O Reino de Deus não é comida nem bebida

Um leitor desafia:

Aliás, por que não comenta a diferença [nas regras do jejum e da abstinência] do Código de Direito Canônico de 1917 com o atual?

Façamos melhor! Comparemos o Código Pio-Beneditino com a praxis ortodoxa e com a cristã primitiva. Que tal?

Para o Código de 1917, de acordo com esta excelente sistematização:

  • faz-se abstinência toda sexta-feira do ano;
  • faz-se jejum todos os dias da Quaresma;
  • faz-se jejum e abstinência em algumas datas específicas («na Quarta feira de Cinzas, em toda Sexta-feira e Sábado da Quaresma e das Quatro Têmporas, nas vigílias de Pentecostes, da Assunção da Mãe de Deus ao Céu, de Todos os Santos e da Natividade do Senhor»).

Para os ortodoxos:

  • faz-se «jejum normal às quartas e sextas-feiras» do ano todo (com algumas exceções: p.ex., «entre o Domingo do Fariseu e do Publicano e o do Filho Pródigo»);
  • seguem-se complicadas regras de abstinência para a Quaresma (v.g. na primeira semana, além do jejum, é permitido «comer apenas vegetais cozidos com água e sal, e também coisas como frutas, nozes, pão e mel»; na Quinta-Feira Santa, «uma refeição é permitida com vinho e óleo»; no Sábado Santo, «ao fiel que permanecer na igreja para a leitura dos Atos dos Apóstolos, para sustentar suas forças é dado um pouco de pão e frutas secas, com um copo de vinho»; etc.).

Para os primitivos cristãos:

  • fazia-se jejum toda semana, na quarta-feira e na sexta-feira;
  • o jejum «consistia na abstenção de todo o alimento e de toda a bebida até a hora nona, isto é, até o meio da tarde»;
  • além destes, os «jejuns que precediam a Páscoa (…) foram fixados em quarenta dias, em memória do jejum que Cristo fez no deserto».

Que conclusões podemos tirar dessas informações? Que os cismáticos ortodoxos são os que mais se aproximam da Igreja fundada por Nosso Senhor? Que o Código Pio-Beneditino era de um relaxamento modernista criminoso em comparação com as regras do jejum praticadas em outros tempos e lugares? Que a Igreja vem passando, ao longo dos séculos, por um gradual processo de degeneração no que concerne à pureza das práticas penitenciais que os Apóstolos legaram aos primeiros cristãos?

Nada disso. A única coisa que é legítimo concluir desse ligeiro excurso histórico-geográfico é que a Igreja de Cristo, naquilo que não é de direito divino, sempre teve o poder de moldar a Sua disciplina às diversidades dos tempos e lugares, aos usos e costumes legítimos, tendo em vista o que julga mais propício a conduzir as almas a Deus – este, sim, que é o fim mediato de toda a penitência cristã.

Em si mesmo, não adianta passar um terço do ano a pão e água, não adianta comer apenas nozes e lentilhas em determinados dias do ano, não adianta passar cinco dias com somente duas refeições. Não adianta, porque «o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e gozo no Espírito Santo» (Rm 14, 17). E atenção, que com isso não se está negando a importância da penitência na vida cristã; mas se está, sim, atacando a mentalidade que parece querer reduzir a ascese ao número anual de dias de abstinência obrigatória de carne no calendário oficial da Igreja.

Se o Código de Direito Canônico de 1983 for modernista e ilegítimo meramente porque prescreve uma disciplina mais relaxada do que a do Código de 1917, então o Pio-Beneditino também o é porque dispõe regras de jejum e abstinência muito mais brandas do que as mantidas – até hoje! – pelos cismáticos orientais. E os cismáticos orientais, ao complicar o jejum seguido pelos cristãos dos primeiros séculos (ao mesmo tempo, aliás, ao que parece, em que o abrandava em muitos dos dias da Quaresma), também são réus da corrupção da pureza dos costumes antigos e, por conseguinte, cabe-lhes a mesma censura. A seguir tal lógica, então, nunca houve fidelidade entre as autoridades eclesiásticas de nenhuma parte do mundo, e a história da Igreja é um enorme suceder de progressivas conspurcações da mensagem evangélica. Semelhante raciocínio, por óbvio, não tem o menor cabimento, é aliás ímpio e blasfemo, e ofende aos ouvidos pios que ele seja sequer cogitado.

Contra essa mentalidade neo-farisaica que julga encontrar a graça divina no mero cumprimento material de normas disciplinares, levantam-se, vigorosas, as palavras de S. Paulo: non est regnum Dei esca et potus! O valor das penitências não se mede pela magnitude daquilo que é sacrificado, mas pelo espírito com o qual se o sacrifica. Afinal de contas, a razão última de toda penitência é o conformar-se a Cristo, é o aproximar-se de Deus. Para quem ainda não se apercebeu dessa verdade elementar, infelizmente, nem todos os jejuns e abstinências do mundo haverão de servir.

A Igreja Católica e a «reforma política»

É verdadeiramente oportuna – profética até – esta entrevista de D. Murilo Krieger, arcebispo primaz do Brasil, publicada recentemente em Zenit. Nela Sua Excelência afirma, aos quatro ventos e com todas as letras, para quem quiser ouvir, que, no que concerne à “reforma política” atualmente em análise em uma comissão da Câmara dos Deputados criada especificamente para este fim, «algumas das propostas não correspondem ao que nós bispos defendemos ou, ao menos, o que muitos bispos pensam; nem algumas propostas que julgamos importantes estão ali».

Veja-se bem, “reforma política” é uma expressão muito vaga, dentro da qual “cabe” praticamente qualquer coisa. E se é muito fácil conseguir um enorme consenso em torno de bandeiras genéricas – quem, em sã consciência, vai negar que existe algo de muito podre no sistema político do Brasil atual? -, ajuntam-se cada vez menos devotos sob os estandartes à medida que eles se vão especificando e detalhando. Isso é bastante evidente, e não tem como ser de outra forma. No entanto, pretender que o projeto detalhado sirva indistintamente a todos os que manifestaram concordância com o ideal genérico, aí já é um salto que não se pode fazer sem critério. Mais ainda: fazer acreditar que ao específico projeto de reforma política que se está delineando em uma comissão do Congresso Nacional irão acorrer entusiasmados todos os que estão insatisfeitos com os rumos do nosso governo, assim, sem mais, é mais do que erro metodológico: é falha de caráter, é falta de honestidade, contra a qual é necessário se precaver.

Que o nosso sistema político necessite de uma reforma é um lugar comum. Qual seja especificamente a reforma da qual ele precisa, aí já é assunto para dividir as opiniões e acirrar os ânimos. Afinal, o que é “reforma política”? É voto majoritário, proporcional ou distrital? É exigir fidelidade partidária ou permitir que os candidatos concorram a cargos políticos sem pertencer a partido algum? É acabar com as legendas pequenas ou facilitar o processo de criação de partidos? É fortalecer ou banir as coligações? É financiamento público ou privado de campanha? As dúvidas, em suma, são muitíssimas: e se é verdade que todo mundo quer “mudanças” no cenário político nacional, disso não segue necessariamente que todos queiram mudar cada um dos pontos passíveis de mudança, e nem muito menos que os desejem modificar para o modelo proposto pelo colegiado do Congresso.

E é aqui que a porca começa a torcer o rabo, que a Conferência dos Bispos começa a meter os pés pelas mãos e que a intervenção do Primaz do Brasil se faz necessária. Há algumas semanas, a CNBB apresentou solenemente o “Manifesto em Defesa da Democracia” «para a mobilização em torno do Projeto de Lei de Iniciativa Popular e da defesa do Projeto de Lei (PL) 6316/2013, em tramitação na Câmara dos Deputados». Nem vou olhar para o PL agora. Ater-me-ei, primeiramente, ao texto do manifesto. Nele é dito que «[u]rge, portanto, para restaurar o prestígio de tais instituições [da Democracia Representativa], que se proceda, entre outras inadiáveis mudanças, à proibição de financiamento empresarial nos certames eleitorais, causa dos principais e reincidentes escândalos que têm abalado a Nação».

Ora, em primeiro lugar, não é o “financiamento empresarial” o que expõe as instituições democráticas ao descrédito, e sim a corrupção do governo. O cerne do enojamento popular é o fato mesmo do desvio de recursos para fins escusos, e não a autoria “empresarial” de tal desvio. O mesmíssimo asco se verificaria, a propósito, se fossem agentes públicos a desviar verba pública para a compra de apoio político.

Em segundo lugar: ao não fazer nenhuma alusão – nem mesmo remota… – a quais seriam essas «outras inadiáveis mudanças» que o restabelecimento do prestígio das instituições democráticas exige, o documento assume os ares de um cheque em branco. Não se sabe ao certo o quê os seus signatários estão demandando. É o problema a que se fez referência acima.

Em terceiro lugar, por fim, e muito mais importante aqui: ainda concedendo que a «proibição de financiamento empresarial nos certames eleitorais» fosse uma medida que gozasse da aceitação pacífica da sociedade brasileira, não caberia à Conferência dos Bispos tomar partido em tema tão materialisticamente contingente. A Igreja é Católica porque congrega em Si toda a diversidade legítima de posições temporais: n’Ela cabem (ressalvados, lógico, os aspectos das correntes políticas que são incompatíveis com o ensino da Igreja, e os quais existem em menor ou maior grau ao longo do espectro político historicamente apresentado) o monarquista e o republicano, o democrata e o liberal, o parlamentarista e o presidencialista, o defensor e o opositor do financiamento privado de campanha.

Não existe, portanto, nenhuma “posição católica” a respeito de reforma política alguma a não ser aquela que consiste nos princípios da Doutrina Social da Igreja – e, destes, não decorre nenhum regime político específico, nenhuma norma sobre financiamento de campanhas políticas, nenhum tipo concreto de sistema eleitoral. A Igreja não desce a essas miudezas. Não se queira, assim, sequestrar o apoio eclesiástico para iniciativa legislativa alguma dessa jaez. Pelo contrário aliás: talvez o engodo seja um indício de que os católicos, hic et nunc, devamos nos posicionar de modo contrário, e não favorável, ao movimento que se está urdindo.

«Mulher» e «aborto» são expressões que se repelem mutuamente

Ontem, oito de março, celebrou-se o dia internacional da mulher. Qualquer mínimo passeio pelas redes sociais revela que a data comemorativa foi amplamente sequestrada pelo feminismo revolucionário; todo mundo sabe, por exemplo, que a data é amplamente utilizada para que um punhado de mal-amadas, envergonhando o sexo grandioso que possuem, venham a público na mais despudorada e cínica apologia do aborto.

A bem da verdade, aliás, talvez o mais correto não fosse dizer que o oito de março foi “sequestrado”. Em sua gênese, a comemoração é e sempre foi feminista mesmo. A diferença, talvez, é que antes da expansão desenfreada da internet os atos pró-aborto tinham a repercussão pífia que mereciam. Ninguém dava atenção. Hoje, contudo, quando a qualquer coisa se concede ares de evento histórico, as feministas – cujo barulho, por conta dos amplificadores virtuais, é percebido muitas ordens de grandeza acima do real – conseguem tornar ainda pior um dia que, a despeito das suas raízes inglórias, bem que poderia ser aproveitado. Que seria digno e justo, aliás, aproveitar.

Porque não vêm de hoje as tentativas de “cristianizar” o Oito de Março. À mensagem ontem divulgada pela CNBB – peça esquerdóide da pior qualidade que cobre de vergonha a Igreja do Brasil e atrai a ira do Todo-Poderoso sobre esta terra de Santa Cruz -, por razões que saltam aos olhos à mera leitura do documento, talvez não seja legítimo conferir o status de bem-intencionada tentativa de evangelização. Coisa distinta, contudo, já se pode dizer da ligeira saudação do Papa Francisco após o Angelus dominical: o dia de ontem, disse o Papa, «é uma ocasião para reafirmar a importância das mulheres e a necessidade da sua presença na vida».

Mas não se pense que o Pontífice argentino é pioneiro nessa seara. Fazer remissões católicas mesmo a feriados originalmente anticlericais não é novidade na história da Igreja. Veja-se, à guisa de exemplo, os dois pontífices anteriores, em dois oitos de marços do passado relativamente recente:

  • Bento XVI, em 08 de março de 2009: a efeméride «convida-nos a reflectir sobre a condição da mulher e a renovar o compromisso, para que sempre e em toda a parte, cada mulher possa viver e manifestar plenamente as suas próprias capacidades, obtendo o pleno respeito pela sua dignidade».
  • São João Paulo II, em 08 de março de 1998: «[i]nfelizmente somos herdeiros duma história cheia de condicionamentos, que tornaram difícil o caminho das mulheres, por vezes menosprezadas na sua dignidade, deturpadas nas suas prerrogativas e com frequência marginalizadas. Isto impediu-as de serem completamente elas mesmas e empobreceu a inteira humanidade de autênticas riquezas espirituais.»

É provável que tenha sido S. João Paulo II o primeiro a trazer la Giornata della Donna para o calendário eclesiástico; ao menos no site do Vaticano, a referência mais antiga à data está neste Angelus de 1987. Antes disso, aliás, e registre-se, parece que não havia nenhuma particular preocupação em execrar o 8 de março. Se o feriado é originalmente comunista, é particularmente nos dias de hoje que os seus efluxos malsãos se fazem significativamente sentir (porque hoje, como já se disse, multiplicam-se estrados para qualquer canastrão). Não é revolucionária a mera referência às mulheres, e nem existe anticlericalismo intrínseco ao fato de se parabenizar as pessoas do sexo feminino em uma data específica do ano. Este não é e nem nunca foi o ponto relevante aqui.

O que realmente interessa é o seguinte. Em referência aos grunhidos das feministas pela legalização do aborto a que se referiu acima, veja-se esta notícia hoje publicada: maioria dos internautas se posicionaram contra o aborto. É provavelmente a milésima pesquisa sobre o assunto que corre a internet; pela milésima vez, as pessoas se dizem contrárias a esta covardia suprema que é o assassinato de uma criança no ventre de sua mãe. Ou seja, em um dia abertamente devotado à propaganda da agenda pró-aborto mais escancarada, as sedizentes representantes das mulheres amargaram, de novo e mais uma vez, uma rotunda derrota: não, as pessoas não acreditam, graças a Deus!, que uma mãe pode dispôr da vida do seu filho, ainda que ele se encontre em seu ventre. As pessoas não aceitam o aborto, por mais que insistam no assunto. No meio da revolução moral em que vivemos, essa resistência não pode deixar de ser notada. Por que isso é assim?

Porque «mulher» e «aborto» são expressões que se repelem mutuamente. Porque na verdade as mulheres, como o Papa Francisco disse na mensagem de ontem, são aquelas que «trazem a vida», e esta é a imagem que resplandece com maior força sempre que alguém lhes faz alusão. Para obscurecer a íntima relação existente entre feminilidade e maternidade é necessário um grau de embrutecimento muito maior do que as pessoas estão geralmente dispostas a aceitar – e tal intuito tem falhado miserável e consistentemente, por mais que as feministas tenham consagrado todas as suas forças ao longo das últimas décadas à sua imposição. Para vencer a agenda revolucionária das inimigas das mulheres, portanto, não é necessário combater o oito de março: basta enaltecer a mulher naquilo que lhe é mais próprio. Porque, no fundo, quem diz “mulher”, diz “mãe”. E a maternidade é a mais radical rejeição ao aborto que pode haver.

O Inferno continua eterno como sempre esteve

Foi recentemente divulgado, nas redes sociais, em tom elogioso, um artigo da lavra do Juan Arias e republicado pelo Unisinos que é abertamente herético. Sob o título “O Papa Francisco revisa a teologia do Inferno” (!), o articulista se esmera por demonstrar que Sua Santidade teria defendido a tese de que o inferno não é eterno.

Não sei se o mais impressionante é o sr. Arias mentir na cara dura, haver pessoas que acreditem na canalhice do sr. Arias ou haver pessoas que comemorem o disparate inventado pelo sr. Arias como se fosse um “avanço” para a Igreja Católica. Quanto a estes últimos, tolos!, não percebem que a beleza da Igreja Católica é justamente a Sua intransigência diante do furor das Potências do mundo, é precisamente a Sua solidez inabalável enquanto, ao seu redor, rebentam os vagalhões açodados pela procela do Século. Não entendem que, no instante em que a Igreja começar a “revisar” matéria teológica que seja, deixa de existir qualquer razão para alguém acreditar na Igreja Católica, uma vez que cessa de haver qualquer garantia de que a nova doutrina não vá também ser alterada na semana que vem.

Mas – ó, surpresa…! – ainda não foi dessa vez que a Igreja de Cristo prevaricou. O texto de Unisinos começa dizendo que o Papa Francisco «aproveitou, dias atrás, seu discurso aos novos cardeais para recordar-lhes que o castigo do inferno com o qual a Igreja atormenta os fiéis não é “eterno”». A alegação é simplesmente disparatada; quase tão incrível quanto aquela outra, evidentemente falsa, que circulou há um ano e onde era dito, na maior sem-cerimônia, que o Papa dissera que não há fogo no Inferno e Adão e Eva não são reais.

E, hoje, existe internet…! Com cinco minutos de Google qualquer pessoa consegue acessar, no site do Vaticano, o discurso do Papa aos novos cardeais. A homilia do Consistório (à qual cheguei primeiro), do dia 14 de fevereiro, não diz nada nem remotamente parecido com o que o Juan está falando. Achei-o no dia seguinte, na Santa Missa com os novos cardeais, celebrada pelo Papa aos 15 de fevereiro. Lá pelas tantas, o Papa Francisco dispara:

O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. Isto não significa subestimar os perigos nem fazer entrar os lobos no rebanho, mas acolher o filho pródigo arrependido; curar com determinação e coragem as feridas do pecado; arregaçar as mangas em vez de ficar a olhar passivamente o sofrimento do mundo. O caminho da Igreja é não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero; o caminho da Igreja é precisamente sair do próprio recinto para ir à procura dos afastados nas «periferias» essenciais da existência; adoptar integralmente a lógica de Deus; seguir o Mestre, que disse: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos que Eu vim chamar ao arrependimento, mas os pecadores» (Lc 5, 31-32).

É difícil saber até mesmo por onde começar. Em primeiro lugar, a palavra “Inferno” não consta nem no período e nem em nenhuma outra parte da homilia. Na passagem, aliás, o Papa fala – muito claramente – de coisas concretas como o perdão concedido àquelas pessoas que o pedem arrependidas, não havendo esforço hermenêutico possível que o possa colocar, nesta passagem, fazendo digressões escatológicas sobre os Novíssimos. Em uma palavra, o Papa está dizendo que a Igreja perdoa os que Lhe pedem perdão, e não que o Inferno não é eterno. Sobre «derramar a misericórdia de Deus», a propósito, o Papa faz questão de dizer, na imediata sequência da frase, que isso se faz «sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero». Ou seja, a Igreja perdoa as pessoas que – partícula que introduz oração subordinada adjetiva restritiva – pedem a misericórdia de Deus com coração sincero, e não “todas as pessoas” e nem “em todas as circunstâncias”. O tema não tem nada a ver com o inferno ser eterno ou temporário, evidentemente não tem, e é preciso muita estreiteza intelectual ou deformidade de caráter para interpretar dessa maneira ou assim divulgar. Sim, há quem negue a eternidade do inferno; mas esses são os hereges de todos os séculos, e não o Papa Francisco.

E o texto é ainda repleto de inverdades grosseiras, mas tão grosseiras que parecem saídas da pena de um prosélito irreligioso carente de níveis mínimos de erudição. Por exemplo, a seguinte frase é digna de um lunático:

Até o século III a Igreja nunca defendeu a doutrina da eternidade do inferno.

Um relincho desses só pode ter sido escrito por alguém que nunca ouviu falar em uns livros chamados Evangelhos. Porque qualquer pessoa que tivesse alguma vez na vida se preocupado em abrir as Escrituras Sagradas encontraria, lá, entre outras, a seguinte sentença peremptória capaz de pôr fim à celeuma:

Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: – Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. (São Mateus 25, 41)

Fogo eterno. Na Vulgata – cujos termos a ascendência latina do nosso português não nos permite compreender errado -, in ignem æternum. Ora, se o próprio Cristo, nos livros tidos como sagrados pelos cristãos, disse, com todas as letras possíveis, que o fogo ao qual estavam destinados o demônio e seus anjos era eterno, como pode ser possível que a Igreja nunca tenha defendido até o século III aquilo que é ipsissima verba Christi?

Ao contrário do que o lenga-lenga do autor do texto leva o leitor incauto a acreditar, por conseguinte, o Inferno é sim eterno, e é nesses moldes que a Igreja sempre o entendeu: dos primeiros cristãos ao Papa Francisco inclusive. Qualquer um pode dizer o contrário disso, é verdade. Mas querer arregimentar em favor do seu devaneio o Papa Francisco ou a Igreja Primitiva, aí não! Aí já é cretinice sem a menor correspondência com a realidade – e que, portanto, urge desmascarar.

O católico e os impostos

O mundo é, definitivamente, cômico. Eu não sei o que foi exatamente que o Papa Francisco falou na homilia da Domus Sanctae Marthae na sexta-feira (20) – no momento em que escrevo essas linhas, a página do Vaticano está atualizada somente até o dia 19 de fevereiro -; mas sei que a manchete sobre a qual as pessoas desde sexta não param de falar (“Papa diz que pagar salários sonegando impostos é “um pecado gravíssimo””) é de um sensacionalismo grosseiro, que tem muito de lugares-comuns ideológicos e muito pouco de fatos jornalísticos. É realmente engraçado: sobre Fé e Moral ninguém quer escutar a Sua Santidade, mas em questões tributárias (!) o Papa Francisco rapidamente ajunta ao redor de si um auditório atento e deferente, ávido por espraiar, mundo afora, as jóias de sabedoria que julga ter logrado garimpar do que pensa ter ouvido o Papa dizer…

[Note-se, aliás, que o mesmo acontecimento, narrado pela mídia católica, não faz nenhuma menção a impostos.]

Houve de tudo: de quem dissesse que os impostos devem ser sempre pagos como se fossem o dízimo recolhido aos cofres do Templo de IHWH até quem falasse que isso era uma estatolatria ímpia com a qual cristãos não deveriam jamais condescender. Os impostos devem ser recolhidos ferreamente, podem ser pagos ao alvitre do contribuinte ou não devem ser repassados ao Estado de nenhuma maneira: cada qual que escolhesse a bandeira que melhor o representasse. No meio do pandemônio, convém fincar dois marcos para além dos quais é certo estar o erro. No espaço compreendido entre esse dois extremos é possível mover-se; já ultrapassá-los, aí não.

Primeiro marco: as autoridades constituídas têm poder conferido pelo próprio Deus para cobrar impostos, os quais portanto devem ser pagosOmnis potestas a Deo: e se isso inclui até mesmo o poder de condenar à morte (cf. Jo XIX, 11), claro está que abarca também o de cobrar impostos. Outra coisa não diz o Apóstolo: “Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito (Romanos 13, 7)”.

Para o católico não pode haver dúvidas quanto a isso, por mais que esbravejem os libertários contemporâneos. O Catecismo Romano, escrito em seqüência ao Concílio de Trento – séc. XVI portanto, muitas gerações antes das revoluções burguesas -, já o afirmava. Com a clarividência que sempre lhe é peculiar, a Igreja transpassava o véu do futuro e fulminava, séculos antes de ser divulgada na internet, a ideia de que “imposto é roubo” hoje alardeada. É o contrário. Roubo é não pagar os impostos. Assim consta no antigo Catecismo (III parte, Cap. VIII, 10):

Nesta classe de ladrões se incluem os que não pagam, ou desencaminham, ou aplicam para si mesmos os impostos, fintas, dízimos e outras contribuições devidas aos superiores eclesiásticos e às autoridades civis.

E, respondendo à objeção de que se a vítima fosse rica a subtração de um bem de relativamente módico valor não lhe faria falta e, portanto, tal não seria pecado (qualquer semelhança com o Estado que “já tem dinheiro demais” não parece mera coincidência), o Catecismo fulmina (id. ibid., 23):

Mas que responder, quando por vezes ouvimos os ladrões afirmarem que não cometem pecado algum, roubando de pessoas ricas e abastadas, que disso não sofrem dano algum, e nem chegam a perceber o furto? Na verdade, uma vil e funesta desculpa.

O mesmo se diz, pouco antes, contra os que “tomam, por desculpa, a maior facilidade de levarem um padrão de vida mais confortável” (id. ibid. 22).

Não há, portanto, margem para tergiversar. O Estado não rouba ninguém ao cobrar impostos. Ao contrário, quem rouba é quem nega às autoridades civis aquilo que lhe é devido. Esta e não outra é a Doutrina Católica, da qual não se devem apartar os que têm mais amor à própria alma do que ao dinheiro.

Segundo marco: ninguém é obrigado a recolher impostos às custas da ruína de si próprio e dos seus.

Isso é bastante óbvio. Depreende-se da própria noção de subsidiariedade, segundo a qual não faz sentido prover às necessidades das esferas mais altas ao sacrifício das mais baixas.

Depreende-se, também, do fato de que o Estado, embora tenha legitimidade para promulgar leis, as vezes o faz de maneira ilegítima, se as leis que ele manda observar são injustas. Neste caso, tais leis não precisam ser obedecidas senão na medida de evitar o escândalo ou a desordem (cf. Summa, I-IIae, q. 96, a.4, Resp.). Ora, mas os impostos são instituídos mediante leis. Pode haver situações, portanto, em que seja legítimo deixar de pagar os impostos.

Por fim, já há, no próprio ordenamento jurídico positivo brasileiro, casos em que se reconhece não ser exigível o sacrifício do próprio patrimônio ao Fisco. P. ex.:

O conjunto probatório colhido no curso da instrução processual comprova a ausência de dolo na conduta do réu, restando testificadas as sérias dificuldades financeiras vivenciadas pela empresa contemporaneamente aos fatos esquadrinhados. A inadimplência para com o fisco foi constatada mediante simples fiscalização do INSS, uma vez que todos os descontos estavam devidamente escriturados nos documentos contábeis da empresa, detalhe que bem ajuda a corroborar o juízo de que o réu não se portou dolosamente,

(TRF-5 – APR: 200784010001290 , Relator: Desembargador Federal Vladimir Carvalho, Data de Julgamento: 13/05/2014, Segunda Turma, Data de Publicação: 19/05/2014)

Na hipótese dos autos, em que pese a comprovação da materialidade e autoria delitiva em questão, faz-se necessário reconhecer a incidência da causa de exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, em face das dificuldades financeiras apresentadas pela empresa. 2. Demonstradas, na forma da v. sentença apelada, as dificuldades financeiras vivenciadas pela empresa administrada pela acusada, faz-se necessária a manutenção da sentença a quo que a absolveu da prática do delito previsto no art. 168-A, § 1º, I, do Código Penal, com o reconhecimento da causa de exclusão de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa. 3. Sentença mantida. Apelação criminal desprovida.

(TRF-1 – ACR: 97176820104013800 , Relator: JUÍZA FEDERAL CLEMÊNCIA MARIA ALMADA LIMA DE ÂNGELO (CONV.), Data de Julgamento: 19/05/2014, QUARTA TURMA, Data de Publicação: 30/09/2014)

Ou seja: do fato de o Estado ter legitimidade para cobrar impostos (falando-se em sentido amplo e genérico) não necessariamente segue que todo e qualquer imposto particular seja legítimo (falando-se, aqui, de cada caso concreto). Do fato de ser necessário pagar impostos, não segue que os impostos precisem sempre ser pagos sob pena de “pecado gravíssimo” – às vezes, aliás, como se mostrou, nem mesmo de crime.

Não se nos entenda mal. É evidente que não é legítimo a cada particular esquadrinhar as leis emanadas pelo Estado para, por conta própria, decidir se são justas ou injustas: isso geraria o caos social. As autoridades legítimas devem gozar de presunção de legitimidade, é lógico. A desobediência civil – mesmo no caso do pagamento de impostos – é para ser invocada com parcimônia, e somente em casos proporcionalmente graves. No entanto, é preciso deixar claro que ela existe. E, ao contrário do que alardeou recentemente certa mídia, não é sempre “pecado gravíssimo” deixar de pagar os impostos de César.

P.S.: Já saiu a meditazione da sexta-feira no site do Vaticano: Digiuno dall’ingiustizia. Não há nenhuma referência direta a impostos. A provável origem da manchete é a seguinte passagem:

«Va bene. E com’è il rapporto con i tuoi dipendenti? Li paghi in nero? Paghi loro il salario giusto? Versi i contributi per la pensione? Per assicurare la salute e le prestazioni sociali?»

Portanto, i) não se trata de “impostos” simpliciter, e sim daquilo que é devido pelo empregador aos seus empregados com vistas a pensões, saúde e prestações sociais – i.e., não se trata do dever do cidadão perante o Estado, mas do homem para com os que dele dependem; e ii) a censura pontifícia é dirigida à sonegação de impostos apenas mediatamente, uma vez que o que se condena na verdade é «quello che non fa giustizia con le persone che dipendono da lui». E a “justiça” ao empregado, definitivamente, não é a Previdência Social do estado brasileiro! Que não pensem que os deveres cristãos se esgotam em remeter os pobres aos tentáculos de Leviatã. Se a generosidade dos patrões não sobrepujar a dos burocratas de Brasília, ser-lhes-á difícil herdar o Reino dos Céus…

É de novo Quaresma…!

Que tempo é a Quaresma? Tempo, por excelência, de penitenciarmo-nos. Todo o ano litúrgico – muitos já o disseram – gravita em torno da Páscoa da Ressurreição: praticamente todo o resto do ano é ou preparação para ela, ou seu natural desdobramento.

Pois bem. Chegamos ao início do tempo quaresmal que é, por antonomásia, o tempo de preparação para a Semana Santa – para a Páscoa. Como nos devemos preparar? A vida cristã é uma vida de penitência, sem dúvidas: nunca é demais o repetir. Já disse várias vezes que aqueles que têm por Deus um Crucificado não podem esperar, da vida, mais que os sofrimentos do Calvário, mais que as lágrimas da Cruz. Toda a vida cristã é assim uma grande penitência, que as nossas orações cotidianas (lembremo-nos de quando suspiramos à Santíssima Virgem «gemendo e chorando neste Vale de Lágrimas»…) não nos deixam jamais esquecer. Se toda a vida cristã é já uma vida de penitência, que tempo é, portanto, a Quaresma?

Deus é maior do que a nossa capacidade de O compreender e, por extensão, a vida cristã é também maior do que a nossa capacidade de vivê-la. O sofrimento é apanágio do Cristianismo, sem dúvidas; mas também o é a alegria e a esperança, o temor e a reverência, a honra e a glória! A vida cristã é mais ampla do que somos capazes de viver. Não dá para enaltecer todas essas características ao mesmo tempo; resta-nos, portanto, vivê-las todas, sim, mas diacronicamente. Ao longo do ano. Ao longo da vida.

Os diversos tempos litúrgicos são, portanto, isso: ênfases distintas dadas aos diversos aspectos de que é composta a única vida cristã. Ora é a alegria da Criação, ora a tristeza do pecado; ora o ardor missionário, ora a esperança na Vida Futura; ora a expectativa do Nascimento do Salvador, ora a dor da Sua Paixão e Morte, ora o júbilo da Ressurreição. Ora as festividades da Páscoa! Ora as penitências quaresmais. Nenhum tempo, é óbvio, esgota-se naquilo que ele enfatiza e enaltece, porque o Cristianismo não se pode reduzir a nenhuma de Suas notas constituintes. Mas viver proficuamente o ano litúrgico pressupõe acompanhar aquilo que a Igreja propõe a cada tempo. É passado o Carnaval! Iniciam-se os violáceos dias da Quaresma…

É tempo de penitência; particularmente, de jejum, esmola e oração. Estes três elementos devem ser vividos em seu sentido literal, sem dúvidas; mas é fundamental que saibamos a quê cada um deles serve. A oração «é sempre a primeira e fundamental condição para nos aproximarmos de Deus»; o jejum, «significa domínio sobre nós mesmos»; a esmola, «dividir não só os bens materiais mas também os dons do espírito». Assim disse S. João Paulo II há mais de três décadas, em 1979; e as palavras que ele dirigiu então à Igreja de Roma serve, ainda hoje, para todos nós.

Porque é de novo Quaresma…! E a sucessão de quaresmas da nossa vida nunca será suficiente para nos deixar prontos e acabados. Nunca estaremos, neste mundo, suficientemente prontos para Deus. Nunca teremos vivido a vida cristã em plenitude – ela é maior do que nossa experiência, dizíamos acima. Cumpre, portanto, vestir – de novo! – o roxo penitencial e caminhar, de novo!, ao longo dos quarenta dias de preparação para a Semana Santa. Por debaixo das coisas antigas há tesouros sempre novos. No âmago das práticas seculares está o segredo dos santos de todos os tempos.

E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – III (Final)

Finalmente, após a epopéia iniciada na terça e ontem continuada, qual é o resumo da ópera? Afinal de contas, e se a renúncia de Bento XVI tiver sido inválida mesmo, o que acontece?

Pois bem. De acordo com o ensino da Igreja, provavelmente é preciso sustentar que, ainda que Bento XVI tenha sido forçado a renunciar, ainda que a renúncia proferida há dois anos passados tenha sido real e verdadeiramente nula, não muda absolutamente nada e S.S. o Papa Francisco é o Vigário de Cristo gloriosamente reinante mesmo assim.

O porquê disso é simples: razões de segurança espiritual exigem que a infalibilidade da Igreja se estenda àqueles fatos que estão tão conexos com a Revelação que, sem eles, o próprio acesso à Verdade Revelada ficaria comprometido. Categoria deste «objeto secundário da infalibilidade» é a que engloba os assim chamados fatos dogmáticos (facta dogmatica), dos quais a legitimidade da eleição de um Papa é provavelmente o exemplo por antonomásia.

A necessidade disso é fácil de ser vista por um exemplo. Todo mundo sabe que não pode negar a Imaculada Conceição da SSma. Virgem, posto que é dogma de Fé proclamado pelo Bem-Aventurado Papa Pio IX. No entanto, para que esse dogma tenha de fato o condão de obrigar o católico à Fé, é preciso que Pio IX tenha sido Papa verdadeiro – caso contrário, a “proclamação” ocorrida em 1854 seria tão-somente um teatro pomposo, sem a menor relevância para a vida espiritual dos católicos do orbe.

O mesmo pode ser dito com relação a qualquer outra coisa da vida da Igreja. O Magistério é a regra próxima da Fé; mas seria completamente sem sentido que se devesse obedecer o Magistério e, ao mesmo tempo, não fosse nunca possível ter certeza a respeito de se aquilo que se apresenta como o Magistério – e o Magistério Pontifício é o Magistério por excelência – é, realmente, de fato e de direito, o Magistério da Igreja Católica. A submissão às legítimas autoridades eclesiásticas seria um flatus vocis na impossibilidade prática de reconhecer tais autoridades legítimas. A regra próxima da Fé seria absurda, um mandamento impossível de ser cumprido.

Ludwig Ott assim se expressa a respeito dos fatos dogmáticos (negritos meus, itálico no original):

Al objeto secundario de la infalibilidad pertenecen: a) las conclusiones teológicas de una verdad formalmente revelada y de una verdad de razón natural; ß) los hechos históricos, de cuyo reconocimiento depende la certidumbre de una verdad revelada («facta dogmatica»).

E, em outro ponto:

Entre las verdades católicas se cuentan:

[…]

2. Los hechos dogmáticos (facta dogmatica). Por tales se entienden los hechos históricos no revelados, pero que se hallan en conexión íntima con una verdad revelada, v.g., la legitimidad de un Papa o de un concilio universal, el episcopado romano de San Pedro. En sentido más estricto se entiende por hecho dogmático el determinar si tal o cual texto concuerda o no con la doctrina de fe católica. La Iglesia no falla entonces sobre la intención subjetiva del autor, sino sobre el sentido objetivo del texto en cuestión; Dz 1350: «sensum quem verba prae se ferunt».

Não é portanto possível haver dúvidas com relação à legitimidade da eleição de um Papa. A infalibilidade da Igreja de Cristo se estende também ao resultado dos seus conclaves; pertence ao conjunto das verdades católicas crer que aquela pessoa que se apresenta como Papa é de fato o Papa da Igreja. Não fosse assim, repita-se, seria impossível ter certeza a respeito de todo o resto.

Os próprios sedevacantistas, a propósito, registre-se, dizem que a aceitação de uma pessoa por toda a Igreja como Papa faz com que ele seja Papa verdadeiro:

Sim, se a Igreja universal com unanimidade moral aceita pacificamente um homem como Papa legítimo, ele realmente deve ser um Papa legítimo. A razão disso é que o Papa é a regra próxima da fé. Os fiéis aceitam o ensinamento doutrinal do Papa e, se a Igreja inteira aceitasse uma falsa regra da fé, Cristo estaria expondo Sua Igreja ao erro, o que não pode acontecer.

John S. DALY, Bento XVI e a aceitação pacífica pela Igreja inteira, 2006,
trad. br. por F. Coelho, São Paulo, fev. 2012, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-1gg

A aceitar a argumentação que o John Daly emprega em sequência para fugir da necessidade de reconhecer o Papa como Papa – a de que os papas conciliares na verdade não gozam de “aceitação pacífica pela Igreja inteira” -, não haveria sentido em restringir a sua aplicação ao Papa Francisco. Por força de conseqüência, o mesmo teria que ser dito dos outros Papas (inclusive Bento XVI). Não se sustenta, portanto, esta espécie de “sedevacantismo restrito”, que nega a legitimidade somente ao Papa Francisco e não aos seus predecessores imediatos. Na prática, a aceitação da qual goza o Papa Francisco não é significativamente diferente – nem quantitativa nem qualitativamente – da que gozava Bento XVI ou S. João Paulo II. O murmurinho pela ilegitimidade do Papa Francisco, quer se baseie na invalidade da renúncia de Bento XVI, quer em defeitos processuais ocorridos na condução do conclave, é obra de uma minoria sinceramente inexpressiva para além dos palanques que é próprio da internet conceder a qualquer pessoa. Não é relevante. Não a ponto de valer o risco à salvação da própria alma que a insubmissão ao Romano Pontífice acarreta.

Portanto, mesmo que o Papa Bento XVI tivesse sido forçado a renunciar, mesmo que a Declaratio de 2013 não tivesse surtido efeitos jurídicos, Bento XVI teria deixado de ser Papa no dia da fumata bianca do fim do conclave que elegeu o Papa Francisco, no instante em que ele foi apresentado na sacada da Basílica de São Pedro e recebido como Papa pelos católicos do mundo inteiro. Isso porque a Igreja não pode ter senão um Papa, e se o homem que toda a Igreja reconhece como Papa é Papa verdadeiro, então o Papado pertence a ele e não a nenhum outro. A situação de fato sobrepõe-se à de direito e, neste caso, confere eficácia jurídica à situação que por si mesma seria ilegítima. Para que fosse diferente, o Papa legítimo precisaria reclamar o sólio petrino. Bento XVI jamais o fez.

Por fim, uma última dúvida. Na hipótese de que Bento XVI seja realmente o Papa verdadeiro, o que aconteceria se – Deus o livre! – ele viesse a morrer amanhã?

a) A Sé ficaria vacante, posto que o Papa Francisco não teria sido eleito legitimamente?

b) O Papa Francisco se tornaria imediatamente Papa, posto que o único obstáculo a que ele ocupe a Sé Apostólica é o fato de ela já se encontrar regularmente ocupada?

O primeiro caso recai no sedevacantismo clássico, sendo-lhe portanto imputável todas as críticas e dificuldades que por décadas dirigimos aos sedevacantistas. No segundo caso… então a legitimidade do governo da Igreja está atrelada à contingência biológica de morrer um ancião que tem gastado os últimos anos da vida a repetir em público que o Papa a quem é devida a submissão católica não é ele próprio, mas sim o Papa Francisco? Os que adotam semelhante tese, então, não possuem nenhuma perspectiva quanto ao futuro, estando apenas aguardando o Bispo emérito de Roma morrer para a situação da Igreja ipso facto se regularizar – é isso mesmo? Que sentido isso faz?

E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – II

Ontem eu dizia que há diversos problemas na hipótese de o Trono de S. Pedro estar atualmente ocupado por um impostor. Acho que vale a pena insistir ainda um pouco no assunto.

O ponto para o qual estou tentando chamar a atenção não é a mera hipótese da existência de um Antipapa. Não há novidade alguma nisso, Antipapas já existiram na história da Igreja. O verdadeiro problema aqui é a hipótese de aquele que é reputado Sumo Pontífice pela virtual totalidade da Igreja visível não ser Papa verdadeiro – e isso é um pouco diferente das outras situações históricas pelas quais a Barca de Pedro já passou nesses dois milênios tumultuosos de sua existência.

Certo, a Igreja passou quase setenta anos no cativeiro em Avignon. Mas – e isso é o mais importante – em Avignon havia Papas legítimos reclamando o sólio pontifício! O problema de não ser possível identificar qual o Papa legítimo entre dois (ou mais) pretendentes à cátedra de São Pedro é uma coisa; o problema de não ser Papa legítimo a única pessoa que se pretende Papa e como Papa é reconhecido – pública e pacificamente – por toda a Igreja é outra coisa completamente diferente. Que fosse talvez necessário escolher – entre fulano e sicrano – um Papa para se submeter é uma realidade que já se apresentou historicamente. Que a escolha deva ser feita entre fulano e o Trono Vazio, no entanto, é uma novidade absolutamente inaudita.

(Eu sei que, no caso particular de Antipapado em que a renúncia de Bento XVI tenha sido inválida, a escolha é entre o Papa Francisco e o Bento XVI, e não entre aquele e a Sé Vacante. No entanto, para a maior parte do sedevacantismo existente nos dias de hoje, a opção que se faz é pelo Trono Vazio em oposição ao que nele se assenta mesmo. Ademais, a hipótese do “Antipapa Francisco”, nos moldes de “Bento XVI ainda é Papa”, precisa lidar com o fato, então, de que pode ser canônica e teologicamente possível que seja Papa alguém que faz questão de dizer, em público e repetidas vezes, que não é Papa! O inusitado da situação exige que sejam apresentados argumentos fortes em defesa da tese. O ônus é de quem faz alegação, e é tanto maior quanto mais extraordinária for a alegação feita.)

Note-se, um Antipapa não é simplesmente um falso Papa. Um Antipapa é uma pessoa que se arroga falsamente o título de Papa em oposição a um Papa verdadeiro. É assim que está na Wikipedia, é assim que explica a Enciclopédia Católica, é somente assim que faz sentido. Não fosse assim, como ninguém jamais viu um conclave (à exceção dos cardeais-eleitores), estar-se-ia sempre na dúvida de se um determinado Papa é realmente Papa ou não – e tal insegurança não pode subsistir na Igreja que é coluna e sustentáculo da Verdade. Sim, a Sé de Roma pode ficar vacante. Sim, um Antipapa pode pretender ilegitimamente a Sé de Roma. Mas a Sé de Roma estar vacante ao mesmo tempo em que um Antipapa a reclama sem oposição  – aí não, aí não é possível, aí não tem precedente, não tem embasamento teológico, não tem lógica e nem cabimento.

Sobre os tempos priscos do passado remoto da Igreja, nos quais alguém pode esgaravatar um intervalozinho de tempo – sei lá, entre a morte de Inocêncio VII e a eleição de Urbano V – no qual um Antipapa “reinou” durante um período de Sé Vacante, a comparação não procede. Esta vacância contingente estava inserida num processo contínuo de morte do Papa – realização do conclave – eleição do seu sucessor, que absolutamente não encontra paralelo na situação contemporânea. Em Avignon, havia pretensão legítima de Sé Vacante – evidenciada pelos Papas que a antecederam e sucederam sem solução de continuidade. Hoje, tal não ocorre. Hoje, nada nem sequer remotamente análogo a isso ocorre.

Ainda, diga-se que os problemas de ordem prática apontados para a hipótese do Antipapado contemporâneo – nomeações episcopais inválidas, normas para a Igreja Universal nulas, cultos espúrios prestados a santos não canonizados etc. – são próprios dos tempos modernos, nos quais há uma absurda concentração de poder nas mãos do Romano Pontífice e um seu quase ininterrupto exercício. Durante a Idade Média, era perfeitamente possível – aliás, em determinadas situações de crise (como o Grande Cisma do Ocidente) isso era até extremamente provável – que o Papa fosse eleito e não exercesse nenhum ato especificamente pontifício: não canonizasse ninguém, não lavrasse nenhuma bula de criação de diocese, não alterasse nenhuma norma litúrgica. Hoje, ao contrário, o ordenamento canônico muda praticamente todos os dias (com nomeações e renúncias, mudanças curiais, refinamentos litúrgicos, canonizações e beatificações etc.); e se uma norma inválida for introduzida nesse sistema, é simplesmente impossível retroceder à situação anterior.

Mas, como aventei ontem, sempre existe a hipótese do ajeitadinho eventual. Sempre é possível pensar que, num futuro não importa o quanto longe, um Papa legítimo vai surgir e vai referendar tudo, vai aplicar sanatio in radice pra tudo o que foi feito de modo inválido pelos seus ilegítimos predecessores, vai promulgar dessa vez de verdade tudo o que fora indevidamente promulgado (com efeitos erga omnes e ex tunc), vai – em suma – dar uma canetada jurídica que vai pôr ordem na casa. Enquanto tal não acontece, Deus, em Sua Onisciência, prevendo esse futuro Papa Sebastião salvador, antecipa os efeitos de sua autoridade pontifícia e sai aplicando suplências eclesiais para manter a Igreja funcionando (afinal, as portas do Inferno não podem prevalecer).

Vejam, essa idéia espetaculosa até que cola. Mas o seu problema é que ela é mirabolante demais, é uma gambiarra muito grande e, portanto, repugna à razão que seja verdadeira. A salvação das almas vem de ordinário por meio da Igreja visível e hierárquica; e imaginar uma Igreja visível ma non troppo, onde aqueles que se apresentam como autoridades visíveis são na verdade uma Anti-Igreja organizada para esconder a Igreja verdadeira; uma Igreja hierárquica “só que não”, onde os que se apresentam como superiores não detêm autoridade verdadeira (e, portanto, as coisas válidas – em ordem à salvação – que eles porventura façam decorrem não dos meios próprios da Igreja, mas de uma intervenção sobrenatural e direta do Deus Altíssimo para suprir defeitos que praticamente ninguém imagina existir); uma Igreja, em suma, que não guarda quase semelhança alguma com o que a Esposa de Cristo sempre foi historicamente – imaginar tal coisa raia a insensatez.

No fundo, pretender que o Catolicismo está somente ao alcance de uma meia-dúzia de iniciados (que conseguem perscrutar os mistérios da crise moderna e enxergar, para além do que dizem as sedizentes autoridades católicas contemporâneas, aquilo que é a Fé verdadeira) cheira a gnosticismo, e imaginar que a existência encarnada da Igreja pode ser sincronicamente “suspensa” no curso da História (e a pertinência dos católicos a Ela deixa de se realizar mediante as autoridades eclesiásticas para se dar imediatamente, de um modo “espiritual”) aproxima-se de um subjetivismo protestante. Se isso fosse verdade – se isso pudesse ser verdade – não teria para quê haver Igreja. A salvação poderia ser individual (posto que não haveria atualmente possibilidade de submissão às autoridades hierárquicas visíveis) e a Fé poderia vir de uma inspiração interior do Espírito Santo (uma vez que não há Magistério Vivo para ser regra próxima de Fé e cada um precisa estudar o Denzinger por conta própria).

E é isso, no fim das contas, o que torna o sedevacantismo insustentável. Sim, é terrível o estado deplorável em que se encontra a Igreja atualmente…! Mas ninguém está eximido de sofrer na própria carne o martírio da Esposa de Cristo. É sedutora a tentação de abraçar um refinamento teórico que pareça dar sentido ao mysterium iniquitatis dos dias de hoje, à abominação no lugar santo: no entanto, é ao escárnio mesmo que Deus nos chama – e aos cristãos nenhuma cruz nos deveria escandalizar. O amor à Igreja passa por sofrer por Ela e n’Ela; e, no fundo, não é amor verdadeiro abraçar uma quimera intangível para se furtar ao trabalho – que pode perfeitamente ser frustrante, mas nem por isso menos necessário à salvação – de dedicar as próprias lágrimas a limpar (ainda que em vão!) o rosto imundo e purulento da Igreja encarnada tal como Ela se apresenta nesses tempos desgraçados em que aprouve à Providência que vivêssemos.

E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – I

O Rorate Coeli estampou hoje, com alarde, uma carta aberta de S. E. R. Dom Jan Pawel Lenga, bispo emérito de Karaganda (Cazaquistão), a respeito da crise da Igreja. O Fratres in Unum já a traduziu. Um dos seus pontos mais impactantes – e que consta até mesmo como subtítulo da chamada – é o que diz ser «difícil acreditar que o Papa Bento XVI tenha renunciado livremente [ao] seu ministério como sucessor de Pedro».

O problema é de ordem estritamente canônica. O Código atualmente vigente diz o seguinte:

Cân. 188 — A renúncia apresentada por medo grave, injustamente incutido, por dolo ou erro substancial ou feita simoniacamente, é inválida pelo próprio direito.

E ainda:

Cân. 332 — (…) § 2. Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao cargo, para a validade requer-se que a renúncia seja feita livremente, e devidamente manifestada, mas não que seja aceite por alguém.

O que o Direito dispõe é bastante lógico e justo: para a renúncia ser válida, ela precisa ser livre. O problema, assim, coloca-se com clareza: se o Papa Bento XVI não renunciou livremente, se ele o fez motivado por alguma espécie de medo grave, então esta sua renúncia não foi válida. Logo, ele jamais deixou de ser Papa. Logo, a Sé não ficou vacante, o Conclave foi convocado ilegitimamente e o Papa Francisco não é Papa verdadeiro, senão um usurpador.

O raciocínio parece sedutor. Os seus sucessivos passos parecem muito bem concatenados. Cada consequente parece decorrer, por exigência lógica, do seu antecedente.

No entanto, alguma coisa incomoda: a conclusão parece não estar muito bem. A seguir-lhe ferreamente, às últimas consequências, então tudo fica dependendo das disposições interiores do Papa Bento XVI naquele fatídico 11 de fevereiro. Tudo – a validade da eleição do Papa Francisco e todos os sucessivos atos de governo que se lhe seguiram, as nomeações episcopais, os consistórios, as normas canônicas promulgadas nos últimos dois anos, as canonizações, tudo – fica dependente do grau de liberdade subjetivo com o qual Bento XVI proferiu a Declaratio da Grã-Renúncia.

E isso não faz o menor sentido. Não dá para edificar todo o colosso da Igreja unicamente sobre as disposições subjetivas de um homem, por mais importante que ele seja. Não tem lógica absolutamente nenhuma fazer a validade de tudo o que é de competência eclesiástica – por natureza visível e externo – depender de determinadas condições subjetivas que ninguém tem condições de perscrutar com exatidão. Tal seria o triunfo completo do subjetivismo. A insegurança generalizada.

Faça-se um pequeno exercício de imaginação. Imagine-se que S.S. Francisco não seja Papa. Então

i) os cardeais que ele criou não são cardeais verdadeiros e, portanto, não têm direito a voto em um eventual futuro conclave – o que, com o passar do tempo, iria fazer não só com que ele próprio não fosse Papa legítimo mas com que fosse canonicamente impossível eleger um Papa legítimo, uma vez que a Capela Sistina teria cada vez mais homens fantasiados de púrpura e cada vez menos Príncipes verdadeiros da Igreja de Cristo;

ii) os bispos que ele nomeou igualmente não têm jurisdição verdadeira sobre as suas dioceses, o que acarreta a invalidade de todos os sacramentos cujo exercício depende de jurisdição eclesiástica – i.e., os matrimônios e as confissões;

iii) os santos que ele canonizou não são santos verdadeiros e, portanto, a infalível Igreja de Deus está, pública e universalmente, prestando um falso culto a homens comuns, usurpadores da glória dos altares;

iv) etc.

É até possível arranjar subterfúgios para fugir aos pontos i) e ii) acima. Quanto ao primeiro, é possível dizer que a Sé há de ficar vacante no momento em que Bento XVI morrer – e, a partir de então, um Papa pode vir a ser eleito legitimamente, ainda que objetivamente violando (mas em boa fé) certos dispositivos de direito eclesiástico. Quanto ao segundo, bom, é sempre possível aplicar o supplet Ecclesia – e, assim, garante-se a graça sacramental aos ignorantes sem maiores dificuldades.

Mas quanto ao terceiro não dá para tergiversar. Se o Papa Francisco não é Papa, então a Igreja está prestando um falso culto a todos os santos que ele canonizou de 2013 pra cá. E a Igreja, que é infalível em Sua liturgia, simplesmente não pode prestar um culto falso. Se o fizer, Ela deixa de ser Igreja. O problema não se resume, portanto, a uma questão de a Igreja estar temporariamente acéfala – fato extremamente banal e corriqueiro. Se o Papa Francisco não fosse Papa, a Igreja Católica, a Igreja de Cristo, a Igreja visível, estaria fazendo, hoje mesmo, uma coisa que Ela simplesmente – por promessa divina – não pode fazer: prestando um culto litúrgico espúrio.

Deixou de existir, portanto, Igreja visível. Recaem-se, aqui, em rigorosamente todos os problemas do sedevacantismo “clássico” (o que remete a Paulo VI, João XXIII, Pio XII ou seja lá até onde se deseje retroceder a vacância da Sé Apostólica). Estarão os críticos do Papa Francisco dispostos a aceitar tanto? Ou não pensaram jamais nisso – e acham que a hipótese de um falso Papa no sólio pontifício com o soberano legítimo ainda vivo é de algum modo menos problemática do que a de uma Igreja com o trono abandonado, esquecido e empoeirado por gerações a fio?

Na Sexagésima, saiu o semeador a semear sua semente

Todo mundo certamente travou contato, em algum momento do antigo Segundo Grau, durante os seus estudos da literatura barroca brasileira, com aquele que é o mais famoso dos sermões do Pe. António Vieira: o Sermão da Sexagésima. O que nem todo mundo sabe – eu, mesmo, só o vim saber muito tempo depois de velho… – é o que significa “Sexagésima”.

Surpresa: a Sexagésima é um domingo específico do ano, escondido dos católicos pela Reforma Litúrgica de 1969. Imediatamente antes da Quaresma – a Quadragesima – há três domingos: na ordem, do mais distante para o mais próximo da Quarta-Feiras de Cinzas, os domingos da Septuagésima, da Sexagésima e da Quinquagésima.

Mais especificamente, o Domingo da Sexagésima é o último domingo antes do de Carnaval. Ou seja, foi ontem.

Ontem, na Santa Missa, eu ouvi a leitura do Evangelho que o pe. António Vieira leu naquele longínquo ano de 1655. A Wikipedia lusófona, aleatoriamente, diz que o tema do sermão – a parábola do semeador – foi extraído «duma passagem bíblica escolhida para a ocasião». Puro devaneio. A passagem não foi “escolhida” coisa nenhuma, ela é a leitura prescrita pelos livros litúrgicos para o domingo anterior àquele que antecede a Quarta-Feira de Cinzas: o domingo da Sexagesima. Não é meditação sobre uma passagem escolhida ao acaso ou à conveniência. É sermão concernente ao tempo litúrgico em que ele é pregado.

Não achei a data exata do sermão; a referida enciclopédia colaborativa diz, tão-somente, “março de 1655”. Não parece que seja verdade. Podemos aplicar os algoritmos para calcular o dia da Páscoa; com isso, descobrimos que, naquele ano, ela caiu no dia 28 de março. O domingo da Sexagesima, assim, foi no dia 31 de janeiro – e é esta, portanto, a data mais provável em que o conhecido sermão foi pela primeira vez pregado. É até possível que ele, após escrito, tenha sido burilado nas semanas posteriores e tenha recebido a sua forma definitiva – a escrita final, que nos chegou – em meados de março mesmo; mas não tem o menor cabimento imaginar que o sermão da Sexagésima retumbou nas paredes da Capela Real portuguesa em março de 1655 – quase à Páscoa! Seria como dizer que um Sermão de Natal fora proferido no início de fevereiro.

Ontem eu ouvi de novo o milenar Evangelho: «Ecce exiit qui seminat, seminare». Na verdade, ouvi-o diretamente em português, naquela que é quiçá a mais elegante das traduções bíblicas para o vernáculo de Camões: «Saiu o semeador a semear sua semente». A aliteração é deliciosa; a cadência da frase, serpentinando, parece mostrar que o semeador segue em zigue-zague, titubeando, andando de lá para cá – e isso explica a semente caindo ao acaso na estrada, na terra seca, entre os espinhos. Se eu tivesse que escolher uma feliz tradução dos Evangelhos, tal seria este versículo.

Mas o original é sempre o original, e eis porque ele não deve ser jamais posto de lado: há uma belíssima exegese, do próprio Pe. António Vieira, no mesmo sermão citado, que é impossível de ser feita a partir do versículo em português que nos acostumamos a ouvir. Assim ressoou um dia na Capela Real:

A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é acção; e as acções são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as acções, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo.

E é por isso que vale a pena o esforço para preservar o latim litúrgico mesmo nas leituras das Escritura Sagradas, é por isso que vale a pena perscrutar a sabedoria dos antigos: muito se perde ao simplesmente verter uma língua n’outra, e a pior forma de ignorância é a de quem acha que já sabe. Aquele antigo adágio do traduttore, traditore! tem mil modos de demonstrar o seu acerto. E, em se tratando da palavra de Deus, não se pode fazer pouco caso dos tesouros que ela tem para nos ofertar. Não podemos deixar que o vernáculo quotidiano oculte as pedras preciosas das Sagradas Escrituras que os antigos já nos garimparam.