A tradução cega-nos à nossa ignorância

Descobri ontem, ouvindo em latim o Evangelho das Bodas de Caná, que o chefe dos serventes — aquele que primeiro provou a água que Nosso Senhor transformara em vinho — se diz, em latim, architriclino. Ainda: que a palavra existe em português, ar·qui·tri·cli·no, Mordomo-mor da Roma Antiga: trata-se de uma função social específica, inserida em um contexto cultural que nos é estranho, e cujos contornos não nos é possível enxergar com clareza. A tradução de um substantivo comum para uma locução substantiva chamou-me a atenção para (mais) esta dificuldade de se traduzir línguas antigas: certas coisas deixam de existir com o passar do tempo, e isso faz com que as palavras que se lhes referiam caiam também em desuso — a ponto de se transformarem em termos técnicos incompreensíveis ao leitor vulgar.

Há não muito tempo eu lia também em algum lugar que, entre os judeus, o grau superlativo se formava pela repetição da palavra: assim “rei dos reis” ou “santo dos santos”, que nos dias de hoje se diriam provavelmente realíssimo e santíssimo. Aqui, ao menos a locução não é desprovida de significado, e o leitor vernacular consegue perceber que o “rei dos reis” está acima dos reis assim como estes estão acima dos que a eles são sujeitos. Mas é só quando se entende a lógica da gramática semítica — duplicar a palavra para significar o seu grau máximo — que é possível perceber a dimensão do que significar dizer, de Deus, que Ele é ἅγιος ἅγιος ἅγιος – Santo, Santo, Santo.

São dois pequenos exemplos apenas para dizer que o recurso aos originais é importante. Mais até: que as traduções constituem-se em um verdadeiro obstáculo ao conhecimento, na medida em que nos impedem de enxergar as nuances do texto antigo que não são perfeitamente reprodutíveis na língua moderna. Em uma palavra, a tradução cega-nos à nossa ignorância, na medida em que, por compreendermos — até perfeitamente — o recorte linguístico, simplesmente não percebemos os sentidos possíveis do texto original. Isso significa que há provavelmente uma infinidade de coisas que não sabemos por detrás de cada perícope bíblica, independente do quanto estejamos familiarizados com ela. É preciso muito cuidado ao se aproximar das Escrituras Sagradas: as mais das vezes, não somos capazes senão de arranhar-Lhes a superfície.

Os burros, os mal-intencionados e os convertidos à Fé Católica

Um leitor do blog perguntou aqui se o fato de ele não alcançar a verdade histórica do Cristianismo fazia com que ele não fosse «uma pessoa honesta». A pergunta é excelente porque reflete um equívoco infelizmente comum aos dois lados da relação, tanto religiosos como descrentes.

Como todo grande equívoco, ele radica em uma grande verdade: neste caso, que o ser humano é capaz de Deus. Afinal, o Todo-Poderoso, Ser Perfeitíssimo, simplesmente não poderia exigir das Suas criaturas o culto a Ele se o próprio conhecimento deste culto e desta necessidade lhes fosse de todo impossível. Seria uma incoerência atroz. Uma vez que os homens precisam da Fé para se salvarem, uma vez que a Fé é por definição um ato livre — a Fé é essencialmente aquele ato de vontade mediante o qual a inteligência movida pela graça aquiesce às verdades reveladas — e uma vez que a responsabilização pelos próprios atos pressupõe e exige a liberdade de agir ou deixar de agir, a conclusão de que o homem tem que rejeitar a Fé para se condenar impõe-se de modo bastante consistente a quem considera todas essas coisas.

Ora, o ato de Fé é um ato complexo, uma vez que envolve as duas potências da alma humana: envolve a inteligência, que apreende a verdade da Fé, e envolve a vontade, que livremente dá crédito — acredita — a esta verdade. Parece, portanto, que para rejeitá-la é preciso vulnerar a vontade, a inteligência ou ambas.

Acontece que ninguém rejeita verdadeiramente aquilo que não leva a sério: é uma queixa bastante feita pelos incrédulos. Do homem médio contemporâneo não se pode propriamente dizer que ele rejeite, digamos, a existência de duendes ou do Saci-Pererê. Essas coisas não entram no seu universo de conhecimento como se fossem coisas reais, mas ao contrário: carregam inerentemente a nota da fantasia e do lendário. Não existe, aqui, um juízo valorativo a respeito da veracidade ou falsidade da informação: o próprio conhecimento é já apreendido com a sua nota de “fantasioso”, “mítico”, “não-verdadeiro”. E é sob esta clave que alguns ateus, segundo dizem, enxergam o Deus Todo-Poderoso.

Ora, eu naturalmente concedo que algumas pessoas possam imaginar o Criador nestes termos; concedo até que, em alguns casos, elas o façam sem malícia. O que não dá para conceder, de maneira alguma, é que tenham alguma razão nesta idéia. E é aqui que entra a história do burro ou do mal-intencionado: semelhante compreensão é tão estapafúrdia, tão distante da realidade, tão incompatível com o que ensina quer a teologia natural, quer as doutrinas religiosas, que aderir a ela — parece — só é possível se o fulano for muito burro ou estiver com muita má vontade.

Contudo, isto é um reducionismo que se deve evitar, tanto porque é impreciso (pelas razões que serão expostas mais embaixo) quanto porque é contraproducente (por razões óbvias: a pessoa apodada de burra ou mal-intencionada não costuma se mostrar muito receptiva a ouvir o que o seu interlocutor tem a dizer). É sim verdade que a Fé Católica, como ato para cuja concretização convergem a inteligência e a vontade, é alcançável a todo ser humano que esteja com as adequadas disposições intelectuais e volitivas. Contudo — e aqui está a raiz do problema –, nem toda dificuldade intelectual é sinônimo de burrice e nem todo problema da vontade significa que o sujeito está mal-intencionado.

O pe. Leonel Franca tem um excelente livro sobre o assunto (“A psicologia da Fé”), onde ele disserta sobre o que a Doutrina Católica convencionou chamar de praeambula fidei — que são aqueles assuntos alcançáveis à inteligência natural e reconhecíveis por todos os seres humanos, independente de eles terem Fé ou não, e que distingue completamente o Deus Todo-Poderoso do Saci-Pererê acima referido. Afirma o prelado que os obstáculos à Fé são de duas naturezas: de ordem intelectual e de ordem moral, i.e., respectivamente da ordem do conhecimento e da ordem da vontade. E compreender as coisas sob esta ótica muda radicalmente o assunto.

A questão não é meramente de nomenclatura: burrice e má intenção são substantivos de conotação pejorativa e, mais do que isso!, que implicam num certo juízo de censura sobre quem detém essas características. No caso da burrice talvez não se o perceba tanto, mas no da intenção má esta característica é evidente: o sujeito que está mal-intencionado é pessoalmente responsável pela prática deliberada de um ato reprovável. Já um obstáculo não é assim: aqui o termo é mais neutro, e a diferença terminológica reflete uma diferença de realidade muito importante. A pessoa pode fingir que não entende o Cristianismo, sim, mas essa não é a única fonte possível da incredulidade. Um sujeito pode deter muito honestamente uma gama de conhecimentos equivocados, e pode fazê-lo com bem pouca (ou até mesmo nenhuma) culpa própria particular. Pode, por conta disso, levar um determinado estilo de vida — as coisas que nós fazemos são condicionadas por aquelas nas quais acreditamos — incompatível com as exigências da Fé, e o primeiro impulso de preservar sua visão de mundo particular é perfeitamente humano e saudável. Tudo isso são obstáculos à crença; nem tudo é igualmente reprovável; e decerto os modos de superar os diversos obstáculos à Fé são bastante diferentes entre si.

Em suma, nem todo não-católico é pessoalmente desonesto. Pode acontecer — e ouso imaginar que é esta a maior parte dos casos — de ele partir de premissas incompatíveis com as do Catolicismo e, mediante métodos de inferência perfeitamente honestos, chegar a conclusões incompatíveis com as da Igreja. Obviamente, há premissas corretas e premissas equivocadas; mas a questão da veracidade ou falsidade dos pressupostos básicos de nossas visões de mundo é um pouco mais complicada do que o reducionismo “você é burro ou mal-intencionado” induz a acreditar. Sim, todo ser humano é chamado por Deus à Fé Católica, e é portanto capaz de responder-Lhe; sim, aquilo que impede o ser humano de oferecer ao Deus Onipotente o seu obséquio da inteligência e da vontade que caracteriza o ato de fé é um obstáculo, quer intelectual, quer moral; sim, o nosso papel deve ser, sempre!, o de fazer o que estiver a nosso alcance para retirar as barreiras que impedem os nossos próximos de viver a liberdade dos filhos de Deus. Mas não é possível subsumir igualmente toda descrença à deficiência mental de quem é um completo parvo ou à perversidade moral de quem se recusa a aceitar o que sabe ser verdadeiro. O papel de todo cristão, repita-se, é levar todas as almas à Fé. E, para fazê-lo, é fundamental que as coisas sejam compreendidas e apresentadas como de fato são — sem reducionismos fáceis, nem maniqueísmos cômodos.

Da conveniência de uma Liturgia Universal

Confesso ter certa dificuldade com uma coisa que, em tempos normais, não deveria ser capaz de angustiar católico algum: assistir a Santa Missa em um lugar distinto do habitual. Se a Igreja é Católica — i.e., Universal — e se a Liturgia é o serviço público da Igreja (“público” aqui tem o sentido de “oficial”), seria de se esperar que esta catolicidade se refletisse, também e talvez até principalmente, na maneira como a Igreja presta o Seu culto a Deus, independente do lugar em que se desse a celebração do Santo Sacrifício.

Eu entendo o argumento de que o Evangelho não é uma cultura pronta e acabada mas, ao contrário, uma força capaz de orientar para Cristo tudo aquilo que é verdadeiramente humano — e, portanto, tem em Si próprio a força de elevar a Deus qualquer cultura. Mas disso não me parece decorrer que o culto a Deus deva reproduzir as particularidades de cada povo, de cada grupo social, de cada costume local (ainda que legítimo). Ao contrário: penso que, no que diz respeito à Sagrada Liturgia, a catolicidade da Igreja deve se sobrepôr à legítima particularidade dos fiéis que do culto divino tomam parte em um momento histórico específico e em um lugar determinado do globo terrestre. Há, penso, diversas razões para que isto deva ser dessa maneira, das quais as três a seguir não são as menos importantes.

Em primeiro lugar, por uma questão de, se é possível chamar assim, sacramentalidade. O sacramento é um sinal e isto significa que a Liturgia da Igreja é, ela toda, uma linguagem. Para além da graça eficaz que é inerente a todo Sacramento, há uma mensagem que a Liturgia precisa transmitir — e esta mensagem precisa falar à inteligência, à compreensão de cada fiel. Ora, esta mensagem é por definição extraordinária: a linguagem da qual ela se reveste, portanto, para ser proporcionada ao conteúdo que se presta a transmitir, precisa ser, ela também, extraordinária. Precisa se afastar do quotidiano, das coisas do dia-a-dia, dos símbolos usados ordinariamente para tratar das coisas da vida: a Liturgia precisa, assim, distanciar-se dos costumes e usos sociais legitimamente vigentes em cada sociedade. Isso é necessário para que o católico veja, na Liturgia, já ao primeiro vislumbre, algo diferente do comum dos dias: é a clássica distinção entre o sagrado e o profano, difícil de exprimir hoje em dia porque o segundo termo adquiriu um caráter pejorativo que não se pode ignorar. O que quero dizer é simplesmente o seguinte: nem tudo o que é humanamente legítimo é adequado à Sagrada Liturgia e nem tudo o que não cabe no Culto Divino é, por isso mesmo, pecaminoso ou indigno. Esta é uma compreensão que se precisa urgentemente resgatar: munidos dela, os católicos seriam mais comedidos em introduzir nas suas celebrações estes elementos estranhos ao espírito da Liturgia e que tanto atrapalham a frutuosa participação dos fiéis.

Em segundo lugar, porque todo legítimo processo de inculturação é mais passivo do que ativo: isto significa que os homens mais têm a sua cultura purificada pela Igreja e moldada ao vigor do Evangelho do que constroem, eles próprios, o seu contributo pessoal ao Catolicismo, o seu tijolo personalizado a integrar as muralhas da Cidade Santa de Deus. O contato transformador com o Evangelho não é um exercício imaginativo ou uma experiência inefável com um fantasma amorfo: se os primeiros cristãos encontraram-se com um Cristo verdadeiramente humano, com um rosto próprio e uma voz particular, é com uma Igreja concreta que se prolonga na História este encontro salvífico — e esta Igreja tem a Sua própria face e a voz que indistintamente é d’Ela. Tem Seus símbolos e Sua linguagem, que A identificam e sem os quais não é possível haver verdadeiro encontro entre os filhos de Deus e a Esposa de Cristo. Se é verdade que há muitas características distintas que cabem no conceito de “homem”, é igualmente verdade que no Verbo de Deus encarnado encontram-se características humanas específicas — uma dada cor de pele, um específico tom de voz, determinada cor de olhos e de cabelos etc. Ora, é claro que há incontáveis elementos humanos com os quais se poderia conceber uma instituição que anunciasse o Evangelho; mas a Igreja, que é o Corpo de Cristo, possui alguns elementos determinados e específicos que respondem por Sua individualidade histórica e por Sua natureza encarnada. E da mesma forma que todo ser humano encontra-se em Cristo Encarnado sem que Ele precise ter ao mesmo tempo todas as distintas características físicas de cada indivíduo, toda cultura humana encontra-se na Igreja de Cristo sem que Ela precise reproduzir em Si mesma todas as culturas — ou cultura nenhuma.

Em terceiro lugar, por fim, por uma questão de catolicidade. A unidade de rito faz com que todo católico, em qualquer parte do mundo em que se encontre, possa vivenciar a Liturgia do modo que está acostumado. Isso complementa admiravelmente o que se dizia acima: se por um lado o católico precisa sentir-se sempre um pouco estrangeiro ao adentrar na igreja da sua terra natal, por outro ele precisa experimentar sempre um ar de familiaridade ao ingressar na igreja de uma terra estranha. O rito católico, justamente por ser universal, não é de lugar algum e é simultaneamente de todos: não existe nenhum fiel capaz de pretender que aquele rito reflita exatamente os costumes particulares do seu povo ou do seu grupo, mas também ninguém pode dizer tratar-se de celebração alienígena que em tudo lhe é estranha. A Sagrada Liturgia é de todos exatamente por não ser de ninguém em particular; esta manifestação sensível de catolicidade fortalece a Igreja e contribui para que todo fiel possa viver melhor a sua Fé. Fazer diferente disso não é enriquecer a cultura particular do fiel, mas ao contrário: é sepultar a cultura universal de todo católico e, fechando-lhe o acesso ao fiel, privá-lo de uma dimensão de eclesialidade que não se pode satisfatoriamente substituir.

Eu pensava nessas coisas porque, em viagem, precisei recentemente assistir a Santa Missa em lugar que eu não conhecia. Mas os meus temores não se concretizaram: Deus foi misericordioso comigo, e me presenteou com uma Missa impecável, celebrada por um sacerdote zeloso cujos olhos estavam o tempo inteiro voltados para Deus. Que o Altíssimo abençoe e recompense aquele padre, que me proporcionou uma bela Missa. Uma Missa sóbria, reverente, comedida, sem invencionices, que poderia ter sido celebrada em qualquer lugar do mundo, por qualquer sacerdote — e, justamente por isso, uma Missa tão católica.

Deus e o ônus da prova

Um leitor do blog afirma que reclamar provas da inexistência de Deus é “inversão do ônus da prova” e “desonestidade intelectual”. O raciocínio dele, imagino, é que compete a quem faz uma alegação oferecer os fundamentos nos quais tal alegação se baseia: portanto, não é verdade que a crença ateísta e a Fé em Deus estejam no mesmo patamar epistemológico, quando menos porque uma das duas proposições detém um ônus que a outra não possui. Ora, esta pretensão não tem sentido, pelos motivos que passo a expôr.

Em primeiro lugar, cabe apontar que isto aqui não é uma lide jurídica, onde o Magistrado deve distribuir os encargos probatórios entre as partes e julgar desfavoravelmente àquela que não se desincumbir do ônus da prova. O Direito é eficiente para a solução de conflitos jurídicos, mas o seu método não deve ser aplicado indistintamente a tudo quanto existe no mundo. Em particular, aliás, é importante ter em vista que uma coisa não se torna “falsa” porque o seu patrono não a conseguiu provar em juízo: é perfeitamente possível que alguém não se desincumba do ônus da prova e, mesmo assim, factualmente, a sua alegação seja integralmente verdadeira. Nos termos mais genéricos que se já tornaram clássicos: ausência de evidência não é evidência de ausência. A frase, a propósito, é de Carl Sagan, que não é propriamente um fanático religioso.

Em segundo lugar, existem incontáveis provas da existência de Deus: o problema é que a crença irreligiosa as rejeita por princípio! Os maiores pensadores da humanidade, desde que o mundo é mundo, sempre se esmeraram por elaborar provas de que Deus existe. Há-as aos borbotões. Aristóteles universalizou o conceito de Primeiro Motor Imóvel. Duns Scotus abordou o problema em diversos lugares de sua obra. Santo Agostinho também esboçou a sua prova da existência de Deus n’O Livre Arbítrio. Santo Tomás de Aquino tem as clássicas Cinco Vias (em vídeo aqui). Santo Anselmo tem o argumento ontológico e, Leibniz, o cosmológico. Descartes escreveu as suas Meditações Metafísicas com o mesmo intuito. Enfim, para onde quer que olhemos, deparamo-nos sempre com o engenho humano que, nos mais arrojados vôos do intelecto, no ápice do pensamento de cada época, esforça-se por fazer teologia natural.

O problema, portanto, não é que os crentes em Deus se eximem de apresentar aos céticos as “razões de sua esperança”. O problema é que a cosmologia cética rejeita a priori tudo aquilo que seja com ela incompatível — e nisso ela é indistinguível de qualquer outra religião. A crença atéia não admite a investigação metafísica, e isso não porque falte à metafísica rigor metodológico ou envergadura intelectual, mas simplesmente porque a metafísica é, em princípio, incompatível com a crença atéia. Nisso os seus adeptos reproduzem perfeitamente a caricatura que de modo brilhante lhes fez Chesterton:

A questão histórica contra os milagres é muito simples. Ela consiste em considerar os milagres impossíveis, e então afirmar que apenas um idiota acredita em impossibilidades: então declarar que não há nenhuma clara evidência a favor dos fatos miraculosos. Todo o truque é feito por meio do uso alternado da objeção filosófica e da objeção histórica. Se dizemos que os milagres são teoricamente possíveis, eles dizem: “Sim, mas não há evidência deles.” Quando coletamos todos os registros da raça humana e dizemos “Eis nossa evidência”, eles dizem: “Mas esses povos eram supersticiosos, eles acreditavam em coisas impossíveis.” (Chesterton, G. K. Milagres e a Moderna Civilização).

Finalmente, em terceiro — e mais importante — lugar, se é no geral verdade que o ônus da prova cabe a quem afirma, este princípio comporta algumas importantes exceções. Uma coisa é a alegação isolada e extravagante de Sagan de que há, em sua garagem, um dragão invisível. Uma outra coisa, completamente diferente, é a convicção universal — de virtualmente todos os homens, de todos os tempos e lugares, povos e culturas — de que existe um (ou mais) Deus(es) a responder pela Criação. As duas coisas não estão, absolutamente!, no mesmo patamar epistemológico; e quem ainda não entendeu isso precisa, urgentemente, pôr a cabeça para fora da seita atéia onde anda enfurnado e cogitar ao menos a possibilidade de que exista vida inteligente fora dos seus estreitos círculos de referência intelectual.

Para explicar como pode ser falsa uma alegação extravagante de um indivíduo isolado — como o dragão de Carl Sagan ou o bule de chá de Bertrand Russell –, basta classificar o seu propagador de louco, ou de ignorante ou de mentiroso, e não há nenhum problema com isso. É perfeitamente razoável que um único indivíduo se engane, ou que tenha a intenção de enganar terceiros, ou que detenha alguma deficiência dos sentidos ou do intelecto que lhe faça acreditar em coisas que não são verdadeiras. No entanto, uma alegação feita unanimemente por um número incontável de pessoas, das mais diversas classes sociais, das culturas as mais díspares, dos hábitos o mais incompatíveis possível, uma alegação, em suma, para a qual convergem, independentes entre si, «tantos povos distantes no tempo e no espaço» exige uma explicação mais convincente do que “essa gente era supersticiosa”. O erro de um único indivíduo é uma coisa perfeitamente natural, prosaica até, e que se aceita sem maiores dificuldades; o erro universal, no entanto, no qual teimam em incorrer os seres humanos mais diferentes do mundo, é uma coisa verdadeiramente extraordinária. E alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias. Quem afirma, portanto, que estavam — e estão — erradas multidões inumeráveis de seres humanos, dos mais simplórios às mentes mais extraordinárias, dos humildes aos poderosos, detém, sim, o ônus de provar esta alegação extravagante. É óbvio que detém, e não se pode considerar irrefutavelmente demonstrada a sua tese por meio de um lacônico “ah, essa gente é ignorante” que raia a puerilidade.

E os grandes expoentes do ateísmo sabem perfeitamente que o precisam demonstrar. Tentam-no. Que outra coisa é o Blind Watchmaker de Dawkins senão uma hipótese metafísica alternativa à Quinta Via tomista? Em quê as diatribes lançadas por Christopher Hitchens às religiões no seu “Deus não é grande” são diferentes da apologética religiosa tradicional que almeja apresentar a própria visão de mundo superior às demais? As contrarrazões que Dawkins — ainda ele — tenta apresentar à teologia natural no seu “Deus, um delírio”, não são porventura o reconhecimento simultâneo tanto de que os crentes têm historicamente apresentado evidências que dão suporte às suas crenças quanto de que os incrédulos precisam, igualmente, demonstrar o seu ponto de vista?

A cosmologia incrédula é, ela própria, uma alegação, e precisa portanto ser demonstrada. É uma alegação, aliás, extraordinária — como pode a noção da existência de Deus se ter generalizado, espontânea e independentemente, por toda a humanidade? Como pode a admirável ordem do Universo ter surgido ao acaso de todas as infinitas possibilidades de configurações da existência? Por que existe algo e não o nada? Como podem existir e continuar existindo coisas que não têm em si mesmas a razão da própria existência? — e que por conseguinte demanda evidências extraordinárias em seu favor. É louvável que os partidários do ateísmo busquem argumentar em defesa de suas crenças. Mas não se pode pacificamente pretender que tenham já logrado êxito em provar as suas alegações com o rigor que o assunto exige. Merecem, sim, um lugar no panteão da humanidade; imaginar que lhes caiba mais do que um nicho neste templo, no entanto, e pretender impô-lo a todos, aí já é fanatismo delirante, que é dever civilizacional combater.

O que diz a Igreja sobre as sociedades secretas?

Um leitor do blog pergunta:

E além do tema do Comunismo, o que diz a Doutrina da Igreja sobre a adesão de batizados às sociedades secretas e relacionado a esse tema da excomunhão?

Pode esclarecer a respeito?

É o seguinte:

I. O Código Pio-Beneditino previa, no seu cânon 2335, explicitamente, excomunhão automática, reservada à Sé Apostólica, para quem aderisse à maçonaria:

Can. 2335. Nomen dantes sectae massonicae aliisve eiusdem generis associationibus quae contra Ecclesiam vel legitimas civiles potestates machinantur, contrahunt ipso facto excommunicationem Sedi Apostolicae simpliciter reservatam. [“Quem inscrever seu nome na seita maçônica ou em outras associações, do mesmo gênero, que conspiram contra a Igreja ou contra as legítimas autoridades civis, incorre ipso facto em excomunhão reservada à Sé Apostólica” — tradução livre minha.]

II. Em 1981, antes da entrada em vigor do novo Código, a Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma declaração onde dizia que «não foi modificada de algum modo a actual disciplina canónica» e, portanto, que não foi tampouco «ab-rogada a excomunhão nem as outras penas previstas». O antigo cânon, então, «veta[va] aos católicos, sob pena de excomunhão, inscreverem-se nas associações maçónicas e outras semelhantes».

Ou seja: nesta época, embora houvesse um cuidado (que se pode dizer pastoral) para distinguir as responsabilidades individuais em cada caso concreto, a Igreja absolutamente não mudara nem estava em vias de mudar o seu «juízo de carácter geral sobre a natureza das associações maçónicas», que permanecia negativo.

III. No final de 1983, no ano em que foi publicado o novo Código de Direito Canônico, a mesma Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma segunda declaração onde dizia que continuava «imutável o parecer negativo da Igreja a respeito das associações maçónicas, pois os seus princípios foram sempre considerados inconciliáveis com a doutrina da Igreja e por isso permanece proibida a inscrição nelas». Ainda, acrescentou que os «fiéis que pertencem às associações maçónicas estão em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão».

Há aqui uma mudança de direito eclesiástico: ab-rogado o antigo cânon 2335 sem que se lhe tenha colocado no novo Codex dispositivo correspondente, permanecia contudo a proibição aos católicos de ingressarem na maçonaria, sob pena não mais de excomunhão, mas de pecado grave.

Continuava e ainda continua vigente, não obstante, o cânon que prevê excomunhão automática para «o apóstata da Fé, o herege e o cismático» (CIC 1364). Portanto, se a adesão a uma loja maçônica ou a qualquer outra associação análoga importar em um pecado contra a Fé, o sujeito queda excomungado automaticamente: não mais pela inscrição na maçonaria (pena do antigo cânon 2335), mas pelo pecado contra a Fé Católica (pena do atual cânon 1364). É o mesmo raciocínio aplicável à questão da excomunhão dos comunistas.

IV. Pouco depois de um ano, em 1985, foi emitida pela CDF uma terceira declaração, mais longa que as anteriores. Esta é muito interessante e vale uma leitura na íntegra, porque distingue bem as questões morais (aquilo que é pecado) das penais (o subconjunto dos pecados ao qual são impostas determinadas penas pelo Direito Canônico). Além disso, explica detalhadamente os princípios que norteiam o parecer negativo da Igreja sobre a maçonaria:

Mesmo quando, como já se disse, não houvesse uma obrigação explícita de professar o relativismo como doutrina, todavia a força “relativizante” de uma tal fraternidade, pela sua mesma lógica intrínseca[,] tem em si a capacidade de transformar a estrutura do acto de fé de modo tão radical que não é aceitável por parte de um cristão, “ao qual é cara a sua fé” (Leão XIII).

Esta solução canônica, conclua-se, é a que está atualmente vigente: participar da maçonaria ou de outras sociedades secretas é pecado grave e, na medida em que esta participação leve a um pecado contra a Fé, conduz à excomunhão por heresia, apostasia ou cisma do cânon 1364.

V. Para fins informativos — pois os aspectos normativos vigentes são os que foram acima expostos — é interessante anotar o seguinte: um recente “questionário sobre a descrença” coloca a maçonaria (cf. q. 3.4) entre os «fenômenos ou movimentos para-religiosos»; e o Papa Francisco, quando esteve em Turim no ano passado, fez uma referência bem pouco positiva aos maçons:

[E]m finais do século xix a juventude crescia nas piores condições: a maçonaria estava no auge, até a Igreja nada podia fazer, havia o anticlericalismo, o satanismo… Era um dos momentos mais obscuros e um dos lugares mais tristes da história da Itália

VI. Em resumo, é possível sintetizar o que segue:

  • A mera inscrição na maçonaria ou em outras sociedades secretas não implica mais em uma pena de excomunhão automática.
  • Todavia, mesmo a mera inscrição é matéria de pecado grave, conforme reiteradas manifestações da Congregação para a Doutrina da Fé o afirmam (naturalmente, aplicam-se aqui os critérios morais genéricos dos pecados mortais, para cuja concretização exige-se conhecimento e livre consentimento).
  • Os princípios da maçonaria são irreconciliáveis com os da Fé Católica, de tal sorte que a adesão àqueles «tem em si a capacidade de transformar a estrutura do acto de fé» católico.
  • Na medida em que o católico inscrito na maçonaria tenha a sua fé deturpada, aplica-se-lhe a pena de excomunhão do cânon 1364 — não mais pelo mero ingresso na loja maçônica, mas sim pela deturpação da sua fé provocada por ela.

Com isso respondem-se as dúvidas colocadas sobre o assunto.

Riquezas do Catolicismo: consciência das próprias misérias

Acho que é de Chesterton a frase segundo a qual tornar-se católico é o único meio que o ser humano tem de escapar à condição de ser escravo do seu tempo. Ao converter-se à Igreja Católica todo fiel coloca-se, imediatamente, sobre os ombros de vinte séculos de humanidade, e adquire uma visão de mundo de um tal alcance que não seria capaz de obter de outra maneira.

Isso tem incontáveis implicações. Uma delas — fundamental, aliás, para qualquer processo de conversão sério — é notar que não existe nenhum pecado que não seja alcançado pela misericórdia de Deus. Nenhuma ofensa, por grande que nos pareça, é capaz de oferecer obstáculo verdadeiro à Graça alcançada por Cristo na Cruz do Calvário; não existe nenhum pecado que não possa ser verdadeiramente remido (e faço um parêntese: é por isso que rezamos, no Símbolo Apostólico, que cremos “na remissão dos pecados”, remissão verdadeira e própria, i.e., extinção, aniquilamento, destruição, desaparecimento. Isto é muito mais forte do que “ficar quite” após o cumprimento de uma pena: a remissão dos pecados é o fim da própria dívida que implicava na pena); não existe, dizia, nenhum pecado que não possa ser perdoado pelo Deus que é Todo-Poderoso exatamente para cancelar a paga que, por dívida de justiça, incumbe-nos prestar pelo mal que praticamos.

Não há pecado algum que não possa ser perdoado: esta é uma verdade que nos deve reconfortar. Mas a ela corresponde uma outra verdade, infelizmente menos lembrada mas nem por isso menos verdadeira, e que deveria nos fazer vigilantes e cuidadosos: do mesmo modo que não há pecado que não possa ser perdoado, não há também pecado, por grave que seja, que não possa ser cometido. Ninguém está imune a ofender a Deus! Ao contrário até: se não o fazemos, é porque Ele nos sustenta com a Sua Graça. Se não fosse por Ela, se Ela nos faltasse um instante sequer, pereceríamos verdadeira e miseravelmente, sem que nada pudéssemos fazer.

A tradição da Igreja é rica neste tipo de meditação, desde a advertência paulina (qui se existimat stare videat ne cadat — “quem julga estar de pé cuide para que não caia”, 1Cor 10, 12) até, por exemplo, esta eloquente passagem de S. Luís de Montfort que sempre me pareceu comovente:

Ah! Quantos cedros do Líbano, quantas estrelas do firmamento não têm-se visto cair miseravelmente e, em pouco tempo, perder toda a sua elevação e claridade! Donde proveio esta estranha mudança? O que faltou não foi a graça, que não falta a ninguém, foi a humildade. Julgaram-se mais fortes e mais capazes do que eram; julgaram que podiam guardar os seus tesouros. Fiaram-se e apoiaram-se em si mesmos. Acharam a sua casa bastante segura e os seus cofres bastante fortes para guardar o precioso tesouro da graça.

Tratado da Verdadeira Devoção, 89

Somos fracos, ainda que não o experimentemos, ainda que as pessoas que nos são próximas não o sejam capazes de perceber. Temos no nosso interior o desejo do infinito, sim, e uma capacidade extraordinária de abertura à graça de Deus; mas temos também, inafastavelmente, o poder de pecar, a capacidade da mesquinharia, a possibilidade da traição vil e covarde, a aptidão para os mais horrendos pecados. Tal consciência é uma riqueza da experiência cristã multissecular, parte do tesouro atemporal que se recebe ao tornar-se católico.

Eu pensava em tudo isso quando li esta matéria sobre um senhor de 67 anos que matou, decapitou e cortou os dedos da mulher com quem era casado há 37 anos. Esta espécie de crime bárbaro a gente costuma imaginar que é praticado por monstros, por doentes mentais, por pessoas cujos valores são totalmente diversos dos nossos; não parece ser o caso do sr. Jair. Pela história que foi contada não se tratou de nada minimamente premeditado: após uma briga, ele empurrou a mulher que «bateu a cabeça no chão e, por conta do ferimento no crânio, acabou morrendo». Naquele momento, «[d]esesperado», ele «decidiu decapitar a mulher e cortar as pontas dos dedos das mãos da vítima, para dificultar a identificação por parte da polícia»; na delegacia, ao relatar o seu desaparecimento, acabou entrando em contradições e, pressionado, terminou por confessar o crime.

Eu li a história e ela não me pareceu somente uma desculpa fajuta de um criminoso inveterado; talvez pelos cabelos brancos do idoso, pelos seus muitos anos de casamento, pela reação do filho do casal… não sei ao certo, mas acreditei no relato. E me parece, sim, que o sr. Jair está sofrendo, intimamente, as conseqüências das suas atitudes. Isso o torna mais humano. E isso nos torna, a todos nós, humanos miseráveis, mais próximos dele. E também ele, por mais inquietante que isso nos pareça, mais próximo de nós.

Quantos cedros do Líbano não têm caído por terra…! “Bom marido”, quase quatro décadas de casado, cabelos brancos, bons antecedentes. Que ninguém se julgue bom demais, perfeito demais, evoluído demais, auto-suficiente demais. Não o somos, e a realidade nos grita aos ouvidos, o tempo inteiro, que não o somos. Há sempre espaço para o arrependimento — esta é a grande maravilha da misericórdia de Deus! Mas há também sempre espaço para a queda. O demônio anda à nossa espreita, procurando nos devorar…! Tomemos cuidado. Vigiemos, que são muitos os melhores que nós que já caíram em suas garras.

O ateísmo não passa de um arremedo de religião

Li n’O Antagonista a tradução de alguns trechos do primeiro editorial do ano da revista francesa Charlie Hebdo. Devemos todos nos lembrar: no dia 07 de janeiro de 2015, a redação do semanário foi metralhada por terroristas islâmicos.

Um ano após o ataque, a revista lança mais uma vez uma capa provocativa e um editorial raivoso. E o interessante aqui é encontrar, na pena do atual diretor do jornal, o mais irracional fanatismo religioso — do mesmo tipo que o sr. Laurent Sourisseau se esmera por projetar nos seus desafetos. A sua honestidade (quiçá involuntária) chega a ser tocante: em um rasgo de proselitismo, afirma que «as convicções dos ateus e dos laicos podem mover ainda mais montanhas que a fé dos crentes» e, com o fervor expectante de um religioso afrontando os infiéis, profetiza que «[n]ão serão eles [os autores do atentado] a assistir à morte de Charlie. Será Charlie a vê-los morrer.» É uma pena que ele não tenha a coragem de retratar os seus verdadeiros desafetos e, ao invés disso, tenha preferido usar, na capa de Charlie, a figura do Deus cristão ocidental e não a de Maomé. Mas os atos humanos são produtos de suas convicções mais íntimas — é outra forma de dizer «ex abundantia enim cordis os loquitur»… –, e de uma crença medíocre como o ateísmo de Charlie Hebdo é de se esperar que não venha, mesmo, de ordinário, senão atitudes medíocres.

Tudo isso, trazido aqui como exemplo, autoriza-nos a expandir a investigação a respeito do fenômeno irreligioso e concluir que o ateísmo, na verdade, não passa de um arremedo de religião. Afinal de contas, é uma cosmovisão cuja assertividade não é passível de demonstração empírica, com a qual se consente mediante argumentos de razoabilidade e de cuja adesão decorre certa tomada de posição frente aos grandes problemas da humanidade — de coisas mais abstratas como “qual o sentido da vida?” até questões mais concretas e que interessam a todos os membros da sociedade, como “o que é o certo e o errado?” ou “que crenças devem ser ensinadas às nossas crianças?”.

Esmiuce-se, para fins didáticos, a definição acima dada:

i) Trata-se de uma cosmovisão, i.e., uma visão integrada de mundo, pretensamente completa, capaz de responder inclusive às questões fundamentais da espécie humana que sempre estiveram sob o encargo das religiões. O mundo é o que é por conta do Big Bang e da evolução das espécies, a consciência é produto de reações bioquímicas no cérebro etc.

ii) Trata-se de algo, ainda, que não se pode demonstrar empiricamente. A proposição “Deus não existe” não pode ser provada em laboratório — que é o único meio de prova que a cosmovisão ateísta admite. A adesão a tal afirmativa, portanto, é, no sentido mais rigoroso do termo, uma crença, i.e., uma opinião, uma confiança, uma doxa.

iii) A esta doxa aquiesce-se mediante um raciocínio indireto: os que alegam que Deus existe não são capazes de provar a Sua existência, se Deus existisse e fosse Omnibenevolente não deveria haver mal no mundo, há uma quantidade muito grande de deuses, a maior parte dos quais patentemente falsos, então o mais provável é que todos sejam falsos mesmo, et cetera.

iv) Desta cosmovisão, finalmente, por uma razão de necessidade de coerência, decorrem posicionamentos exteriores frente às grandes questões da humanidade. Assim, como não existe um Deus para servir de ponto de referência para o Bem e o Mal, o fundamento ético precisa ser buscado em outro lugar — no consenso social, por exemplo. Por outro lado, como o conhecimento é melhor do que a ignorância, há um impulso natural para que o ateu esclarecido deseje banir a ignorância religiosa do mundo. Ainda: como toda cosmovisão é excludente, os ateus pretendem que à sua doxa somente seja socialmente concedido o status de “verdadeira” — e as outras religiões sejam todas consideradas indistintamente superstições. Os exemplos facilmente se multiplicam.

Ora, o paralelismo com as religiões tradicionais é notável; as religiões são i) visões de mundo que pretendem explicar a realidade de modo holístico, ii) cujos postulados não são passíveis de demonstração empírica, mas que por isso mesmo iii) fundamentam-se em argumentos de razoabilidade (do tipo “todo efeito pede uma causa proporcionada” ou “a ordem no Universo exige uma Inteligência ordenadora”, por exemplo) dos quais iv) decorre um determinado comportamento socialmente exigido (por exemplo, a opinião de que a sua crença é a única verdadeira e todas as outras são falsas, que se manifesta na busca por privilégios especiais para ela — como o direito do seu ensino oficial nas escolas).

Sob essa ótica, e ao contrário do que o sr. Sourisseau insinua, o problema que se coloca não é a opção entre o “ateísmo esclarecido” e a “religião irracional”. Muito ao contrário, a verdadeira questão é: dentre todas as respostas possíveis ao problema de Deus — nas quais se incluem o paganismo, o islamismo, o judaísmo, o hinduísmo, o cristianismo, o espiritismo, etc., e o ateísmo –, qual é a mais coerente? Qual das cosmovisões explica mais adequadamente a realidade? Qual é a que produz os melhores frutos? Qual a que torna os seres humanos mais íntegros, mais justos, mais felizes? Qual, enfim, a melhor entre elas? Sem dúvidas cabe muita discussão a respeito de qual o critério deste melhor; o que não dá, no entanto, é para continuar fingindo que o único critério aceitável é o raciocínio circular do “apenas o ateísmo liberta das antigas superstições, porque tudo aquilo que se refere ao sobrenatural é supersticioso”. À luz desta fundamentação, aliás, a cosmovisão ateísta se afigura a mais pobre de todas.

Enquanto houver pecadores

Estamos às vésperas do Natal, e estamos cansados. Não foi fácil este 2015; estamos cansados, esgotados até!, a ponto de se nos faltarem as forças mesmo para seguir em frente. Retrospectiva? Talvez o ano não tenha sido de tantas vitórias a celebrar, de tantas coisas positivas assim. Perspectivas? O próprio suor no rosto embota a visão e não permite enxergar longe, e os músculos tesos sob o fardo do ano que finda parecem incapazes nos conduzir à próxima esquina.

Estamos cansados, e na verdade importa pouco se tal cansaço é legítimo ou não. Tanto as trevas da noite quanto a cegueira nos impedem de ver o caminho que devemos trilhar, e diante do corpo que já não responde ao desejo de continuar andando não cabe perguntar se tal é fruto de desgaste ou de lassidão. A fadiga que a gente sente cansa do mesmo jeito.

Mas estamos às vésperas do Natal e isso importa. Porque não existe ano difícil que não possa ser consolado pelo nascimento de um Deus feito menino, e não existe cansaço que resista às ordens d’Aquele que prometeu aos fatigados que lhes daria descanso. Não existem trevas que não dêem lugar à luz verdadeira que ilumina todo homem! Enquanto houver pecadores Deus virá ao seu encontro. Hoje, como naquele dezembro distante, Ele vem para os Seus. E hoje, ao menos, importa que O recebamos.

Tem sido obviamente má compreendida a ênfase na misericórdia que o Papa Francisco por vezes impinge aos seus discursos. Ter misericórdia não significa o mesmo que condescender com o comportamento alheio, e em nenhum dicionário decente pode significar “chamar o mal de bem”. A misericórdia pressupõe o pecado; não o nega e nem o pode negar. A misericórdia, aliás, pressupõe os miseráveis: a eles — e só a eles! — se dirige. Haverá misericórdia enquanto houver pecadores. Retire-se o pecado, a misericórdia deixa de fazer sentido.

Mas também a misericórdia, para ser misericórdia verdadeira, precisa ser transformadora e não tem como ser diferente: ela transforma o homem pecador em virtuoso e não o pecado em virtude. É somente no coração dos homens que ela age e precisa produzir os seus efeitos. De outro modo é apenas oferta graciosa rejeitada pelos insensatos. De outra maneira é, mais uma vez, lux [quae] in tenebris lucet et tenebræ eam non conprehenderunt. Nada de novo, para vergonha nossa.

É Natal e é tempo — se assim se pode dizer — de atávicas ingratidões. Dois mil anos de Cristianismo não transformaram a Encarnação do Verbo no grande evento de conversões profundas que se poderia imaginar. Hoje, como naquele primeiro Natal, são poucos os que se reúnem em torno ao Deus feito Menino. Mas enquanto houver pecadores Ele nascerá. O nascimento de Jesus Cristo não exime ninguém de lutar pela própria perfeição: a voz de São João Batista clamando no deserto logo o dirá. Enquanto ainda houver pecadores, jamais se falará em misericórdia o suficiente. E enquanto continuar havendo pecadores, não se terá dado à Misericórdia a resposta que ela merece.

Estamos cansados, eu dizia, mas é Natal e temos duas opções. Podemos nos fechar no nosso próprio cansaço e, desanimados, acreditar que nada mais pode ser feito; mas podemos também deixar que o canto de Gloria dos anjos ecoe nos mais profundos recônditos de nossa alma e, abrindo-a de par em par ao Deus-Conosco, enxugar o suor e seguir em frente. Espera-se conversão daqueles a quem é oferecida misericórdia; aos que se oferece descanso, o que se exige — sem dúvidas — é a luta. Ad majorem Dei gloriam. Melhor do que vimos fazendo até então.

Que desta vez o Menino Jesus encontre ao menos mais uma alma disposta a velar-Lhe o sono infantil. Que Nosso Senhor seja recebido por pelo menos mais um daqueles para os quais Ele veio sofrer e morrer. Que desta vez as trevas cedam — um pouco mais! — à Luz que vem do Céu. Que não seja em vão.

Afinal, um Menino nos foi dado! Mostremo-nos agradecidos. Façamos — minimamente! — por onde O merecer.

Feliz Natal!

Pelos lábios dela fala a voz da experiência

O mais recente rebuliço das redes sociais está sendo provocado por uma única feminista que, tendo abandonado a sororidade, resolveu dedicar a vida pública a desmascarar o feminismo tupiniquim. Não sei exatamente a trajetória dela entre o fim das atividades do Femen Brazil e a sua apoteótica irrupção pública ocorrida há algumas semanas; sei, no entanto, que a vida da Sara Winter nunca foi e nem tem sido fácil.

vadianao

Ela o conta no seu livro — Vadia, não! Sete vezes que fui traída pelo feminismo –, cujo lançamento foi na última segunda feira. Li-o, e a sensação que fica da leitura é um misto de repulsa e pena. São sete pequenos capítulos, bem curtos, nos quais a autora conta (com o devido cuidado na utilização de pseudônimos) algumas histórias escabrosas pelas quais ela própria passou no seu passado de militante feminista. A autoridade da testemunha ocular — mais forte até: da própria envolvida diretamente nos eventos relatados — transforma a obra em uma denúncia que importa, penso, conhecer e fazer conhecida. Contra ela não cola a velha estratégia de afirmar que são os “de fora”, malvados e invejosos, esbravejando falsamente contra “as mulheres” que não fazem senão lutar por seus direitos: trata-se de uma insider, de uma militante feminista, ela própria mulher também, que se entregou à luta feminista com uma invejável paixão — quase como se se tratasse de um ofício sagrado — e que depois, decepcionada com o que viu e viveu, rompe agora o silêncio trazendo à tona aquilo sobre o que é, hoje em dia, deselegante falar.

Outro dia eu dizia que não faz ninguém ser feminista o ser a favor do voto das mulheres, ou a favor de que elas possam estudar nas Universidades, ou contra os seus maridos espancarem-nas, ou coisas do tipo. Isto não faz ninguém ser feminista porque estas pautas pertencem à humanidade, e não a grupo sectário algum. Querer o bem das mulheres é característica dos seres humanos civilizados e decentes; e o maior logro do qual se aproveitam os movimentos sedizentes “feministas” é, justamente, rotular todos os que lhes são contrários como se fossem ogros ávidos por bater em mulheres, impedir-lhes o acesso à educação, tratar-lhes como coisas sem vontade própria ou qualquer outra barbaridade do tipo que — importante! — ninguém defende. Com esta tática depravada pretendem estes movimentos limpar o terreno da opinião pública para dar livre curso às suas pautas verdadeiras — como o aborto, por exemplo, esta sim uma reivindicação feminista por excelência. Ser “contra o feminismo”, portanto, geralmente não significa querer reduzir as mulheres ao status de escravas de seus pais/maridos. A maior parte das vezes significa coisas muito mais prosaicas como ser contra o assassinato de crianças indefesas no ventre de suas mães.

Ser “contra o feminismo” não significa deixar as mulheres entregues à própria sorte. Ao contrário até: querer ajudar verdadeiramente às mulheres implica em denunciar os movimentos que as instrumentalizam em prol de seus (dos movimentos) próprios interesses escusos. Querer ajudar as mulheres só é possível, em última instância, colocando-se firmemente contra o feminismo. É isto o que se evidencia quando as coisas são analisadas com mais vagar e menos emoção, e quando se percebe que as notas características dos movimentos que se dizem feministas — notas que os distinguem dos outros grupos e ideologias sociais — na verdade têm pouco ou nada a ver com as mulheres.

Foi isto, aliás, o que a Sara Winter descobriu. “Meu intuito é despertar as meninas para ficarem bem longe do feminismo”, diz a chamada da entrevista que ela concedeu recentemente a Zenit. E pelos lábios dela fala a voz da experiência, a voz do testemunho de quem viveu por quatro anos naquele mundo. A voz machucada de uma mulher extremamente ferida, cujo alerta outro intento não tem que poupar as meninas dos sofrimentos pelos quais ela própria teve que passar. É sábio dar-lhe ouvidos.

E atenção!, que não se trata de uma Santa Madalena arrependida saindo pelo mundo com ardor sobrenatural a pregar ousadamente o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo! É simplesmente uma garota machucada pelo movimento feminista, que teve a coragem de levantar a cabeça e tentar (re)construir a própria vida não mais sob as garras daquelas que tanto lhe fizeram mal — e, por isso, merece todo nosso respeito e consideração. A Sara não precisa, assim, de encômios e nem de maldições, não merece que se lhe atirem pedras e nem confetes: do que ela realmente precisa, sem dúvida, é de nossas orações. Ser feminista deixa marcas profundas no corpo e na alma, das quais não é nunca fácil se desvencilhar: e o que esta garota está fazendo em público é admirável. Ouçam a Sara. Ajudem a Sara. Rezem pela Sara.

A religião é o ópio do povo

Hoje é a festa da Imaculada Conceição, e parece que o mundo entra em um saudável afastamento das coisas mundanas para se dedicar, com um pouco mais de afinco, às celestiais. Eu comentava mais cedo: à hora do almoço, a cobertura da Globo não versava sobre a crise econômica, sobre a carta-bomba de Michel Temer, sobre o Impeachment que está às portas, sobre nada disso. Ao contrário, a programação estava, ao vivo, no Morro da Conceição, aqui em Recife, mostrando imagens da festa, entrevistando os fiéis, com reportagens sobre a história da devoção etc.

A religião é o ópio do povo, diz a conhecida máxima marxista. A crítica é fruto de uma má compreensão. Na visão materialista, trata-se de atribuir uma qualidade negativa à religião porque ela “aliena”, porque ela afasta os seres humanos da sua capacidade de lutar por uma vida melhor e mais justa, porque ela tende a “acomodar” os indivíduos, mormente os mais fracos, à opressão que lhes impõem os poderosos: isso a torna o “ópio” que encarcera os miseráveis em sua miséria, que lhes impede assenhorear-se da própria história. À primeira vista parece até fazer sentido; no entanto, a concepção é equivocada. Trago três razões pelas quais ela se equivoca.

Em primeiro lugar, porque não existe verdadeira oposição entre a vida material e a vida espiritual: ambas se complementam e se interpenetram. O homem, que é corpo e alma, tem necessidades espirituais e as tem também materiais, e isso de tal sorte que, faltando uma delas, a outra adquire contornos desordenados. Os exemplos são bastante claros. A ênfase nas necessidades materiais alijadas de uma concepção espiritual degenera no consumismo desenfreado dos nossos dias. Por sua vez, uma supervalorização da espiritualidade — hipótese cuja existência é muito mais complicada e, por isso, mesmo os seus exemplos históricos são escassos — culminaria no desprezo ao mundo, típico dos cátaros medievais ou dos seguidores de Jim Jones. Em última análise, degeneraria no suicídio.

Um parêntese: é aliás interessante como o suicídio é encontrado nestes dois pólos aparentemente opostos, na “espiritualização” excessiva e desordenada como também na ultra-materialização da vida: as altas taxas de suicídio verificadas nos países nórdicos já se tornaram um lugar comum, a questionar incomodamente o mito do bem-estar material como característica suficiente para garantir qualidade de vida.

Em segundo lugar, porque a religião existe no mundo e, em um certo sentido, para o mundo. Sim, é óbvio que a religião é “para Deus” no sentido de que o culto é direcionado a Deus, digno de todo louvor, que o homem voltar-se ao Seu Criador é um dever de justiça et cetera; tudo isto é verdade e está fora de discussão aqui. Mas a religião não elide — ao contrário, pressupõe — os deveres dos homens para com os outros homens, para com a família e a pátria, os pobres e os desvalidos, as autoridades constituídas. É este o sentido da famosa apologia de Santo Agostinho: os que dizem que a Doutrina de Cristo é inimiga do Estado, dêem-nos soldados como a Doutrina de Cristo ensina que devam ser os soldados, pais e filhos como a Igreja ensina que devam ser os filhos e os pais, maridos como aquela Doutrina determina que sejam os maridos, esposas como ela ensina que devam ser as esposas, patrões e empregados, juízes e reis, contribuintes e cobradores de impostos como os forma a Doutrina de Cristo — e, depois, venham falar em oposição entre os interesses do Evangelho e os do Estado (cf. Carta 138, 15). À religião, portanto, ao menos à religião verdadeira, não cabe a censura de afastar os seres humanos dos cuidados do mundo. Ao contrário, ela exige este cuidado como condição para a salvação da própria alma, que é o dever máximo incutido nos espíritos dos fiéis pelos sermões que ecoam o Evangelho de Nosso Senhor.

Em terceiro lugar, por fim, e mais importante, porque a religião tem pretensão de universalidade: os seus destinatários não são somente os pobres e desvalidos (os quais fossem, talvez, induzidos a abaixar a cabeça e aceitar passivamente a injustiça da própria condição), mas igualmente os ricos e poderosos. Ora, a mesma doutrina que manda suportar as adversidades é aquela que diz que os homens devem suportar as cargas uns dos outros. A religião que exalta a pobreza é a mesma que manda os ricos venderem os seus bens para das aos pobres. De que maneira levar a sério a pregação de um, v.g., São João Crisóstomo — «Não fazer os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos» (cf. Catecismo, 2446) — poderia levar à manutenção do status quo degradante e excludente contra o qual a sensibilidade humana, com toda a razão, insiste em protestar? Na verdade, não é os pobres terem religião o que mantém o mundo injusto. Ao contrário, o mundo continua insuportavelmente injusto porque os ricos e poderosos não dão ouvidos ao que prega a Doutrina de Cristo!

Hoje é a festa da Imaculada Conceição; e esta festa, que hoje ganha espaço nos nossos meios de comunicação em meio à turbulência do noticiário político e econômico, tem na verdade uma divulgação muito menor do que mereceria. Se o Brasil acorresse aos pés da mãe de Deus, os males que hoje o afligem dissipar-se-iam qual névoa ao amanhecer. Em meio à atividade febril do dia a dia, portanto, importa que cada um de nós, brasileiros, não nos esqueçamos jamais de colocar no centro de nossa vida, no centro de nossa atenção, aquilo que é verdadeiramente importante: nossa Senhora da Conceição, rogai por nós, salvai o Brasil! Sem esta jaculatória constantemente nos lábios e no coração tudo o mais que façamos será inútil. Sem isso, não lograremos senão fatigarmo-nos em vão.