Os contraceptivos e a Zika

O grande Paulo VI, na sua conhecida encíclica Humanae Vitae, estabeleceu o seguinte ensinamento lapidar: “[é] de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” (HV 14). Não satisfeito, antevendo talvez as objeções que porventura lhe pudessem fazer, o Servo de Deus continua assim o seu arrazoado:

Não se podem invocar, como razões válidas, para a justificação dos atos conjugais tornados intencionalmente infecundos, o mal menor (…). Na verdade, se é lícito, algumas vezes, tolerar o mal menor para evitar um mal maior, ou para promover um bem superior, nunca é lícito, nem sequer por razões gravíssimas, fazer o mal, para que daí provenha o bem; isto é, ter como objeto de um ato positivo da vontade aquilo que é intrinsecamente desordenado e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo se for praticado com intenção de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares, ou sociais [id. ibid.].

Esta encíclica não diz diretamente que a contracepção é intrinsecamente má. Quem o faz é S. João Paulo II na Veritatis Splendor (n. 80). O que são atos intrinsecamente maus? São aqueles — ainda S. João Paulo II — que são maus “sempre e por si mesmos, ou seja, pelo próprio objecto, independentemente das posteriores intenções de quem age e das circunstâncias” (id. ibid.). Aliás, vale a pena a leitura dos parágrafos desta encíclica que falam sobre o tema: os nn. 79-83 e 95-97 ajudarão a conhecer com mais clareza a posição da Igreja sobre o assunto. Em suma, não é legítimo, “nem sequer por razões gravíssimas”, tornar um ato conjugal intencionalmente infecundo — independente das circunstâncias em que se encontre o agente (e.g. às voltas com um surto de uma moléstia incurável) e das intenções que ele porventura tenha (evitar que um filho nasça gravemente doente, v.g.).

[Existe, talvez, uma discussão teologicamente legítima que se pode fazer a respeito da posição católica contrária à contracepção: é a que indaga se o Magistério versa sobre todo e qualquer ato sexual, em qualquer contexto, ou se fala especificamente a respeito do ato conjugal entre esposos legitimamente casados. Pode-se encontrar aqui uma discussão a este respeito. A argumentação é pertinente porque, em se tratando da fornicação — da prática do ato sexual fora do casamento, entre solteiros — tão desgraçadamente comum nos dias de hoje, não é claro se o uso do preservativo agrava ou não o pecado (que, lembremo-nos, já é mortal). De qualquer maneira, não se discute (obviamente) se existe alguma situação em que o uso dos contraceptivos seja legítimo, mas sim se há alguma que o Magistério não abrangeu. São duas coisas completamente distintas, mas a questão tem a sua relevância prática, quando menos, para responder à acusação estapafúrdia de que a Igreja, condenando a camisinha, é responsável (v.g.) pelos altos índices de gravidez na adolescência. Tal é um completo nonsense (afinal, a Igreja condena os atos sexuais fora do Matrimônio, e não apenas “a camisinha”), contra o qual, por frustrante que seja, o baixo nível do anti-catolicismo contemporâneo obriga-nos por vezes a nos batermos.]

Coletiva do Papa aos jornalistas durante o voo de retorno do México deixou perplexos católicos e não-católicos por conta de uma resposta estranha que Sua Santidade deu a uma pergunta a respeito da Zika, do aborto e da contracepção. Ei-las, pergunta e resposta, na íntegra (grifos da RV):

(Paloma Garcia Ovejero, “Cope”)

Santo Padre, há algumas semanas há muita preocupação em muitos países latino-americanos, mas também na Europa, sobre o vírus “Zika”. O risco maior seria para as mulheres grávidas: há angustia. Algumas autoridades propuseram o aborto, ou de se evitar a gravidez. Neste caso, a Igreja pode levar em consideração o conceito de “entre os males, o menor”?

Papa Francisco: O aborto não é um “mal menor”. É um crime. É descartar um para salvar o outro. É aquilo que a máfia faz, eh? É um crime. É um mal absoluto. Sobre “mal menor”: mas, evitar a gravidez é – falemos em termos de conflito entre o quinto e o sexto Mandamento. Paulo VI, o Grande!, em uma situação difícil, na África, permitiu às religiosas de usar anticoncepcionais par aos casos de violência. Não confundir o mal de evitar a gravidez, sozinho, com o aborto. O aborto não é um problema teológico: é um problema humano, é um problema médico. Mata-se uma pessoa para salvar uma outra – nos melhores dos casos. Ou por conforto, não? Vai contra o Juramento de Hipócrates que os médicos devem fazer. É um mal em si mesmo, mas não é um mal religioso, ao início: não, é um mal humano. Além disso, evidentemente, já que é um mal humano – como todos assassinatos – é condenado. Ao invés, evitar a gravidez não é um mal absoluto: e, em certos casos, como neste, como naquele que mencionei do Beato Paulo VI, era claro. Ainda, eu exortaria os médicos para que façam tudo para encontrar as vacinas contra estes dois mosquitos que trazem este mal: sobre isto se deve trabalhar. Obrigado.

Não há reparos a serem feitos no que diz respeito ao aborto, penso, uma vez que a sua condenação está bastante clara e enfática; prestemos atenção no que concerne à contracepção.

Primeiro, que evitar a gravidez não é um mal absoluto. Verdade. A própria HV citada ensina que, havendo “motivos sérios para distanciar os nascimentos, que derivem ou das condições físicas ou psicológicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores” (HV 16), é lícito “regular a natalidade”. Mas, atenção!, que isto não se pode fazer de qualquer modo: o que é lícito é “ter em conta os ritmos naturais imanentes às funções geradoras, para usar do matrimônio só nos períodos infecundos” (id. ibid.). Uma epidemia de Zika é motivo suficientemente grave para espaçar o nascimento dos filhos? Sim, é. Isso significa que, em tais circunstâncias, um casal pode legitimamente recorrer aos “períodos infecundos” para não engravidar.

Segundo, a história de Paulo VI e as freiras. Aqui o negócio fica mais nebuloso; parece que ninguém conseguiu encontrar uma referência primária a este fato. O pe. Z., aliás, afirma, altissonante, que isso é uma mentira e Paulo VI jamais deu permissão alguma para que freiras usassem contraceptivos; houve um artigo, publicado no início da década de 60, onde esta hipótese era aventada, e nada mais. Há referências esparsas a coisas parecidas com isso (por exemplo, o pe. Cullinane afirma, num panfleto, que há um decreto do Santo Ofício com este teor na época de Pio XII), mas nada capaz de dirimir a questão.

Se a materialidade da história é — pra dizer o mínimo — controversa, o seu conteúdo não é mais cediço. Del Greco ensina que é lícito à mulher violentada expulsar do seu corpo o sêmen do estuprador, e que isto se deve considerar como legítima defesa; no entanto, parece que este uso “defensivo” dos anticoncepcionais não tem sido tão pacificamente aceito pelas autoridades vaticanas como dá a entender a entrevista pontifícia. Na década de 90, já sob S. João Paulo II, a Santa Sé proibiu a pílula mesmo para freiras que, missionárias em zona de guerra, corriam risco de estupro. Roma, portanto, non locuta, e esta causa não se pode pretender finita.

Terceiro, por fim, a ilação anticatólica — que, malgrado o Papa não diga com estas exatas palavras, os meios de comunicação do mundo inteiro foram praticamente unânimes em alardear — de que é lícito usar contraceptivos durante o surto de Zika para evitar o nascimento de crianças com microcefalia. Sobre isso, é preciso dizer

i) que a situação das freiras na África aparentemente não guarda semelhança alguma com a de pessoas tendo relações sexuais livres e consentidas em um país da América Latina afligido pela Zika: no primeiro caso há a violência que permite aventar a hipótese da legítima defesa e, no segundo, não;

ii) que, portanto, para que se possa discutir a possibilidade de se usar contraceptivos como no (suposto) caso de Paulo VI, é preciso que se esteja diante de uma situação que lhe seja minimamente análoga — é o que faz o National Catholic Register, ao aventar o exemplo de uma mulher que é constrangida, pelo marido doente de Zika, a ter relações sexuais com ele;

iii) que o Pe. Lombardi, comentando a entrevista, disse que o uso dos contraceptivos só poderia ser objeto de deliberação da consciência em casi di particolare emergenza e gravità — casos de particular emergência e gravidade –, o que parece ir ao encontro do que NCR publicou; por fim,

iv) que independente de tudo isso permanece integralmente válido o ensino tradicional da Igreja, contido no Magistério de — entre outros — Paulo VI e S. João Paulo II, segundo o qual o uso de contraceptivos não é legítimo nem “mesmo se for praticado com intenção de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares, ou sociais” (HV).

Evidentemente o aborto é um pecado mais grave que a contracepção; claro que peca mais quem tira a vida de um ser humano inocente do que quem torna um ato sexual intencionalmente infecundo. Esta diferença de gravidade entre os pecados, no entanto, não tem o condão de “justificar” o pecado menos grave, que continua sendo pecado, e pecado grave, é bom lembrar. Nunca é lícito fazer o mal para que dele provenha o bem; tendo lembrado Paulo VI no avião, o Papa Francisco bem que poderia ter-lhe citado esta frase — esta, sim, de cuja autoria não há dúvidas, e cuja doutrina é certa e segura.

O “escândalo” sobre a vida íntima do Papa João Paulo II

Um leitor desafia-me aqui no blog: «quero ver agora qual será a desculpa para defender Karol Wojtyła». Ora, mas defender do quê?

A despeito da péssima qualidade da mídia laica e anticlerical — somente na qual, ao que parece, os detratores da Igreja vão buscar as suas informações… –, nem mesmo nela é possível encontrar o «escândalo sobre a vida intima (sic) de Karol Wojtyła» que o meu contendedor alardeia. O Jornal Nacional fala em «amizade intensa» do Papa polonês com uma filósofa americana; El País, em «íntima amizade». A BBC fala em «relação ‘intensa’», e o máximo que encontrei foi «amizade “corajosa”» na Gazeta do Povo. Onde está o escândalo?

Responda-se: o “escândalo” está na ilação maliciosa — que nem os órgãos de mídia ousarem fazer diretamente! — de que haveria, para usar o termo corrente, “segundas intenções” por detrás da correspondência que o Papa João Paulo II trocou durante longos anos com Anna-Teresa Tymieniecka. Veja-se bem o que estamos tratando aqui: nem mesmo a mídia anticlerical ousou acusar diretamente São João Paulo II de ter mantido um caso com a americana, e o comentarista autoproclamado católico sequer pensa duas vezes em tomar a insinuação maliciosa como um fato incontestável! E, pior, quer — exige até! — que todo mundo acredite no mesmo que ele!

Não satisfeitos em deixar o fundo do poço ao jornalismo medíocre que alardeia fatos públicos como se fossem descobertas bombásticas a respeito da vida privada dos santos da Igreja, os comentaristas do Deus lo Vult! que parecem dedicar as suas vidas à difamação da Igreja foram mais ousados: chafurdando ainda um pouco mais na lama para não perder em abjeção à imprensa anticatólica, complementam-lhe o serviço e vêm alardear, com ares de autoridade, aquilo que a mesma imprensa teve ao menos o decoro de deixar encoberto. É impressionante.

O que interessa dizer sobre o mérito da acusação? Primeiro, que trocar cartas não é crime nem é pecado. O clero católico faz voto de celibato (e não “de castidade” (sic), como saiu na mídia), não de silêncio ou de isolamento social. A correspondência pessoal do Romano Pontífice não é em si mesma uma violação de nenhum dos seus deveres de estado.

Segundo, que a incapacidade de enxergar amizade desinteressada nas conversas alheias — como se um homem só conversasse com uma mulher se tivesse interesses sexuais nela — é um defeito de quem julga deste modo, e não se pode admitir que semelhante reducionismo seja transposto da imaturidade dos que o alimentam para a personalidade das grandes almas do planeta. Em uma palavra: não é porque alguns retardados acham que só escreve “aquele tipo de carta” quem está sexualmente interessado em alguém que todo mundo — o Papa inclusive — fica obrigado a só escrever para quem quiser “pegar”. Isto é ridículo até mesmo no mundo secular; na Igreja, é patético a ponto de não merecer dois segundos de atenção.

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Terceiro, que se fosse verdade «que Anna-Teresa Tymieniecka poderia estar apaixonada pelo então cardeal Karol Wojtyla», como está na Gazeta do Povo, isso em nada desabonaria a figura de S. João Paulo II. As pessoas devem ser avaliadas moralmente por suas ações, e não pelas que terceiros têm para com elas; um possível (e olhe o que digo, possível, porque tudo não passa de especulação) amor platônico entre a americana casada e o cardeal europeu pode no máximo ser censurável a ela, não a ele — ao menos não sem acrescentar uma série de outras variáveis desabonadoras (e.g. que o Papa alimentasse deliberadamente a paixão da filósofa pelo simples prazer de se sentir desejado) que de nenhuma maneira se pode inferir dos documentos existentes.

Quarto, por fim, que o assunto não é sequer novidade; como disse um amigo jornalista no Facebook, o fato já fora publicado na biografia do Papa escrita há vinte anos por Carl Bernstein e Marco Politi. Além disso, não se trata de um caso isolado: a correspondência trocada entre Sua Santidade e a médica polonesa Wanda Półtawska ao longo de mais de 50 anos, por exemplo, é um livro que tem inclusive uma edição brasileira desde 2011.

Qual o sentido da “polêmica” agora levantada? Ela não diz nada a respeito da figura do Papa que não fosse já de conhecimento público; mas diz, sim, um bocado!, sobre as pessoas que, lendo a reportagem, ensaiaram um sorriso lascivo ou fizeram algum comentário malicioso sobre o assunto (preenchendo as lacunas que os jornais intencionalmente deixaram abertas, ‘pegando’ as insinuações deliberadamente deixadas no ar e achando que, com isso, faziam algum exercício particularmente notável de perspicácia). Ela revela, na verdade, a própria pequenez desses leitores, incapazes de manter um relacionamento interpessoal desinteressado e reduzindo a diferença entre os sexos ao seu mero aspecto venéreo. O que projetam no Papa é somente o seu próprio reflexo. E essa história, portanto, pode até não dizer nada sobre São João Paulo II; mas diz muito, sim, sobre o homem contemporâneo — e o que diz é deprimente.

O vigor necessário ao Pontificado

Hoje faz três anos que o mundo tomou conhecimento da renúncia do Papa Bento XVI. Eu me lembro daquele 11 de fevereiro: era uma segunda-feira de Carnaval, e a voz cansada do velho alemão antecipou a Quaresma de uma multidão de católicos mundo afora. Ficamos atônitos, pegos de surpresa por um acontecimento com séculos de ineditismo (não faltou aliás quem dissesse que a renúncia era inédita tout court, guardando importantes diferenças com os outros — parcos — casos análogos de que a História da Igreja dava exemplo); e mesmo com três anos de distância a história ainda se nos revela surpreendente.

Aquela Declaratio é bastante lacônica; ela basicamente estabelece que «para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito». É provável que a maior parte das pessoas tenha lido, naquele texto, uma referência à saúde física do Pontífice que então contava já com 85 anos. Penso, no entanto, que o verdadeiro «vigor» que o Pontífice bávaro sentiu lhe faltar foi o «do espírito».

Sob essa ótica as coisas fazem mais sentido. Em primeiro lugar, caem por terra as “reclamações” (!) de que Bento XVI ainda está vivo mesmo três anos após ter renunciado (!!), como se o pobre Pontífice precisasse cair morto sob o peso do Papado antes de poder legitimamente a ele renunciar — ou como se o quotidiano recluso do Bispo Emérito de Roma tivesse o mesmo impacto sobre a sua expectativa de vida que o dia-a-dia enérgico de um Pontífice em atividade.

Depois, porque é neste aspecto que mais saltam aos olhos as diferenças entre o Papa Francisco e o seu predecessor. Um amigo que estivera no Vaticano durante o Conclave disse-me depois que, logo após a fumata bianca, na Praça de S. Pedro, quando o eminentissimum ac reverendissimum Dominum Georgium Marium Cardinalem Bergoglio era apresentado ao mundo sob o nome de Franciscus, um dos peregrinos que estava naquela multidão teria dito, em tom de desprezo: ah, un altro vecchio!

E é exatamente isto: fisicamente falando, o Papa Francisco não passa de “um outro velho”, talvez com até mais problemas de saúde pré-existentes do que Bento XVI. No entanto, com que vigor de espírito ele assomou ao sólio pontifício! Como o prof. Ramalhete gosta de dizer, o velho argentino «partiu para o ataque» — e isso parece incontestável quer entre os detratores do Papa Francisco, quer entre os seus admiradores. Nos últimos três anos a nau da Igreja singrou com mais ímpeto, e isso não negam mesmo os que acusam de temerário o timoneiro.

Finalmente, porque esta me parece uma característica peculiar do velho professor da Baviera, mais amigo das bibliotecas que das multidões. Talvez nunca tenhamos tido um Papa como o foi Joseph Ratzinger, acadêmico visceral; e o mundo diante do qual ele foi posto à frente da Igreja guardava pouca ou nenhuma semelhança com a situação ideal de fala que os teóricos do discurso almejam encontrar. É por isso que Ratzinger pôde discutir com Habermas, um acadêmico como ele; mas diante dos bispos seus subordinados o Papa Bento XVI só pôde se queixar dos ataques que lhe desferiram católicos «com uma virulência de lança em riste». Digamo-lo francamente: a Igreja do séc. XXI não estava à altura de Bento XVI — e, portanto, que ele talvez não fosse a pessoa ideal para estar à frente desta Igreja é uma conclusão bastante triste, mas não surpreendente.

Faz três anos, e não sei se a Igreja se encontra hoje melhor do que naquela fatídica segunda-feira. Mas é também dia de Nossa Senhora de Lourdes, conhecida por Seu maternal cuidado pelos doentes de toda espécie. Que Ela olhe pelo Bispo Emérito de Roma, cuja Grã-Renúncia hoje lembramos. Que Ela interceda pelo Vigário de Seu Divino Filho, o Papa Francisco. E — principalmente — que Ela cure as feridas da Igreja, hoje tão abertas e purulentas que A conduziram a esta situação inaudita. Valha-nos a poderosa intercessão da Virgem de Lourdes; que as dores do mundo apressem o prometido triunfo do Seu Imaculado Coração.

Calendário – Quaresma 2016

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A Quaresma é aquele tempo do Ano Litúrgico — tempo belíssimo! — onde o chamado à conversão é mais premente; onde aquele brado de S. João Batista sobre o machado estar já «posto à raiz das árvores» (cf. Mt III, 10) ressoa-nos mais forte aos ouvidos. Não se trata de uma ameaça vazia cujo objetivo é nos impingir terror a ponto de nos deixar petrificados; ao contrário, é um convite amoroso para que endireitemos as nossas veredas enquanto é tempo.

Deus nos concede as graças para mudar de vida! Na homilia de hoje o padre nos recordava que este tempo oscila entre a misericórdia e a conversão: a misericórdia, da parte de Deus, que não falta nunca; e a conversão, de nossa parte, pela qual havemos de Lhe agradecer.

E nos esforçar…! Quaresma, enfim, é tempo de exercícios espirituais. Para tanto pode ser útil elaborar um calendário, indicando que pequena obra de misericórdia concreta pode ser oferecida a Deus em cada um desses 40 dias que nos separam da Páscoa. Este, do Regnum Christi, serve de modelo: que cada um encontre os jejuns, esmolas e orações com os quais preencher sua Preparação.

Vivamos bem esta Quaresma — que pode ser a nossa última!

Microcefalia e o avanço da agenda pró-aborto

O meritíssimo sr. Juiz de Direito da 1ª Vara dos Crimes Dolosos Contra a Vida de Goiânia, dr. Jesseir Coelho de Alcântara, apareceu recentemente na nossa imprensa defendendo o aborto das crianças portadoras de microcefalia. «Se houver pedido por alguma gestante nesse caso de gravidez com microcefalia e zika, com comprovação médica de que esse bebê não vai nascer com vida, aí sim a gente autoriza o aborto», disse o Magistrado à BBC Brasil.

A bravata deve, sim, preocupar. Embora pessoas com esta síndrome possam levar uma vida perfeitamente normal — inclusive a ponto de dizerem achar «errado propor aborto para casos de microcefalia» –, isto só acontece se lhes é permitido, em primeiríssimo lugar, nascerem. Antes do nascimento, quando o feto não passa de uma imagem em um aparelho ultrassom, é sempre possível dizer qualquer coisa. Já cansamos de ver isso acontecer.

Marcela de Jesus, diagnosticada anencéfala, viveu um ano e oito meses. Vitória de Cristo, diagnosticada anencéfala, viveu mais de dois anos e meio. Jaxon Buell nasceu em 2014 e continua vivo. E a anencefalia é uma má-formação mais grave do que a microcefalia! Se mesmo bebês anencéfalos, a despeito dos diagnósticos que recebam no útero de suas mães, teimam em viver quando não são assassinados, o que se dirá dos portadores de microcefalia — que, destes, temos fartos exemplos até à idade adulta?

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Não existe «comprovação médica de que esse bebê não vai nascer com vida», esta quimera que o Dr. Jesseir evoca para anestesiar a consciência dos seus interlocutores. Não existe e nem nunca vai existir, porque este tipo de previsão (e não “comprovação”) é por sua própria natureza muito frágil. Diante de um aborto espontâneo, analisar o embrião com microcefalia severa e aventar a hipótese (verossímil, conceda-se) de que esta síndrome causou aquela morte, tal é possível ex post facto. Dizer, no entanto, que uma gravidez microcefálica em curso vai comprovadamente terminar em aborto, tal não é ciência e nem medicina. É na melhor das hipóteses exercício leviano de futurologia — e, na pior, pura e simples vontade de exterminar o deficiente. Não se pretende apressar o que há-de acontecer inevitavelmente, e sim poupar-se de uma experiência que se imagina desagradável. Acontece que, neste caso, esta experiência consiste em um ser humano inocente.

Veja-se como é esta e não outra a justificativa do aborto! Na sua fundamentação da ADPF 54, esta excrescência jurídica, o Ministro-Relator não é tão exigente quanto o Dr. Jesseir de Alcântara. Marco Aurélio, em seu voto, chega mesmo a dizer que o aborto deveria ser uma opção à mãe ainda que se reconhecesse o direito à vida do feto. Está lá, à página 69 do Acórdão:

No caso, ainda que se conceba o direito à vida do feto anencéfalo – o que, na minha óptica, é inadmissível, consoante enfatizado –, tal direito cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde, previstos, respectivamente, nos artigos 1º, inciso III, 5º, cabeça e incisos II, III e X, e 6º, cabeça, da Carta da República.

Ou seja: para o nosso Judiciário, a inviabilidade da vida extra-uterina é somente uma desculpa para tranquilizar a consciência da opinião pública, que insiste em ser visceralmente contrária ao aborto. Esta inviabilidade não é necessária de verdade: os juízes prescindem dela, aceitando em seu lugar meras impressões diagnósticas de que «esse bebê não vai nascer com vida» — e os mais ousados têm até a pachorra de dizer, em voto, que a liberdade sexual da mãe prepondera sobre a vida do feto. Antes, como agora, o objetivo não é conciliar direitos conflituosos em um caso limítrofe: o objetivo, agora como então, é fazer avançar a agenda pró-aborto. Que outro motivo explicaria o surgimento desta discussão de agora, quando são tão gritantes as diferenças entre o anencéfalo típico e o típico portador de microcefalia?

Para se defender desta tragédia é preciso ter a coragem de anunciar a sanidade em um mundo que parece sufocado pelo mal; mas é preciso também expôr ao descrédito estes maus profissionais que põem seus saberes a serviço da eugenia. Por exemplo, uma associação de portadores de microcefalia que receberam «comprovação médica» de que não nasceriam com vida seria excelente para destruir a credibilidade desta espécie de atestado médico, e bem que poderia tornar os profissionais de saúde menos propensos a arriscar sua reputação nesta espécie de vaticínio macabro. E o Juiz de Direito da 1ª Vara dos Crimes Dolosos Contra a Vida de Goiânia, que não tem a coragem do Marco Aurélio, já disse que só “autoriza” o aborto com a dita «comprovação». Sem ela, ao menos as crianças goianienses estarão a salvo da sanha homicida do Dr. Jesseir.

Nossa Senhora dos Navegantes

Hoje é feriado em Porto Alegre; Nossa Senhora dos Navegantes, celebrada aos dois de fevereiro. Não sei desde quando a data é festejada; decerto remonta às origens do Brasil, à época das Grandes Navegações, na qual a travessia do Velho Mundo para as terras de cá não se dava com as facilidades contemporâneas. Lembro dos conhecidos versos de Pessoa — quantas noivas ficaram por casar / para que fosses nosso, ó mar! — e penso que talvez a invocação mariana, hoje, seja pouco compreendida.

Como também, aliás, a sua correlata Nossa Senhora da Boa Viagem, esta mais conhecida em Recife por conta do famoso bairro que dela empresta o nome. É provavelmente a proximidade entre as duas invocações que faz a nossa Rua dos Navegantes ser uma paralela da Avenida Boa Viagem aqui, no litoral recifense, acompanhando a faixa do mar: a nossa história tem mais catequese que muitas de nossas paróquias. E também da história é possível (e preciso!) haurir piedosas meditações. A invocação da Santíssima Virgem hoje festejada presta-se bem a isso.

Há um quadro espanhol quinhentista — descobri-o hoje — que retrata La Virgen de los Navegantes: mostra Nossa Senhora com o oceano a seus pés, manto aberto, com o qual abarca e protege os homens e os navios. Nesta pintura, sim, é possível admirar com clareza o que significou no passado este título, em uma época onde a Travessia do Atlântico era a grande aventura de uma era e onde novos argonautas dedicavam suas vidas a conquistas mais preciosas que o antigo velocino de ouro.

A imagem não é extemporânea: hoje não arriscamos mais as nossas vidas no interior de embarcações (relativamente) frágeis e sujeitas às intempéries da natureza no meio da imensidão do oceano, é verdade, mas como negar que tal seja, metaforicamente, a exata situação em que nos encontramos? Acaso o nosso destino é menos desconhecido do que o oceano infinito aberto à frente dos navegantes de outrora? Porventura os riscos que enfrentamos na travessia desta vida não guardam semelhança com os monstros marítimos e o furor da natureza que tornavam tão arriscadas as navegações de antigamente? Dependemos menos da intercessão da Bem Aventurada Virgem Maria para chegarmos à Perseverança Final do que os antigos marinheiros dependiam para levar a bom porto suas embarcações? A tragédia humana muda as suas roupagens, mas é sempre essencialmente a mesma: é o homem diante do imenso e do desconhecido, tendo uma vocação grandiosa a cumprir e não dispondo senão das graças do Céu para o sustentar no caminho.

São riquezas do Cristianismo que, conquanto pertençam a um tempo e a uma cultura distantes da nossa, têm muito a nos dizer. Aprendamos com elas.

Qual a verdadeira interpretação da Bíblia?

A questão da interpretação das Escrituras Sagradas é o calcanhar de Aquiles de todo o Protestantismo. Coloquemo-lo claramente: duas pessoas podem ser ambas muito santas e muito inteligentes e, ainda assim, chegarem a interpretações diametralmente opostas de um mesmo texto bíblico. Como resolver este problema?

A pior solução é sem dúvidas fazer circunlóquios do tipo “a Bíblia se interpreta pela própria Bíblia” ou “o critério da doutrina é a sua fundamentação bíblica”. Coisas assim absolutamente não resolvem o problema, que é apenas deslocado para um patamar anterior e se reduz, em última instância, ao subjetivismo mais radical: a interpretação correta passa a ser aquela que “me convence” melhor. É bem sabido que os adeptos desta tese fundamentam-se em um “é o Espírito Santo que convence” capaz, sem dúvidas, de fechar o sistema; mas é um fechamento autorreferencial e perfeitamente inútil para fins de apostolado, uma vez que o sujeito primeiro precisa se convencer para só depois entender que o seu convencimento é suficiente. Esta solução, enfim, flerta intimamente com aquela loucura que Chesterton menciona no início do seu Ortodoxia: é tão perfeita quanto um círculo fechado, limitado ao estreito horizonte de si próprio e incapaz de abrir-se à realidade circundante.

O mesmo se diga de qualquer tentativa de conferir a autoridade religiosa a um determinado grupo de pessoas — um grupo de pessoas santas, pessoas estudiosas, pessoas prudentes ou qualquer outra coisa do tipo. Sempre haverá outros grupos, formados por pessoas prudentes, estudiosas e santas; e o problema de decidir em qual dos grupos acreditar é, no limite, o mesmíssimo problema de decidir entre um líder religioso e outro, ambos alardeando deter a verdade do Cristianismo.

Uma solução talvez mais interessante seria apelar para a coletividade: a interpretação verdadeira é aquela geralmente aceita pelo conjunto de todos os crentes. O critério transfere-se assim do autoconvencimento para a presunção de razoabilidade, o que é sem dúvidas melhor: o erro individual é muito comum, mas o equívoco sincronizado de diversas pessoas, todas de boa fé, é consideravelmente mais raro. Talvez ainda mais: este consenso — construído e momentâneo — seria o máximo a que o homem, naturalmente, é capaz de chegar e, portanto, uma religião proporcionada à natureza humana não poderia desconhecer estes limites. Tratar-se-ia, assim, resumidamente, de uma aplicação do agir comunicativo habermasiano à esfera religiosa.

Duas são as dificuldades aqui. Em primeiro lugar é preciso questionar-se, seriamente, se este consenso é factualmente alcançável — e aqui se trata de uma crítica que, em princípio, pode-se fazer a toda a teoria da comunicação de Habermas. Não é preciso nem discutir se os pressupostos básicos de honestidade na comunicação estão ordinariamente presentes: mesmo que tal se conceda, é incontestável que o conjunto de coisas sobre as quais as pessoas no geral concordam é bastante restrito e não tem como ser de outra maneira. Afinal, se todo mundo sempre concordasse sobre tudo o próprio problema da interpretação dos textos sagrados não se colocaria.

Mas o pior é a segunda dificuldade: coletivos de pessoas são capazes de ao longo do tempo rever as suas convicções, e o consenso geral é sempre e por definição momentâneo. Isto não é um problema para o modelo habermasiano em geral — ele até prevê e pressupõe isso –, mas aplicá-lo a uma religião significaria esvaziá-la de todo conteúdo próprio. As sociedades podem se desenvolver até o ponto de se tornarem outras sociedades; mas um desenvolvimento de uma religião que chegasse ao ponto de transformá-la em uma outra religião é algo que, no mínimo, não é compatível com o conceito de Revelação Cristã.

Pegue-se o exemplo mais radical para o demonstrar: a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo é um dado objetivo, revelado por Deus e independente da crença ou descrença dos homens, ou é um consenso dos cristãos meramente útil para que eles se possam organizar em uma sociedade de crentes? Dito de outra maneira: é admissível que o conjunto dos crentes, um belo dia, decida que pode prescindir dessa complicação de união hipostática entre as naturezas humana e divina e que é suficiente encontrar em Cristo um sujeito iluminado que é modelo para todos nós? O número dos cristãos que se inclinariam por esta afirmativa é provavelmente bastante pequeno, desprezível até. Ora, se não existe consenso entre os cristãos sobre a possibilidade de sujeitar a verdade religiosa a este mesmo consenso, então é óbvio que o critério da correta interpretação dos textos sagrados do Cristianismo não pode ser o consensual.

Nem se pode dizer, registre-se, que certas coisas estariam sujeitas ao agir comunicativo (como, digamos, a forma do culto, a questão do batismo de crianças ou a guarda do Sábado ou do Domingo) e, outras (como a divindade de Cristo), não; porque neste caso permaneceria a dúvida sobre quais são, afinal, as coisas que dependem do consenso e quais as que não dependem, e o problema do qual se tentou fugir terminaria, cedo ou tarde, por retornar (e se um dia a generalidade dos crentes passasse a aceitar que a guarda do Domingo é revelada e não consensual?). Também este modelo de solução, em suma, deve ser rejeitado.

A melhor resposta ao problema, em conclusão, é aquela apresentada pelo Catolicismo: há uma instância superior, sim, capaz de dirimir a dúvida religiosa, e esta instância é a Igreja — mais especificamente até, tal instância consubstancia-se na figura do Romano Pontífice, um homem de carne e osso, vivo, que se pode interpelar pessoalmente e sobre o qual repousa a promessa de Cristo de que a sua Fé não haverá de desfalecer, por mais que Satanás reclame joeirá-lo como trigo (cf. Lc XXII, 31). Mas esta instância está vinculada a Ela mesma, e Pedro está sujeito a Pedro, e cada Papa tem os seus movimentos limitados ao espaço deixado pelos seus predecessores. A Igreja, que é o conjunto dos cristãos, estende os Seus alicerces por toda a História e abarca todos os séculos: existe n’Ela uma necessária harmonia diacrônica que simplesmente não cabe nos moldes de nenhuma das teorias que à doutrina clássica se pretendem alternativas.

Curiosamente, nenhuma das 95 teses de Lutero reivindicava a todo fiel — nem mesmo a um determinado grupo de fiéis, nem à sua totalidade — o poder de encontrar a correta interpretação da Bíblia, como infelizmente fizeram e fazem os seus sucessores. Nestes tempos de diálogo ecumênico, a questão sobre a interpretação das Escrituras Sagradas é primordial e precisa ser corajosamente abordada. Aceitarão os irmãos separados voltar às origens e dizer, parafraseando Lutero, que «expor a Igreja e o papa à zombaria dos [seus] inimigos» é, em última instância, «fazer os cristãos infelizes» (T. 90)? Cinco séculos de protestantismo já demonstraram de modo mais que suficiente o acerto dessa tese. Já passou da hora de o reconhecer.

Só existe uma única Religião Verdadeira

A origem das falsas religiões é uma coisa que se pode investigar em diversos planos.

Do ponto de vista do Cristianismo, munidos da Verdade Revelada, lançando os olhos sobre o fenômeno religioso a partir do terreno elevado da Igreja de Cristo que é «coluna e sustentáculo da Verdade», não podemos senão concluir que, no início das falsas religiões — que mais afastam do que aproximam de Deus –, está o Demônio, o Pai da Mentira, aquele cujo papel na história da humanidade é o de roubar, matar e destruir. É neste sentido que S. Pio de Pietrelcina dizia, de maneira jocosa, que o Protestantismo também tivera uma origem sobrenatural, uma vez que fora fundado por Satanás.

Contudo, à luz da história humana auto-referenciada, do ponto de vista do homem desterrado em cujo interior ainda pulsa o anelo pelo Paraíso Perdido, ou mesmo — por que não? — munidos apenas da teologia natural, não podemos ser tão ligeiros na divisão dicotômica do mundo entre as inspirações divinas e o bafo sulfúreo do Demônio. O homem também pode errar, e erra amiúde, por conta própria, sem que a isso precise ser conduzido tendo Lúcifer ao braço. O erro religioso de boa vontade é certamente mais comum do que o satanismo stricto sensu: há decerto mais pessoas tomando demônios por Deus do que trocando o Deus que se sabe verdadeiro pelos diabos sabidamente exsurgidos do Inferno. E isto sem nenhumas considerações de ordem soteriológica, que as condições subjetivas de cada um identificar o demônio que se lhe antolha Deus haverá de julgar. Aqui se cogita tão-somente do motor da adesão à falsa crença, não do seu valor salvífico.

Da mesma forma que não nos podemos esquecer de que só existe uma única Religião Verdadeira, da qual todas as outras são ou sombras ou caricaturas, não nos é dado também olvidar que o fato mesmo de alguém aderir a uma falsa religião significa, ao menos ordinariamente, que o problema de Deus se coloca para esta pessoa e ela o considera em alguma medida relevante. Em resumo: que Satanás espalha, sim, ídolos pelo mundo, mas só se prostra diante dos ídolos quem ao menos deseja se relacionar com o Além.

Construir «uma torre cujo cimo atinja os céus» (cf. Gn XI, 4) é pecado; mas o pecado está no meio de que se serve, não no fim que se almeja. Porque atingir os céus é um anseio natural do ser humano criado para Deus — do homem cujo coração vive inquieto enquanto n’Ele não repousa, para usar a passagem clássica de Sto. Agostinho. E em tempos onde querem sufocar este ditame da consciência, talvez não seja tão imprudente assim valorizá-lo — ainda que apenas o seu reflexo distorcido na fracassada odisséia religiosa do homem distante da Revelação.

Mudanças na Cerimônia do Lava-Pés — o que significam?

Hoje, no site do Vaticano, foram tornados públicos dois documentos: uma carta que o Papa Francisco enviara ao prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos no final de dezembro de 2014, onde solicitava uma alteração nas rubricas do Missal Romano referentes à Missa da Quinta-Feira Santa para que estas autorizassem o uso de mulheres na cerimônia do Lava-Pés (e não apenas fiéis do sexo masculino — viri selecti — como se dispunha até então); e o Decretum daquela Congregação determinando a mudança do Rito, datado de seis de janeiro p.p. (em italiano aqui). Uma tradução não-oficial da carta pontifícia pode ser encontrada aqui, e é de onde tiro o seguinte excerto:

[D]esde há já algum tempo que estou a reflectir sobre o Rito do “lava pés”, inserido na Liturgia da Missa in Coena Domini, com a finalidade de aperfeiçoar o modo com que se realiza, para que exprima plenamente o significado do gesto realizado por Jesus no Cenáculo, a sua entrega “até ao fim” para a salvação do mundo, a sua caridade sem fronteiras.

Antevendo as críticas, talvez não seja despiciendo lembrar aquela declaração solene do Concílio de Trento segundo a qual «a Igreja sempre teve o poder de, ao administrar os sacramentos, determinar e mudar, salva [sempre] a sua substância, o que julgar conveniente à utilidade dos que os recebem e à veneração dos mesmos sacramentos, conforme a variedade dos tempos e lugares» (Trento, Sessão XXI, Cap. 2 (931)). Portanto, não há espaço para os já tradicionais rasgar de vestes de um lado e lançar confetes do outro, como se o Papa estivesse dilapidando o patrimônio divino do Cristianismo ou abrindo enfim as portas da Igreja às reivindicações do mundo moderno. Desde que o mundo é mundo que a Igreja pode «mudar (…) o que julgar conveniente» em Seus ritos litúrgicos. O Papa está, portanto, no mais pacífico exercício do seu munus de governar a Igreja. O resto é tentativa desprezível de capitalizar as atitudes papais em benefício da própria agenda político-ideológica. Não merece atenção.

São outras as coisas que aqui merecem uma consideração mais atenta. Primeiro, uma consideração de ordem, digamos, sociológica: da forma como as normas litúrgicas são recebidas no seio das Igrejas Particulares. No interior do caos litúrgico em que nós infelizmente vivemos, a presença de mulheres na celebração de Lava-Pés não se pode chamar de novidade inaudita. Em parte devido à terrível ignorância dos católicos — conticuit populus meus eo quod non habuerit scientiam… –, em parte pelo aberto descontentamento de alguns a respeito da posição da Igreja sobre a diferença entre os sexos, o fato é que a utilização de mulheres entre os viri selecti exigidos pelas rubricas já se havia constituído em um verdadeiro costume contra legem.

A idéia de legalizar o abuso para o coibir não é indene a críticas, principalmente porque ela evoca — mutatis mutandis — certas práticas de política criminal pouco honestas que intentam reduzir os índices de criminalidade por meio da descriminalização dos crimes. No entanto, dela se pode ao menos dizer que é mais honesta e coerente do que a situação anterior, onde o Papa vinha a público lavar os pés de mulheres quando as rubricas expressamente o proibiam. Sendo o Papa a autoridade competente em matéria litúrgica para determinar quais os pés que se podem lavar na Missa In Coena Domini, não fazia o menor sentido que ele, podendo mudar a lei, insistisse na sua violação. Por mais que se trate de um aspecto que alguém pode dizer de somenos importância, a fidelidade é de ser buscada mesmo nas pequenas coisas. Com o Decretum do início deste mês, o Papa Francisco deixa de praticar abusos litúrgicos neste quesito — o que não deixa de provocar um certo alívio.

Uma segunda coisa importante a ser considerada é o motivo pelo qual as rubricas previam que apenas homens fossem escolhidos para o Lava-Pés. A argumentação tradicional ia na linha de que aquela cerimônia estava inserida no contexto da Última Ceia, para a qual Nosso Senhor não convocou senão os Apóstolos — homens todos eles. É o argumento, aliás, usado para vedar às mulheres o acesso ao sacerdócio ministerial: foi Cristo quem expressamente as excluiu deste ministério específico, não obstante as tenha enviado para fazer uma centena de outras coisas importantes (como, por exemplo, serem testemunhas privilegiadas da Ressurreição). À parte quaisquer discordâncias interpretativas que possa haver aqui, o fato histórico inconteste é que, na primeira Quinta-Feira Santa, apenas homens tiveram os seus pés lavados por Nosso Senhor.

Pode-se lamentar o fato de que esta mudança litúrgica, além de negligenciar a exatidão histórica dos fatos que na Semana Santa se celebram, possa enfraquecer o sentido do sacerdócio ministerial. Afinal (já ouço os inimigos da Igreja bradarem…), se até mesmo ao Lava-Pés as mulheres se fazem presentes, por que excluí-las da Ceia que vem logo em seguida? Não seria o caso de se repensar a Ordinatio Sacerdotalis?

Em resposta a este sofisma vem a terceira coisa importante desta mudança litúrgica. Com ela, o Papa Francisco introduziu oficialmente uma clivagem na celebração da Última Ceia, explicitando uma distinção teológica que, conquanto fosse evidente, não tinha ainda — ao menos não neste contexto — expressão litúrgica que lhe correspondesse.

Na Quinta-Feira Santa há duas cenas distintas e muito bem definidas. Em uma delas, Nosso Senhor lava os pés aos Apóstolos; na outra, oferece o Sacrifício do Seu Corpo e Sangue sob as espécies do Pão e do Vinho. Na primeira delas proclama o mandamento do serviço; na segunda, institui o sacerdócio ministerial. Parece bastante óbvio que os destinatários de ambas as mensagens não são os mesmos: embora apenas os sacerdotes ordenados tenham o poder de oferecer o Santo Sacrifício da Missa, é a todos os cristãos que se estende o mandato do serviço expresso no «também vós deveis lavar-vos os pés uns aos outros». Na mesma Noite, em seus dois momentos distintos, os Apóstolos estão representando parcelas diferentes do povo de Deus. À Mesa, enquanto convivas que recebem o Pão e o Vinho das mãos do Divino Redentor, fazem as vezes dos sacerdotes ordenados; mas enquanto servidos por Cristo que, toalha à cintura, lava-lhes os pés, representam a totalidade dos cristãos. Apenas os sacerdotes têm o poder e o dever de celebrar a Missa; mas o mandatum da Caridade, têm-no todos os católicos — homens e mulheres, velhos e jovens, doentes e sãos, leigos, clérigos e religiosos — e não apenas os sacerdotes ordenados. Sob essa ótica, a separação dos dois momentos antes distingue que confunde os papéis.

Há sem dúvidas a possibilidade de que homens maliciosos empreguem a mudança para tentar rediscutir sentenças definitivas do Magistério da Igreja; cumpre, portanto, desautorizá-los desde já. O Papa pediu que aos fiéis que fossem escolhidos para o Lava-Pés «seja dada uma explicação adequada do significado do próprio rito»; o Decretum que o regulamenta manda também, explicitamente, aos pastores «istruire adeguatamente sia i fedeli prescelti sia gli altri» — instruir adequadamente tanto os fiéis escolhidos quanto os outros. Sejam, portanto, todos devidamente informados. O mandatum caritatis, expresso no Lava-Pés, é coisa distinta do potestas sacerdotalis conferido ao partir do Pão. Tendo o Romano Pontífice distinguido claramente as duas coisas, não seja dada aos lobos a oportunidade de confundir o rebanho do Senhor.

O mundo velho e o vinho novo

Vi no Facebook uma chamada do pe. Kramer para a homilia que o Papa Francisco proferiu ontem na Casa Santa Marta. E vi-a sob um viés profundamente negativo: o sacerdote citava o texto dizendo que a preleção pontifícia era uma inversão do ensino católico. Os papas sempre haviam ensinado que era preciso não inovar, mas seguir a tradição; o Papa Francisco, ao contrário, dizia que — para usar a manchete do Catholic Family News — aqueles que resistem às mudanças são rebeldes obstinados e idólatras, e são culpados de “divinização”!

Eu imediatamente apontei um distinguo: do fato de se deverem evitar as inovações na Doutrina não segue que toda inovação seja execrável, por um lado, e, pelo outro, a condenação do Papa aos que “resistem às mudanças” não abarca por si só os que resistem contra mudanças doutrinárias. Trata-se, claramente, da célebre dicotomia entre a Doutrina e a expressão da Doutrina (ou melhor, em um sentido mais amplo, entre os aspectos doutrinários e os não-doutrinários da vida cristã) que eu já pincelei aqui no blog quando Bergoglio nem sonhava em ser Papa.

Ainda: a meditação pontifícia centra-se em condenar aqueles que justificam as suas atitudes por meio do «sempre si è fatto così!» — sempre se fez assim. Se por um lado eu claramente percebo como um rad-trad possa vestir esta carapuça, por outro lado não é possível admitir que lhe assista razão em sua queixa. Isto por uma razão muito simples: não seguimos o Cristianismo porque entre nós “sempre se fez assim”, mas sim porque o Cristianismo é a Religião Verdadeira! Há sem dúvidas muita nobreza em respeitar as tradições da família e da pátria, mas isso não é, absolutamente, um valor em si mesmo. É pelo fato de o Cristianismo ser verdadeiro que os que nos antecederam o preservaram, e não por ele ter sido preservado que é verdadeiro. Esta ordem, aqui, é absolutamente fundamental, e desconsiderá-la é equiparar o Cristianismo aos antigos pagãos — afinal, também eles honravam os deuses dos seus antepassados…

Na meditação do Papa Francisco, assim, não há nenhuma condenação às coisas antigas — à «tradição» defendida de S. Clemente a Bento XV — pelo simples fato de serem antigas, no que se poderia interpretar como um desejo desordenado por mudanças, uma sede de inovações (inclusive Sua Santidade o diz com todas as letras: «cosa significa questo, che cambia la legge? No!»); como não há também censura alguma, note-se, simplesmente aos que àquelas coisas aderem. Não se critica o amor ao passado; critica-se, isto sim, o desdém pelo presente. Trata-se de uma diferença muito grande e muito importante, porque se por um lado ninguém pode abandonar o passado, por outro a ninguém é lícito — salvo talvez vocações especialíssimas — fugir do presente.

Ora, nós não somos espíritos desencarnados vagando a esmo por uma dimensão etérea, alheios ao mundo dos homens e às suas contingências; não. Somos seres humanos dotados de alma e corpo — de um corpo que se encontra geograficamente delimitado e também historicamente situado. Aprouve à Divina Providência que nós vivêssemos em um lugar concreto e em um tempo determinado. Cada um de nós é chamado a viver a sua vida da melhor forma, e isso significa viver o presente por duro que ele seja. Se Deus nos pôs neste mundo atual, com todos os seus problemas e todas as suas dificuldades, é este mundo atual, doente e falho, que somos chamados a converter ao Evangelho — e é neste mundo, com todas as suas vicissitudes, que temos que nos santificar. Não há outra opção.

Sempre si è fatto così é uma forma de dizer “nunca se fez de outra maneira”; mas outras maneiras podem ser necessárias para novas situações e, neste sentido, dizer que nunca se fez diferente equivale a queixar-se de que o mundo nunca foi como é hoje. Ora, mas essa é uma queixa absurda e sem sentido. Deus nos chama a pelejar contra os inimigos atuais, e não temos o direito de murmurar que a Cristandade nunca os viu tão pérfidos e tão numerosos, que a Igreja jamais os enfrentou tão vis e tão cruéis. Devemos fazer guerra incansável contra os inimigos à frente dos quais nos coloca a Providência! Que eles não tenham sido jamais enfrentados antes é um detalhe que deve preocupar somente pagãos. Não nos exime do combate.

O mundo está velho e não suporta mais o vinho novo do Evangelho. E não temos o direito de desperdiçar a Sã Doutrina despejando-a em vasos rotos — falando a ouvidos moucos — sob a escusa de que sempre se fez dessa maneira, quando os odres não estavam tão estragados, quando os homens ainda eram capazes de ouvir. Se os odres estão imprestáveis, se os homens ensurdeceram, exigem-se novas maneiras de lhes fazer chegar à alma a Boa Nova da Salvação. Cabe a nós, servos inúteis, fazer o que for necessário — ainda que nunca se tenha feito antes — para o cumprimento deste dever.