Na festa de Cristo Rei

[Nesta semana em que comemorámos a solenidade de Cristo Rei, com a qual a Igreja finda o seu ano litúrgico e inicia a preparação de um novo ciclo de celebrações, publico com alegria este precioso texto sobre o Reinado de Nosso Senhor, gentilmente enviado pelo Bruno Borgarelli, a quem agradeço. Que em meio às trevas desta pós-modernidade desvairada nós nos esforcemos com denodo para que Cristo possa reinar — no pequeno mundo de nossas almas, no mundo mais amplo de nossas famílias e no vasto espaço das sociedades. Viva Cristo Rei!]

SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO

Bruno de Ávila Borgarelli

De todo o esplendor da Encíclica Quas Primas, de S.S. Pio XI, instituição da Solenidade de Cristo, Rei do Universo, deve o jurista atentar-se ao trecho respeitante à “pusilanimidade de certos católicos”, que vão esquecendo o Direito de Cristo sobre todas as coisas.

Sua Santidade nota essa tibieza, oportunamente operada sob a veste laicista, já em 1925.

Tanto mais notamo-la hoje, volvido quase um século, passada a Segunda Guerra, passadas as perturbações do violento século XX, e afinal abandonado o próprio estudo do Direito Natural em prol do odioso e protorrevolucionário “constitucionalismo contemporâneo”, insistente em achar princípios desgarrados da lei moral (como fosse isso possível).

Não espanta que sob o signo desse constitucionalismo os homens tenham dado foros de legitimidade ao que de mais repugnante existe, de que a ideologia de gênero é apenas um exemplo.

Sob este mesmo aporte, derivado da mesma negação de Cristo, advém a crise moral das instituições, transformado que fica o Estado em um mecanismo contínuo e eficiente de opressão e combate ao que ainda resta de cristão no mundo, na guerra aberta que opõe as “maiorias” à natural constituição da sociedade.

A participação da lei eterna na criatura racional, ou seja, a lei natural (“participatio legis aeternae in rationali creatura lex naturalis dicitur”; Summa Th., I-II, q.91, a.2) é o alvo por excelência de todos os combates desse ilegítimo “estado constitucional”.

Sabendo muito bem que a razão apreende a lei natural por conaturalidade, os revolucionários precisam ou usar a força para suprimir a mesma razão – e, assim, permitir que aflorem e sejam patrocinadas pelo Estado todas as tendências contrárias à natureza – como de fato ocorre; ou, melhor ainda, precisam tutelar o relativismo moral e os positivismos, frutos podres da mesma diabólica árvore.

Séculos de racionalismo laicista paralisaram a força do “justo”, petrificando-o em leis e códigos. Outros séculos de historicismo subtraíram, especialmente ao Direito Civil, o contato com a normatividade objetiva extraível da natureza humana.

O resultado pérfido veio, como fora arquitetado. Uma paralisia, uma inação, uma permissividade generalizada.

Olvidando, sob a pressão desses movimentos de brutal negação da objetividade, que as leis humanas positivas são meios de explicitação da lei natural, e de garantir sua eficácia, chega-se ao império não mais da lei, mas da corrupção das leis (pois, como diz Santo Tomás, “si vero in aliquo a lege naturali discordet, iam nom erit lex sed legis corruptio”).

Mandam os códigos, governa a obsessão das leis, pouco relevando sua iniquidade, sua discordância relativamente à justiça, aos preceitos da lex naturalis. O Direito Civil, primaz na regulamentação das instituições ligadas à natureza humana, perdeu a autoridade, como recorda Galvão de Sousa, que é então ocupada pelo “poder criador das assembleias”, restando a tecnocracia em lugar da constituição natural da sociedade (in “O Direito Civil entre o ‘ius naturale’ e a tecnocracia”).

E a sobrevivência das “instituições democráticas”, tomadas como fim em si, vale mais que a razão natural, vale mais que o culto público a Deus – que é mandamento, e não solicitação.

O credo fanático no legalismo, no laicismo, a idolatria da lei positiva humana, tudo isso decorre da tentativa de destronar Cristo, o que se epitomiza em certos fatores políticos e jurídicos, dentre os quais M. Bigotte Chorão identifica a Revolução Francesa, o Estado Liberal, os regimes comunistas etc.

Esse fanatismo já ninguém o pode negar. Oprime, amedronta, e se revela com maior ferocidade no acanhamento dos cristãos, que é justamente o que sublinha S.S. Pio XI na Quas Primas, identificando a “indolência e timidez dos bons que se abstêm de toda resistência, ou resistem com moleza, donde provém, nos adversários da Igreja, novo acréscimo de pretensões e de audácia”.

E não só se pode dizer que os católicos não exercem, na sociedade civil, a autoridade que conviria aos apologistas da fé, como observa Sua Santidade. Até exercem, eventualmente.

Mas a realidade é que as instituições se recheiam de pessoas que se anunciam como católicas, metem uma tímida imagem ao canto do gabinete, esboçam (nunca em público) o sinal da cruz, murmuram uma qualquer parte da Santa Doutrina – apenas quando a conveniência dos salões o permite -, e até frequentam os Sacramentos, mas não vivem a Verdade do Reino de Cristo.

E não a vivem na medida em que não trabalham para a efetiva instituição desse Reinado, porque já as contaminou o veneno do conformismo, da acomodação: “que faria eu, pobre cristão, para reverter a marcha do tal historicismo, do tal positivismo, do tal constitucionalismo?”

E tecem contas de orações por sua sobrevivência profissional, pensando assim: “exercerei em nome de Cristo esta função institucional que me foi confiada, e, quando detiver maior poder, estrategicamente, ajudarei a arrumar a sociedade, fazendo-a voltar aos princípios da lei natural”.

Estratégias, estratégias, estratégias!

Creem ser possível justificar que se dê às leis humanas civis, ainda por um instante, um valor em si, e não uma autoridade relativa, que somente se verifica na medida – na exata medida – em que respeitam a lei natural.

E creem em tal coisa porque calculam que é mais válido não enfrentar, neste momento, a “autoridade” da lei civil, afinal, “quem sou eu para bater de frente com o laicismo, a esta altura da história? Melhor é aceitar esse estado de coisas e ir lutando para mudar o que é possível”.

Mentira! Mero oportunismo, e não prudência.

Cálculos, cálculos, cálculos!

Essa ideia – tão bem “calculada” – é fruto do medo, do zelo excessivo de si, do receio de perder a reputação perante os homens. Cria-se uma pletora de justificativas para a pior das ações: a negação objetiva de Cristo, a quem cabe toda honra e toda a glória.

Esquecem-se, contudo, que o homem não se pode justificar a si mesmo contra Deus. Pois o homem que se justifica a si julga a Deus, negando sua autoridade (Rom 3,19). Jesus Nosso Senhor, puríssimo e sem mácula, não entrou a justificar-se perante Pilatos e a multidão. Ora então, quem é o homem para assacar argumentos contra Deus? (Jo 9, 14).

Esquecem-se do que diz S.S. Pio XII, na Alocução “Ci Riesce”: aquilo que não responde à lei moral não tem nenhum direito à existência, nem à propaganda, nem à ação. Sua Santidade não faz ressalvas: àquilo que está em desacordo com a lei moral não é dado direito algum, sequer de ser propagandeado.

Esquecem-se que a ninguém Deus deu licença de pecar (Eclo 15, 20).

Esquecem-se, enfim, que o dia de amanhã não foi prometido a ninguém. “Hodie non cras!”.

E nesses esquecimentos, sinais da covardia, vai-se esvaindo a potência para o bem, vai desmoronando a ordem (i.e., a disposição das coisas segundo seus fins), vai-se consumindo a força da catolicidade, pois quem adia o Reinado de Cristo, já negou Sua Divindade sobre todas as coisas.

Cai-se daí facilmente nos respeitos humanos. Afinal, tendo-se convencido de que é possível acumular poder nas coisas do mundo e só depois agir publicamente em nome de Cristo, parece oportuno, a tais pessoas, não criar desgastes com esta ou aquela autoridade, nem figurar sob a pecha de fanatismo (que os modernos atribuem ao verdadeiro católico).

E avançam nessa miserável vida de enganos, suportando no coração – decerto – o peso desse pecado, que conhecem bem, e que consiste em negar Deus.

Que infelizes não serão! Que sofrimento experimentam já, o qual, sem o arrependimento, se tornará danação eterna.

Afinal, a recompensa da Coroa só virá para os que praticam a verdade, e não para os que a pregam ou ouvem (Venerável Fulton Sheen). Muito menos virá tal recompensa para os que apenas murmuram a verdade, quando é conveniente, e quando as altas rodas não reprimem a exposição pública da fé.

Que terror não causa também o pensar que estamos todos nós, na provação que consiste em viver nesta época, igualmente sujeitos a tal desgraça.

A desgraça de julgar conforme nossos propósitos, de olvidar a Lei de Deus, de cair nos respeitos humanos, de zelar por nossos cargos, de amar nossas reputações, de encorajar nos outros essa mesma paixão desordenada – ou de não a desencorajar, em fraternal correção, quando assim agem – de ocultar a fé para ingressar nos círculos de mando da sociedade, de oferecer justificativas para nós mesmos.

Que Nosso Senhor nos ensine a continuamente rejeitar o mundo e suas falsas benesses, e a resgatar verdadeiramente – sem pusilanimidade e tibieza – sua Lei.

Que Ele nos conceda sabedoria para nos humilharmos diante de sua Majestade e Poder.

De joelhos, hoje, na Festa instituída em recordação ao Reinado de Cristo sobre todo o Universo, brademos como está Escrito:

“Levanta-te, ó Deus, e julgue toda a Terra, porque a ti pertencem todas as nações!” (Sm 82, 8)

Viva Cristo Rei!

Bruno de Ávila Borgarelli

São Paulo, 24.XI.2019

Catolicismo e vieses políticos

Parece ter causado certo desconforto a minha menção a uma eventual “esquerda católica” no post sobre o Sínodo da Amazônia. A julgar por algumas reações que recebi e percebi, parece que a expressão foi tomada como um oxímoro, como se só se pudesse ser católico na razão inversa em que se é de esquerda — no limite, como se a “esquerda católica” não fosse católica de verdade.

Vamos por partes. Antes de qualquer outra coisa, convém notar que ambos os adjetivos, em princípio ao menos, dizem respeito a esferas diferentes da vida humana. Assim, o ser católico e o não ser católico estão no âmbito da religião, do sobrenatural, do relacionamento da alma para com Deus; e o ser de esquerda e o não ser de esquerda estão no âmbito da política, do natural, do relacionamento do homem com os outros homens em sociedade. São coisas distintas entre si; não independentes, mas efetivamente distintas. Obviamente o ser humano é uma unidade e não pode, por coerência, pautar-se em público por um conjunto de valores — ou de desvalores — incompatível com aqueles que professa em particular: ninguém pode amar a Deus e odiar o próximo. Há decerto uma extensa área da vida em que os deveres religiosos e os deveres cívicos se sobrepõem, e onde não é lícito ao católico adotar publicamente uma conduta que esteja em contradição com o que ele privadamente acredita. Mas há também uma amplíssima área de liberdade onde é perfeitamente possível haver diversidade de opinião legítima entre bons católicos sobre os rumos da πόλις, cujos limites não é legítimo estreitar sob o argumento da fidelidade religiosa.

Há outro detalhe fundamental. É que as afinidades políticas — principalmente nos nossos dias, em que as agremiações se dão de forma difusa e espontânea, mais orgânica do que institucional — geralmente não têm a mesma rigidez dos cânones religiosos. Na religião não se pode escolher acreditar na Santíssima Eucaristia e descrer do sacerdócio ordenado: mas, em política, alguém pode defender simultaneamente programas de distribuição de renda e casamento civil entre o homem e a mulher. Não posso ser contra o primado do Papa e a favor da Imaculada Conceição; mas posso ser contra o aborto e a favor do Bolsa Família. A incoerência destrói a religião e deixa a política incólume.

Em uma palavra, a religião é uma coisa muito lógica, muito coerente, muito constante, muito organizada. Já a política não. Em matéria religiosa nós temos a Santa Sé para dizer, por exemplo, que o sr. Rómulo António Braschi incorreu em excomunhão em 2002 ao tentar ordenar sete mulheres e, por conseguinte, não é católico. Causa finita. Já em matéria política, mormente no Brasil, no geral não existe ideologia nem doutrina política, mas apenas fisiologismo e opinião. E, principalmente, não existe instância judicante para dizer o que as coisas são e o que elas deixam de ser. Recentemente descobrimos que o parlamentar expulso do partido por infidelidade partidária sequer perde o seu mandato; que se dirá de seu fulano ou de dona sicrana, que selecionam suas opiniões sobre assuntos públicos como a criança displicente que recolhe flores a esmo no caminho de casa? São de esquerda ou de direita? E, sendo de uma delas, ficam acaso proibidos de adotar posições convergentes com a outra? Por força de quê?

Penso que é possível reconhecer que a população brasileira é majoritária e historicamente “de esquerda”. Isso, no entanto, quer apenas dizer que ela, no geral, gosta de estabilidade de emprego e de reforma agrária, quer um Estado paternalista e prestador de serviços, considera justo que os ricos paguem impostos e os pobres recebam assistência social. Mas essa esquerda brasileira no geral não abraça as pautas morais (ou, melhor dizendo, imorais) da esquerda histérica das redes sociais: o feminismo misândrico, a promoção do aborto, o uso de drogas, a ideologia de gênero, o orgulho LGBTQWXYZ, o ódio à autoridade etc. Ora, qual das duas esquerdas é “mais esquerda”? Qual é “a verdadeira esquerda”? Quem tem propriedade para emitir esse juízo? E que diferença isso faz?

Parece-me que os rótulos podem ser utilizados para fins de simplificação — às vezes eles são mesmo necessários. Mas os empregar para ignorar diferenças importantes ou fazer generalizações descabidas é contraproducente. A “esquerda católica” obviamente não pode ser a favor do aborto, do casamento gay ou da revolução proletária, sob pena, aí sim, de deixar de ser católica; mas existem tantos outros temas legítimos implicados no adjetivo “esquerda” que não dá para negar o catolicismo de quem assim se define por conta deles — para quem quer, por exemplo, políticas de igualdade regional, moradia popular, aposentadoria especial para trabalhadores rurais, ampliação da rede pública de água e esgoto, et cetera, et cetera. A lista seria interminável.

Não há nenhuma identidade necessária entre, por exemplo, querer investimentos em educação pública e aceitar o ensino das ideias de Judith Butler para crianças. Que ambas as coisas estejam presentes no programa de certas elites é tão-somente um dado de fato — que deve, sim, ser levado em consideração na hora de fazer política, mas que não pode servir para justificar, a priori, aceitações ou rejeições em bloco, nem para fazer juízos temerários, nem para fechar portas ou cerrar fileiras de maneira acrítica. Deus é o Sumo Bem. Todo bem, portanto, esteja onde estiver, radica em última análise em Deus e a Ele pode e deve ser ordenado. Não é defeso ao católico, assim genericamente, ser de esquerda, de direita ou de centro. De fato, parafraseando Santo Agostinho (na sua célebre e tão mal compreendida frase ama et fac quod vis), a grande e incompreendida verdade é que, sendo católica, a pessoa pode ser o que ela quiser.

O Sínodo, o Papa e o Rei

Sobre o iminente Sínodo da Amazônia, duas ou três ligeiras palavras.

Primeiro, não é demais lembrar que o Sínodo, enquanto Conselho Episcopal, não foi inventado agora, mas se reúne regularmente há mais de meio século — desde o Vaticano II. Mês que vem, vai falar sobre a Amazônia, mas já falou, em anos recentes, sobre os jovens, sobre a família, sobre a África. As suas atividades não iniciaram agora e, conquanto se lhe possam fazer todas as críticas aplicáveis à própria hierarquia católica nestes tempos de crise, não dá para dizer que ele é um braço do globalismo, uma ameaça à soberania nacional brasileira ou um instrumento da autodemolição do Catolicismo.

Segundo, particularmente sobre este último ponto: o Sínodo certamente não vai ordenar mulheres. O próprio Papa Francisco, perguntado mais ou menos recentemente (em maio último) acerca das conclusões a que chegaram a comissão instituída para estudar sobre o diaconato feminino, deu esta resposta:

Quanto ao diaconado feminino: há uma maneira de o conceber, não com a mesma visão do diaconado masculino. Por exemplo, as fórmulas de ordenação diaconal encontradas até agora – segundo a comissão – não são as mesmas da ordenação diaconal masculina, e assemelham-se mais àquela que hoje seria a bênção duma abadessa. (…) Estas são as coisas que recordo. Fundamental, porém, é que não há certeza de que se tratasse duma ordenação com a mesma forma e finalidade da ordenação masculina. Alguns dizem: permanece a dúvida, vamos continuar a estudar. Eu não tenho medo do estudo. Contudo, até agora, nada se concluiu…

Conferência de imprensa do Santo Padre durante o voo de regresso de Skopje

E as funções destas antigas diaconisas, segundo o Papa, são exatamente aquelas sobre as quais cansámos de falar aqui: auxiliar no Batismo das mulheres (“como os Batismos eram por imersão, quando se batizava uma mulher, as diaconisas ajudavam; inclusive para a unção do corpo da mulher”), avaliar problemas conjugais (“[q]uando a mulher acusava o marido de a espancar, as diaconisas eram enviadas pelo bispo para verificarem as contusões no corpo da mulher e poderem assim testemunhar no julgamento”), etc. Não tem nada a ver com o diaconato masculino que é o primeiro grau do Sacramento da Ordem.

Aliás, nesta mesma ocasião, Sua Santidade levanta um ponto que, a mim, ainda não havia ocorrido, e que é um forte testemunho em favor da exclusividade masculina do sacerdócio católico enquanto vontade positiva de Cristo, e não meramente como uma tolerância aos costumes sociais da época. É que o paganismo conhecia perfeitamente a figura do sacerdócio feminino — as vestais, a pitonisa — e o Cristianismo nascente, tão acusado de copiar os ritos e práticas do politeísmo então praticado, fez questão de reservar apenas aos homens o seu sacerdócio. Nas palavras do Papa:

Mas é curioso: naquela época, havia muitas sacerdotisas pagãs, o sacerdócio feminino nos cultos pagãos existia por todo o lado. E, como se explica que, havendo este sacerdócio feminino – sacerdócio pagão -, o sacerdócio não fosse dado às mulheres no cristianismo?

Conferência de imprensa do Santo Padre durante o voo de regresso de Skopje

Ou seja: o que se pode afirmar, com todo o rigor histórico, é que ordenação de mulheres não é avanço algum, mas sim retrocesso ao paganismo politeísta. Causa finita.

É apenas possível, embora muito pouco provável, que o Sínodo intente resgatar a instituição de uma espécie de diaconato feminino nestes moldes: o de uma função religiosa, porém laical, similar ao “que hoje seria a bênção duma abadessa”. Como é também possível (e pouco provável) que venha do Sínodo alguma autorização, ad experimentum, para a ordenação de homens casados como é praticado até hoje nas Igrejas Orientais (mesmo nas unidas a Roma). Nenhuma dessas coisas é o triunfo do Anticristo, porque as abadessas e o clero casado fazem parte da Igreja Católica há muitos e muitos séculos; tais disposições, repito, improváveis, mas possíveis, se vierem, estarão dentro do legítimo munus regendi da Igreja e não nos devem perturbar a paz da alma. Não seriam muito piores do que os muitos atos de governo desastrosos que nós já nos acostumamos a encontrar todos os dias a nosso redor. Oremus pro Ecclesia Sancta Dei.

Um terceiro e último ponto: ouve-se que o Sínodo poderia ser instrumentalizado pela esquerda para desestabilizar o governo Bolsonaro e, neste sentido, já ecoa, na mídia nacional, que há bispos sendo criminalizados. Ora, isso é uma suprema estultice e um discurso insidioso que os católicos devem rechaçar com veemência. A uma porque os grandes problemas atuais da Igreja Católica são com a sua Doutrina e (mais ainda) com a sua disciplina: se, por absurdo, o Sínodo se dedicasse exclusivamente a condenar as queimadas da Amazônia, com certeza muitos de nós respiraríamos aliviados. A duas porque, como disse recentemente, há questões sociais e ambientais que podem e devem ser informadas pela vitalidade do Evangelho, não existindo assunto humano sobre o qual a Igreja não tenha uma palavra a dar, nem circunstância do século totalmente alheia à caridade cristã que nos constrange a tudo ordenar a Cristo.

E a três porque, sinceramente, entre o Vigário de Cristo e o Presidente da República Federativa do Brasil, é óbvio e evidente que todo e qualquer católico deve tomar partido pelo primeiro. Em um trágico confronto direto entre a esquerda católica e a direita protestante, é a primeira que deve ter a preferência dos que pretendem levar a sério as promessas do seu Batismo. Se o papa pode ser ruim, pior é o rei que se põe contra o papa. Nestes tempos de ânimos exaltados, de lideranças incertas e de juízos superficiais, convém não esquecer nunca que o nosso primeiro e mais fundamental compromisso é com o Reino de Deus e não com a cidade dos homens.

Questões religiosas e questões políticas

Muito bonita e muito verdadeira a afirmação do Card. Dolan acerca de o aborto não ser uma questão de “direita” contra “esquerda”, mas sim do que é certo contra o que é errado. O trocadilho é intradutível: “[abortion is not about] right versus left, but right versus wrong”, e aliás não é da lavra do Cardeal de Nova York e sim do ex-governador da Pensilvânia Bob Casey Sr. Casey era do partido democrata e adversário ferrenho do aborto.

A política americana atual se encontra dividida entre dois campos ideológicos opostos e irreconciliáveis. Cada grupo tem o seu próprio pacote de reivindicações pronto e acabado: a esquerda é a favor do aborto e dos direitos dos trabalhadores, a direita é a favor das armas e do direito de propriedade. A esquerda é progressista e a direita é conservadora. A esquerda é o Partido Democrata e, a direita, o Partido Republicano.

Esta caricatura de ideologia política transcendeu as fronteiras dos Estados Unidos da América e, no mundo globalizado em que vivemos, passou a dar o tom de toda política. Assim, em qualquer lugar do mundo, hoje você é constantemente interpelado a se definir em termos de direita ou de esquerda; pior ainda, a depender das respostas que você dê a certos temas tidos como “representativos” (como política de drogas ou taxação de dividendos, por exemplo), você é classificado como pertencente a um grupo ou outro e, automaticamente, as pessoas atribuem a você — para o bem e para o mal — todo o pacote ideológico daquele grupo.

Assim, se você é, por exemplo, religioso, contra o casamento gay e contra o aborto, as pessoas presumem que você também é contra as políticas assistencialistas e as cotas sociais. Ou se você é a favor do divórcio, dos imigrantes e contra a presença de símbolos religiosos em prédios públicos, os outros presumem que você também é contra a posse de armas de fogo e a favor da intervenção forte do Estado na economia. Isso facilita as coisas, sem dúvidas, isso reduz complexidade social, mas isso também limita o campo de atuação humano e, convenhamos, dificulta e falseia o debate público. Ou seja, isso termina por atrapalhar a política.

Essa forma com a qual nos acostumamos a enxergar a realidade tem dois grandes problemas. O primeiro, como já foi ventilado, é que isso limita a esfera de ação daqueles que querem participar da vida pública. Precisando optar por um grupo político ou pelo outro, o cidadão acaba sendo coagido a comprar o “pacote completo” para fins de pragmatismo político e para fortalecer a identidade partidária: assim, o sujeito concorda bastante com x, w e z, não concorda muito com y mas acaba encampando também a sua defesa porque de outra sorte não teria espaço para defender x, w e z — que é aquilo pelo que ele realmente gostaria de lutar. Ou seja, a pessoa defende algumas coisas por convicção interior e outras por condicionamento exterior.

O segundo problema é ainda pior. É que existem algumas coisas dentro destes pacotes político-ideológicos — muitas coisas, eu diria — que são perfeitamente discutíveis, com relação às quais se pode chegar a diversos arranjos legítimos. Não existe uma única maneira correta de se cobrar impostos ou de se elencar os deveres mínimos que os empregadores devem guardar para com os seus empregados. Definir se a maioridade penal deve ou não coincidir com a maioridade civil, ou repartir entre os patrões e a sociedade os custos da licença-maternidade, isso são coisas cujas concretizações podem ser francamente inaceitáveis, sem dúvidas, mas que também se podem concretizar de muitas maneiras perfeitamente aceitáveis. Em temas assim, as questões verdadeiramente morais só se impõem nos seus extremos, deixando uma ampla margem para o saudável exercício da prudência e dos juízos contingentes. Aqui há muito espaço para negociações.

Mas isso não se aplica a todos os temas. Em particular, a defesa da vida não é negociável da mesma maneira que a alíquota do imposto de renda; com o aborto, com o assassínio, com o mal, não é possível condescender de nenhuma maneira. Não é possível, aqui, forçar um meio-termo que privilegie os dois lados da disputa: qualquer mínima autorização ao aborto é sempre e em si mesma uma ofensa objetiva à justiça e ao direito, uma ferida aberta na civilização. Da mesma forma que não se pode pacificar o embate entre escravocratas e abolicionistas dizendo que “apenas” poderão ser escravas as pessoas nas condições A, B e C: por restritíssimas que fossem essas condições, ainda assim elas não fariam descansar os que combatessem a escravidão.

O aborto permitido em condições restritas não é uma deferência concedida aos pró-vida, não é uma situação socialmente pacificada que se deve lutar pra manter: diante do horror do aborto, como diante do horror da escravatura, a única resposta humana possível é a luta por sua total abolição. Com menos do que isso não pode haver paz. Enquanto uma única criança puder ser assassinada com a anuência do Estado, então não é possível estar em paz com esse simulacro de direito e com esta caricatura de justiça.

Foto: Infocatólica | © Getty

A imensa maior parte dos outros temas politicamente relevantes não tem essa mesma imperiosidade. Foi por isso que o Card. Dolan pôde responder assim ao governador de Nova York, que parece ter enorme dificuldade para perceber estas nuances:

Ele — o governador — não me considerava parte da “direita religiosa” quando procurava minha ajuda para o aumento do salário mínimo, a reforma penitenciária, a proteção dos trabalhadores, a acolhida dos imigrantes e refugiados e a promoção da educação universitária para a população carcerária — causas pelas quais estávamos felizes de nos associar com ele, porque também eram as nossas causas. Suponho que eu era parte da “esquerda religiosa” nesses casos.

Card. Dolan

Em resumo, é preciso ter cuidado hoje em dia, porque nem tudo o que se costuma discutir entre pessoas religiosas é uma questão religiosa, como nem tudo sobre o que os políticos são chamados a se manifestar é uma questão política. Há no meio dos “pacotes ideológicos” muitas coisas que não podem ser defendidas com intransigência religiosa, como há também algumas coisas que não podem ser negociadas com condescendência política. É preciso saber separar uma coisa de outra — isso para o bem da política como para o bem da religião.

Melhores que os publicanos

Perguntam-me sobre política. Ora, sobre este tema, nas atuais circunstâncias, penso que, de minha lavra, há bem pouco que se falar. Primeiro que este blog não é, nunca foi e nem nunca se propôs a ser um blog sobre política: aqui se discute religião, principalmente apologética, e todos os demais temas pelos quais aqui se fazem eventuais incursões só ganham espaço na medida em que este autor considere possível apresentar, sobre eles, algum enfoque religioso.

Depois, a política partidária tem — deve ter! — relevância nula na nossa vida de cristãos. E praticamente tudo o que se discute hoje na internet sob o nome de “política” tem uma conotação partidária insuportável e malsã. Por exemplo, no momento em que escrevo estas linhas sou bombardeado por notícias sobre a eleição da presidência do Senado. Ora, o tema pode ser muito caro a quem é senador ou àqueles cujo trabalho gravita em torno do Poder Legislativo Federal; pode proporcionar comentários espirituosos e dar ensejo a discursos inflamados, que a todos nós é sem dúvida lícito consumir com alguma moderação. Mas o assunto não deve, em absoluto, ocupar as nossas preocupações por um lapso considerável de tempo: com todas as vênias, suas excelências não merecem tanto assim a nossa consideração. Sequer se esforçam por merecê-la. Sim, a democracia é uma coisa muito bonita e o homem é zoon politikon desde que se entende por gente, todos o sabemos. Mas antes de ser orientado para a pólis o homem é vocacionado para o Alto, e o cuidado excessivo das coisas dos homens geralmente redunda em incúria para com as coisas de Deus.

Não, o maior risco dos tempos modernos não é a alienação política. O maior risco que corremos hoje em dia é, sem sombra de dúvidas, o desleixo espiritual. Toda atividade política profícua (e política, propriamente falando, é o que diz respeito à vida do homem em sociedade, não se reduzindo ao partidarismo político), para ser legítima, não pode ser senão o natural transbordar de uma vida espiritual pujante. A humanidade já perdeu a conta dos santos que transformaram o mundo; e até hoje não se tem notícia de alguém que, à força de mudar o mundo, tenha terminado santo.

Tudo isso é clichê, é básico, é o bê-a-bá do Catolicismo. Mas é preciso insistir nisso porque nos dias que correm se vê muito ufanismo sem cabimento. É preciso dizer com clareza que o momento político que o país atravessa hoje não é triunfante, é periclitante. O cenário está basicamente tomado por raposas sem patriotismo em torno às quais se aglomeram ineptos bem-intencionados. Sim, tal é o arranjo que foi possível, em meio aos desarranjos que nos ameaçavam no horizonte, mas não se pode jamais perder de vista que ainda é muito pouco, que ainda é muito ruim, que ainda é indigno de pessoas civilizadas e aviltoso à vocação do Brasil. Não é possível se acomodar.

Aquele “não vos conformeis com este mundo” talvez nos deva interpelar com tanto mais veemência quanto mais admirável aparente ser o mundo novo que temos diante dos olhos. Poderíamos estar pior? Sim, poderíamos sem dúvidas estar muito pior, e graças a Deus que não estamos! Mas isso de maneira alguma é motivo para a acomodação e o relaxamento. O Cristianismo é progredir olhando para os santos que estão muito acima de nós, e não se satisfazer com a constatação de que estamos melhores que os publicanos.

Até porque nenhuma verdadeira vitória é fácil e nenhuma conquista é duradoura se não for sustentada por esforços conscientes e prolongados. As coisas que nos vêm melhor do que esperávamos devem nos provocar antes uma prudente reserva do que um entusiasmo ligeiro. Isso não é pessimismo nem desconfiança da Providência, é exatamente o contrário: é saber que a Providência, em última análise, é o Altíssimo encontrando maneiras de reproduzir na História os passos de Seu Filho rumo ao Calvário. Se não se encaixa no quadro maior da Paixão de Cristo, então não é Providência — esta é uma lição que deveríamos ter sempre diante dos olhos quando precisarmos julgar as coisas deste mundo.

Finalmente, o que esperar da atual política brasileira? Ora, o mesmo de sempre. Não esperar nada dos que detêm o poder; rezar sempre para que governem com justiça; e se esforçar sempre — sem relaxar jamais! — para semear o reino de Deus naquele palmo de terra insignificante que está ao alcance de nossas mãos e das de mais ninguém. O mundo é mais vasto do que se vê dos palácios dos reis. Não permitamos que o deslumbre das cortes nos cegue para todo o trabalho que ainda temos por fazer.

Santos em meio aos escombros

As notícias que nos chegam a respeito do recente acordo assinado entre a Santa Sé e a República Popular da China são assustadoras e preocupantes. O assunto, bastante nebuloso, talvez — infelizmente — permaneça assim ainda por bastante tempo, mas de qualquer modo existem algumas coisas que podem ser desde já pontuadas.

A respeito do acordo em si, são poucas as informações de que dispomos. Sabemos que ele foi assinado no último sábado; que os seus termos detalhados permanecem secretos; que é provisório e será periodicamente reavaliado; que inclui a revogação da excomunhão dos bispos “oficiais”, sagrados sem mandato pontifício; e que o seu principal objetivo é chegar a um delicado consenso, entre a Santa Sé e o Partido Comunista Chinês, acerca da nomeação de bispos para a Igreja Católica na China.

Ora, a Igreja de Roma, desde há muito, reserva para si a prerrogativa de nomear os seus bispos no mundo inteiro. O poder do Papa, absoluto, incontrastável, não pode rivalizar com o poder de César naquilo que diz respeito ao governo da Igreja. Não se pode admitir que questões seculares, locais, se sobreponham ao direito divino do Soberano Pontífice de pastorear a grei de Deus da maneira que melhor lhe aprouver — e isso é um poder que se exerce não apenas de modo geral e abstrato, mas também nas contingências da vida, na livre nomeação de um bispo específico, determinado, para uma diocese particular e concreta. Acontece que o Governo Chinês, Estado Totalitário que é, também se arvora o direito de nomear por si mesmo os seus próprios líderes religiosos. Neste caso, como ficam as coisas?

Até então ficavam como se houvesse “duas igrejas”, duas hierarquias eclesiásticas paralelas, uma oficial, ligada ao Governo Chinês, outra, clandestina, sujeita ao Papa. A Igreja Clandestina não é reconhecida pelo Partido Comunista Chinês como a Igreja Oficial não é reconhecida pela Igreja de Roma. O recente acordo procura oferecer remédio a esta lamentável situação.

Parece que o remédio encontrado, no entanto, foi muito mais amargo, humilhoso e aviltante do que mereceria o heroísmo dos católicos chineses que há décadas vivem na clandestinidade. A Santa Sé, ao que parece, cedeu em tudo exigindo pouco ou nada em troca: retirou as excomunhões que pesavam sobre os bispos ordenados à revelia do Papado e chegou a um acordo para a nomeação dos próximos bispos — que, ao que tudo indica, significa uma simples chancela papal aos nomes que forem indicados pelo Governo Chinês.

Veja-se, a questão canônica aqui está plenamente resolvida. Os bispos, para serem ordenados licitamente (porque a respeito da validade das ordenações episcopais da Igreja Oficial da China, em que pesem algumas dúvidas pontuais, parece nunca ter havido controvérsia generalizada), precisam de um mandato pontifício — é dizer, precisam de que o Papa autorize aquela sagração. Se o Papa simplesmente chancela aquele que foi nomeado pelo Partido Comunista Chinês, então o mandato está dado, a liceidade da cerimônia e a consequente licitude do Sacramento são incontestes.

Só que isso resolve apenas materialmente o problema, porque o mandato pontifício é expressão da autoridade petrina sobre todo o orbe terrestre; ora, se é o Governo Chinês quem na prática escolhe os candidatos ao episcopado, então isso significa que, na China, a autoridade da Igreja não é verdadeiramente respeitada. Trata-se meramente de um verniz de consenso, que esconde uma dolorosa submissão da Igreja ao comunismo chinês. Na prática, difícil negar que a Igreja saia humilhada da negociação.

O que dizer disso? É sem dúvidas possível contemporizar. Diz-se, e com bastante acerto, que a política é a arte do possível; quanto mais não se deverá dizer da diplomacia? Se na política interna é necessário fazer concessões mútuas, no trato com estados soberanos — algumas vezes totalitários — essas dificuldades chegam ao paroxismo. A política vaticana é proverbial; mas não se pode dizer que ela tenha sido sempre inquestionável. Para ficarmos só em tempos recentes, houve uma Reichskonkordat, houve uma Ostpolitik vaticana. E o que dizer da diplomacia de Pio XI durante a Cristiada?

Não estou dizendo que nada disso tenha sido bom nem que tenha sido mau, que tenha sido um acerto ou que tenha sido um erro. Eu não sei. A razão prática, quando desce aos meandros da experiência histórica concreta, não costuma refulgir com a mesma clareza dos exemplos teóricos dos manuais de Teologia Moral. Acho perfeitamente legítimo alguém defender que Pio XI deveria ter sido mais intransigente com a Alemanha do que com o México, ou vice-versa; o que acho difícil é afirmar que tal ou qual alternativa fosse “a opção correta”, ou — pior ainda! — que estes personagens históricos, premidos pelo fluxo dos acontecimentos, tivessem naquele momento condições de fazer “a escolha correta”, e somente não a tenham feito por algum vício indesculpável do seu caráter. E se aceitar os arreglos fosse a única alternativa viável ao Papa Ratti? E se o presente acordo com a China Comunista for o caminho possível para a superação do impasse católico no país? Quem há de o dizer?

Nenhuma diplomacia é incriticável, mas também — e pela mesma razão — nenhuma é absolutamente indefensável. É sempre legítimo dissentir das relações internacionais da Santa Sé, é possível até ressentir-se com a forma como são conduzidos esses negócios eclesiásticos que chegam quase a ser seculares. É possível protestar, decepcionar-se, chorar e rezar.

E é preciso também, e principalmente, resignar-se. E aqui se registre, por uma questão de justiça, o desabafo, pungente, heróico, do Card. Zen, arcebispo emérito de Hong Kong, que deu uma entrevista quando o acordo estava às vésperas de ser assinado. Sua Eminência, no ápice do desespero, dilacerado com o acordo, alardeia: «estão entregando o rebanho, abandonando-o na boca dos lobos. É uma traição incrível!». E, não obstante, ato contínuo, em um rompante de (santa!) resignação, acrescenta: «não sairei a lutar contra o Santo Padre. Não cruzarei esta linha.»

«Não cruzarei esta linha»! Ó vós que passais e ledes, aprendei o valor do sofrimento, vede a beleza da submissão! Notai, aqui, a diferença, a gritante, a gigantesca diferença, entre o ânimo resignado e o espírito revoltado, entre a têmpera que forja santos e o destempero que perde almas. Mesmo diante daquilo que ele considera uma traição vil e covarde, o ancião de Hong Kong se recusa a combater o Cristo-na-Terra. Isso, vindo de um baluarte da Igreja chinesa clandestina, mais do que qualquer outra coisa nos deveria servir de exemplo e de inspiração. É assim e somente assim que se combate o bom combate, é assim que se arrancam frutos ao coração de Deus! Que os defensores da Fé, nesta hora tão escura, possam ser cada vez mais como o Card. Zen, é o que não devemos cessar jamais de rogar ao Altíssimo. Que Ele tenha compaixão de nossas dores e venha em auxílio às nossas fraquezas. Que Ele, mesmo contra todas as humanas expectativas, faça florescer a terra arrasada, levante santos em meio aos escombros.

Desperdícios de tempo e de energia

Parece haver um grave problema de conteúdo nas nossas redes sociais, mesmo naquelas ditas “conservadoras”. Metade do tempo se gasta com superficialidades manifestas; a outra metade, dando demasiada atenção àquilo que em si mesmo tem pouca relevância. Por exemplo: parece que a política — e, por política, refiro-me principalmente à política partidária — ocupa um espaço desproporcional naquilo sobre o que se fala, que se curte e que se compartilha. Mesmo entre católicos. Isso, além de monotemático (e, em consequência, maçante), é também equivocado: porque uma visão política simplesmente contrária à esquerda não é, por si só, sinônimo de verdadeiro progresso civilizacional; e, principalmente!, não se lhe pode confundir com uma visão de mundo católica.

Que não se me entenda mal. Este blog já falou bastante sobre política e incluso sobre eleições; este autor está convencido de que esses assuntos precisam, sim, ser debatidos e assumidos também pelos católicos enquanto tais — porque é preciso exorcizar da vida pública o espectro agourento de um anticlericalismo malsão que pretende dizer que “a religião” (e, por extensão maldosa, os religiosos) não pode(m) ter vez nem voz na vida pública. Ora, quem é católico, é-o nas vinte e quatro horas do seu dia, onde quer que se encontre, o que quer que esteja fazendo: precisa ser assim, sob pena de não se valer a pena ser católico. O sujeito que se diz católico “na vida privada” mas que acha dever (ou mesmo poder!) tomar, na vida pública, decisões contrárias àquilo que a Doutrina Católica manda e prescreve, esse sujeito é, na melhor das hipóteses, uma besta — na pior, um hipócrita.

O Catolicismo não fala apenas sobre os católicos: ele importa também uma visão, mais ampla e mais geral, do homem em si mesmo, do homem enquanto homem. Essa antropologia, se é realmente antropologia, precisa se aplicar, é evidente, ao homem sem adjetivos, ao homem, simpliciter, qualquer que seja ele. Se alguém acha que a visão católica acerca do homem não se aplica, e.g., ao homem agnóstico, ou ao homem protestante, então esse alguém, na verdade, acha que a antropologia católica não é verdadeira. Ora, se se acha que o Catolicismo está errado neste particular, qual o sentido de se afirmar católico? Se a Doutrina Cristã está errada quanto ao homem, quem garante que ela não esteja igualmente errada quanto a Deus? É por isso que a Fé não comporta escolhas (em grego, heresias): ou Aquela de quem se recebe a Fé é fiável e, portanto, à Mensagem d’Ela se deve aquiescer, ou então é preciso a tudo pôr sob escrutínio — e, nesse caso, quem é digno de confiança não é mais a Mensageira, e sim o escrutinador da Mensagem. Ainda que ambos os caminhos possam eventualmente levar ao mesmo resultado prático, os fundamentos de um e outro são completamente diferentes — e, por isso, apenas um deles merece ser chamado de “Fé”, daquela Fé sem a qual não é possível agradar a Deus.

Enfim, este blog sempre pugnou para que o católico pudesse, sim, assumir-se como católico em tudo o que faz: nas suas relações para com Deus, mas também, e principalmente, nas suas relações para com o próximo e para com a sociedade. Impedi-lo de agir dessa maneira é, em última instância, impedi-lo simplesmente de ser católico. Afirmar que religião é assunto de foro íntimo é uma estupidez sem medidas; somente é capaz de proferir um absurdo desses quem não faz a menor idéia do que seja uma religião.

Isso é uma coisa. Uma outra coisa, completamente diferente, é se deixar ser tragado pela voragem política dos arranjos partidários de ocasião, exaurindo, nas tomadas de posição contrárias ou favoráveis a tais ou quais políticos ou partidos, a própria atuação pública. E, o que é pior, confundindo isso com vitórias ou derrotas estratégicas no campo social, perdendo completamente de vista a amplidão do cenário onde se precisa atuar de maneira verdadeiramente eficaz.

O exemplo mais recente (?), que é apenas um entre muitos e que trago aqui apenas para ilustrar o que estou dizendo, foi o vai-e-volta do habeas corpus do ex-presidente Lula no último fim de semana. Todos viram a história, que envolveu três desembargadores, um juiz de primeira instância e uma sucessão desenfreada de despachos atrás de despachos, em pleno domingo, cada um dos quais pretendendo portar a mais lídima justiça, todos demandando cumprimento imediato. Não se trata de perquirir as más intenções do desembargador plantonista e nem de dissertar sobre os mecanismos de reforma de decisões judiciais providos por um direito dogmaticamente organizado; o ponto aqui é, tão-somente, apontar para a enorme quantidade de energia e atenção gastas (por este blogueiro inclusive, para o meu embaraço) em tão pouco tempo, com um assunto tão banal.

Porque não se trata de nenhum evento histórico — muito pelo contrário, é mesmo como se fosse um evento anti-histórico. Porque, domingo, as informações se sucediam e contradiziam em um ritmo tão descomedido que (acho até que já usei a imagem alhures) mesmo as últimas notícias já saíam velhas. A situação exigia um acompanhamento constante, real-time, para que não se tivesse uma informação desatualizada. E uma informação com prazo de validade exíguo é, exatamente, o tipo de informação que não entra para a história. É a exata definição de algo desimportante.

Ora, sejamos sensatos: a informação que agora serve mas que pode estar desatualizada daqui a vinte minutos não deve ocupar senão um lugar muito modesto na hierarquia de nossos conhecimentos. E, definitivamente!, não merece consumir os nossos domingos, nossas conversas, nossos pacotes de dados do celular. Se parte considerável daquilo que para nós importa não tem senão um interesse imediato, descartável, como poderemos almejar alguma espécie de permanência? Como poderemos nos elevar acima da bruta correnteza dos fatos, se é majoritariamente por eles que nos interessamos?

Como eu disse, o pandemônio do último domingo é apenas um exemplo. Porque a impressão que eu tenho é que as nossas redes sociais estão inundadas de questões da mesma natureza: as polêmicas versam sobre futilidades efêmeras e são, elas próprias, efêmeras também. É por isso que fazem tanto sucesso a timeline do Facebook ou as stories do Instagram: são, em essência, coisas que a gente vê agora e que daqui a cinco minutos podem não estar mais lá, e ninguém se importa.

A internet é uma coisa maravilhosa. Há uns anos, poucos anos!, desempenhou inestimável papel civilizacional ao franquear a palavra àquelas vozes que estavam excluídas dos meios de comunicação oficiais; hoje, no entanto, corre grande risco de dissipar esforços ao invés de os fazer convergir. Evitar essas armadilhas é empresa difícil, mas também necessária: seria um grande retrocesso permitir que a internet, após abrir um mundo de possibilidades aos homens do início do Terceiro Milênio, terminasse reduzida ao éter das redes sociais em que consiste atualmente.

O terço do presidiário

Sobre o tal terço supostamente enviado pelo Papa Francisco ao ex-presidente Lula, somente três pequenos apontamentos se fazem necessários.

Primeiro, que não há evidência absolutamente nenhuma de que o envio do presente tenha sido um desejo específico do Papa Francisco. O perfil do Vatican News nas redes sociais, a propósito, publicou hoje — inclusive com uma celeridade inusitada — uma nota de esclarecimento dizendo que em nenhum momento o advogado argentino sequer afirmou que o terço havia sido enviado pelo Papa: de acordo com o órgão de comunicação, na entrevista apenas foi dito que se tratava de um objeto abençoado pelo Santo Padre.

Ou seja, o que aconteceu foi simplesmente o seguinte: um advogado foi fazer uma visita particular ao sr. Luís Inácio, levando-lhe de Roma um terço abençoado pelo Papa. Não pôde entrar porque não era dia de visita. Ato contínuo, em um instante, os órgãos de imprensa tupiniquins transformam-no em um legado papal, agindo em missão eclesiástica, encarregado pessoalmente pelo Vigário de Cristo de entregar ao ex-presidente um símbolo do apoio pontifício e impedido de cumprir a sua missão santa pela arbitrariedade policialesca de Curitiba!

A coisa é por demais fantasiosa para merecer muita atenção.

Segundo, que o dr. Juan Gabrois afirma que o Papa sabia da entrega do terço. Ora, ainda que seja verdade, tal é completamente irrelevante: nem torna menos jurídicas as sucessivas condenações sofridas pelo sr. Luís Inácio, nem confere solidariedade internacional ao criminoso caeteense. Na verdade, Sua Santidade bem que poderia ter enviado mesmo o terço, com um carta assinada de próprio punho, e nisso não haveria nada de inusitado. Afinal de contas, ao longo da história os criminosos condenados sempre puderam contar com assistência religiosa — sem que isso significasse jamais a condescendência para com o crime que os anti-clericais do século XX gostam de ver nas manifestações de misericórdia do Pontificado atual.

Um criminoso recebeu um terço. E daí? Por séculos, mesmo os condenados à morte receberam absolvição sacramental quando já se encontravam no cadafalso, sem que se pretendesse jamais que isso pudesse tornar injustas as condenações criminais que pesavam sobre eles. Antes, é ao contrário: era justamente por serem criminosas condenadas que aquelas pessoas precisavam de um sacerdote ao seu lado. Ao ex-presidente Lula faria muito bem rezar alguns terços — como aos condenados que subiam ao patíbulo fazia muito bem ouvirem as exortações da Irmandade da Misericórdia. O Papa bem que poderia ter lhe enviado o presente com este santo propósito.

Terceiro, por fim, que se o Papa Francisco tivesse enviado uma rosa de ouro para o sr. Luís Inácio, alardeando altissonante a sua solidariedade para com a vítima inocente de um sistema judicial corrupto, isso seria um escândalo político e só. É evidente que Pontífice nenhum fala em nome da Igreja quando toma partido em favor de tal ou qual governante, quando firma alianças com determinada nação em detrimento de outras, quando sagra imperadores ou depõe reis. Ninguém está obrigado a seguir as preferências políticas daquele que se assenta no Sólio de Pedro, e se por um lado todo Soberano Pontífice faria muito bem em se manter relativamente afastado da política secular, por outro lado a Igreja tem também o direito (e por vezes o dever) de exortar os poderosos do mundo. Ora, nestas questões de natureza prudencial descabe até mesmo falar em munus docendi da Igreja; no entanto, são assuntos que por vezes se impõem.

Na hipótese de alguém de boa fé acreditar na inocência do ex-presidente, o que é que se pode fazer? Mostrar à pessoa que ela está errada, contradizê-la em público, sim, mas não transformá-la em cúmplice dos desmandos lulopetistas e nem muito menos atribuir-lhe os mesmos propósitos que a esquerda brasileira se esforça por fazer valer neste já tão maltratado país. Uma coisa é ter dúvidas acerca da lisura do processo que culminou na condenação do sr. Luís Inácio, outra totalmente diferente é endossar em bloco o programa político do Partido dos Trabalhadores. De um ponto a outro o salto é muito largo: não pode ser simplesmente inferido e nem é possível demonstrá-lo à base de razões tácitas ou motivos implícitos.

Em resumo, o terço que o presidiário não pôde receber ontem é um objeto religioso vergonhosamente transformado em arma política. Nós, católicos, ao invés de ficarmos dizendo o que o Papa quis ou não quis dizer com o seu gesto, deveríamos era rechaçar de pronto e com veemência esta instrumentalização odiosa da Fé.

A condenação de Lula e a de Cristo

A foto abaixo tornou-se viral na semana passada; não sei exatamente em que contexto ela foi tirada (pelo que li nas redes sociais, teria sido uma manifestação da CUT da qual participou o frei Aloísio Fragoso — isso contudo pouco importa), mas ela se presta bem para falarmos um pouco sobre o que há de errado com determinada visão religiosa contemporânea. Para representá-la, essa imagem é de uma preciosidade ímpar.

A primeira coisa errada nesta foto é a forte conotação político-partidária que ela apresenta. A política, no sentido clássico, da arte relacionada ao cuidado das coisas públicas — da polis, da cidade — é uma coisa conatural ao ser humano: viver em sociedade é, sempre e necessariamente, de algum modo fazer política. Mas não é este o sentido corrente do termo, e (principalmente!) não é este o sentido que se depreende de uma imagem onde se protesta contra uma decisão judicial que condenou um ex-presidente por corrupção e lavagem de dinheiro. O sr. Luís Inácio, ali, não está retratado como um cidadão esmagado sob a tirania estatal: é um líder político a cuja defesa o manifestante empresta o próprio nome, a honra, tudo.

Ora, isso não tem nada a ver com religião e além disso: a religião é tanto mais importante quanto mais consegue fazer as pessoas perceberem a mesquinharia dessas lutas conjunturais pelo poder terreno. A frase da coroação dos papas — sic transit gloria mundi — tem muito a ensinar tanto aos que assumem poderes temporais (os Papas, lembremo-nos, governavam os Estados Pontifícios) como também àqueles que se sujeitam aos poderes constituídos: todas essas coisas passam e, portanto, não vale a pena dedicar-lhes a própria vida com este devotamento religioso tão comum de se encontrar no Brasil de hoje em dia. É saudável manter uma relativa distância das disputas político-partidárias. Quem não o faz corre o risco de passar vexame.

A segunda coisa terrivelmente errada com a imagem é a blasfêmia grosseira em que consiste a comparação. Nosso Senhor Jesus Cristo era verdadeira e propriamente um inocente, no sentido mais próprio, ontológico em que se pode afirmar a inocência de alguém. Ele era a própria Inocência encarnada e pendurada em um madeiro. Ora, quem, por cândido e puro que seja, pode se afirmar inocente assim? Quem ousaria se comparar ao Filho de Deus?

Uma pessoa realmente inocente se sentiria aliás ofendida com a comparação. Algum místico espanhol (Santa Teresa? São João da Cruz? Agora não me recordo…) certa feita estava sendo terrivelmente caluniado. Perguntaram-lhe se eram verdadeiras aquelas coisas. O santo respondeu algo como: “meu filho, essas coisas que estão falando de mim são tudo mentira. No entanto, eu já fiz tantas coisas horríveis e das quais ninguém ficou sabendo que tomo umas pelas outras e ainda saio no lucro”.

Com certeza os nossos tribunais estão repletos de sentenças injustas, e com certezas há inocentes injustamente condenados. Mas o máximo que se pode dizer de qualquer ser humano é que ele seja inocente do crime pelo qual foi condenado. Assumamos, unicamente para argumentar, que o sr. Luís Inácio não tenha realmente nada a ver com o Triplex do Guarujá. Isso o faria inocente, sim, mas de uma inocência por assim dizer relativa: ele seria inocente de ter recebido propina de um construtora. Este é o máximo de inocência a que ele pode aspirar. Aliás, este é o máximo de inocência a que qualquer ser humano pode aspirar.

Coisa completamente diferente é o caso de Cristo — e espanta que um líder religioso não perceba esta coisa tão básica! Ora, Nosso Senhor não era somente inocente da acusação de blasfêmia que os judeus Lhe lançaram: Ele era inocente completamente, inocente simpliciter, inocente de toda e qualquer culpa porque Ele jamais cometeu pecado algum. Não dá, simplesmente não dá para comparar Nosso Senhor nem mesmo com a vítima da maior injustiça que Thêmis tenha algum dia sido capaz de cometer.

A terceira coisa errada, terrivelmente errada com a imagem é a figura nela retratada. Admitir-se-ia, vá lá, mesmo com a impropriedade da comparação, que Cristo Crucificado fosse comparado com a inocência de uma criança covardemente assassinada. Agora compará-Lo logo com o senhor Luís Inácio…! Ninguém em sã consciência acredita de verdade na inocência do ex-presidente. O máximo a que consegue chegar a militância minimamente pensante é dizer que ele foi condenado sem provas. Ora, qualquer pessoa que tenha uma compreensão ainda que rudimentar de como funciona a justiça sabe que uma coisa é não haver provas e outra, completamente diferente, é o acusado ser inocente. Provas por provas, também não as há de que o goleiro Bruno tenha assassinado Eliza Samudio. Alguém cogitaria retratá-lo de coroa de espinhos na cabeça e protestar contra tão aviltante reencenação do Pretório de Pilatos? Tal não seria profundamente ridículo? E quão ridículo não é o presente protesto, onde as imagens de Cristo e de Lula são colocadas juntas em uma cruz no meio da rua?

A respeito de Cristo não se pode simplesmente dizer que os judeus não se desincumbiram do ônus de provar a sua acusação; no Gólgota a questão era verdadeiramente fática, constitutiva, substancial — não era uma reles questão procedimental! Transformar a Paixão em uma “condenação sem provas” é de um reducionismo tacanho, verdadeiramente inimaginável em épocas mais civilizadas. Os dias atuais, no entanto, sempre surpreendem em matéria de estupidez.

Os inimigos da Igreja gostam de dizer que a religião aliena, e a frase segundo a qual ela seria o ópio do povo tem cada vez mais se tornado um lugar-comum entre as classes soi-disant pensantes. O que se percebe, no entanto, no dia a dia, é justamente o contrário: não é a Cidade de Deus quem aliena, mas sim a Cidade dos Homens. O que torna o homem alheio à realidade a seu redor não é a religião e sim a ideologia política. A triste cena que ilustre este artigo dá, disso, uma demonstração perturbadora.

O pecado original e as tragédias sociais

O status naturalis hobbesiano em que atualmente se encontra o estado do Espírito Santo por conta da greve da PM (parece que já foram registradas 90 mortes violentas desde sábado), bem como as chacinas nos presídios que rebentaram no início do ano (por exemplo, com presos decapitados e eviscerados em Manaus) dão ensejo a algumas considerações.

Antes de tudo, é relevante registrar que as tragédias oferecem uma demonstração concreta, empírica, quase produzida em balão de ensaio, de um dos postulados mais básicos do Cristianismo: com o pecado original, a desordem foi introduzida na criação e o homem passou a sofrer uma como que inclinação natural para a prática do mal. Foi Chesterton quem disse que o pecado original era um dogma quase auto-evidente, podendo ser inferido do prosaico fato de (p. ex.) um homem esfolar um gato: diante da crueldade sem propósito ou se nega a existência de Deus (posição dos ateus) ou se afirma que existe, atualmente, uma separação entre Deus e o homem (visão de mundo cristã).

Ironicamente, o inglês acrescentava que os modernos materialistas haviam chegado a uma genial solução inovadora, negando o gato. Um século depois do Ortodoxia, os intelectuais contemporâneos — tributários daqueles contra os quais Chesterton levantou o seu gênio — chegam hoje à mesmíssima “brilhante” conclusão com cem anos de atraso.

Sobre a crise penitenciária, um ministro do STF chegou a sugerir, a sério, a legalização das drogas. A dar crédito ao ministro Barroso, então, bandidos de facções rivais só estão se matando dentro das penitenciárias porque a maconha é proibida no Brasil. “Dando certo” com a maconha — seja lá o que isso signifique –, o visionário ministro acha que se deve, também, legalizar a cocaína (!). Tudo, claro, para «quebrar o tráfico». Parece não ocorrer ao senhor ministro a hipótese de o tráfico continuar funcionando a despeito da legalização — como, mutatis mutandis, os cigarros ilegais movimentam bilhões de reais anualmente no país, mesmo não havendo notícia de que o tabaco tenha sido algum dia criminalizado. Igualmente não interessa a Luís Roberto Barroso o singelo fato de a cocaína não ser legalizada em lugar nenhum do mundo; a legislação estrangeira só brilha aos olhos do ministro quando é para introduzir o aborto por vias escusas no país.

No mesmo contexto, um artigo da Carta Capital enumera diversos problemas dos presídios capixabas; curiosamente, é o último artigo do «Justificando» sobre o Espírito Santo, escrito pouco antes da barbárie que tomou conta das ruas do final de semana para cá. Longe do portal pretensamente jurídico, a página inicial da revista ostenta uma chamada dizendo que a culpa da crise é do «ajuste fiscal» do governador pemedebista. Last but not least, o Sakamoto acredita que o problema só se pode resolver com a desmilitarização da polícia, a qual o articulista considera mero «instrumento de uma parcela da sociedade com um grupo de poder econômico para a qual os domínios fora de seu castelo são terra de ninguém».

É preciso muito sangue frio, reconheça-se, para usar o assassinato de noventa capixabas com o fito de atacar o governo do PMDB; do mesmo modo se exige uma dose particularmente refinada de psicopatia para achar que uma rebelião penitenciária (onde os presos estão literalmente arrancando as cabeças dos membros das facções rivais) é uma boa oportunidade para defender a legalização da cocaína. Sob a tagarelice da mídia fica assim diluída a responsabilidade individual, à qual ninguém parece dar grande importância; ao mesmo tempo, pontificando soluções mirabolantes, as pessoas fingem se esquecer de que existe, no âmago de qualquer «crise social», (i) indivíduos humanos que respondem a estímulos e (ii) cujos atos exigem responsabilização.

Indivíduos que respondem à estímulos: se o número de assaltos, saques e assassinatos aumenta precisamente quando se sabe que o policiamento ostensivo não está nas ruas, e sendo esta a única variável relevante sofrendo alteração considerável, é imperativa a conclusão de que fulano é menos propenso a assaltar, saquear ou assassinar quando sabe que corre risco maior de ser pego pela polícia. Em poucas palavras, a sensação de impunidade favorece o crime. Isto, que é óbvio e empiricamente verificável, quase não se encontra no discurso público oficial — e, ao contrário, não falta quem defenda que o «poder de punir do Estado» precisa urgentemente ser revisto porque, na verdade, ele existe para garantir «a permanência de um projeto de exploração».

Atos que exigem responsabilização: toda ação humana tem consequências e todo ato mal realizado introduz no mundo uma desordem que cumpre ser reparada. Isso está no âmago da consciência moral de todo mundo; não é outra a razão pela qual a função retributiva da pena foi sempre universalmente aceita pela totalidade das civilizações, só passando a ser questionada em alguns estratos da sociedade decadente contemporânea — nada coincidentemente, uma sociedade que perdeu a própria noção de mal moral (a «negação do gato» de Chesterton erigida a senso comum). Sim, a pena de morte é uma leprosa; mas mesmo os que não querem nem ouvir falar dela sentem um certo incômodo diante da ideia de que não há nada que possa ser feito com um sujeito que, já preso, mata, esquarteja e eviscera seres humanos.

Mas tudo isso é somente a parte, digamos, externa da questão — aquela que diz respeito à proteção dos terceiros inocentes. Há que se falar também — e principalmente! — das questões envolvendo o indivíduo criminoso, tanto para evitar que ele delinqua quanto para a sua eventual redenção. A experiência de Vitória nos ensina que colocar a polícia nas ruas é uma forma eficaz de minimizar os saques e arrastões; no entanto, não seria melhor se as pessoas não fizessem o mal independente de haver ou não quem as castigue?

O mal é uma contingência permanente da liberdade humana e, como tal, não pode ser erradicado. Mas é possível e necessário consumir a nossa vida na luta contra ele. É preciso educar para a virtude — essa expressão que se encontra atualmente tão fora de moda. É preciso incutir nas pessoas a idéia de que existe no mundo uma ordem que as transcende. Um assaltante sabe que assaltar é errado e alguém que saqueia uma loja de eletrodomésticos não gostaria de ter a própria casa saqueada; por quê, então, ele saqueia?

Todo pecado é uma desordem no sentido de que é antepôr um bem menor a um bem maior. Um televisor é um bem, mas o fato de que este bem pertence ao seu dono legítimo (àquele que empregou tempo e dinheiro na sua produção ou aquisição) é um bem maior. O problema dos assaltantes não é que eles não entendam ou não reconheçam o direito de propriedade; o problema é que eles sacrificam o direito de propriedade alheio (o bem maior) à satisfação da própria vontade (o bem menor). Esta é a desordem essencial. Respeitar o direito alheio só é possível em detrimento da própria vontade, impondo-lhe limites, dizendo-lhe que ela não pode ter aqui, agora e sem mais o bem de que desejaria fruir já. Isto, na verdade, é o antiquíssimo exercício de mortificação da própria vontade proposto pela Igreja há vinte séculos e ao qual os poderosos há dois mil anos dão as costas.

Nietzsche chama isso pejorativamente de «moral de escravos»; mas não era preciso que o caos se instalasse em uma metrópole brasileira para que se percebesse que a satisfação universal das vontades particulares é impossível. É bastante evidente que se as pessoas forem condicionadas antes a satisfazer que a renunciar às próprias vontades a violência vai cedo ou tarde exsurgir. Nada surpreendentemente, a moral que o alemão desdenhava como «escrava» é a única possível em sociedade e, por isso mesmo, é a única que torna os homens livres. Fora dela o que existe é a barbárie e a lei do mais forte.

Há décadas a nossa sociedade ocidental vem publicamente rejeitando a moral cristã, e os resultados estão aí para quem quiser ver: demonstrados na teoria e verificados na prática. A mera repressão jurídica, policial, conquanto evidentemente necessária, fornecesse apenas um verniz de civilização: o verdadeiro problema é mais profundo. Vem lá do Éden! E para ele somente a Igreja tem solução. Franquear-Lhe publicamente o pastoreio das almas, assim, é o mais eficaz remédio para a paz e a prosperidade, quando todas as panacéias apresentadas pelos Seus detratores se mostraram catastróficas.