O pecado original e as tragédias sociais

O status naturalis hobbesiano em que atualmente se encontra o estado do Espírito Santo por conta da greve da PM (parece que já foram registradas 90 mortes violentas desde sábado), bem como as chacinas nos presídios que rebentaram no início do ano (por exemplo, com presos decapitados e eviscerados em Manaus) dão ensejo a algumas considerações.

Antes de tudo, é relevante registrar que as tragédias oferecem uma demonstração concreta, empírica, quase produzida em balão de ensaio, de um dos postulados mais básicos do Cristianismo: com o pecado original, a desordem foi introduzida na criação e o homem passou a sofrer uma como que inclinação natural para a prática do mal. Foi Chesterton quem disse que o pecado original era um dogma quase auto-evidente, podendo ser inferido do prosaico fato de (p. ex.) um homem esfolar um gato: diante da crueldade sem propósito ou se nega a existência de Deus (posição dos ateus) ou se afirma que existe, atualmente, uma separação entre Deus e o homem (visão de mundo cristã).

Ironicamente, o inglês acrescentava que os modernos materialistas haviam chegado a uma genial solução inovadora, negando o gato. Um século depois do Ortodoxia, os intelectuais contemporâneos — tributários daqueles contra os quais Chesterton levantou o seu gênio — chegam hoje à mesmíssima “brilhante” conclusão com cem anos de atraso.

Sobre a crise penitenciária, um ministro do STF chegou a sugerir, a sério, a legalização das drogas. A dar crédito ao ministro Barroso, então, bandidos de facções rivais só estão se matando dentro das penitenciárias porque a maconha é proibida no Brasil. “Dando certo” com a maconha — seja lá o que isso signifique –, o visionário ministro acha que se deve, também, legalizar a cocaína (!). Tudo, claro, para «quebrar o tráfico». Parece não ocorrer ao senhor ministro a hipótese de o tráfico continuar funcionando a despeito da legalização — como, mutatis mutandis, os cigarros ilegais movimentam bilhões de reais anualmente no país, mesmo não havendo notícia de que o tabaco tenha sido algum dia criminalizado. Igualmente não interessa a Luís Roberto Barroso o singelo fato de a cocaína não ser legalizada em lugar nenhum do mundo; a legislação estrangeira só brilha aos olhos do ministro quando é para introduzir o aborto por vias escusas no país.

No mesmo contexto, um artigo da Carta Capital enumera diversos problemas dos presídios capixabas; curiosamente, é o último artigo do «Justificando» sobre o Espírito Santo, escrito pouco antes da barbárie que tomou conta das ruas do final de semana para cá. Longe do portal pretensamente jurídico, a página inicial da revista ostenta uma chamada dizendo que a culpa da crise é do «ajuste fiscal» do governador pemedebista. Last but not least, o Sakamoto acredita que o problema só se pode resolver com a desmilitarização da polícia, a qual o articulista considera mero «instrumento de uma parcela da sociedade com um grupo de poder econômico para a qual os domínios fora de seu castelo são terra de ninguém».

É preciso muito sangue frio, reconheça-se, para usar o assassinato de noventa capixabas com o fito de atacar o governo do PMDB; do mesmo modo se exige uma dose particularmente refinada de psicopatia para achar que uma rebelião penitenciária (onde os presos estão literalmente arrancando as cabeças dos membros das facções rivais) é uma boa oportunidade para defender a legalização da cocaína. Sob a tagarelice da mídia fica assim diluída a responsabilidade individual, à qual ninguém parece dar grande importância; ao mesmo tempo, pontificando soluções mirabolantes, as pessoas fingem se esquecer de que existe, no âmago de qualquer «crise social», (i) indivíduos humanos que respondem a estímulos e (ii) cujos atos exigem responsabilização.

Indivíduos que respondem à estímulos: se o número de assaltos, saques e assassinatos aumenta precisamente quando se sabe que o policiamento ostensivo não está nas ruas, e sendo esta a única variável relevante sofrendo alteração considerável, é imperativa a conclusão de que fulano é menos propenso a assaltar, saquear ou assassinar quando sabe que corre risco maior de ser pego pela polícia. Em poucas palavras, a sensação de impunidade favorece o crime. Isto, que é óbvio e empiricamente verificável, quase não se encontra no discurso público oficial — e, ao contrário, não falta quem defenda que o «poder de punir do Estado» precisa urgentemente ser revisto porque, na verdade, ele existe para garantir «a permanência de um projeto de exploração».

Atos que exigem responsabilização: toda ação humana tem consequências e todo ato mal realizado introduz no mundo uma desordem que cumpre ser reparada. Isso está no âmago da consciência moral de todo mundo; não é outra a razão pela qual a função retributiva da pena foi sempre universalmente aceita pela totalidade das civilizações, só passando a ser questionada em alguns estratos da sociedade decadente contemporânea — nada coincidentemente, uma sociedade que perdeu a própria noção de mal moral (a «negação do gato» de Chesterton erigida a senso comum). Sim, a pena de morte é uma leprosa; mas mesmo os que não querem nem ouvir falar dela sentem um certo incômodo diante da ideia de que não há nada que possa ser feito com um sujeito que, já preso, mata, esquarteja e eviscera seres humanos.

Mas tudo isso é somente a parte, digamos, externa da questão — aquela que diz respeito à proteção dos terceiros inocentes. Há que se falar também — e principalmente! — das questões envolvendo o indivíduo criminoso, tanto para evitar que ele delinqua quanto para a sua eventual redenção. A experiência de Vitória nos ensina que colocar a polícia nas ruas é uma forma eficaz de minimizar os saques e arrastões; no entanto, não seria melhor se as pessoas não fizessem o mal independente de haver ou não quem as castigue?

O mal é uma contingência permanente da liberdade humana e, como tal, não pode ser erradicado. Mas é possível e necessário consumir a nossa vida na luta contra ele. É preciso educar para a virtude — essa expressão que se encontra atualmente tão fora de moda. É preciso incutir nas pessoas a idéia de que existe no mundo uma ordem que as transcende. Um assaltante sabe que assaltar é errado e alguém que saqueia uma loja de eletrodomésticos não gostaria de ter a própria casa saqueada; por quê, então, ele saqueia?

Todo pecado é uma desordem no sentido de que é antepôr um bem menor a um bem maior. Um televisor é um bem, mas o fato de que este bem pertence ao seu dono legítimo (àquele que empregou tempo e dinheiro na sua produção ou aquisição) é um bem maior. O problema dos assaltantes não é que eles não entendam ou não reconheçam o direito de propriedade; o problema é que eles sacrificam o direito de propriedade alheio (o bem maior) à satisfação da própria vontade (o bem menor). Esta é a desordem essencial. Respeitar o direito alheio só é possível em detrimento da própria vontade, impondo-lhe limites, dizendo-lhe que ela não pode ter aqui, agora e sem mais o bem de que desejaria fruir já. Isto, na verdade, é o antiquíssimo exercício de mortificação da própria vontade proposto pela Igreja há vinte séculos e ao qual os poderosos há dois mil anos dão as costas.

Nietzsche chama isso pejorativamente de «moral de escravos»; mas não era preciso que o caos se instalasse em uma metrópole brasileira para que se percebesse que a satisfação universal das vontades particulares é impossível. É bastante evidente que se as pessoas forem condicionadas antes a satisfazer que a renunciar às próprias vontades a violência vai cedo ou tarde exsurgir. Nada surpreendentemente, a moral que o alemão desdenhava como «escrava» é a única possível em sociedade e, por isso mesmo, é a única que torna os homens livres. Fora dela o que existe é a barbárie e a lei do mais forte.

Há décadas a nossa sociedade ocidental vem publicamente rejeitando a moral cristã, e os resultados estão aí para quem quiser ver: demonstrados na teoria e verificados na prática. A mera repressão jurídica, policial, conquanto evidentemente necessária, fornecesse apenas um verniz de civilização: o verdadeiro problema é mais profundo. Vem lá do Éden! E para ele somente a Igreja tem solução. Franquear-Lhe publicamente o pastoreio das almas, assim, é o mais eficaz remédio para a paz e a prosperidade, quando todas as panacéias apresentadas pelos Seus detratores se mostraram catastróficas.

A «ajuda dos Sacramentos» é para o quê?

Em novembro do ano passado eu comentei aqui sobre as dubia enviadas por alguns cardeais ao Papa Francisco a respeito de algumas interpretações da exortação Amoris Laetitia. Já então eu disse achar ter sido a divulgação bastante oportuna, uma vez que poderia ensejar um «debate franco, aberto e desapaixonado a respeito dessas questões». Estava e ainda estou convencido de que disso não pode advir senão o bem de toda a Igreja, uma vez que o Cristianismo é a religião do Logos de Deus — cuja doutrina é, portanto, racional e racionalizável, adequada ao homem. A polêmica é uma coisa boa porque fortalece as posições, sedimenta os entendimentos e dissipa as dúvidas; a própria Igreja é intrinsecamente polemista, e o único caso em que agora me recordo de ter a Igreja intervindo para silenciar uma polêmica foi na discussão entre jesuítas e dominicanos a respeito da predestinação — e isso só porque, à época, tal debate havia perdido as fundamentais características de «franco, aberto e desapaixonado».

Pouco tempo depois do lançamento da Amoris Laetitia, ainda em maio, discutindo sobre o assunto no espaço de comentários do blog, eu escrevi aqui o seguinte:

i. não é somente a loucura ou a ignorância material que são capazes de mitigar a responsabilidade pessoal dos atos humanos, mas qualquer circunstância capaz de tornar «o juízo prático obscurecido e a vontade enfraquecida» (DEL GRECO);

ii. a AL não trata de abrir sacramentos a adúlteros ou concubinários, mas sim de discernir as situações em que, «[p]or causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes» (AL 305) — e jamais sem eles –, haja a possibilidade de alguém se encontrar em uma situação de pecado objetiva sem culpa grave correspondente;

iii. não há nenhuma orientação específica da AL para estes casos; no entanto, o que quer que se vá fazer, deve ser feito sempre «evitando toda a ocasião de escândalo» (AL 299) e sem «nunca se pensar que se pretende diminuir as exigências do Evangelho» (AL 301).

De lá para cá muita água rolou por debaixo da ponte. Por exemplo, além da publicação das (agora famosas) dubia, eu tive a sorte de conhecer e ler o livro do pe. Iraburu (Comentarios sobre la Amoris Laetitia), o que me deu a oportunidade de burilar alguns pensamentos e precisar alguns conceitos. Entre outras coisas, agora me parece claro — mais claro do que então — que o primeiro dever da Igreja, diante de uma eventual circunstância atenuante (como por exemplo a ignorância axiológica, ou o condicionalismo social), é e não pode nunca deixar de ser o de libertar o pecador (ainda que só materialmente pecador) de sua limitação. Em outras palavras, não é possível institucionalizar uma pastoral da condescendência, que distribui sacramentos mantendo no entanto prostrados na lama os filhos de Deus chamados à perfeição.

Porque não pode haver a menor possibilidade de dúvida de que um divorciado recasado, ainda na hipótese de que o seu matrimônio seja sacramentalmente nulo, está prostrado na lama. Ainda que ele talvez possa, ontologicamente falando, não ser adúltero (no caso em que o seu primeiro matrimônio seja de fato nulo), torna-se ao menos fornicador na medida em que não é possível aos cristãos batizados casarem-se (= produzirem o vínculo sacramental fora do qual é defeso todo consórcio sexual) fora das condições que a Igreja estabelece para o Sacramento. Uma eventual inimputabilidade subjetiva não elide a natureza objetiva do ato praticado: este, em quaisquer hipóteses, é intrinsecamente desordenado e clama por sua reordenação.

A Amoris Laetitia, em sua famigerada nota 351, fala que há «casos» de pessoas vivendo em uma situação objetiva de pecado em que «poderia haver também a ajuda dos sacramentos». Tem-se gastado muito latim para perguntar quais seriam exatamente estes casos. No entanto, penso que se tem esquecido uma outra pergunta, muito mais fundamental, que exsurge imediatamente da leitura da nota de rodapé: é possível haver «a ajuda dos sacramentos» para quê?

Só pode ser para que a pessoa possa «crescer na vida de graça e de caridade» (AL 305), que é o período ao final do qual está posta a nota que fala da ajuda dos sacramentos. E crescer na graça santificante exige necessariamente, no limite, a superação daqueles «condicionalismos» ou «factores atenuantes» que podem tornar em certa medida inimputável alguém que viva em uma situação de pecado objetiva. Em outras palavras, a «ajuda dos sacramentos» em última instância é e não pode jamais deixar de ser para que a pessoa abandone a situação objetiva de pecado. Achar diferente disso é amesquinhar a graça de Deus.

O silogismo é bastante simples. Todos são chamados à perfeição; uma «união irregular» — concubinária ou adulterina — é evidentemente imperfeita; logo, ninguém é chamado a uma reunião irregular. Não é portanto possível estabelecer uma analogia entre a «união irregular» e o Sagrado Matrimônio: este necessariamente tende a se perpetuar e fortalecer aperfeiçoando-se cada vez mais, enquanto aquela, por sua própria natureza, exige a própria destruição. Outra leitura não é possível do parágrafo 303: mesmo nos casos em que alguém acredite em consciência estar realizando a vontade de Deus no pecado, ainda assim «deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa». E é para essa realização do ideal de forma mais completa que a Igreja deve sempre ajudar o fiel; sempre que não o faz está traindo a própria missão.

Notícias recentes nos dão conta de que os bispos alemães autorizaram fiéis divorciados a receberem os sacramentos; a notícia solta, assim, na mídia secular, não nos permite submeter as normas germânicas ao crivo que expúnhamos nas linhas acima. Parece, no entanto, que infelizmente a «pastoral» alemã é outra daquelas que conduz as almas ao Inferno, institucionalizando a condescendência e confirmando na imundície do pecado filhos de Deus chamados à santidade: também recentemente o prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, o Card. Müller, deu uma entrevista deplorando exatamente «que muchos obispos estén interpretando “Amoris laetitia” según su propio modo de entender la enseñanza del Papa». Não parece despropositado imaginar que o cardeal alemão esteja justamente respondendo aos seus conterrâneos.

Não faltou quem enxergasse, na entrevista do cardeal Müller, uma resposta tácita às dubia de setembro passado. Resposta oportuna: sim, existem atos intrinsecamente desordenados que não se podem jamais justificar à força de consciências mal-formadas ou circunstâncias atenuantes. Sim, os ensinamentos da Familiaris Consortio permanecem válidos e devem ser observados. Não, as interpretações confusas que existem no orbe católico não são provocadas pela Amoris Laetitia, senão pelos intérpretes confusos dela. Todas essas coisas precisam ser ditas com honestidade e clareza: porque é a céu aberto e a plenos pulmões que cumpre dissipar os equívocos urdidos a portas fechadas e disseminados por sussurros erráticos.

A maior “inconveniência” é o próprio Evangelho

Um leitor me perguntou aqui sobre uns documentos do início da Era Cristã que supostamente trariam informações “revolucionárias” sobre o Cristianismo. De antemão e antes de qualquer análise sobre o conteúdo específico dessa notícia, não tenho medo de já adiantar que ela não merece crédito.

Isso porque o Cristianismo tem um acentuado caráter público que, ao longo da história, sempre lhe valeu os maiores problemas. Fosse a mensagem cristã um conhecimento esotérico restrito somente aos iniciados, a Igreja não precisaria ter sempre se indisposto tanto com os poderes do mundo. Aqui, a imagem do antigo Pantheon romano sempre foi muito significativa: lá sempre couberam todos os deuses do mundo, mas os cristãos jamais aceitaram colocar a Cristo ao lado dos outros ídolos pagãos.

Não se tratou somente de exclusivismo; quero dizer, o conflito não surgiu somente do fato de Cristo pretender-Se o único Deus. Esta é uma pretensão clássica do judaísmo: afinal de contas, os judeus já cantavam o Sh’ma Yisrael quando Rômulo e Remo ainda cheiravam a leite de loba. O problema maior é o caráter público da Revelação cristã: Cristo não apenas é o único Deus como essa doutrina precisa ser ensinada a todos os povos da terra, passando por cima das antigas tradições e reduzindo a cacos os ídolos dos povos pagãos.

Os cristãos sempre levaram muito a sério aquela história de anunciar o Evangelho de cima dos telhados — e foi isso e não outra coisa o que sempre lhes valeu as maiores perseguições. O Cristianismo nunca foi uma questão de foro íntimo, mas ao contrário: sempre foi uma religião que exigiu cidadania e, exigindo-a, entrou em rota de colisão com os poderes constituídos de todos os impérios da terra. Nunca foi suficiente acreditar que Cristo é o Senhor; os cristãos sempre precisaram dizê-lo em público, e esse hábito — humanamente falando — sempre lhes rendeu os maiores dissabores. A paz que havia dentro do Pantheon foi quebrada quando os cristãos condicionaram a salvação de todos os homens ao sacrifício da Cruz somente. À parte ser verdade, é forçoso reconhecer que se trata de uma mensagem bastante desagradável de se ouvir — principalmente para quem não é cristão.

Ora, diante de tudo isso, a idéia de um “complô” eclesiástico para esconder as “verdades inconvenientes” do Cristianismo não goza de nenhuma verossimilhança. A maior “inconveniência” é o próprio Evangelho — é essa história de dizer que é preciso arrepender-se dos próprios pecados, amar os inimigos, desprezar os prazeres da terra, abandonar os ídolos e adorar a Deus somente. As coisas mais inconvenientes são justamente as exigências do Novo Testamento tais e quais nos chegaram: basta ver como até hoje o mundo não suporta a mensagem cristã. Sendo as coisas assim como são, se fosse para esconder uma doutrina inconveniente melhor negócio fariam os cristãos primitivos em proscrever os Quatro Evangelistas e divulgar o Evangelho de Tomé!

Se os primeiros cristãos quisessem esconder a mensagem de Cristo, o crível é que apenas o fariam na própria conveniência — ou seja, é de se esperar que, se alguém vai cometer alguma falsidade, fá-lo-á somente para obter para si algum benefício. Mas, ora, os primeiros cristãos não foram beneficiados com o anúncio do Evangelho, muito pelo contrário. Não ganharam honrarias nem riquezas, não obtiveram poder e nem tranquilidade: foram perseguidos e caluniados, torturados e mortos. Ninguém inventa uma história para perder tudo o que tem e sofrer uma morte horrível. Nem se diga que a perseguição foi um resultado imprevisto e indesejado: primeiro porque era evidente que aquela história de «obedecer antes a Deus que aos homens» iria desagradar os poderosos da terra, e segundo porque certamente os fautores da lenda confessariam a própria mentira quando começassem a ser perseguidos. Ninguém sustenta uma mentira às custas da própria vida.

O fato é que os primitivos cristãos teriam sofrido muito menos se adotassem o discurso encontrado nos evangelhos gnósticos — e que fazem tanto sucesso na espiritualidade New Age contemporânea. Não há nada de «revolucionário» naquelas mensagens grosseiras que apenas acentuam o dualismo do mundo, o descompromisso com a vida pública, o subjetivismo individualista. Vou mais além e digo até que nunca se poderá, jamais, encontrar nada mais revolucionário, porque o homem não seria nunca capaz de criar uma mensagem mais perturbadora do que Aquela que o próprio Deus fez ressoar no mundo. Os códices antigos, com suas doutrinas primitivas, só servem para enobrecer os Evangelhos por comparação.

Os cristãos são os portadores de uma mensagem inovadora — da mais inovadora mensagem que já foi anunciada no mundo, e à qual as velharias descobertas em cavernas esquecidas pelo tempo não poderão jamais fazer frente. Nós somos os herdeiros da Boa-Nova que não coube no Pantheon e, justamente por isso!, ganhou o mundo. Não nos impressionemos com os paganismos grosseiros sobre os quais a Igreja há muitos séculos já triunfou.

Pode-se deixar de lado a verdade histórica?

O texto-base da Semana de Oração para a Unidade dos Cristãos deste ano provocou estranheza ao dizer, entre outras coisas, que Martinho Lutero — o reformador protestante — seria uma «testemunha do Evangelho». Literalmente, o documento fala logo no início:

Deixando à parte o que é polêmico, nas visões teológicas da Reforma, católicos agora são capazes de ouvir o desafio de Lutero para a Igreja de hoje, reconhecendo-o como uma “testemunha do evangelho” (Do Conflito à Comunhão 29).

Infelizmente, a referida «semana de oração» presta-se muitas vezes ao mesmo papel que, no Brasil, a CNBB desempenha com a sua Campanha da Fraternidade: obscurecer a mensagem do Evangelho com um discurso anódino cujo objetivo maior é quase sempre afirmar lugares-comuns. Porque, ora, «deixando à parte o que é polêmico» pode-se afirmar qualquer coisa, é lógico. Afinal de contas, sempre e por definição, tirando tudo o que está ruim tudo está sempre muito bem e não há como ser diferente. À parte tudo o que tem de errado a Reforma Protestante só tem coisas corretas, e o mesmo se pode dizer de absolutamente qualquer coisa na face da terra.

O problema é que «deixando à parte o que é polêmico» nós estaremos deixando de lado o próprio protestantismo, exatamente naquilo que o faz ser o que é, no que o distingue do Catolicismo. Deixando de lado o fato de que Lutero, falsificando o Evangelho, levou milhões de almas à perdição nos séculos seguintes, então se pode dizer, é claro, que ele tenha sido «testemunha» da mensagem cristã. Mas a pergunta que interessa aqui é: pode-se deixar de lado, desse jeito, a verdade histórica?

Porque quando a comissão conjunta atribui a Lutero o pomposo “título” de «witness to the Gospel» o que ela está fazendo é exatamente isto: valorizando as (supostas) intenções do monge atormentado e desculpando-lhe as atrocidades pelas quais ele passou à história. É rigorosamente o que se diz no «Do conflito à comunhão» (p. 22):

29. Aproximações implícitas com as preocupações de Lutero levaram a uma nova avaliação de sua catolicidade que teve lugar no contexto do reconhecimento de que sua intenção era reformar, não dividir a Igreja. Isso é evidente nos posicionamentos do Cardeal Johannes Willebrands e do Papa João Paulo II. A redescoberta dessas duas características centrais [de que não queria dividir e que queria reformar] de sua pessoa e teologia levaram a uma nova compreensão ecumênica de Lutero como “testemunha do Evangelho”.

Ou seja, pode-se chamar o velho alemão de «testemunha do Evangelho» porque, na verdade, a «sua intenção era reformar, não dividir a Igreja». Parece importar pouco que, historicamente, ele tenha dividido a Igreja ao invés de A reformar; a aproximação dita ecumênica autoriza ignorar os fatos para se ater às motivações ocultas. Ora, o problema é que desse jeito se pode justificar quase qualquer coisa! Deve ser muito pequeno o número de indivíduos no curso da história que não tinham, ao menos em alguma medida, intenções boas (e então, pra ficar só em um exemplo, a intenção de Fidel Castro provavelmente era libertar, e não escravizar o povo cubano); o ponto é que não é isso o que importa, e sim o resultado exterior, observável, das ações das personalidades históricas. A ignorância de Lutero, ou a sua demência, ou sua possessão demoníaca ou qualquer outra coisa do tipo, pode até lhe ter mitigado a responsabilidade pelos gravíssimos pecados que cometeu; mas não tem, no entanto, e nem pode ter, o condão de, externamente, transmutá-lo em defensor Fidei!

A investigação psicológica das motivações íntimas — essa espécie de história da vida privada — tem decerto relevância na medida em que o conhecimento verdadeiro é em si mesmo bom; mas é um claro equívoco utilizá-lo para lançar um manto de esquecimento sobre a tradicional história da vida pública, externa e factualmente observável. Não é sem razão que a sabedoria popular diz que de boas intenções o inferno está cheio. Lutero pode ter tido as melhores intenções do mundo: o fato objetivo e incontrastável, no entanto, é que causou um dano terrível à Cristandade, tendo precipitado ao inferno as almas — multidões de almas! — que deram mais ouvidos às suas sandices do que às palavras de Vida Eterna ecoadas pelo Vigário de Cristo.

Pesadas todas as coisas, sem deixar «à parte o que é polêmico», é evidente que a verdadeira testemunha do Evangelho, no contexto da Reforma Protestante, foi Leão X e não Lutero. O silêncio sobre isso corre o sério risco de se tornar uma inverdade histórica por omissão. É preciso haver reconciliação entre os cristãos, sim, porque é preciso que o filho pródigo retorne; mas qualquer reconciliação somente é possível na verdade e não no auto-engano — e simplesmente não tem lá muito sentido dizer que, deixando à parte o fato de se tratar de comida estragada, a lavagem dos porcos foi o alimento que deu ao irmão mais novo o vigor necessário para empreender o retorno à casa paterna.

Nam oportet et hereses esse ut et qui probati sunt manifesti fiant in vobis (ICor XI, 19): importa que haja heresias, para que se manifestem os que são probos. Esta passagem de São Paulo aplica-se também aqui. Lutero só é «testemunha do Evangelho» no sentido em que o erro é testemunha da verdade: por oposição. Aliás, é até curioso que a comissão luterana tenha subscrito aquele texto: de acordo com ele, só é possível reconhecer o testemunho evangélico de Lutero na exata medida em que a sua obra pública contradiz a presumida nobreza de suas intenções privadas.

O que importa é a luta pela santidade

Após a divulgação da última pesquisa Datafolha que anunciou uma nova redução do número de católicos no Brasil — hoje somos apenas 50% dos brasileiros –, a Folha de São Paulo noticiou que a CNBB comentou os dados dizendo que a «[l]uta por justiça é mais relevante que porcentagem de católicos». O aparente absurdo da declaração deixou a muitos perplexos. Olhemos, no entanto, a questão com um pouco mais de cuidado.

Em primeiro lugar, cabe um registro do nosso já antológico mau jornalismo. O primeiro parágrafo da reportagem diz o seguinte:

Mais importante que a porcentagem de católicos no Brasil é “quantas pessoas realmente buscam justiça e vivem o amor até as últimas consequências”, diz o secretário-geral da CNBB (conferência dos bispos brasileiros), dom Leonardo Ulrich Steiner, bispo auxiliar de Brasília.

Aqui já não se fala na «luta» estampada na manchete, embora o sentido ainda seja o mesmo. No entanto, olhando a íntegra da entrevista que a própria matéria disponibiliza mais abaixo, não se encontra a frase entre aspas que abre a reportagem!

O que tem de mais parecido na entrevista de D. Leonardo é o seguinte:

Desse modo, a resposta para a declaração de pertença das pessoas à Igreja ganha um significado mais espiritual que estatístico. Falta-nos, a todos, mais disposição para a conversão de vida e adesão ao cerne da mensagem cristã que é formado pela busca intransigente da justiça e da vivência do amor até as últimas consequências.

Ao que parece, para a sra. Ana Estela de Sousa Pinto (que assina a reportagem), as aspas não significam mais uma citação literal. Aparentemente, no seu estilo jornalístico, o texto que vem entre estes conhecidos sinais gráficos tanto pode significar algo reproduzido literalmente, palavra a palavra, como pode ser qualquer coisa que o jornalista ache que foi dito por alguém. E o pior é que, aqui, o próprio sentido da declaração episcopal foi distorcido: não se trata apenas da mesma coisa dita com palavras diferentes (o que, empregado entre aspas, já seria um absurdo), mas de duas declarações completamente distintas. Porque uma coisa é a «luta por justiça» ser mais importante que o número de católicos, e outra coisa é a constatação de que falta, a todos, uma maior «adesão ao cerne da mensagem cristã»!

Quem passa os olhos pela manchete, ou mesmo quem lê apenas os primeiros parágrafos, fica com a impressão de que a CNBB faz pouco caso da apostasia de milhões de fiéis, trata-a com indiferença, julga que ela não importa; quando na verdade o que se lê na entrevista é um lamento e um pesar pelos tristes números que os anticlericais divulgaram na noite de Natal. Não há o tom de menosprezo que abre a matéria. Este escândalo, portanto, por uma questão de justiça, não seja colocado nas já sobrecarregadas costas de D. Leonardo Steiner. O desdém da instituição não está na pena do seu secretário-geral, mas sim na redação defeituosa da sra. Ana Estela.

Em segundo lugar, é preciso dizer que o número absolutamente não surpreende. Não é verdade que o Brasil seja um país de maioria católica; há muito dizemos que pode até ser grande o número de batizados, mas não o de católicos. Porque “católico não-praticante” é uma contradição em termos, uma vez que a Fé ou bem é vivida, ou não é crida simplesmente. Isso é muito fácil de explicar. Entre diversas outras coisas, a Fé Católica manda que se vá à Missa aos domingos e dias santos. Se a pessoa de ordinário não vai à Missa, então é porque ela não acredita que precise ir à Missa aos domingos e dias santos — não crê na Fé Católica portanto. Uma outra pesquisa feita em 2013 dava conta de que apenas 28% dos que se diziam católicos –ou seja, 16% da população — iam à Missa uma vez na semana. Ora, isso — a prática religiosa semanal — é absolutamente o mínimo! Com menos do que isso não dá para ser adepto do Catolicismo. O número real de católicos brasileiros, assim, deve estar perto de uns 14% da população — o que está bem longe dos 50% que a última pesquisa tão generosamente nos concede.

A vastidão da impiedade sem dúvidas nos entristece; é verdadeiramente de se pasmar que quatro em cada cinco dos nossos conterrâneos estejam privados da graça dos sacramentos sem a qual não é possível obter o perdão dos pecados e a amizade com Deus. É preciso rezar, e rezar muito!, como o Anjo ensinou em Fátima, pedindo perdão pelos que não amam a Nosso Senhor. É preciso fazer apostolado vigoroso e incansável; não nos é permitido ficar indiferentes diante desta multidão de almas se perdendo à falta dos remédios espirituais mais básicos, e que estão aí, ao alcance de uma caminhada, distribuídos em profusão nas igrejas que os nossos antepassados espalharam Brasil afora. Deus pediu a Caim contas do seu irmão (cf. Gn IV, 9); também nós seremos cobrados, e n’Aquele Dia não Lhe poderemos responder que não somos custodiantes das almas que aprouve a Ele colocar em nosso caminho.

Mas há um terceiro aspecto a ser mencionado. É que, talvez por um ato falho, quiçá pela primeira vez em muitos anos, a resposta da Conferência dos Bispos à apostasia católica é surpreendentemente adequada. Dom Steiner — eu vivi para ver isso! — disse que a Igreja «cuida do anúncio dos valores do Evangelho» e «sua missão central (…) é anunciar integralmente o Evangelho de Cristo».

Sim, a Missão da Igreja é levar a toda criatura humana — a todos os confins da terra — o Evangelho de Cristo, a Boa-Nova da Salvação, em toda a sua integridade: sem nada lhe acrescentar ou suprimir. Como a CNBB é conhecida por há décadas desfigurar a mensagem de Nosso Senhor (cabendo-lhe, em perturbadora parcela, a responsabilidade pelo êxodo de católicos que a Igreja no Brasil vem sofrendo ano após ano), é um alento ver no secretário-geral da CNBB, justo nele!, essa preocupação (ao menos diante da imprensa) com a integralidade do anúncio do Evangelho. Se isso, apenas isso!, fosse feito com os devidos zelo e dedicação, assistiríamos muito em breve a um maravilhoso reflorescimento da Igreja Católica na Terra de Santa Cruz.

A despeito das conotações políticas que a palavra tem no discurso público contemporâneo, «Justiça» é uma palavra muito cara à teologia bíblica e significa santidade. Neste sentido, a frase falsamente atribuída a D. Steiner seria profundamente católica e verdadeira, profética até: para além das pesquisas demográficas, o que importa é a luta pela santidade! Fazendo isso, somente isso!, Deus saberia abençoar o plantio e prover uma colheita generosa. Afinal, não foi o próprio Cristo quem disse que deveríamos buscar primeiro o Reino de Deus e a Sua Justiça, que tudo o mais nos seria dado por acréscimo (cf. Mt VI, 9)? Ouçamos as palavras d’Ele, inadvertidamente ecoadas na manchete adulterada de uma má jornalista. Saibamos lutar, com denodo e galhardia, pela justiça de Deus! Pois com isso teremos a certeza de que omnia adicientur nobis.

Isso é impossível para a natureza humana

Recentemente um amigo me perguntou se a Virgindade Perpétua de Nossa Senhora, na formulação do dogma católico, dizia respeito apenas à pureza da Virgem Maria ou se englobava, também, aspectos físicos e corpóreos. O tema é propício para esta Oitava de Natal em que nos encontramos.

Não há dúvida de que o dogma diz respeito à integridade física de Nossa Senhora. Neste sentido, Ott: «a virgindade de Maria compreende a virginitas mentis, isto é, a virgindade perpétua de seu espírito; a virginitas sensus, quer dizer, a imunidade de todo movimento desordenado do apetite sexual; e a virginitas corporis, ou seja, a integridade corporal. O dogma católico se refere antes de tudo à integridade corporal» (Manual de Teologia Dogmática, Livro Terceiro, Parte Terceira, Capítulo Segundo, §5).

E não podia ser diferente. Ora, a formulação clássica do dogma diz “Virgem antes, durante e depois do parto”; e se a virgindade fosse aqui mera ausência de relações sexuais, a expressão “virgem durante o parto” não faria nenhum sentido.

De Cristo diz-se que não somente a concepção foi milagrosa, mas também que o Seu próprio parto foi miraculoso. Ora, o milagre aqui é, justamente, que Cristo saia das entranhas da Sua Mãe Santíssima sem Lhe corromper minimamente o corpo. A imagem clássica, que mais uma vez nos ajuda aqui, é a da luz atravessando o vitral mantendo-o intacto: Passa o sol pela vidraça, / já passou, sem tocar nela; / assim foi a Virgem Pura, / levou Luz, ficou donzela. Sim, isto é um milagre possível somente a Deus. Por que deveria nos surpreender? Acaso a Noite em que o Verbo respirou pela primeira vez poderia transcorrer sem um portento desta magnitude? Ou o nascimento do Deus-Menino deveria passar em tudo igual ao dos homens, sem nenhum distintivo da Sua divindade?

Alguém poderia questionar o silêncio de São Jerônimo sobre isso no seu conhecido Tratado da Virgindade Perpétua. Helvídio, seu contendedor, dá o perfeito ensejo: «[s]e julgam que há alguma desgraça nisto [= em uma virgem unindo-se a seu esposo legítimo], não deviam coerentemente acreditar que Deus nasceu da Virgem por parto normal» (Cap. 20). O polemista, aqui, não increpa o herege como seria de se esperar; não diz que o parto do Salvador foi miraculoso e não «normal». Ao contrário até: fala que Helvídio bem poderia acrescentar «as outras humilhações da natureza, o útero de nove meses se tornando cada vez maior, a doença, o parto, o sangue, os cueiros» (id. ibid.).

Não sei exatamente o que o padroeiro dos tradutores quis dizer nessa passagem. De qualquer forma, não se pode usar a aparente lacuna no raciocínio de São Jerônimo para inferir que o santo não acreditasse na virgindade da Mãe de Deus durante o parto, nem muito menos para sustentar que a crença no parto virginal fosse inexistente em fins do séc. IV. Até porque o Tratado de São Jerônimo contra Helvídio não é a primeira obra cristã sobre o tema: o testemunho mais antigo de que Maria Santíssima foi Virgem no parto — e que a virgindade diz respeito à integridade física — está nos capítulos XIX e XX do Proto-Evangelho de Tiago, escrito em torno do ano 140 da Era Cristã. Lá, em Belém, quando Cristo acabara de nascer, uma parteira diz a uma sua conhecida (provavelmente outra parteira):

– Preciso contar-lhe uma maravilha jamais vista: uma virgem deu à luz. Como sabes, isso é impossível para a natureza humana.

A outra, cética, redargue:

– Pelo Senhor, meu Deus, não acreditarei enquanto não puder tocar os meus dedos em sua natureza para examinar-lhe.

E Salomé pôs seu dedo na natureza [de Maria] e soltou um grande grito: “Ai de mim! Minha malícia e incredulidade são culpadas! Eis que minha mão foi carbonizada e desprendeu-se do meu corpo por tentar ao Deus vivo!” (Proto-Evangelho de Tiago)

Este testemunho desde então reverbera no mundo, e a Igreja outra coisa não faz que o ecoar.

Há alguns anos causou estupor a revelação de que o card. Müller, então recém-nomeado prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, escrevera certas linhas que pareciam ir de encontro ao dogma católico. A resposta dele foi imediata: interpretaram-no errado. Fez questão de imediatamente professar, junto com a Igreja, a Fé na «virgindade de Maria, Mãe de Jesus, Mãe de Deus, antes, durante e depois do nascimento de Cristo». Diz, portanto, respeito o dogma sim a questões físicas, empíricas, corpóreas — é um dogma sobre um milagre, não meramente sobre as virtudes espirituais da Virgem Mãe de Deus.

Já várias vezes ouvi as pessoas perguntarem por que isso importa. Bom, em primeiríssimo lugar e antes de qualquer outra coisa, importa porque é verdade, porque aconteceu exatamente assim — e as coisas factuais, que aconteceram de determinada maneira, não precisam de um “sentido prático” para serem acreditadas.

Depois, importa porque o corpo humano importa. Somos, os seres humanos, uma unidade substancial de corpo e alma; o nosso corpo não é algo externo a nós mesmos, como se fosse uma máquina que pilotamos. Nós somos o nosso corpo. Ora, danificar o nosso corpo — de qualquer maneira que seja — é causar um dano a nós. Por isso não convinha, de nenhuma maneira, que o Salvador, no ato mesmo de vir ao mundo, causasse alguma espécie de dano Àquela que O deu à luz.

Ainda: importa porque é um milagre, porque é um daqueles sinais distintivos de Deus dos quais a história da Salvação está repleta. Por que importa que Lázaro tenha ressuscitado, que Bartimeu tenha passado a enxergar, que um paralítico tenha saído de uma casa carregando a sua liteira debaixo do braço? São sinais que marcam a passagem de Deus pela terra: é da natureza de Deus fazer milagres. Se os milagres sempre acompanharam a vida de Cristo como um séquito obsequioso, como esperar que eles estivessem ausentes justo na noite do Natal, justo na Gruta de Belém, justo no momento em que Deus nascia por nós?

Importa, por fim, porque é uma reafirmação da importância dos sinais exteriores na vida humana. É claro que a virtude é a pureza e não a integridade física. Mas a integridade corpórea está para a virgindade assim como, por exemplo, beijar um crucifixo está para a meditação da Paixão: é um sinal sensível de uma realidade interior. A Religião Verdadeira não é meramente interior, invisível, espiritual: a nossa religião é a do Verbo Encarnado e, portanto, a nossa prática religiosa é igualmente um exercício exterior. Aprouve a Deus fazer com que, na Virgem Santíssima, as virtudes interiores tivessem inequívoca expressão corporal: assim o nosso agir deve estar em conformidade com a nossa Fé, assim a nossa boca deve transbordar o que conservamos no coração, assim devemos nos mostrar ao mundo em coerência com o que afirmamos ser. Não apenas “interiormente”, mas com tudo o que somos, com a integridade do nosso ser.

Post partum, Virgo, inviolata permansistiDei Genetrix, intercede pro nobis. Que a Bem-Aventurada e sempre Virgem Maria seja em nosso favor, e nos alcance a pureza de mente e de corpo que agrada a Deus.

Desde então o mundo é diferente

“O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; sobre aqueles que habitavam uma região tenebrosa resplandeceu uma luz.” (Is IX, 1).

Na verdade, o mundo jamais esteve tão escuro quanto antes d’Aquela Noite hoje lembrada! Aquela Luz que resplandeceu nas trevas não foi um clarão passageiro, como um relâmpago após o qual a escuridão cresce ainda maior e mais ameaçadora; não. O Verbo feito Carne uniu-Se permanentemente à nossa humanidade, e o rosto da Igreja do Deus Vivo há de resplandecer até a consumação dos séculos a luz dos povos que é Cristo. Esta é a nossa Fé.

Sem dúvidas há noites escuras na história da humanidade. Mas, daquele 25 de dezembro para cá, toda escuridão é relativa e todas as trevas são residuais. A Encarnação mudou profundamente a tessitura da realidade: da mesma forma como o altar reservado ao culto da Igreja é sagrado, também adquire notas de sacralidade a própria natureza humana que Deus tomou para si, a terra onde Ele Se dignou descer. A realidade não é mais a mesma desde aquele Gloria in Excelsis em uma noite escura pela primeira vez entoado. A própria Criação até hoje ecoa a voz dos anjos — porque uma mente que se abre a uma nova idéia não torna jamais ao seu tamanho original e, com muito mais razão, o mundo que um dia acolheu o Eterno não pode mais voltar a ser como antes. Sim, o mundo é mais amplo desde que Deus aqui pisou, e todas as forças humanas reunidas não seriam jamais capazes de apagar os rastros que a passagem d’Ele deixou por esta terra. A despeito da fúria das forças infernais, o mundo nunca mais foi o mesmo.

Há noites escuras em nossas vidas — mas há o Natal! Há a lembrança imarcescível de que, um dia, em uma estábulo, em uma Manjedoura, Deus fez-Se Menino para a nossa salvação. E desde então o mundo é diferente. E, daquela Noite em diante, podem destruir um, dois ou três presépios, mas jamais conseguirão conter a força do nascimento do Verbo. Non praevalebunt.

Um Menino nos nasceu; alegremo-nos! Ele veio ao mundo em uma noite — não terá medo da escuridão de nossas almas. Enfrentou o desconforto e o frio — não estranhará, portanto, a dureza e a frieza do nosso coração. Veio para salvar os homens do pecado — e por isso não desistirá de nós, pecadores miseráveis, que há tantos natais protelamos a nossa conversão. Ele veio e sempre vem; que nós, quando menos à força da insistência!, saibamo-Lo acolher hoje em nossas vidas.

Um feliz e santo Natal a todos! Que a alegria contagiante dessa Noite possa alcançar cada vez almas sedentas de Deus; que, malgrado as árvores de Natal derrubadas, o Nascimento do Verbo possa lançar raízes cada vez mais profundas em cada vez mais corações. Que a Sagrada Família recém-completa possa abençoar-nos e proteger-nos a todos.

Se não acreditamos nisso é porque não cremos na justificação

É falsa a oposição — hoje tão disseminada — entre verdade e caridade, ou entre doutrina e pastoral, que no fim das contas não passa de uma reedição da falsa dicotomia entre Fé e obras. O problema já fora resolvido há muito tempo, pelo menos desde o Concílio de Trento; mas o enxame de satanases, demônios e lucíferes do qual o nosso século está particularmente infestado sempre consegue semear a confusão e, por vias tortuosas, lograr que a dúvida espraie suas sombras por sobre o campo outrora plenamente iluminado pelas luzes do sol da verdade. Seria frustrante se não fosse este o lavor cristão quotidiano: repisar a cabeça da velha serpente sempre ávida por se levantar, combater os mesmos combates já vencidos pelos nossos antepassados. É assim que aprouve a Deus que nos santifiquemos, no fim das contas: cada geração precisa exorcizar — de novo e mais uma vez — os mesmos demônios que, no passado, os que nos precederam já precipitaram no Inferno. Satanás quer sempre ganhar o mundo e, nesta intenção, não cessa jamais de fazer as suas investidas: mas são sempre as mesmas, com os mesmos erros e as mesmas tentações, sempre e sem jamais mudar. Somente Nosso Senhor é Aquele que faz novas todas as coisas (Ap 21, 5); o Demônio está condenado a sempre insistir nas mesmas velharias já mil vezes vencidas.

Mas voltemos à verdade e à caridade. Todo o problema está exposto e resolvido na seção VI do Concílio de Trento, de janeiro de 1547: «na justificação é infundido no homem por Jesus Cristo, a quem está unido, ao mesmo tempo, tudo isto: fé, esperança e caridade» E isso é assim porque nem «a fé nem une perfeitamente com Cristo, nem faz membro vivo de seu corpo, se não se lhe ajuntarem a esperança e a caridade».

Não existe portanto «verdade» demais, ou «doutrina» demais, ou «Fé» demais. Não existe nada disso porque uma «verdade» que não conduza à prática da caridade é antes um engodo que uma verdade, e uma «doutrina» que afaste a prática do Cristianismo é no fundo uma falsa doutrina, e uma «Fé» à qual não se lhe sigam as boas obras do homem regenerado não é Fé verdadeira. Não existem essas oposições e elas não podem existir simplesmente porque é um só e o mesmo Deus o autor de ambas, da verdade como da caridade, da Fé como das obras. Não existem essas oposições porque, em suma, como diz o Concílio, a justificação faz infundir no homem «ao mesmo tempo tudo isso: fé, esperança e caridade».

E se não acreditamos nisso é porque não cremos na justificação. E se nela não cremos — se achamos realmente que a verdade pode ser um empecilho à caridade, que a doutrina pode afastar da prática dos ensinamentos de Cristo, que a Fé pode elidir a prática das boas obras –, se não cremos na justificação, eu dizia, então católicos não somos, então não precisamos (e aliás não podemos) nos dizer cristãos. Se nós achamos a sério que a caridade pode ser estimulada em oposição à verdade, ou que a pastoral pode ser vivida sem o supedâneo da doutrina, ou que as boas obras podem ser praticadas prescindindo da Fé Católica e Apostólica, então nós não somos católicos e sim naturalistas que não têm Fé, não guardam a Doutrina e estão distantes da Verdade. Se achamos isso então a nossa caridade não é sobrenatural, a nossa pastoral não é cristã e as nossas obras não são meritórias. E se é assim, então ai de nós.

É evidente que há católicos que não praticam a caridade com todas as suas exigências; mas tal se dá justamente porque eles não estão suficientemente convencidos da verdade de que há um mandamento da caridade a cujo cumprimento os cristãos não se podem furtar. Salta aos olhos que as nossas paróquias apresentam muitas vezes abordagens pastorais inadequadas; isso, contudo, acontece precisamente porque lhes falta a Doutrina de que o Evangelho precisa ser anunciado a toda criatura. Ninguém nega que o mundo esteja carente de boas obras cristãs; isso no entanto só acontece porque a Fé Cristã não é acreditada e vivida em toda a sua radicalidade. Em resumo, há problemas pastorais, há falta de caridade e há escassez de boas obras, claro que os há: mas tudo isso é fruto precisamente da má Doutrina, da falta de Fé e do afastamento da Verdade.

Se cremos na justificação, sabemos que as obras são fruto da Fé Católica, que a caridade constrange mediante a Verdade que é Cristo, que o anúncio do Evangelho é ponto central da Doutrina Cristã. E se é assim não podemos jamais pretender fomentar a caridade escondendo a verdade, multiplicar as obras ocultando a Fé, viver o Cristianismo prescindindo da doutrina — tudo isso é engodo e ilusão. As nossas obras não frutificam como as dos primeiros cristãos porque a nossa Fé já não reluz como a deles; a Igreja não cresce mais como nos tempos áureos da Igreja porque a nossa Doutrina não é mais tão límpida como já foi no passado; e a caridade já não transforma o mundo como antigamente porque, hoje, a Verdade não detém o mesmo lugar de honra que lhe reservavam os que nos precederam. O problema não é excesso senão falta de Fé; não é insistência na Verdade mas sim descaso para com ela; não é Doutrina demais, senão Doutrina de menos!

É preciso, portanto, coroar a Verdade para que a caridade reine no mundo. É preciso aumentar a Fé do povo cristão para que as boas obras espalhem o doce odor de Cristo pelo mundo. E é preciso que a Doutrina seja conhecida e mantida em toda a sua integridade a fim de que a Igreja expanda o Reino de Cristo até os confins da terra. Qualquer estratégia diferente dessa é loucura e desvario; qualquer abordagem que não leve em consideração os liames íntimos entre o que se crê e o que se vive não levará senão ao fracasso do apostolado e ao descrédito do Cristianismo.

Para Barroso, aborto no primeiro trimestre não é crime

A decisão de ontem do STF — 1ª Turma afasta prisão preventiva de acusados da prática de aborto — padece de graves problemas éticos e jurídicos, diante dos quais o estupor nacional que ora acomete a população não pode chegar ao ponto de a deixar inerte. Há diversos problemas em curso no país, sem dúvidas, mas este aqui é de longe o de maior importância — e portanto é o que requer a nossa atenção imediata e o dispêndio dos nossos melhores esforços.

Trata-se de um Habeas Corpus (HC 124306) onde se pedia o relaxamento da prisão preventiva de alguns médicos que haviam sido presos, no Rio de Janeiro, por dirigirem uma clínica de aborto. A medida já havia sido liminarmente concedida mas, ontem, no julgamento definitivo, o ministro Barroso trouxe uma nova argumentação para afastar a prisão preventiva: o aborto no primeiro trimestre de gestação não seria crime e, portanto, não é possível aplicar a prisão preventiva porque ela tem como pré-requisito, como é óbvio, a «existência do crime» (CPP, caput do 312, in finis).

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A íntegra do voto do Barroso está aqui. A sua tese é a de que «é preciso conferir interpretação conforme a Constituição ao arts. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre», em cuja “demonstração” o ministro consome a paciência dos seus leitores ao longo de muitas laudas. Ora, os absurdos são patentes.

Em primeiro lugar, é evidente, à toda evidência, que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não considera o aborto um direito fundamental. Isso é bastante óbvio e exsurge imediatamente

a) quer da leitura do próprio texto da Carta Magna (onde o aborto não é mencionado),
b) quer do desenvolvimento histórico do direito brasileiro (para o qual o assassinato de crianças no ventre das suas mães sempre constou entre aqueles atos tão socialmente reprováveis a ponto de merecerem a censura do Direito Penal),
c) quer da realidade social brasileira, sempre majoritariamente contrária ao aborto (e que nem mesmo todo o lobby dos grupos sedizentes feministas e das ONGs financiadas a peso de ouro por organizações internacionais pró-aborto logrou modificar),
d) quer da legislação internacional sobre direitos humanos da qual o Brasil é signatário (v.g. a Convenção Americana de Direitos Humanos).

Enfim, a mais comezinha percepção da realidade dá notícia de que a Constituição não permite o aborto. Ora, dizer que, por força de dispositivo constitucional, o aborto no primeiro trimestre da gestação deve ser excluído do «âmbito de incidência» das normas penais que incriminam o aborto outra coisa não é que dizer que a Constituição consagra o direito ao aborto — o que é uma patente inverdade. Quando o Barroso diz isso, portanto, ele não está preocupado com a realidade objetiva do ordenamento jurídico brasileiro: ele simplesmente tem uma vontade e a quer fazer valer independente de qualquer coisa. Não se trata portanto de legítimo lavor jurídico, mas sim de impôr uma vontade particular sobre uma população que já deu todas as mostras possíveis de que taxativamente a rechaça. O que à evidência não é democrático.

E a farsa também se reveste de notas pouco republicanas quando se observa o seguinte: foram cinco os ministros que discutiram essa questão, sozinhos, sem fazer alarde, sem convocar a população, sem nada. Ora, são duzentos milhões de brasileiros, 513 deputados, 81 senadores… e o que vale é a opinião de cinco sujeitos que chegaram à Suprema Corte pelas vias escusas da indicação política? Se todas as tentativas de impôr o aborto ao Brasil mediante os procedimentos democráticos fracassaram, tal é porque a sociedade brasileira não o quer. Não se pode nem dizer que não haja consenso sobre o tema: não é verdade, há consenso, há um enorme e massivo consenso de que a legislação atual — com o aborto proibido, não sendo punido apenas em poucas situações excepcionais — é satisfatória. Isso é outra daquelas coisas que a realidade grita aos nossos ouvidos; mas o ministro Barroso não tem preocupações com a realidade democrática, pois o que ele quer é moldar um mundo de acordo com a sua vontade onipotente.

Reduzir o colegiado da discussão — trazendo-a para o âmbito restrito de cinco colegas de trabalho — quando o consenso obtido pelo âmbito mais amplo é contrário ao que se deseja é desonesto. É óbvio que é desonesto: se eu não consigo convencer abertamente as pessoas de que a minha posição é melhor, reunir-me os com meus amigos para decidir a questão a portas fechadas e depois impô-la a todos aqueles que eu não logrei convencer é um expediente censurável sob qualquer ótica que se o considere. Isso independe do mérito da questão: ainda que se tratasse não do assassinato horrendo de crianças mas da coisa mais justa do mundo, ainda assim, não seria aceitável, não seria honesto, democrático, republicano, não seria decente decidir a portas fechadas o contrário do que se vem consistentemente decidindo nos espaços democráticos de tomada de decisão. Isso não se pode admitir, não se pode aceitar, não se pode abaixar a cabeça e deixar por isso mesmo.

A argumentação do Barroso, como sempre, é repleta de engodos e circunlóquios capciosos: na verdade não existe um único argumento a favor do aborto que não se baseie, no fundo, em algum sofisma. O aborto viola “direitos fundamentais da mulher” (nn. 23-31)? Ora, em qualquer conflito de direitos fundamentais, é evidente que o direito à vida deve prevalecer sobre a “integridade psíquica”, ou a “autonomia” da mulher, ou qualquer outra coisa parecida — a idéia de que «o peso concreto do direito à vida do nascituro varia de acordo com o estágio de seu desenvolvimento na gestação» (n. 45) é simplesmente infame e abre, escancara as portas ao mais odioso utilitarismo. A humanidade já viu ordenamentos que sopesavam o direito à vida de acordo com suas características (com, por exemplo, a vida dos deficientes tendo um «peso concreto» menor frente a outros direitos), e isso não foi bom. A criminalização não protege o nascituro (nn. 35-39)? Ora, mas é evidente que protege — os números de abortos clandestinos (cuja exata dimensão ninguém conhece justamente por eles serem clandestinos) são sempre inflados pelos grupos pró-aborto, todo mundo sabe disso. É evidente que o número de abortos aumenta com a legalização, porque não tem lógica absolutamente nenhuma sustentar que uma mesma população, em igualdade de condições, possa hoje praticar menos um procedimento seguro e legal do que praticava, ontem, um inseguro e criminoso. Existem «diversos países desenvolvidos do mundo» (n. 41) onde o aborto é descriminalizado? Ora, e daí, somos agora capachos do Primeiro Mundo? O Brasil não é mais um país livre com uma população soberana capaz de se autodeterminar?

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Em suma: uma imposição autoritária, feita de maneira oblíqua e pouco democrática, mediante sofismas os mais grosseiros, em prejuízo da vida humana inocente e indefesa: eis o golpe que o Brasil sofreu ontem. Em um país sério seria de se esperar a imediata exoneração desses senhores: mas aqui eles zombam e escarnecem de nós, confiantes na impunidade que sua posição lhes acarreta. Quando Luís Roberto Barroso foi nomeado para o STF eu disse aqui que «mesmo na hipótese do Partido [dos Trabalhadores] deixar hoje a presidência do país, bastar-lhe-ia sentar e esperar a colheita maldita que inexoravelmente viria» — isso foi em 2013! Ontem a conta chegou e Barroso não fez mais que cumprir o papel anunciado, combinado e acordado. Vergonha para o país, castigo para nós.

A humanidade que resplandece em meio à dor

O terrível acidente aéreo que nessa madrugada vitimou a delegação da Chapecoense não cessou de nos desconcertar ao longo de todo o dia. É difícil fugir à impressão de que existe uma grande injustiça cósmica por trás do trágico acontecimento: são muitos os níveis de inconformação que existem aqui. Primeiro que toda morte é uma tragédia. Depois, a morte na juventude, quando se tem toda a vida pela frente, é ainda mais trágica e mais incômoda. Dentre todas as mortes trágicas, parece que as envolvendo acidentes aéreos nos perturbam sobremaneira: talvez porque elas muitas vezes se devam ao mais brutal acaso, ou talvez porque revelem a nossa impotência diante do inevitável. Mais ainda: nem todo acidente destrói uma instituição inteira! A morte de um ou dois jogadores seria, lógico, sempre uma tragédia; mas a morte de praticamente o time inteiro é uma catástrofe de dimensões tão grandes que nos deixa pasmos e perdidos. E há, por fim, o momento em que sobreveio o acidente: a Chapecoense vinha de uma campanha belíssima de esforço e determinação, havia heroicamente conquistado uma vaga na final da Copa Sul-Americana e se preparava para disputar o seu primeiro troféu internacional. Tudo isso junto nos comove e atinge de uma maneira particular: este acidente não é igual aos outros acidentes. Sim, pessoas morrem todos os dias e todas as vidas são infinitamente valiosas, é óbvio; mas é forçoso reconhecer que a comoção que a queda do vôo 2933 da LaMia nos provoca não é artificial ou fabricada, ao contrário: tem uma justa razão de ser.

As grandes tragédias não deixam nunca de proporcionar terreno fértil para toda sorte de irresignação: hoje não é diferente e hoje não há nada de diferente a se dizer. As mesmas reflexões que foram feitas aqui quando da queda do vôo 447 da Air France continuam valendo: a dor é parte indissociável da existência humana e o que Cristo prometeu à humanidade foi o consolo nos tormentos, não imunidade contra os males da terra. A Fé não implica em uma insensibilidade diante dos sofrimentos, mas ao contrário: aqueles que têm Fé os sentem em toda a sua intensidade, mas são capazes de os colocar na perspectiva da Cruz de Nosso Senhor. É isto o que ensina a Salvifici Doloris, é desse ponto central do Cristianismo que o mundo moderno padece tanta falta.

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Os pequenos heroísmos aparecem de maneira tão mais admirável quanto mais impiedosamente a dor se expande por pessoas que em princípio nem teriam muita proximidade com os envolvidos na tragédia. É edificante, por exemplo, ver Alan Ruschel — um dos poucos sobreviventes do acidente — dar entrada no hospital pedindo à equipe médica que tome cuidado com a sua aliança de casamento. Pode parecer uma preocupação extemporânea com um bem material, mas é exatamente o contrário: uma aliança não é nunca um bem material e sim uma realidade espiritual, e ela não vale senão na medida em que simboliza um compromisso de uma vida. O valor da aliança (como o de qualquer outro símbolo) não está no símbolo em si, senão naquilo que é simbolizado.

E é diante da morte que as coisas são colocadas em perspectiva e as mais importantes ressaltam com um fulgor todo próprio, não raro escondido sob a monotonia do quotidiano: olhar no fundo dos olhos da Morte e ser capaz de pensar na família é um exemplo que nos inspira, e bem faríamos em trazê-lo sempre diante dos olhos e em praticá-lo todos os dias — sem que nos seja necessário passar por tudo aquilo que passou o lateral da Chape. Se tem algo que aprendemos com as tragédias é que a vida é frágil e preciosa. Não sabemos até quando nos será concedido vivê-la; temos, portanto, o dever de fazer dela o melhor possível.

O futebol não tem a fama de ser a ocupação mais virtuosa do mundo: mas a imensa corrente de solidariedade à qual acorreram hoje os mais diversos times do mundo mostra que o ser humano é sempre o ser humano e, portanto, onde quer que ele esteja, ele consegue fazer refulgir aquela imagem de Deus que nem o Pecado Original foi capaz de apagar. Nada surpreendentemente, parece ser sempre possível encontrar virtude — mesmo que em lampejos — em tudo o que é propriamente humano: mesmo em meio às maiores contradições, o homem está condenado a arrastá-la sempre atrás de si. É a vitória da Criação sobre a Queda, ilustrada de maneira admirável de onde menos se esperaria.

Uma coisa em particular me chamou a atenção nessa história, e foi a declaração do técnico da Chapecoense após o último jogo, poucos dias atrás: “Se eu morresse amanhã, morreria feliz”. Caio Júnior estava provavelmente no ápice da sua carreira e demonstrava uma serenidade, uma placidez, uma tranquilidade no trabalho bem realizado que — mais uma vez — muito nos tem a ensinar. Se existe a santificação no exercício do próprio trabalho, penso que ela se reveste desse ânimo com o qual o treinador da Chape levou o seu time a Medellín. Oxalá cada um de nós pudéssemos cumprir assim as nossas obrigações.

Enfim, a morte é sempre uma tragédia, principalmente quando vem de surpresa — e rezar pelos que sofrem é obra de misericórdia cristã a que estamos sempre obrigados. Que a Virgem Santíssima possa interceder pelas vítimas do vôo 2933! Que Ela alcance a misericórdia de Deus para os que partiram; aos que ficaram, o consolo necessário para continuarem as suas vidas em meio a este Vale de Lágrimas. Com o melhor que tiverem. Até a Pátria Definitiva.