ficar vacante. Sim, um Antipapa pode pretender ilegitimamente a Sé de Roma. Mas a Sé de Roma estar vacante ao mesmo tempo em que um Antipapa a reclama sem oposição  – aí não, aí não é possível, aí não tem precedente, não tem embasamento teológico, não tem lógica e nem cabimento.

Sobre os tempos priscos do passado remoto da Igreja, nos quais alguém pode esgaravatar um intervalozinho de tempo – sei lá, entre a morte de Inocêncio VII e a eleição de Urbano V – no qual um Antipapa “reinou” durante um período de Sé Vacante, a comparação não procede. Esta vacância contingente estava inserida num processo contínuo de morte do Papa – realização do conclave – eleição do seu sucessor, que absolutamente não encontra paralelo na situação contemporânea. Em Avignon, havia pretensão legítima de Sé Vacante – evidenciada pelos Papas que a antecederam e sucederam sem solução de continuidade. Hoje, tal não ocorre. Hoje, nada nem sequer remotamente análogo a isso ocorre.

Ainda, diga-se que os problemas de ordem prática apontados para a hipótese do Antipapado contemporâneo – nomeações episcopais inválidas, normas para a Igreja Universal nulas, cultos espúrios prestados a santos não canonizados etc. – são próprios dos tempos modernos, nos quais há uma absurda concentração de poder nas mãos do Romano Pontífice e um seu quase ininterrupto exercício. Durante a Idade Média, era perfeitamente possível – aliás, em determinadas situações de crise (como o Grande Cisma do Ocidente) isso era até extremamente provável – que o Papa fosse eleito e não exercesse nenhum ato especificamente pontifício: não canonizasse ninguém, não lavrasse nenhuma bula de criação de diocese, não alterasse nenhuma norma litúrgica. Hoje, ao contrário, o ordenamento canônico muda praticamente todos os dias (com nomeações e renúncias, mudanças curiais, refinamentos litúrgicos, canonizações e beatificações etc.); e se uma norma inválida for introduzida nesse sistema, é simplesmente impossível retroceder à situação anterior.

Mas, como aventei ontem, sempre existe a hipótese do ajeitadinho eventual. Sempre é possível pensar que, num futuro não importa o quanto longe, um Papa legítimo vai surgir e vai referendar tudo, vai aplicar sanatio in radice pra tudo o que foi feito de modo inválido pelos seus ilegítimos predecessores, vai promulgar dessa vez de verdade tudo o que fora indevidamente promulgado (com efeitos erga omnes e ex tunc), vai – em suma – dar uma canetada jurídica que vai pôr ordem na casa. Enquanto tal não acontece, Deus, em Sua Onisciência, prevendo esse futuro Papa Sebastião salvador, antecipa os efeitos de sua autoridade pontifícia e sai aplicando suplências eclesiais para manter a Igreja funcionando (afinal, as portas do Inferno não podem prevalecer).

Vejam, essa idéia espetaculosa até que cola. Mas o seu problema é que ela é mirabolante demais, é uma gambiarra muito grande e, portanto, repugna à razão que seja verdadeira. A salvação das almas vem de ordinário por meio da Igreja visível e hierárquica; e imaginar uma Igreja visível ma non troppo, onde aqueles que se apresentam como autoridades visíveis são na verdade uma Anti-Igreja organizada para esconder a Igreja verdadeira; uma Igreja hierárquica “só que não”, onde os que se apresentam como superiores não detêm autoridade verdadeira (e, portanto, as coisas válidas – em ordem à salvação – que eles porventura façam decorrem não dos meios próprios da Igreja, mas de uma intervenção sobrenatural e direta do Deus Altíssimo para suprir defeitos que praticamente ninguém imagina existir); uma Igreja, em suma, que não guarda quase semelhança alguma com o que a Esposa de Cristo sempre foi historicamente – imaginar tal coisa raia a insensatez.

No fundo, pretender que o Catolicismo está somente ao alcance de uma meia-dúzia de iniciados (que conseguem perscrutar os mistérios da crise moderna e enxergar, para além do que dizem as sedizentes autoridades católicas contemporâneas, aquilo que é a Fé verdadeira) cheira a gnosticismo, e imaginar que a existência encarnada da Igreja pode ser sincronicamente “suspensa” no curso da História (e a pertinência dos católicos a Ela deixa de se realizar mediante as autoridades eclesiásticas para se dar imediatamente, de um modo “espiritual”) aproxima-se de um subjetivismo protestante. Se isso fosse verdade – se isso pudesse ser verdade – não teria para quê haver Igreja. A salvação poderia ser individual (posto que não haveria atualmente possibilidade de submissão às autoridades hierárquicas visíveis) e a Fé poderia vir de uma inspiração interior do Espírito Santo (uma vez que não há Magistério Vivo para ser regra próxima de Fé e cada um precisa estudar o Denzinger por conta própria).

E é isso, no fim das contas, o que torna o sedevacantismo insustentável. Sim, é terrível o estado deplorável em que se encontra a Igreja atualmente…! Mas ninguém está eximido de sofrer na própria carne o martírio da Esposa de Cristo. É sedutora a tentação de abraçar um refinamento teórico que pareça dar sentido ao mysterium iniquitatis dos dias de hoje, à abominação no lugar santo: no entanto, é ao escárnio mesmo que Deus nos chama – e aos cristãos nenhuma cruz nos deveria escandalizar. O amor à Igreja passa por sofrer por Ela e n’Ela; e, no fundo, não é amor verdadeiro abraçar uma quimera intangível para se furtar ao trabalho – que pode perfeitamente ser frustrante, mas nem por isso menos necessário à salvação – de dedicar as próprias lágrimas a limpar (ainda que em vão!) o rosto imundo e purulento da Igreja encarnada tal como Ela se apresenta nesses tempos desgraçados em que aprouve à Providência que vivêssemos.

E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – I

O Rorate Coeli estampou hoje, com alarde, uma carta aberta de S. E. R. Dom Jan Pawel Lenga, bispo emérito de Karaganda (Cazaquistão), a respeito da crise da Igreja. O Fratres in Unum já a traduziu. Um dos seus pontos mais impactantes – e que consta até mesmo como subtítulo da chamada – é o que diz ser «difícil acreditar que o Papa Bento XVI tenha renunciado livremente [ao] seu ministério como sucessor de Pedro».

O problema é de ordem estritamente canônica. O Código atualmente vigente diz o seguinte:

Cân. 188 — A renúncia apresentada por medo grave, injustamente incutido, por dolo ou erro substancial ou feita simoniacamente, é inválida pelo próprio direito.

E ainda:

Cân. 332 — (…) § 2. Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao cargo, para a validade requer-se que a renúncia seja feita livremente, e devidamente manifestada, mas não que seja aceite por alguém.

O que o Direito dispõe é bastante lógico e justo: para a renúncia ser válida, ela precisa ser livre. O problema, assim, coloca-se com clareza: se o Papa Bento XVI não renunciou livremente, se ele o fez motivado por alguma espécie de medo grave, então esta sua renúncia não foi válida. Logo, ele jamais deixou de ser Papa. Logo, a Sé não ficou vacante, o Conclave foi convocado ilegitimamente e o Papa Francisco não é Papa verdadeiro, senão um usurpador.

O raciocínio parece sedutor. Os seus sucessivos passos parecem muito bem concatenados. Cada consequente parece decorrer, por exigência lógica, do seu antecedente.

No entanto, alguma coisa incomoda: a conclusão parece não estar muito bem. A seguir-lhe ferreamente, às últimas consequências, então tudo fica dependendo das disposições interiores do Papa Bento XVI naquele fatídico 11 de fevereiro. Tudo – a validade da eleição do Papa Francisco e todos os sucessivos atos de governo que se lhe seguiram, as nomeações episcopais, os consistórios, as normas canônicas promulgadas nos últimos dois anos, as canonizações, tudo – fica dependente do grau de liberdade subjetivo com o qual Bento XVI proferiu a Declaratio da Grã-Renúncia.

E isso não faz o menor sentido. Não dá para edificar todo o colosso da Igreja unicamente sobre as disposições subjetivas de um homem, por mais importante que ele seja. Não tem lógica absolutamente nenhuma fazer a validade de tudo o que é de competência eclesiástica – por natureza visível e externo – depender de determinadas condições subjetivas que ninguém tem condições de perscrutar com exatidão. Tal seria o triunfo completo do subjetivismo. A insegurança generalizada.

Faça-se um pequeno exercício de imaginação. Imagine-se que S.S. Francisco não seja Papa. Então

i) os cardeais que ele criou não são cardeais verdadeiros e, portanto, não têm direito a voto em um eventual futuro conclave – o que, com o passar do tempo, iria fazer não só com que ele próprio não fosse Papa legítimo mas com que fosse canonicamente impossível eleger um Papa legítimo, uma vez que a Capela Sistina teria cada vez mais homens fantasiados de púrpura e cada vez menos Príncipes verdadeiros da Igreja de Cristo;

ii) os bispos que ele nomeou igualmente não têm jurisdição verdadeira sobre as suas dioceses, o que acarreta a invalidade de todos os sacramentos cujo exercício depende de jurisdição eclesiástica – i.e., os matrimônios e as confissões;

iii) os santos que ele canonizou não são santos verdadeiros e, portanto, a infalível Igreja de Deus está, pública e universalmente, prestando um falso culto a homens comuns, usurpadores da glória dos altares;

iv) etc.

É até possível arranjar subterfúgios para fugir aos pontos i) e ii) acima. Quanto ao primeiro, é possível dizer que a Sé há de ficar vacante no momento em que Bento XVI morrer – e, a partir de então, um Papa pode vir a ser eleito legitimamente, ainda que objetivamente violando (mas em boa fé) certos dispositivos de direito eclesiástico. Quanto ao segundo, bom, é sempre possível aplicar o supplet Ecclesia – e, assim, garante-se a graça sacramental aos ignorantes sem maiores dificuldades.

Mas quanto ao terceiro não dá para tergiversar. Se o Papa Francisco não é Papa, então a Igreja está prestando um falso culto a todos os santos que ele canonizou de 2013 pra cá. E a Igreja, que é infalível em Sua liturgia, simplesmente não pode prestar um culto falso. Se o fizer, Ela deixa de ser Igreja. O problema não se resume, portanto, a uma questão de a Igreja estar temporariamente acéfala – fato extremamente banal e corriqueiro. Se o Papa Francisco não fosse Papa, a Igreja Católica, a Igreja de Cristo, a Igreja visível, estaria fazendo, hoje mesmo, uma coisa que Ela simplesmente – por promessa divina – não pode fazer: prestando um culto litúrgico espúrio.

Deixou de existir, portanto, Igreja visível. Recaem-se, aqui, em rigorosamente todos os problemas do sedevacantismo “clássico” (o que remete a Paulo VI, João XXIII, Pio XII ou seja lá até onde se deseje retroceder a vacância da Sé Apostólica). Estarão os críticos do Papa Francisco dispostos a aceitar tanto? Ou não pensaram jamais nisso – e acham que a hipótese de um falso Papa no sólio pontifício com o soberano legítimo ainda vivo é de algum modo menos problemática do que a de uma Igreja com o trono abandonado, esquecido e empoeirado por gerações a fio?

O julgamento de um bom cristão

Um leitor do Deus lo Vult! fez a gentileza de entrar em contato com o blog, enviando o seguinte comentário:

De: Edeorande Faria

Boa tarde Jorge. Estou com 70 anos de idade e tive minha vida como católico, como tantos outros. Confesso para você que nunca entendí nada de religião, a não ser o quer os padres falavam durante as missas, pois elas eram sempre a mesma coisa.. Aprendi a falar amém a tudo que se dizia. Até que um dia um amigo me perguntou sobre a Inquisição Católica, onde aqueles que não seguiram o Catolicismo foram torturados e queimados na fogueira, considerados como hereges. Gostaria se póssível, e sem enrolação, que você me esclarecesse sobre esta questão. Lí sobre a vida de grandes ex-católicos, como Martinho Lutero, Giordano Bruno, John Huss, esses dois ultimos queimados na fogueira pela Igreja Católica, por ordem do Papa, e eu comecei a me perguntar: será que eles estavam errados?? Quase que a totalidade dos evangélicos do mundo todo, são todos egressos do Catolicismo, será que estes milhões, também estão equivocados, e você esta certo??? Lí sua crítica e julgamento (coisa que um bom cristão não deve fazer) sobre o Espiritismo. Tenho vários amigos espíritas que nunca criticaram e nem fazem qualquer tipo de julgamento em relação ao nosso próximo, como nos ensinou Jesus. Fazem um trabalho junto as comunidades carentes, e pregam o amor ao próximo, como Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensinou, e Deus como nosso Criador. Penso que ao invés de você se acomodar em suas críticas ao Espiritismo( mesmo porque você não irá conseguir convencer os espíritas com os seus argumentos religiosos, uma vez que os recursos desta Doutrina é Ciência, Filosofia e tem um aspecto religioso) Você ainda é muito jovem e aparentemente inteligente, para ficar atacando as crenças de quem quer que seja…..Ficarei imensamente feliz em receber sua resposta, dentro dos padrões da boa educação, que eu sei que você tem . Fique com Deus…..

Por partes:

1. Há – inclusive neste mesmo blog – extensa bibliografia a respeito da Inquisição Católica, mesmo em português: há este livro de história do Direito, este documentário da BBC, estas páginas apologetas do pe. Devivier, há (sobre a Idade Média mais amplamente) a obra de medievalistas como Régine Pernoud e Jacques Le Goff. Para quem se interessa sobre o tema, a quantidade de material atualmente disponível é, graças a Deus, farta e diversificada – já bastante afastada dos preconceitos iluministas anacrônicos que, infelizmente, ainda assombram o Ensino Médio e as redes virtuais anti-católicas do séc. XXI.

2. No mérito, e de maneira bastante superficial, sim, houve pessoas que foram torturadas e queimadas. A tortura era forma de interrogatório amplamente aceita à época e, a fogueira, modalidade de pena capital universalmente praticada. A Igreja não inventou nem a tortura e nem a fogueira. (Leia-se, à guisa de desabafo, este texto.) Condescendeu com algumas características do seu tempo, tão-somente. Foi a primeira a estabelecer limites – primeiro em seus próprios procedimentos, depois inspirando as legislações civis – à violência estatal. Construiu o Ocidente que, hoje, Lhe vira as costas e, atacando-A de maneira injusta e absurda, precipita-se de modo cada vez mais acelerado à barbárie e ao caos.

“Inquisição”, aliás, é termo bastante ambíguo no que concerne à variedade de fenômenos históricos diversos que soem ser agrupados sob o mesmo nome. Houve, por exemplo, a Inquisição Romana, as inquisições ibéricas, as inquisições protestantes e os suplícios por matéria religiosa iniciados pelos tribunais seculares – embora só seja responsável por uma parcela ínfima dessa taxa de mortalidade, é à Igreja Católica que costuma ser atribuída toda a carnificina…

Ainda, fazer juízo de valor a posteriori sobre fatos ocorridos em sociedades distintas das em que nos encontramos hoje é crasso equívoco metodológico que, em história, recebe o nome de anacronismo. Já é evitado, parece-me, na Academia; mas urge que o seja também nos debates de internet. Contribuamos com este nobre propósito.

3. Martinho Lutero, Giordano Bruno, John Hus (e outros) foram hereges notórios e agitadores sociais da pior estirpe. Pode-se até questionar se a pena capital não lhes fora uma punição excessivamente dura; não é contudo possível condenar, de maneira acrítica, a reprovação social que as atitudes de cada um deles eles receberam dos seus contemporâneos.

De Lutero (cujo antissemitismo tem até uma página na Wiki espanhola), por exemplo, vale lembrar que a sua vocação para fazer deboche religioso da Fé alheia é coisa da qual pouco se fala nos dias de hoje. De Giordano Bruno, frade dominicano, diga-se apenas que foi católico que (aparentemente…) se fez protestante e depois voltou a ser católico, esgotando a benevolência de cada país e confissão religiosa pelos quais passou, culminando este seu itinerário tumultuoso – que pouco se parece com o de um “mártir da ciência” – com uma morte na fogueira mais pelo seu hermetismo do que por conta de uma suposta pregação heliocêntrica. E, de John Hus, registre-se que a sua história está entrelaçada com a de Wyclif – este cuja tradução da Bíblia não goza de prestígio sequer entre os protestantes, e a cuja defesa Hus consagrou as suas energias mesmo à custa da indisposição com os poderosos do seu tempo. Mais uma vez: pode-se até questionar se tais medidas não foram exageradas. Mas não se pode chamar tais pessoas de «grandes ex-católicos», a menos que “grandes” aqui se refira às lendas posteriormente reconstruídas em torno a eles, e não à visão que deles tinham os seus contemporâneos – católicos ou não.

4. Não se afere a verdade ou falsidade de uma doutrina pelo critério quantitativo: se fosse assim, errado estaria Cristo, e não a multidão que, diante de Pilatos, gritou para que este libertasse Barrabás e crucificasse o Filho de Deus. Sim, os milhões de evangélicos do mundo estão equivocados, porque não podem estar corretos ao mesmo tempo eles e os milhões de católicos que crêem naquilo de que eles desdenham e repudiam aquilo em que eles põem fé. Ao menos um desses conjuntos de “milhões” há de necessariamente estar errado, por necessidade imperiosa da lógica – por que não podem ser os evangélicos? Há, porventura, de serem necessariamente os católicos os equivocados?

Diga-se, no entanto, que uma coisa é a doutrina protestante estar errada, e outra coisa completamente diferente é o protestante concreto ser um falsário mau-caráter. Do fato de alguém abraçar uma doutrina equivocada não segue que seja, ele próprio, uma pessoa “maligna” ou algo do tipo: pode perfeitamente estar no erro em maior ou menor grau de boa-fé, e este julgamento compete a Deus somente fazer, no dia do Juízo. Nós, católicos, podemos e devemos dizer que tal ou qual doutrina está errada; o grau de responsabilidade de cada qual na adesão a esta doutrina errada, contudo, é matéria reservada ao Justo Juiz n’Aquele Dia.

São, assim, dois erros opostos a evitar: lançar o infeliz ao inferno por conta do erro objetivo que ele comete, e negar-se a apontar o erro objetivo por não ser possível lançar ninguém no inferno. Cumpre distinguir uma coisa da outra. Não sei da sorte eterna de absolutamente ninguém (a não ser, claro, dos santos canonizados pela Igreja): do acerto ou equívoco de uma determinada doutrina (v.g. da que nega a Imaculada Conceição da SSma. Virgem), no entanto, tenho o dever de saber – e todo mundo o tem, na medida da sua capacidade.

5. O espiritismo é uma falsa doutrina que afasta as almas de Cristo, uma vez que afasta as pessoas da Igreja por Ele fundada e, portanto, impede-lhes de obter a Graça que Cristo mesmo distribui mediante os Sacramentos da Sua Igreja. Eles podem perfeitamente fazer bonitos trabalhos sociais junto a comunidades carentes, podem pregar a paz e a concórdia e podem fazer outro sem-número de obras naturalmente boas, que Deus decerto há de levar em conta no dia do Seu julgamento; contudo,  e infelizmente, afastam-se a si próprios e aos outros da fonte de toda a graça que é a Igreja, e isso Deus também haverá de ter em consideração.

Sobre isso valem todas as considerações feitas acima. Do fato do espiritismo ser uma doutrina errônea e terrivelmente errônea, inspirada por Satanás para perder as almas, não segue que cada espírita em concreto seja, ele próprio, um Anticristo endemoniado. É possível abraçar mesmo uma doutrina satânica como o espiritismo em boa fé; a responsabilidade subjetiva de cada um, mais uma vez, compete a Deus e a mais ninguém julgar.

Sim, a verdade ou a falsidade objetiva das doutrinas compete à Igreja (não a mim e nem a ninguém) julgar. Foi o próprio Cristo que dispôs assim. Ou aceitamos isso com todas as suas consequências, ou não somos cristãos. É simples assim.

6. Não é portanto (e por fim) verdade que os cristãos não podem julgar. Eles não só podem como devem fazê-lo, a fim de não serem enganados pelas falsas doutrinas que medram na história, pelo joio que o Inimigo semeia no campo do Senhor. Todo mundo cita aquele «Não julgueis» dos Evangelhos, mas se esquece de citar o complemento que se lhe segue na mesmíssima linha: «Não julgueis pela aparência, mas julgai conforme a justiça» (Jo VII, 24). Não é portanto verdade que estejamos proibidos de julgar; o que não podemos é julgar conforme as aparências, mas sim perscrutar as coisas como elas realmente são para julgar conforme a justiça.

Ninguém pode, portanto, julgar o espiritismo ou o protestantismo ou qualquer outra doutrina pela aparência de bondade que os seus seguidores porventura ostentem (digamos, pelo auxílio material prestado a comunidades carentes, ou pela leitura dedicada das Sagradas Escrituras); antes, é mister julgar segundo a justiça, i.e., segundo o que a coisa realmente é. E quem diz o que as coisas realmente são é a Igreja de Nosso Senhor, “coluna e sustentáculo da Verdade” (1Tm 3, 15), longe da qual não se pode pretender seguir a Jesus Cristo, como o Papa Francisco tem repetido incontáveis vezes.

Afaste-se, portanto, essa história de que um bom cristão “não pode julgar” – a qual aliás sempre inclui, em si mesma e contraditoriamente, um julgamento àqueles que se censuram por estarem “julgando”… – e precisa se abster de apreciar as doutrinas que o mundo lhe apresenta (e se chocam com Aquela que ele recebeu do próprio Cristo mediante os Apóstolos). Não dá para não julgar. Quando alguém diz (v.g.) que Cristo não é Deus, tal sentença entra em rota de colisão com a Fé Católica que afirma ser Ele Deus e Homem verdadeiro, e portanto repudiar como errônea – julgar falsa – esta afirmação é uma necessidade lógica. Mais uma vez, isso nada diz a respeito da boa ou má fé do mensageiro. Mas a mensagem, esta sim, precisa ser analisada e valorada: e isso, que todo bom cristão deve fazer – a fim de não ser enganado e nem deixar no erro os seus próximos -, outra coisa não é que julgar.

Lutando contra meios-termos fraudulentos

Qualquer pessoa que tenha um mínimo de experiência política entende a estratégia de fazer “avançar” determinada agenda ideológica mediante um emprego trivial de dialética hegeliana. Consiste, basicamente, em forçar um meio-termo mediante a introdução, no cenário político, de uma posição propositalmente extremada. Assim, do embate entre a tese (o status quo) e a antítese (a nova proposta), emerge uma síntese que não chega a ser exatamente a novidade, mas tampouco continua sendo a situação anterior. Como a antítese era artificialmente extremada e nunca fora realmente levada a sério mesmo, os seus propagadores ficam felizes com qualquer espaço que consigam ganhar – para quem não tinha nada, o que vier é lucro. No extremo oposto, como a situação anteriormente estabelecida era de verdade, empírica e factual, qualquer espaço que ela perca é uma perda verdadeira. O emprego sistemático dessa estratégia simples – impondo antíteses sucessivamente mais alucinadas às sínteses (tornadas teses) que se forem conquistando – é capaz de conduzir, com bastante eficácia, os rumos de uma sociedade para uma direção que ela, em princípio, não estaria jamais disposta a tomar.

Como se defender disso? A maneira mais civilizada e racional é, lógico, simplesmente não levar a sério a propositura de uma demanda desonesta. Idealmente, as escolhas deveriam ser feitas entre diversas opções razoáveis, e não entre uma opção razoável e um extremo cujo objetivo é unicamente conseguir um resultado que se afaste da opção razoável. Um pacato frequentador de prostíbulos pode parecer um anjo de delicadeza perto de Jack, o Estripador; não significa, contudo, que o primeiro possa ser eleito modelo de como os homens devem tratar as mulheres! Condenar um desafeto político a vinte anos de trabalhos forçados pode parecer uma solução perfeitamente adequada quando existe alguém exigindo, aos berros, que ele seja fuzilado e esquartejado; mas quem disse que o esquartejamento deveria ser considerado uma opção em primeiro lugar? Coisa análoga pode ser vista na Igreja: a ideia de sancionar – mediante a administração do Sacramento da Eucaristia – segundas núpcias adulterinas após determinado transcurso de tempo pode parecer bastante razoável diante da demanda pelo divórcio amplo e irrestrito aos moldes do que existe na legislação civil; ora, mas esta última proposta não está e nem pode estar em discussão e, portanto, ela não pode ser considerada na hora de decidir que “tratamento pastoral” dispensar aos casais de segunda união!

Ignorar as demandas desonestas só funciona, contudo, quando existe suficiente massa crítica para reconhecer, logo ao primeiro golpe de vista, a canalhice da proposta. Se não houver quem se levante – e arraste os demais após si – contra a simples ideia de esquartejar o oponente político e depois espalhar os seus pedaços retalhados ao longo das quatro entradas da cidade, então o infeliz terá sorte se conseguir um degredo perpétuo. O ponto aqui, note-se, é que as pessoas em princípio não estariam dispostas a exilar o pobre-coitado; no entanto, apresentadas ao quadro tétrico da cabeça degolada e hasteada na ponta de uma lança, tornam-se mais receptivas ao exílio que antes repudiariam com veemência. Diante da possibilidade da chacina brutal, a injustiça do degredo adquire contornos de misericórdia. Do mesmo modo, no âmbito eclesiástico: diante da possibilidade de louvar os méritos espirituais da união homossexual, a simples retirada das censuras à legislação civil que a equipare ao casamento parece a coisa mais razoável do mundo, uma vitória até. Oras, mas quem disse que o “casamento religioso gay” deveria ser sequer posto em consideração, antes de qualquer coisa?

Quando não é possível rechaçar certas propostas in limine, e quando existe verdadeiro risco de que “meios-termos” fraudulentos sejam conquistados, eu penso que há duas coisas que precisam ser feitas, e uma terceira que, dentro dos limites da prudência, pode ser realizada.

Primeiro, é preciso recusar-se à comparação maliciosa e insistir na análise das coisas consideradas em si mesmas: quer-se saber se a doutor Fulano, que vez por outra tem o hábito de frequentar casas de tolerância, pode ser concedido um prêmio de cidadão virtuoso, e não se ele é melhor do que o Estripador britânico. Quer-se saber se a imposição de degredo (ou trabalhos forçados) a um oponente político é uma pena razoável, e não se fazer isso é mais justo do que matar e esquartejar o réu. Quer-se saber, por fim, se é doutrinariamente possível ministrar o Corpo de Cristo a quem se sabe encontrar-se em estado de pecado mortal objetivo, e não se isso é menos escandaloso do que abolir a indissolubilidade matrimonial que Cristo instituiu.

Segundo, é preciso denunciar a má-fé de quem procede dessa maneira. É preciso dizer, com clareza, que as ideias de esquartejar o desafeto político, homenagear um assassino de prostitutas ou instituir o casamento religioso gay são completamente absurdas. É preciso denunciar que os que as propõem na verdade não querem que elas sejam aceitas, mas sim anestesiar a assembleia para fazer passar como menos absurdas outras propostas – o degredo, a exaltação do libertino, o silêncio diante da iniquidade civil – que, em situações normais, seriam prontamente rechaçadas.

Terceiro, em certas situações, penso que pode ser legítimo usar as próprias técnicas dos bárbaros e demandar em público propostas extremadas no sentido oposto – a fim de desempenhar o ignóbil papel de boi de piranha, permitindo ao bom senso que tenha alguma chance de sobreviver. Quer-se exilar o desafeto político? Acorram às ruas, exigindo que ele seja condecorado com uma pensão milionária vitalícia, por ter tido a coragem de lutar por aquilo em que acreditava! Deseja-se enaltecer o homem lúbrico? Exija-se veementemente a sua responsabilização penal, draconiana, pela corrupção dos costumes, pela exploração das mulheres, pela degeneração social que ele perpetua e fomenta! Almejam os pastores não se indispôr com os poderes seculares? Exija-se-lhes que bradem pública, vigorosa e ininterruptamente contra o nefando pecado contra a natureza que clama aos céus vingança, que organizem imensas procissões penitenciais suplicando a Deus misericórdia pelas horrendas ofensas dos sodomitas, que instem os homens públicos e as regiões à desobediência civil – ameaçando estas com o interdito e aqueles com a excomunhão!

Sabe-se que a Igreja de Cristo é dotada de infalibilidade; logo, temos a certeza – dada por Deus mesmo – de que Ela não há, jamais, de ensinar o erro no lugar da verdade. O horizonte da infalibilidade, contudo, é restrito: abarca as declarações sobre Fé e Moral feitas ex cathedra, e pronto (*). Na imensa maior parte da atuação que a Igreja exerce no mundo, portanto, existem amplos espaços para as coisas darem errado, para as decisões terem resultados desastrosos, para os homens não terem acesso ao Evangelho e Deus Nosso Senhor perder valiosas almas pelas quais Ele verteu o Seu precioso sangue. É nesta seara que os inimigos da Igreja têm conquistado admiráveis vitórias com técnicas como a que expus acima. São estes os territórios, portanto, onde precisamos lutar – sem descanso! – a fim de os reconquistar para Cristo.

[Na verdade, como lembrou aqui o Felipe – a quem agradeço -, para ser exato é preciso dizer que o objeto da infalibilidade inclui também as verdades conexas com as de Fé e Moral (v.g. conclusões teológicas, fatos dogmáticos, canonizações etc.); o seu sujeito é não somente o Papa mas também o conjunto dos bispos; e o seu modo de exercício inclui o ordinário além do extraordinário. Cf., p.ex., OTT, Ludwig, Tratado acerca de la Iglesia, Cap. IV, §13, in Manual de Teologia Dogmática. Delimitada assim com mais detalhes a esfera de abrangência da infalibilidade católica, enfatize-se que os “amplos espaços para as coisas darem errado” supracitados evidentemente não incluem aqueles nos quais a Igreja é de qualquer modo infalível.]

Quem debocha da Igreja é de Cristo que debocha

Causou-me espanto esta notícia segundo a qual uma revista jesuíta (!), em solidariedade à Charlie Hebdo, após o recente atentado, resolveu publicar algumas charges do semanário francês agressivas ao Catolicismo (!!). Segundo explicou originalmente Étvdes, a tese era que rir de certos traços da instituição “Igreja” era «uma demonstração de força» (!), uma vez que mostrava que aquilo a que os católicos estavam realmente ligados [Cristo, suponho] está «além das formas sempre transitórias e imperfeitas [nas quais a Igreja visível se manifesta, acredito]».

[No original francês a que tenho acesso somente de segunda mão: C’est un signe de force que de pouvoir rire de certains traits de l’institution à laquelle nous appartenons, car c’est une manière de dire que ce à quoi nous sommes attachés est au-delà des formes toujours transitoires et imparfaites.]

A extravagante iniciativa recebeu diversas críticas; em particular este pedido de um jesuíta francês por «um pouco de bom senso» merece-nos alguma atenção. Como é possível que um católico ache que o escárnio da sua Fé é algo cuja divulgação possa ser sequer considerada por uma revista religiosa? A falta de visão sobrenatural e a pouca importância com a qual os editores da Étvdes tratam as coisas mais importantes da vida são de estarrecer. A revista – que se diz «de culture contemporaine»… -, com isso, mais parece um veículo de toda a podridão debochada, de mau gosto e descartável que se auto-intitula “cultura” nos dias de hoje. Desse tipo de mundanidades o mundo já está muitíssimo bem servido. Para quê pôr religiosos no desempenho de tão deplorável papel?

As caricaturas foram posteriormente retiradas. No lugar delas, a revista pôs uma nota sobre a «Repercussão», dizendo que a reprodução das irreverências era «um meio de afirmar que a fé cristã é mais forte do que as caricaturas que [dela] se podem fazer, ainda que os cristãos se sintam ofendidos». Ora, a explicação não faz nenhum sentido.

Primeiro, porque é óbvio que a fé cristã é mais forte do que as caricaturas. Qualquer ideia é mais forte do que as representações caricaturescas que os seus oponentes possam conceber para a ridicularizar. Isso independe da veracidade ou falsidade da ideia, sendo um simples dado da realidade: por definição, a caricatura é menor do que o caricaturizado. Também a fé islâmica ou o Nationalsozialismus são maiores do que as garatujas de Maomé ou os cartuns antinazistas britânicos da década de 30, por exemplo.

Segundo, porque quem se ofende são as pessoas mesmo, e não as suas crenças. Em qualquer agrupamento humano civilizado, é esta a razão que faz com que certos comportamentos sejam socialmente aceitos e, outros, reprováveis. Pretender que não haja problema com a blasfêmia porque “Deus Todo-Poderoso pode muito bem aguentar uma piada” é uma argumentação que não tem cabimento nem teológica e nem sociologicamente. Teologicamente é um absurdo, porque do fato de Deus ser perfeitíssimo só segue que a Sua glória intrínseca não sofre dano com o pecado dos homens: a glória extrínseca d’Ele, por sua vez, dado que depende não d’Ele próprio mas do mundo que Lhe é externo, aumenta ou diminui de acordo com os homens honrarem-No ou O rejeitarem. E sociologicamente é um nonsense porque, para além de quaisquer possíveis desavenças teológicas, indiscutivelmente o crente é ofendido com a blasfêmia, e isso por si só dificulta o bom e pacífico relacionamento entre os cidadãos que é um dos fins mais óbvios de qualquer sociedade.

Terceiro, por fim, porque a revista comodamente “se esqueceu” do que dissera anteriormente – e que é o seu erro maior. A questão de fundo é que, para os jesuítas da Étvdes, como eles disseram originalmente, há uma distinção radical entre um Cristo invisível e espiritual e as instituições humanas que se reúnem para falar d’Ele, há uma Igreja espiritual que nada tem a ver com a Igreja visível e histórica: isto, sim, explica que eles não vejam problema em escarnecer da Igreja Católica!

O problema é que tal se trata de uma concepção herética incontáveis vezes condenadas: a Igreja Católica é o Corpo Místico de Cristo e, portanto, não existem essas «formes toujours transitoires et imparfaites» além das quais a revista parece crer que Cristo está. Entre incontáveis outros, quem o disse – e muito recentemente – foi o próprio Papa Francisco: «Nenhuma manifestação de Cristo, nem sequer a mais mística, pode jamais ser separada da carne e do sangue da Igreja, da realidade histórica concreta do Corpo de Cristo». O que passa pela cabeça desses jesuítas franceses, que não dão ouvidos ao Papa nem mesmo quando é um jesuíta a sentar-se no sólio pontifício?

«Quem vos ouve, a mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita», disse Cristo aos Apóstolos – à Igreja, portanto (cf. Lc X, 16). Estas palavras continuam válidas nos dias de hoje, e em observância a elas podemos muito bem concluir: quem debocha da Igreja é de Cristo que debocha. Não se trata de nenhuma conclusão teológica de altíssima sofisticação: é matéria de doutrina católica a mais comezinha, da mais básica piedade popular. É questão de bom senso! Bom seria se os editores da Étvdes não tivessem somente retirado os cartoons blasfemos por conta da repercussão que eles tiveram. Bom seria se estes jesuítas tivessem se dado conta de que, na verdade, escarnecem de Cristo quando não se pejam de escarnecer da Igreja d’Ele.

Siamo tutti conigli

conigli

Certas verdades são bastante óbvias para serem problematizadas. É bastante evidente que homens são criados à imagem e semelhança de Deus e, únicos seres no mundo sensível dotados de inteligência e vontade, possuem uma dignidade intrínseca que os coloca a uma distância virtualmente infinita dos animais irracionais – inclusive dos coelhos. É óbvio, portanto, que não são coelhos os seres humanos em geral e nem muitíssimo menos os católicos em particular.

Uma outra coisa que é evidente para além de toda a evidência é que a Igreja Católica possui uma doutrina peculiar e bem conhecida a respeito da contracepção, segundo a qual – na conhecida formulação da Humanae Vitae – é “de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” (HV 14). E à Igreja, Mestra infalível em Fé e Moral, pode-se até acusar de ser pretensiosa; jamais, no entanto, de ser incoerente consigo mesma. Admitindo que a um observador externo seja legítimo perguntar se o ensinamento católico é verdadeiro ou falso, uma sua característica ninguém pode negar: ele é incomodamente constante.

Causou certo frisson a última declaração do Papa Francisco, segundo o qual católicos não devem se reproduzir como coelhos. Ora, trata-se de verdadeira evidência. É lógico que os católicos não devem se reproduzir “como coelhos”, e sim como filhos de Deus – a quem foi dirigido aquele mandato de “crescei e multiplicai-vos”. Não foi aos coelhos que Deus ordenou encher a terra e a submeter, e sim aos homens! Cumpre, pois, a estes procriar como convém à sua dignidade – que é muito maior, repita-se, do que a dos coelhos.

Ainda, simplesmente não é possível aos católicos reproduzirem-se como os simpáticos leporídeos. Isso porque, como disse Chesterton em certa ocasião, um homem nunca age igual a um animal: ou age de modo muito superior a ele, quando se comporta como homem; ou, então, muito inferior a ele, quando se esquece de sua dignidade e age de maneira irracional, instintiva, animalesca. Os seres humanos, portanto, jamais se reproduzem como animais: caso se esqueçam de que são homens, então agirão de maneira muito mais baixa, vil e degradante do que os pobres coelhos. E uma das formas de se esquecerem de que são homens está, precisamente, na busca irresponsável e egoísta pelo prazer venéreo em si mesmo, que é marca registrada dos dias de hoje. Um homem que viva praticando relações sexuais “casuais” e sem compromisso está agindo muito mais como um animal no cio do que outro, que tenha com a sua esposa um número de filhos maior do que a nossa sociedade decadente julga “conveniente”.

Houve quem pensasse que, com a sua declaração sobre coelhos, o Papa Francisco estivesse a legitimar de algum modo o controle de natalidade. Tal é insustentável por um sem-número de razões. Em primeiro lugar, como disse um santo – recente! – da Igreja, “são criminosas, anti-cristãs e infra-humanas, as teorias que fazem da limitação da natalidade um ideal ou um dever universal ou simplesmente geral” – e o Papa, que já se disse outras vezes “filho da Igreja”, sabe perfeitamente disso.

Em segundo lugar, a doutrina da Igreja a respeito da natalidade encontra-se, por excelência, na citada Humanae Vitae de Paulo VI. E o que já disse o Papa Francisco a respeito do seu predecessor? Em duas ocasiões recentes:

1. No “Encontro das Famílias” praticamente da véspera (sexta, 16 de janeiro): “Num período em que se propunha o problema do crescimento demográfico, [Paulo VI] teve a coragem de defender a abertura à vida na família. (…) Mas ele olhou mais longe: olhou os povos da terra e viu esta ameaça da destruição da família pela falta de filhos. Paulo VI era corajoso, era um bom pastor e avisou as suas ovelhas a propósito dos lobos que chegavam. Que ele, lá do Céu, nos abençoe nesta tarde! O nosso mundo tem necessidade de famílias sãs e fortes para superar estas ameaças. As Filipinas precisam de famílias santas e cheias de amor para proteger a beleza e a verdade da família no plano de Deus e servir de apoio e exemplo para as outras famílias. Toda a ameaça à família é uma ameaça à própria sociedade”.

2. No próprio vôo onde foi feita a declaração “polêmica” dos coelhos (tradução do Fratres, aqui): “O que eu quero dizer sobre Paulo VI é que a verdadeira abertura à vida é condição para o sacramento do matrimônio. Um homem não pode dar o sacramento para a mulher, e a mulher dar para ele, se eles não estão em concordância neste ponto de estarem abertos à vida. […] Mas o que eu queria dizer era que Paulo VI não era muito antiquado, mente fechada. Não, ele era um profeta que com isso nos disse para tomarmos cuidado com o neo-malthusianismo que vem chegando. Era isso o que eu queria dizer”.

Ora, quem é Paulo VI? É o Papa da condenação ao controle de natalidade. O que é “abertura à vida”? É a atitude de um casal receber generosamente os filhos que a Divina Providência julgar por bem lhe confiar. O que é “neo-malthusianismo”? É a doutrina que prega uma superpopulação atual, com a consequente necessidade de reduzirmos as nossas taxas de natalidade. Como é possível, então, que um Papa que louva o campeão da causa católica anti-contracepção, que relembra aos casais que eles devem – sob pena de nulidade matrimonial! – estar dispostos a receber os filhos que Deus lhes enviar, que manda tomar cuidado com a estória de que estamos vivendo em uma superpopulação a nos exigir controle de natalidade – como é possível, em suma, que um homem desses esteja, justo ele!, fazendo coro aos inimigos da Igreja e condescendendo à mentalidade antinatalista que ele próprio, por todos os flancos, se esmera em desconstruir? Que sentido isso faz?

Em terceiro lugar, no seio da própria entrevista concedida no vôo, apenas por duas vezes o Papa Francisco fala em números de filhos:

  • “Conheci uma mulher há alguns meses numa paróquia que estava grávida de sua oitava criança, que tinha tido sete cesárias. Mas ela quer deixar 7 filhos órfãos? Isso é tentar a Deus.”
  • “Eu acho que o número de 3 filhos por família que você mencionou – me faz sofrer – eu acho que é o número que os especialistas dizem ser importante para manter a população “indo”. Três por casal. Quando isso diminuiu, o outro extremo acontece. Ouvi dizer, não sei se é verdade, que em 2024 não haverá dinheiro para pagar pensionistas por causa da queda na população.”

Ou seja, se existisse algum limite concreto que o Papa estivesse tentando determinar para os católicos – coisa que não há e nem pode haver; mas o imaginemos, para argumentar – tal seria um limite mínimo de três, e não máximo de nada. Ora, isso vai muito longe do que o mundo pagão entende por “responsabilidade” familiar!

Em quarto lugar, por fim, porque há não muito tempo – há menos de um mês – o Papa Francisco dirigiu um discurso à Associação Nacional das Famílias Numerosas. Ora, trata-se de pronunciamento com um objetivo específico e previamente preparado; portanto, a mais mínima honestidade intelectual há de reconhecer ser ele mais fidedigno – para entender o pensamento do Papa a respeito da natalidade católica – do que as sabatinas feitas num voo de retorno após uma viagem de uma semana na Ásia. E, no citado discurso, é possível ler – entre outras coisas – o quanto segue:

  • [O]s filhos e as filhas de uma família numerosa são mais capazes de comunhão fraterna desde a primeira infância. Num mundo muitas vezes marcado pelo egoísmo, a família numerosa é uma escola de solidariedade e de partilha; e destas atitudes beneficia toda a sociedade.
  • A presença das famílias numerosas é uma esperança para a sociedade.
  • Portanto espero, também pensando na baixa taxa de natalidade que desde há tempos se regista na Itália, uma maior atenção da política e dos administradores públicos, a todos os níveis, a fim de dar o apoio previsto a estas famílias. Cada família é célula da sociedade, mas a família numerosa é uma célula mais rica, mais vital, e o Estado tem todo o interesse em investir nela!
  • A este propósito, são João Paulo II escrevia: «As famílias devem crescer na consciência de serem protagonistas da chamada política familiar e assumir a responsabilidade de transformar a sociedade: de outra forma, as famílias serão as primeiras vítimas daqueles males que se limitaram a observar com indiferença» (Exort. ap. Familiaris consortio, 44).

Esta é, em suma, a posição de Paulo VI, de S. João Paulo II, de S. Josemaría Escrivá, do Papa Francisco, a respeito do “controle de natalidade”. Esta é a resposta de generosidade que somos chamados a dar ao mundo. Esta é a vida que a Igreja nos chama a viver. E a viveremos, por mais que se levantem contra nós as forças do mundo.

Quanto aos coelhos, que incendiaram a polêmica, há (pelo menos) duas possíveis comparações a respeito deles que é possível fazer. Por um lado, podem simbolizar o sexo irresponsável, animalesco, no cio, fugaz, instintivo: e, neste sentido, é preciso repetir fortemente, com o Papa Francisco, que evidentemente não podemos – ninguém pode! – procriar como coelhos! No entanto, os coelhos também são símbolo universal da fertilidade, de uma prole numerosa, de filhos como rebentos de oliveira ao redor de uma mesa – de uma mesa cheia de crianças. E, neste outro sentido, é preciso ter a coragem de dizer, ousadamente, com os santos, com os Papas, com a Igreja, contra quem quer que seja, che, sì, siamo tutti conigli – somos todos coelhos. Apraza a Deus que o sejamos.

A liberdade de expressão e os seus limites

Um leitor do Deus lo Vult! deixou, aqui, o seguinte comentário:

Sobre a liberdade de ofender e escarnecer, como se pode definir que alguém foi ofendido ou escarnecido se os pontos de vista são tão diferentes? Essa batalha que deve ocorrer no âmbito civil e com critérios muito claros. Pois muitos do movimento gay também consideram ofensivo que representantes das igrejas apareçam na TV bradando que os homossexuais são pecadores, pode-se evocar a liberdade de expressão nesse caso ou estamos diante de um outro limite para a liberdade de expressão?

Penso que o assunto merece um post à parte.

Antes de qualquer coisa, o problema, a nível teórico, se resolve de maneira muitíssimo simples: a rigor, a única liberdade que existe é «a liberdade fundamentada sobre a verdade» (Paulo VI, Mensagem para o 9º dia mundial das comunicações sociais, 19 de abril de 1975). A fórmula de Pio XII (Miranda Prorsus, Parte Geral, “Liberdade de Difusão”), por sua vez, é bastante intuitiva e pode nos ser muito útil nesta seara:

[A] verdadeira liberdade consiste no uso regrado da difusão daqueles valores que ajudam ao aperfeiçoamento do homem.

Assim, o único discurso que pode pretender propriamente um “direito” à existência em sociedade é, portanto, o discurso verdadeiro e bom. A mentira, o erro e o engano não podem ter um direito infrene à livre-proliferação em público, e não tem o menor cabimento conceder às verdades e às fábulas o mesmo status social. Enquanto este princípio generalíssimo não for assimilado, não se vai conseguir resolver a contento o problema da «liberdade de expressão» nas sociedades complexas contemporâneas.

Deve ser buscado o «aperfeiçoamento do homem», pois bem. Em teoria, está perfeito. A nível mais concreto, contudo, a questão se impõe com contornos mais complicados a partir do momento em que diferentes pessoas não conseguem entrar em mútuo acordo a respeito de qual seja, especificamente, o discurso verdadeiro e qual o falso, qual o pernicioso e qual o útil. O socialismo matou milhões de pessoas ou é o responsável por avanços civilizacionais de outro modo inalcançáveis? A democracia representativa brasileira contemporânea é eficaz para reproduzir fidedignamente a vontade política dos cidadãos, ou é um instrumento de manipulação demagógica concebido e executado para atender a interesses particulares inconfessáveis? A religião verdadeira é a Católica Apostólica Romana ou é o Islão? Como saber qual dos discursos é verdadeiro e proveitoso,  e qual é falso e daninho? Onde está a verdade?

Evidentemente, não se negam as dificuldades existentes para identificar quem está com a razão em cada caso concreto. É óbvio que a verdade a respeito de toda e qualquer coisa não é imediatamente evidente a toda e qualquer pessoa. Há, no entanto, maneiras civilizadas e inteligentes de minimizar esta contingência:

1. Via de regra, descobrir o que não é verdade é mais fácil do que identificar o que é verdade, e existem muitos casos em que fazê-lo está ao alcance de qualquer pessoa. Por exemplo, diante de alguém que apresenta o punho cerrado e pergunta “o que tenho na mão?”, pode ser bastante difícil descobrir o que a mão fechada esconde; não obstante, é facílimo dizer, com bastante segurança, o que ela não esconde. Diante de tal indagação, alguém pode não saber responder ao certo se o que está na mão do interlocutor é uma moeda, uma tampa de caneta ou um piolho-de-cobra; mas qualquer um consegue dizer, com bastante segurança, que o que está lá não é uma jaguatirica, um capacete de moto tamanho padrão ou a Grande Muralha da China.

As questões que interessam à sociedade são um pouco mais complicadas do que este exemplo ilustrativo, é verdade, mas mesmo entre aquelas é possível encontrar vastos territórios de coisas que inequivocamente não «ajudam ao aperfeiçoamento do homem», para usar a fórmula de Pio XII. Por exemplo, a imensíssima maior parte das pessoas há de concordar que a proposta de acabar com a pobreza exterminando fisicamente os pobres é totalmente inadmissível, e está disposta até mesmo a conceder que a veiculação pública de semelhante ideia possa e deva ser inibida pelos poderes públicos. No atual estado de coisas, aliás, não faz o menor sentido alguém protestar contra a “imposição de limites à liberdade de expressão”: em qualquer lugar civilizado do orbe ela já tem limites, aceitos pacificamente pela esmagadora maioria dos membros da sociedade.

2. Dada a intrínseca contingência humana e a (conseqüente) natural e inevitável falibilidade de tudo o que ele produz – inclusive julgamentos -, nenhum tema pode ser “indiscutível” em absoluto. Futebol, política e religião, tudo, há que se discutir sim. No entanto, duas coisas precisam ser aqui observadas. Por um lado, qualquer assunto só é discutível em razão inversa à solidez que ele estabeleceu na sociedade: isso significa que as coisas com as quais virtualmente todo mundo concorda precisam de novos e fortes argumentos para serem colocadas em discussão, enquanto aquelas que encontram maior resistência social para se disseminar têm exigências argumentativas mais modestas (*). Por todo lado, “discutir” significa se utilizar de um discurso racional argumentativo para convencer o interlocutor de uma determinada tese: a simples peça publicitária (pior ainda, enganosa), a ofensa gratuita, a desmoralização do “oponente” e coisas parecidas estão fora do escopo dessa discutibilidade universal de todas as coisas aqui apresentada.

[(*) No Brasil atual, note-se, ocorre justamente o contrário: coisas evidentíssimas e que gozam de ampla aceitação popular, como por exemplo que o aborto é moralmente condenável e não deve ser aceito, discute-se com a superficialidade das escalações da seleção brasileira, o tempo todo, em todos os foros possíveis e imagináveis. Por sua vez, a uma coisa de que ninguém (a não ser uma meia-dúzia de ditos intelectuais) se convence, que não haja diferença alguma entre o casamento vitalício e monogâmico entre o homem e a mulher e a mera união entre dois homens ou duas mulheres, quer-se conceder ares de indiscutibilidade, chegando até mesmo à criminalização do contraditório…]

Duas implicações decorrem daqui: inexiste um direito de ofender, uma vez que toda e qualquer discussão deve ser construída sobre as bases da argumentação racional e não de ofensas gratuitas; e ao mesmo tempo ninguém tem um direito de não ser ofendido, um vez que o detentor de uma ideia não pode alegar “ofensa” para coibir uma refutação intelectual, racionalmente fundamentada, daquela ideia. Abrem-se, assim, as portas para o futuro e o progresso, ao mesmo tempo em que se protegem as conquistas civilizatórias já historicamente adquiridas.

3. Por fim, é necessário que haja instâncias de decisão para apaziguar os ânimos e arbitrar possíveis discussões entre cidadãos que possam surgir, mormente nos casos-limites (“ah, isso é ridicularizar a minha crença!”, “não, senhor, trata-se de emprego de reductio ad absurdum para demonstrar racionalmente a falsidade da sua tese”…). Tais instâncias necessariamente serão uma espécie de elite intelectual, comprovadamente hábeis na arte de aplicar os princípios acima elencados na solução de conflitos concretos; e precisarão, igualmente, ser dotadas de legitimidade moral para fazer valer as suas decisões sobre os contendedores, i.e., precisarão exercer, em quanto maior medida melhor, uma autoridade natural sobre a sua esfera de “jurisdição”.

Em observância ao princípio da subsidiariedade, é preferível que tais instâncias se multipliquem em diversos níveis – familiar, condomínio/bairro, comunidade, município, região metropolitana, estado etc. -, preservando assim características e valores locais ao mesmo tempo em que se evita a ingerência de pretensos iluminados na autodeterminação dos legítimos agrupamentos sociais intermediários. Começa-se a discutir religião, assim, dentro de casa, e não nos jornais das metrópoles. São os grupos de pais que decidem a respeito da educação de seus filhos, e não os ministros de Brasília.

À luz de todo o exposto, por fim, responde-se ao comentário que deu origem a este post da seguinte maneira:

  • identifica-se a ofensa, primeiramente, pelo critério da evidência: um discurso argumentativo a respeito do que quer que seja é uma coisa, e a veiculação de peça publicitária aviltante é outra coisa completamente distinta;
  • nos hard cases, é necessária a intervenção de uma instância superior, o mais localizada possível, e que (evidentemente) goze de autoridade sobre todas as partes envolvidas no litígio, a fim de discernir se se trata de exercício adequado da liberdade de expressão ou não;
  • o critério para a difusão pública de discursos não é o “movimento gay” e nem ninguém “sentir-se” ou deixar de se sentir “ofendido”, e sim se a mensagem veiculada ajuda «ao aperfeiçoamento do homem» ou não; isso se determina, mais uma vez, pelos critérios supramencionados da racionalidade do discurso e do prestígio (ou falta de prestígio) social de que gozam as teses em lide.

Concordo que é muito difícil obter consenso entre pessoas diferentes; tal, contudo, torna-se completamente impossível se a discussão e o debate racional são socialmente desestimulados. É bem provável que a plena concórdia a respeito de tudo seja inalcançável; penso, no entanto, que existem amplas margens para consensos substanciais a respeito de um grande número de coisas – para a obtenção dos quais é contudo necessário, mais uma vez, que a discussão pública, séria e honesta seja cada vez mais incentivada e não tolhida. Um mundo perfeito é sem dúvidas impossível, mas isso não dá a ninguém o direito de desistir de trabalhar por um mundo um pouco melhor do que este que está aí: em direção a este objetivo, sim, nós podemos e devemos caminhar com valentia e determinação.