Aprendamos de São Paulo


[Foto: vatican]

È questo lo scopo dell’Anno Paolino: imparare da san Paolo, imparare la fede, imparare il Cristo, imparare infine la strada della retta vita.
É este o objetivo do Ano Paulino: aprender a partir de São Paulo, aprender a Fé, aprender o Cristo, aprender, enfim, a estrada da vida retatradução livre minha.
[SS. Bento XVI, audiência geral da quarta-feira, 02 de julho de 2008]

De 28 de junho de 2008 até 29 de junho de 2009, está promulgado o Ano Paulino. Vale a pena visitar o site.

E vale a pena aprendermos de São Paulo, como nos pede o Papa – afinal, foi o próprio santo que disse: “sede meus imitadores” (cf 1Cor 11, 1).

Aprendamos, pois, do Apóstolo das gentes. Aprendamos primeiramente que “todos os que quiserem viver piedosamente, em Jesus Cristo, terão de sofrer a perseguição” (2Tm 3, 12) e que, mesmo assim, devemos abençoar os que nos perseguem, e não praguejar (cf Rm 12, 14).

Aprendamos que anunciar o Evangelho é uma obrigação que se nos impõe (cf 1Cor 9, 16) e que o Cristianismo não descansará enquanto não levar “todas as nações pagãs à obediência da fé” (Rm 1, 5).

Aprendamos que devemos evitar a impureza (cf 1Ts 4, 3) e fazer penitência, castigando o nosso corpo e o reduzindo à servidão (cf 1Cor 9, 27), para completarmos em nossa carne o que falta às tribulações de Cristo (cf Cl 1, 24), pois “os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as paixões e concupiscências” (Gl 5, 24).

Aprendamos a guardar o Depósito da Fé (cf 2Tm 1, 14) e a fidelidade à Igreja Católica, que é “a Igreja de Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade” (1Tm 3, 15).

Aprendamos que temos um altar do qual não têm o direito de comer senão os cristãos (cf Hb 13, 10), ao qual devemos o máximo respeito e a maior diligência possíveis, pois quem come e bebe “sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a sua própria condenação” (1Cor 11, 29).

Aprendamos, enfim, a rezar, no pequeno “credo” que o santo nos deixou:

quoniam Christus mortuus est pro peccatis nostris secundum scripturas
et quia sepultus est
et quia resurrexit tertia die secundum scripturas

(1Cor 15, 3-4)

São Paulo,
rogai por nós!

A verdadeira intransigência

Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade, é na Igreja católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em união com ele, que se encontra, embora, fora da sua comunidade, se encontrem muitos elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica.
[Lumen Gentium, 8 – grifos meus]

Haec Ecclesia, in hoc mundo ut societas constituta et ordinata, subsistit in Ecclesia catholica, a successore Petri et Episcopis in eius communione gubernata, licet extra eius compaginem elementa plura sanctificationis et veritatis inveniantur, quae ut dona Ecclesiae Christi propria, ad unitatem catholicam impellunt.
[Idem – texto em latim]

Sejamos claros desde o princípio: a Igreja Católica é depositária fiel de uma Doutrina, legada diretamente por Deus, por cuja integridade deve zelar e em cuja transmissão sem acréscimos nem recortes deve Se empenhar até a volta gloriosa de Jesus Cristo, Nosso Senhor. Esta é uma atribuição absolutamente fundamental da Igreja, sem a qual Ela trairia o Seu Divino Fundador e perderia a Sua razão de existir. De modo que é dever da Igreja como um todo e de cada católico em particular ser completamente intransigente na defesa do Depositum Fidei, não tolerando de modo algum nenhuma alteração n’Aquilo que tem o próprio Deus como Autor. Neste sentido, diz São Josemaría Escrivá:

A transigência é sinal certo de não se possuir a verdade. – Quando um homem transige em coisas de ideal, de honra ou de Fé, esse homem é um homem… sem ideal, sem honra e sem Fé.
[Caminho, 394]

Todavia, é o mesmo santo que acrescenta:

Sê intransigente na doutrina e na conduta. – Mas suave na forma. – Maça poderosa de aço, almofadada.
– Sê intransigente, mas não sejas cabeçudo.
[Caminho, 397 – grifos meus]

A “forma” à qual se refere aqui o santo é a maneira como as coisas são ditas. Trata-se de uma aplicação concreta de um princípio mais geral, o qual poderia ser formulado da seguinte maneira: a forma não é o conteúdo. Ou ainda: mudar a forma não implica necessariamente em mudar o conteúdo. E, arrematando: a intransigência católica é quanto ao conteúdo, e não quanto à forma.

O mesmíssimo ensinamento podemos encontrar em São Francisco de Sales:

Uma mulher por nome Glicéria sabia distribuir as flores e formar um ramalhete com tanta habilidade que todos os seus ramalhetes pareciam diferentes uns dos outros. (…) De modo semelhante o Espírito Santo dispõe e arranja com uma admirável variedade as lições de virtude que nos dá pela boca e pela pena de seus servos. É sempre a mesma doutrina, apresentada de mil modos diferentes. Na presente obra outro fim não temos em mira senão repetir o que já tantas vezes se tem dito e escrito sobre esta matéria. São as mesmas flores, benévolo leitor, que te venho ofertar aqui; a única diferença que há é que o ramalhete está disposto diversamente.
[São Francisco de Sales, “Filotéia”, Prefácio de S. Francisco de Sales. Vozes, 16ª edição, 2008]

Certamente é útil considerar ainda as seguintes palavras de Boulenger:

O papa usa o seu poder doutrinal – a) ora por definições solenes sobre a fé ou os costumes: – b) ora por outro meio qualquer que lhe pareça mais idôneo para instuir os fiéis. (…) Seja qual for o modo que o Sumo Pontífice adotar para dirigir-se aos fiéis, suas palavras sempre devem achar, por parte de todos, o eco mais afetuoso e dócil, a submissão mais sincera e respeitosa.
[Boulenger, “Doutrina Católica – Manual de Instrução Religiosa (adaptado); Primeira Parte: O DOGMA”. 18ª lição: Constituição da Igreja]

E, por fim, sobre este assunto, é-nos salutar procurar ainda o que se diz no Código de Direito Canônico:

A Doutrina Cristã seja apresentada de modo apropriado à condição dos ouvintes e, em razão dos tempos, adaptada às necessidades.
(CIC, Livro III – Do múnus de ensinar da Igreja. Cân. 769)

O fiel católico tem um duplo dever com relação à Doutrina que recebeu da Igreja: por um lado, precisa ser-lhe fiel mas, por outro lado, precisa fazê-la conhecida dos homens de todos os tempos e lugares. Precisa ser apóstolo e, no cumprimento desta exigência, pode e deve procurar a melhor maneira de fazer a Verdade ser compreendida em Sua integridade. Pode e deve – como nos ensina o Papa Paulo VI – [o]bedece[r] a exigências ensinadas pela experiência, escolhe[r] os meios convenientes, não se prende[r] a vãos apriorismos nem se fixa[r] em expressões imóveis, quando estas tenham perdido o poder de interessar e mover os homens (Ecclesiam Suam, 48). Repitamos: a fidelidade católica é – em última instância – às realidades expressas pelas fórmulas, e não às fórmulas em si. Que isto seja bem entendido, antes que venham as acusações de que estas idéias incorrem na condenação da Pascendi: não defendemos que se devam “lançar às favas” as fórmulas doutrinárias existentes, nem que elas sejam inúteis, e nem nada disso. Acontece que, se por um lado é certo que as expressões clássicas que nos foram legadas pela Igreja são santas e isentas de erro (e isso ninguém pode negar), por outro lado elas não esgotam a capacidade expressiva humana de maneira que não haja possibilidade de se dizer as mesmas coisas de outra forma. A Igreja sempre condenou que fossem ditas outras coisas distintas daquilo que Ela ensina; mas nunca proibiu que essas mesmas coisas fossem ditas de formas distintas.

Há um clássico (e claro) exemplo disso numa passagem da vida de São Paulo. Pregando certa vez aos atenienses, no Areópago, disse o Apóstolo:

Percorrendo a cidade e considerando os monumentos do vosso culto, encontrei também um altar com esta inscrição: A um Deus desconhecido. O que adorais sem o conhecer, eu vo-lo anuncio!
(At 17, 23)

É evidente que Iahweh não é um “Deus desconhecido” (é, ao contrário disso, o Deus que Se revela) e é também evidente que São Paulo não está fazendo “sincretismo religioso” e dizendo que os pagãos já adoravam ao Deus Verdadeiro. Trata-se, ao invés disso, de uma maneira diferente (de oferecer um ramalhete disposto diversamente, diria São Francisco de Sales) de falar sobre o Deus de Abraão e de fazer com que os atenienses entendessem melhor o anúncio do Evangelho. Com isso, alguns homens aderiram a ele e creram (At 17, 34). Se São Paulo não tivesse o discernimento de “traduzir” as expressões do mundo judaico para a realidade pagã grega (que era o seu público-alvo), talvez estes pagãos não se tivessem convertido ao Evangelho. E fica, assim, o ensinamento: é fundamental não se desviar da Doutrina, mas é também fundamental fazer-se entender.

Há um outro exemplo na História da Igreja onde resplandece com clareza o erro de se apegar com intransigência meramente às fórmulas. Trata-se de uma das questões que está relacionada com o Cisma do Oriente do século XI: a questão do Filioque. Como todos sabem, o I Concílio de Constantinopla completou o Credo de Nicéia (Concílio Ecumênico anterior), dando origem ao que passou a ser chamado de Credo Niceno-Constantinopolitano. De acordo com este Concílio:

And [we believe] in the Holy Ghost, the Lord and Giver-of-Life, who proceeds from the Father, who with the Father and the Son together is worshipped and glorified, who spoke by the prophets.
[First Council of Constantinople (A.D. 381) – grifos meus]

O Espírito Santo, conforme diz o Segundo Concílio Ecumênico da História da Igreja, procede do Pai. E, no Concílio de Calcedônia (IV Concílio Ecumênico – 451 AD), a Igreja determinou o quanto segue:

Na verdade, este Símbolo [o Niceno-Constantinopolitano], sábio e salutar, bastaria, pela graça de Deus, para fazer conhecer perfeitamente e confirmar as verdades da Fé. Com efeito, este Símbolo dá um ensinamento perfeito a respeito do Pai, do Filho, do Espírito Santo e aos que o acolhem com fé ele mostra o que é a encarnação do Senhor.
[…]
Depois de ter formulado tudo isto com toda a exatidão e atenção, determinou o sagrado Concílio Ecumênico que já não é lícito a ninguém proferir e muito menos redigir ou compôr outra profissão de fé, ou pensar ou ensinar de outra forma.
[Definição de Fé do Concílio de Calcedônia, in “Documentos dos primeiros oito Concílios Ecumênicos”, tradução de Mons. Otto Skrzypczac. 2. ed. revista e ampliada, EDIPUCRS, Porto Alegre, 2000)

Todavia, a princípio pontualmente e, após o século XI, de maneira institucional na Igreja, o Filioque (o Espírito Santo procede do Pai e do Filho) foi introduzido no Símbolo. Mais detalhes podem ser visto neste artigo, mas o que nos interessa agora é o seguinte: a fórmula original (qui ex Patre procedit) foi alterada, no decorrer dos séculos, dando origem assim à fórmula atual (qui ex Patre Filioque procedit). Oras, isto não significa, evidentemente, que o conteúdo do Depositum Fidei foi alterado [posto que afirmar isso é afirmar que as portas do Inferno prevaleceram sobre a Igreja]; então, significa que a Igreja reconhece a Sua potestade de exprimir as verdades de Fé com as fórmulas que julgar por bem prescrever. O acréscimo do Filioque foi um dos motivos alegados pelos orientais para o Grande Cisma do século XI. Afirmar, portanto, que a Igreja não pode mudar a maneira de expressar a Doutrina – porque a Doutrina em Si é inalterável, mas o modo de exprimi-la, não – é, assim, coisa de cismático ortodoxo, e não de católico romano.

Concluamos: se os santos reconhecem, com palavras e gestos, a licitude de se pregar o Evangelho da maneira mais adequada ao ouvinte; se o Direito Canônico prescreve a mesma coisa; se os autores dos manuais clássicos reconhecem que o Papa usa o seu poder doutrinal por qualquer meio que lhe pareça conveniente; se há, na História da Igreja, precedentes para a substituição, por parte do Magistério, de uma fórmula doutrinária válida por outra igualmente válida; se é assim, então, não há motivo algum para que se questione a expressão utilizada pelo Concílio Vaticano II, posta em epígrafe, segundo a qual a Igreja de Cristo subsiste (subsistit in, ao invés de est, como já fora anteriormente definido) na Igreja Católica.

De maneira análoga ao que ocorre com o Credo de Constantinopla, a nova expressão não “revoga” a antiga; explicita-a, complementa-a, di-la de outra maneira, mas não a contradiz. Permanece verdade que a Igreja de Cristo é (est) a Igreja Católica, e o subsistit in não vem abrogar e nem muito menos condenar a expressão anterior. Os que defendem semelhante tese – quer para apoiá-la, como é o caso dos modernistas, quer para condená-la, como é o caso dos rad-trads – incorrem em grave erro, ou por defenderem que a Doutrina pode ser alterada, ou por postularem que o Papa não tem autoridade para exprimir as mesmas verdades de Fé diversamente das fórmulas consagradas pelos que o precederam. Contra ambos ergue-Se a Igreja, único farol seguro a guiar constantemente no meio das tempestades da vida. Acheguemo-nos a Ela e, em Seu seio, saibamos estar ao abrigo de todos os erros e heresias, porque é ouvindo-Lhe a voz e respondendo-Lhe docilmente que estaremos no caminho estreito que conduz à Salvação e à Glória, na fidelidade a Jesus Cristo Nosso Senhor; fidelidade esta que não se consegue a não ser no amor e na submissão filial à Igreja Católica, Esposa de Cristo, nossa Mãe e nossa Glória.

Constatações pós-conciliares

Que é dos padres que saibam entender [o Evangelho] e tenham modo para declará-lo e vida para serem ouvidos? A maioria deles não o entende. [1]

Se este ofício [o sacerdócio] é de maior importância que outro qualquer, pois dele depende a salvação das almas […], que vergonha tão grande é esta que, não sendo consentido na república um oficial que primeiro não tenha aprendido seu ofício, consintamos [que haja] na Igreja um ministro que jamais aprendeu a sê-lo? Que infelicidade é esta que, se um animal sofre dores, não lhe ousamos fiar a um veterinário se ele primeiro não aprendeu o seu ofício; e a uma alma enferma, pela qual Deus morreu, nós a fiamos a um médico que nunca aprendeu como lhe devia curar? [1]

[Um] ardil do Demônio tem sido isto: fazer com que haja tanta falta de Doutrina na Igreja. [1]

E em quê podemos crer, se não que os açoites que à Igreja vêem, são principalmente pelos pecados dos eclesiásticos? […] Jeremias chora pelos males do seu tempo terem vindo por isto, dizendo: Propter peccata prophetarum et sacerdotum, que effuderunt sanguinem in medio Ierusalem (Lam 4, 13). E o mesmo podemos chorar nós em nosso [tempo], e entender que a carnificina das almas que vemos morrer é por maldade ou negligência dos eclesiásticos. [1]

Não se diga de nossos tempos que quicumque volebat, fiebat sacerdos (1Reg 13, 33), como nos tempos de Jeroboão, senão que [somente] o seja [sacerdote] aquele que merece sê-lo. [1]

A cura de almas [foi deixada] em mãos indiferentes de pregadores e confessores, muitos dos quais nem têm ciência conveniente, nem santidade de vida, nem zelo pelas almas, nem ainda prudência natural […] [por isto] a Igreja chegou ao triste estado em que está. [2]

[Há também falsos ensinadores] que, ainda que não façam isto [ensinar erros contra a Fé], não ensinam ao povo a Doutrina sólida e proveitosa que é necessária, senão cada um segundo aquilo que ele sente e segundo os seus caprichos. [2]

Estas duras palavras foram proferidas por um sacerdote que viveu durante o Concílio e no pós-Concílio. Lamenta não haver mais padres que entendam o Evangelho para que o possam explicar às pessoas; critica a falta de formação do clero; atribui ao Demônio que haja tanta falta de Doutrina na Igreja; reclama por haver alguns que, mesmo sem ensinar heresias explicitamente, deixam de ensinar aquilo que deveriam.

Um perfeito retrato da terrível situação que atravessa a Igreja nos dias de hoje, não fosse por um pequeno detalhe: estas linhas foram escritas por um santo, São João de Ávila, que viveu durante o Concílio e no pós-Concílio de Trento. A “negligência dos eclesiásticos” da qual fala o santo não é uma referência aos padres que celebram sem decoro o Santo Sacrifício da Missa. O “ardil do Demônio” não é a fumaça de Satanás da qual falou Paulo VI. Os “falsos ensinadores” que ensinam “segundo os seus caprichos” não são os modernistas. Na verdade, o santo está falando sobre a situação do seu tempo, que é – curiosamente – muito parecida com a situação atual.

O que isso significa? Duas coisas, pelo menos.

1] É terrorismo dos rad-trads pintar com cores apocalípticas a situação atual da Igreja, como se fosse uma novidade terrível haver sacerdotes ignorantes na Doutrina Sagrada e mais preocupados com as coisas da terra do que com as coisas do Céu pelas quais devem zelar, e como se crises como a que a Igreja hoje atravessa fossem um escândalo inaudito em dois mil anos de Cristianismo.

2] A tibieza entre os sacerdotes, a ignorância do povo fiel, a existência de falsos profetas e enganadores sempre estiveram entre as preocupações das pessoas que verdadeiramente aspiram à glória de Deus, à salvação das almas e à exaltação da Santa Madre Igreja; todavia, uma das notas fundamentais de tais pessoas é, sempre, a submissão à Igreja Católica. O próprio São João de Ávila passou um ano encarcerado, por haver sido [injustamente] denunciado à Santa Inquisição. E não consta que ele tenha, em momento algum, lançado diatribes contra a Igreja, como infelizmente costumamos encontrar entre algumas pessoas dos nossos dias, que jamais sofreram nem mesmo uma ínfima parte do que sofreram pacientemente os santos de todos os tempos.

Podemos – e devemos – aprender com os santos de outrora a melhor maneira de cumprirmos com o papel que nos foi assinalado pela Divina Providência no Campo de Batalha da História. Podemos e devemos aprender com aqueles que a Igreja nos apresenta como modelos de perfeição a serem imitados. E, entre os escritos do Mestre João de Ávila [dos quais já foram citados alguns trechos], há uma análise perspicaz da situação da Igreja de então (que, como vimos, é parecida com a nossa):

Parece-me que o estado presente em que estamos é semelhante ao da Antiga Lei, e à república dos descuidados, e à negligência dos mestres que mandam e não ajudam a cumprir. Pois que leis melhores do que as já feitas sobre a santidade, as letras e o regime de toda a Igreja podem haver? [1]

Muitos reclamam de que o Vaticano II não tenha pronunciado anátemas. São João de Ávila viveu durante e depois de um Concílio que pronunciou, sim, muitos anátemas; todavia, a opinião do santo é a de que as leis promulgadas por Trento e as que já existiam são muito boas e santas, e o nosso empenho deve ser no sentido de ajudar as pessoas a amarem as leis e, assim, cumpri-las, mais por amor a elas do que por força dos castigos.

Atenção! É evidente que o santo não é contrário aos anátemas pronunciados. Ele apenas faz uma constatação, que é a mesma que podemos fazer nos dias de hoje: há muitas leis boas e santas, e os católicos, mesmo assim, são maus! O problema à época de Trento, que – ouso dizer – é o problema à nossa época, não está nas excomunhões ou na ausência delas, e sim na falta de amor dos católicos às coisas sagradas. E este amor não se produz por decretos, afinal,

todas as boas leis possíveis de se fazer não serão o suficiente para dar remédio ao homem, posto que a [Lei] de Deus [o Antigo Testamento] não o foi. [1]

Isto posto, cabe refletir: será que o Vaticano II, se tivesse pronunciado anátemas, iria “transformar” a crise da Igreja de tal maneira que estaríamos hoje atravessando um mar de rosas? Será que a história não iria se repetir e, como em Trento, a falta de homens virtuosos que tivessem amor a Cristo não seria um obstáculo aos frutos de santidade que a Igreja poderia produzir? Será que, se as pessoas amassem realmente a Deus e à Igreja, Esta teria necessidade de repetir sempre as mesmas coisas? E será que a mera “atualização” das penas canônicas poderia sozinha fazer com que os homens se convertessem e amassem a Deus?

Precisamos de virtude. Precisamos de homens santos. Precisamos de pessoas comprometidas incondicionalmente com a Igreja. Precisamos de almas inflamadas de amor a Cristo, que possam contagiar as outras almas ao seu redor. Precisamos de um apostolado de “alma a alma”, a fim de as ganharmos, uma a uma, para Cristo Rei. Só assim os homens serão convertidos, as almas serão salvas, Deus será glorificado e a Igreja será exaltada. A santidade se expande por contágio: precisamos de santos! Seguindo, pois, o exemplo do santo espanhol, que nós possamos nos empenhar em produzir nas almas o amor às coisas sagradas, condição sem a qual não pode haver renovação verdadeira na Igreja, e tarefa à qual todos nós, cristãos membros da Igreja Militante, somos chamados.

São João de Ávila,
rogai por nós!

Referências:
[1] São João de Ávila, “Memorial Primeiro ao Concílio de Trento (1551)”, em “Juan de Ávila – Escritos sacerdotales, BAC, Madrid, 2000”. Tradução minha do espanhol.
[2] São João de Ávila, “Memorial Segundo ao Concílio de Trento (1561)”, em “Juan de Ávila – Escritos sacerdotales, BAC, Madrid, 2000”. Tradução minha do espanhol.

P.S.: Após ser publicado no Veritatis Splendor, este artigo foi muitíssimo mal interpretado, pelo que peço desculpas a todos. Recomendo enfaticamente a leitura deste fórum para entender o problema.

Quando os hereges são seguidos…

O Concílio [Vaticano II] conseguiu introduzir e integrar na catolicidade o paradigma da reforma protestante e o paradigma iluminista da modernidade.
(Hans Küng, apud MONTFORT).

Quem é Hans Küng? Um “teólogo”, herege proeminente. Por exemplo, é autor de uma Carta Aberta por ocasião do conclave que elegeu o atual Papa Bento XVI gloriosamente reinante, na qual pede (entre outros disparates), a eleição de um papa que [a grafia está no Português de Portugal, já que os excertos abaixo são retirados ipsis litteris do link acima indicado]:

  • “se coíba de dar veredictos moralizadores sobre problemas complexos como a contracepção, o aborto e a sexualidade”;
  • “permita a ordenação de mulheres que, à luz do Novo Testamento, é urgentemente necessária para a nova situação actual”;
  • “corrija a encíclica proibitiva de Paulo VI, Humanae vitae, sobre a pílula, que afastou inúmeras mulheres católica da sua igreja, e reconheça explicitamente a responsabilidade pessoal dos cônjuges pelo controlo de natalidade e pelo número de filhos que têm””;
  • “reconheça finalmente os ministérios protestante e anglicano, como há muito foi recomendado pelas comissões ecuménicas e como já é prática em muitos lugares”;
  • “não reclame o monopólio da verdade”.

Em resumo: Küng é um herege completo que queria a eleição de um Papa herege como ele. Graças a Deus, João Paulo II foi sucedido pelo grande Bento XVI, e não pelo “papa herege” no qual o “teólogo” suíço pediu que os cardeais votassem.

Qual é o valor, então, que têm as opiniões de um herege manifesto para os católicos? Nenhum, por certo; ou, ao menos, tais opiniões deveriam ser muito bem comparadas com as posições de pessoas de ortodoxia incontestável, antes de serem abraçadas e seguidas. Assim, por exemplo, quando se vê Lutero afirmando ser na Epístola de São Paulo aos romanos que se baseia a sua [de Lutero] doutrina da Sola Fide, ou então quando se vê Calvino dizendo que a mesma Epístola de São Paulo e o livro do Êxodo fornecem a base para se crer que alguns são predestinados por Deus ao Inferno, a reação católica imediata é a de rechaçar os hereges, e não as Escrituras Sagradas. Isso é óbvio.

Todavia, o sr. Orlando Fedeli, no link citado na epígrafe, faz justamente o contrário. O fato de um herege “reconhecer” que o Vaticano II ensinou heresias é a prova incontestável de que assim o foi. O herege torna-se Magistério abalizado para pronunciar as sentenças infalíveis sobre o Vaticano II. O fato de Bento XVI sempre afirmar a ortodoxia do Concílio é irrelevante, diante das sentenças de um teólogo herege. Afinal, se o herege diz que Vaticano II introduziu “o paradigma da Reforma Protestante” na Igreja, ergo o Vaticano II introduziu o paradigma da Reforma Protestante na Igreja de Cristo. Küng locuta, causa finita.

Pergunta, enfim, retoricamente, o professor: “Quando até os hereges enxergam, por que alguns, que se dizem católicos, negam o visível”? Oras, isso é muito fácil de se retorquir; afinal, por que alguns, que se dizem católicos, compartilham as mesmíssimas opiniões dos hereges?

Isso são as conseqüências de não se abraçar firmemente a idéia de que a Igreja não pode subsistir sem o Seu Magistério e que, portanto, se Cristo prometeu que Ela perdurará até o fim dos tempos, então o Magistério da Igreja também perdurará sem interrupções. Chesterton disse, certa vez, que os homens, quando não acreditam mais em Deus, não é que eles passem a não acreditar em nada – ao contrário, eles passam a acreditar em tudo. O mesmo acontece, desgraçadamente, com quem não acredita mais no Magistério da Igreja: passa a acreditar em qualquer coisa, até mesmo em Hans Küng.

Igreja e Magistério

O Magistério da Igreja foi instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de defender e propagar a Sua Doutrina até que Ele venha: em uma palavra, a fim de que todos os homens possam chegar ao conhecimento da Verdade, de uma maneira segura e certa.

Por Sua própria natureza, a Igreja pressupõe e exige um Magistério; sem o qual, tornar-Se-ia Ela incapaz de cumprir a missão que Lhe foi confiada pelo Seu Divino Fundador e, assim sendo, perderia a Sua razão de ser. As razões que demonstram essa verdade são as mais variadas possíveis. Poderíamos citar, entre outras, a experiência histórica [o esfacelamento das seitas protestantes que, sem um princípio visível de unidade, dividem-se a cada dia e o número de “denominações” já está na casa das dezenas de milhares], a razão natural [havendo a possibilidade de dúvidas, é necessário que haja uma instância máxima capaz de dar a palavra final nas controvérsias que surgirem] e as expressas palavras de Cristo [que enviou os Apóstolos para ensinar e disse que as portas do Inferno não prevaleceriam sobre a Sua Igreja].

Em termos aristotélico-tomistas, o Magistério é essencial para a Igreja, e não acidental. Sem Magistério, a Igreja simplesmente deixaria de anunciar o Evangelho e de preservar a Sã Doutrina, deixaria de ser o farol a guiar os homens no caminho estreito que leva à Salvação, deixaria de cumprir a ordenança de Cristo de fazer discípulos d’Ele todos os povos. A Igreja pode subsistir sem os Seus templos, sem os Estados Pontifícios, sem as Suas ordens religiosas, sem os novos movimentos seculares: mas não pode existir sem o Seu Magistério. E, como Cristo prometeu explicitamente que a Igreja iria perdurar até a consumação dos séculos, segue-se disso, como decorrência lógica inescusável, que o Magistério também perdurará para sempre, sem nunca cessar de existir.

Já ouvi protestantes dizendo que, de “as portas do Inferno não prevalecerão”, deve-se entender que não prevalecerão no final. Ou seja, tudo bem a Igreja inteira ter caído em apostasia durante quase mil e quinhentos anos entre Cristo e Lutero porque, com a Reforma, Ela foi resgatada e, assim, as portas do inferno não prevaleceram em absoluto, e sim somente “por um tempo”. A tese é esdrúxula e a Igreja sempre a rechaçou. Os católicos sempre entenderam que as portas do Inferno não prevaleceriam sobre a Igreja nem mesmo “por um tempinho”. A Igreja é por demais importante para que o mundo fique privado de Sua influência salutar, ainda que seja só por um instante enquanto Deus “vai ali e já volta”.

Se a Igreja não pode deixar de existir nem mesmo durante um intervalo de tempo (por mais breve que seja), e se a existência do Magistério é essencial para que a Igreja continue existindo, segue-se que o Magistério da Igreja não pode deixar de existir jamais. É a conclusão que se impera, sem a qual retorna-se ao pecado de Adão e chama-se Cristo de mentiroso porque, não havendo Magistério, Igreja não há. “Oh, não morrereis”, disse um dia a Serpente; “oh, permanecereis católicos”, repete ela hoje, “mesmo que não haja pastores”.

A comunhão com a Igreja, que se dá pela tríplice comunhão entre o Seus filhos – de Fé, de Sacramentos e de Governo – rompe-se quando qualquer uma dessas colunas é derrubada. “Ora”, poderia argumentar um defensor da extinção dos Sagrados Pastores, “em situações de extrema necessidade, pode-se manter a comunhão com a Igreja mesmo sem observar algumas coisas que seriam de preceito em situações normais. Por exemplo, em um território de missão onde só apareça um padre a cada vinte anos, as pessoas continuam católicas mesmo que estejam impossibilitadas de freqüentarem os Sacramentos. Ou, outro exemplo, na época em que os decretos conciliares tardavam a chegar em lugares longínquos, não estavam excomungados os católicos que não os observassem enquanto deles não tomassem ciência”.

Isso é verdade. Mas o problema com os defensores da teoria da apostasia não é análogo aos exemplos citados. Ainda que não haja sacramentos num território de missão, há-os em outros lugares do mundo. Ainda que um certo grupo desconheça, p.ex., que um papa morreu e um seu sucessor foi eleito [e, portanto, p.ex., não nomeie expressamente o novo Papa na oração eucarística, como deve fazer], há um Papa. Se, todavia, o Magistério “deixou de ensinar”, ou – pior ainda – passou a ensinar heresias, ou ainda está de tal maneira restrito a meia dúzia de gatos pingados [que, para acabar de piorar tudo, apenas o deteriam de facto embora não de iure – devido à “traição” daqueles que deveriam exercer o Magistério por Direito] que só os iniciados podem ter a ele acesso, então não há Magistério. O problema com as teorias do “Estado de Necessidade” [prolongado], da Roma Modernista, da Igreja Católica e a Outra e tutti quanti é que todas elas professam [velada ou explicitamente] não uma “situação de exceção” na qual o Magistério da Igreja estivesse temporariamente inacessível aos fiéis católicos, mas sim a própria inexistência deste Magistério.

Sem Magistério não há Igreja. Ora, se a Igreja pode deixar de existir por (digamos) 40 anos, a diferença entre essa posição e a protestante é meramente quantitativa; algo, digamos, como “por quanto tempo” Deus pode abandonar a Igreja sem que se possa dizer que as portas do Inferno prevaleceram sobre Ela. Por quanto tempo a luz pode ser colocada sob o alqueire, por quanto tempo o sal pode deixar de salgar. Os que querem a “conversão” da “Roma Modernista” querem, em essência, o mesmo que queria Lutero: o ressurgimento de uma Igreja que deixou de existir e não existe mais então. Só diferem entre si nas discussões sobre o tempo do óbito.

Nós, católicos, precisamos ser radicais. Precisamos saber que a promessa de Cristo de “estar conosco todos os dias até a consumação dos Séculos” significa que Ele nunca vai abandonar a Sua Igreja, nem por um milênio, nem por alguns séculos, e nem mesmo por umas poucas décadas. Precisamos saber que a Barca de Pedro, à semelhança da Arca de Noé, é um refúgio seguro para que os homens não pereçam no dilúvio – e não uma barcaça escondida onde só uma dezena de privilegiados sabe chegar. Confiemos na promessa de Cristo que, sendo Deus, não pode enganar-Se e nem nos enganar. Portae inferi non praevalebunt. Esta é a nossa Fé, que da Igreja recebemos, e sinceramente professamos; e, nesta Fé, queremos viver e morrer.