A Igreja e a punição dos sodomitas: de censurada a exigida

Como as duas notícias saíram praticamente juntas na semana passada, a confusão entre os dois assuntos foi inevitável e é importante separá-los: uma coisa foi a demissão do Bispo de Ciudad del Este, sobre a qual falei aqui anteriormente, e uma segunda coisa é esta prisão do ex-arcebispo da Polônia, que até agora eu não abordara aqui. Além de terem vindo a lume na semana passada, o que há de comum entre os dois fatos é a divulgada causa de ambas as penas: escândalos de pedofilia, inevitavelmente. No entanto, ainda assim é importante destacar:

a) embora o caso tenha sido assim noticiado na mídia laica, o comunicado da Sala de Imprensa da Santa Sé não faz menção a pedofilia (nem a acobertamento de pedófilos) por ocasião do afastamento de D. Livieres;

b) já com relação a D. Jozef Wesolowski, as notas oficiais falam, sim, em abuso de menores.

O que chama a atenção neste último caso é a aplicação de uma pena do direito penal secular – uma pena privativa de liberdade, ainda que deva ser cumprida em prisão domiciliar – e não meramente administrativa, imposta por um órgão de justiça do Estado do Vaticano – o Tribunale di prima istanza dello Stato della Città del Vaticano – a um réu cujos crimes foram cometidos na República Dominicana. O conjunto da obra apresenta contornos medievais, da época em que a Igreja reclamava para Si a jurisdição sobre os clérigos católicos, onde quer que eles se encontrassem [p.s.: na verdade, «os Núncios Apostólicos são cidadãos do Estado Cidade do Vaticano e, portanto, caem sob as leis civis e penais daquele Estado e, portanto, são sujeitos igualmente à sua jurisdição penal civil», como S. E. R. Dom Fernando Guimarães teve a gentileza de comentar aqui]; neste caso recente, contudo, como o jus puniendi pontifício está sendo exercido sobre um culpado de pedofilia – esta lepra hodierna! -, não aparece ninguém para protestar contra o assunto e a Igreja, enfim, pode exercer a Sua soberania em paz. Que este fato atual possa servir ao menos para lançar algumas luzes sobre a época distante – tão condenada quanto ignorada! – em que a Igreja possuía mais liberdade para agir de acordo com as Suas convicções e exigências.

Veja-se, contudo, que coisa curiosa: se o mesmíssimo caso houvesse ocorrido há alguns séculos, certamente o prelado sodomita encontraria hoje a benevolência de uma miríade de grupos de respeito aos direitos humanos e à diversidade sexual – como o tupiniquim GGB, por exemplo, cujo Luiz Mott é especialista em honrar a memória dos pedófilos que o Santo Ofício em outros tempos condenou:

Tinha 21 anos e estava preso junto com um seu irmão, ambos acusados de um furto. Por receber freqüentes visitas de um seu cunhadinho de 12 anos, Brás, os demais presos acusaram-no junto ao Santo Ofício de Évora, após ter ouvido à noite, ruídos e gemidos indicativos que praticavam o abominável pecado de sodomia.

[…]

Audacioso, o fanchono não temia seduzir pessoas de diferentes condições sociais, inclusive serviçais: a um criado de quatorze anos, perguntou em segredo: “Miguel, quero saber: tendes três polegadas (…)? Façamos uma aposta: entrai para dentro de minha casa. Aposto uma ou duas patacas se tiver as três polegadas!”

É esta, senhoras e senhores, a lição de hoje:

i) se o Papa, digamos, impõe silêncio obsequioso a um teólogo progressista, então se trata de um absurdo e arrogante desmando medieval que não se compreende como pode ser ainda tolerado em pleno século XXI;

ii) se o Papa manda prender, no Vaticano, um núncio acusado de pedofilia, então é enfim uma atitude corajosa, nada mais do que a obrigação, de cuja brandura ou morosidade ainda é possível encontrar quem reclame;

iii) se a prisão acima houvesse ocorrido quinhentos anos atrás, tratar-se-ia então, de novo, de desmando medieval, de horror da Inquisição, de atentado aos direitos humanos fundamentais, de horrível opressão contra o sacrossanto direito à livre-determinação da própria identidade de gênero.

Em suma, os costumes dos tempos não são bons conselheiros em questões morais: o mundo às vezes louva os sodomitas, às vezes pede as suas cabeças, e às vezes faz as duas coisas ao mesmo tempo! A coerência nunca foi o ponto forte dos detratores da Igreja: para acusá-La, parece ser sempre permitido lançar mão de quaisquer expedientes, não importa o quão contraditórios entre si eles sejam.

Roma ruge; o Papa é monarca!

Confesso que me deixou desconcertado a notícia – estampada nos meios de comunicação seculares – de que o Papa Francisco «destitui[u] [um] bispo do Paraguai por acobertar casos de pedofilia». Trata-se do bispo de Ciudad del Este, no Paraguai, Dom Rogelio Livieres, cuja diocese passou recentemente por uma intervenção pontifícia; há não muito, comentei o assunto aqui.

Comentei no Facebook que o exercício do poder soberano e ilimitado do Sucessor de São Pedro era terrível e assustava. E isso por pelo menos três razões. Primeiro, não recordo a última vez em que uma determinação pontifícia foi executada assim, de maneira tão unilateral e implacável; dir-se-ia quase draconiana. Segundo, parece haver uma certa desproporcionalidade entre o delito e a pena; afinal de contas, o pe. Urrutigoity (em que pese a por mim já deplorada imprudência de ter sido ele recentemente alçado a cargos de confiança e destaque na Diocese) estava no Paraguai há quase dez anos, ao longo dos quais (até onde me conste) não houve quaisquer acusações contra a sua conduta. Em terceiro, por fim, há uma certa desarmonia entre o que está sendo divulgado pela mídia laica e pelos órgãos oficiais da Santa Sé.

Quanto à primeira, registre-se que o Papa é monarca plenipotenciário por direito divino, autoridade soberaníssima acima da qual não se encontra senão o próprio Deus. Ele é completamente livre para, a seu dispôr, criar e destruir dioceses; distribuir excomunhões, interditos e intervenções; sagrar, nomear e exonerar Bispos. Tal poder ilimitadíssimo, contudo, caíra em um certo desuso com o passar do tempo: não me recordo, como falei, da última vez em que um bispo foi assim sumariamente destituído.

Impossível não enxergar o aspecto positivo dessa atitude. Significa que o Bispo de Roma conhece e reconhece as suas próprias prerrogativas de Vigário de Cristo, e não hesita em empregá-las para aquilo que considera o bem da Igreja. O Pontífice que abriu mão dos sapatos vermelhos e da mozzetta papal – ditos símbolos de um poder anacrônico e que não encontrava mais lugar no mundo moderno – não se despiu, contudo, da sua autoridade soberana, e soube invocar o peso do supremo munus regendi da Igreja para governar, com mão férrea, a Barca de Pedro. Abdicando dos símbolos mas empregando sem pejo o poder neles simbolizados, o Papa Francisco, por incrível que pareça, termina por fortalecer o papado e empoderar aos olhos do mundo a figura do humilde bispo de Roma – que recusa as benesses materiais mas não abre mão das prerrogativas que o seu alto cargo lhe proporciona. É somente quando ouvimos o som tonitruante dos trovões que nos lembramos de que, afinal de contas, o Céu é capaz de trovejar. Roma ruge; o Papa é monarca.

Quanto à segunda, encontra-se aqui a parte mais dolorosa que essa situação enseja. Não parece que esteja muito bem um bom bispo ser, assim, laconicamente destituído da sua Diocese; um bispo que, ao que consta, jamais resistiu a nenhuma das disposições da Santa Sé, sempre colaborou com tanto quanto a Igreja de Roma lhe determinara, que nunca se envolveu em escândalos e cuja atuação pastoral nesses anos à frente de Ciudad del Este tem se mostrado, até onde se pode averiguar, profícua. Parece haver algo de exagerado na pena, o que desconcerta e provoca perplexidade.

No entanto, o Papa é o Papa é o Papa. Ele é o Monarca absoluto, a quem compete a guarda da Igreja Santa de Deus; em princípio, o Sumo Pontífice tem todo o direito de impôr o degredo a Santo Atanásio ou o trancafiamento a S. Pio de Pietrelcina. E às ordens legítimas dos superiores cumpre obedecer, ainda que nos pareçam injustas. É o conselho unânime dos mestres de formação espiritual; para ficar num só exemplo, medite-se neste primeiro ponto do décimo terceiro capítulo d’A Imitação de Cristo:

Aquele que não se sujeita pronta e de boa mente a seu superior, mostra que sua carne não lhe obedece ainda prontamente, mas muitas vezes se revolta e resmunga. Aprende, pois, a sujeitar-te prontamente a teu superior, se queres subjugar a própria carne, porque facilmente se vence o inimigo exterior quando o homem interior não está assolado. Pior inimigo e mais perigoso não tem a alma, que tu mesmo, quando não obedeces ao espírito. Se queres vencer a carne e o sangue, deves compenetrar-te do sincero e absoluto desprezo de ti mesmo. Mas porque ainda te amas desordenadamente, por isso te repugna sujeitar-te de todo à vontade dos outros.

Alguém comentava no Facebook que as pessoas confundiam a legitimidade da ordem com a sua justiça e, do fato de ser ordem legítima, concluíam erroneamente que era também necessariamente boa, santa e justa. De fato, essa confusão existe e cumpre ser sanada. Mas existe uma outra confusão que é muito mais daninha: trata-se do raciocínio inverso, i.e., o de quem, por não considerar a ordem justa, santa ou boa, conclui que por causa disso ela é ilegítima. E este caso é muito pior do que o primeiro, porque aquele conduz no máximo a um erro de valoração a respeito de uma situação de fato e, este, desloca todo o eixo da relação do fiel católico com a hierarquia eclesiástica para o subjetivismo individualista por cujo crivo tudo precisa passar. Não se discutem ordens: obedece-se-lhes. Se todo mundo estivesse autorizado a ponderar as determinações dos superiores para só aquiescer àquelas que lhe parecessem razoáveis, acabar-se-ia com a própria razão de ser da autoridade hierárquica.

Sim, certas ordens vaticanas podem nos parecer injustas e dolorosas, e talvez até o sejam de verdade; contudo, mesmo quanto a essas importa seguir o sábio exemplo do ex-bispo de Ciudad del Este (esta carta merece a leitura na íntegra):

Como filho obediente da Igreja, aceito, contudo, esta decisão, por mais que a considere infundada e arbitrária, pela qual o Papa terá que prestar contas a Deus e não a mim.

Gravem-se estas palavras em pedra, estampem-se-lhes nos frontispícios de nossos templos religiosos – é assim que se reconhece o valor de um Sucessor dos Apóstolos.

Por fim, quanto à terceira, diferentemente do que saiu nos meios de comunicação seculares (e do que eu próprio comentei aqui, da outra vez), a questão das acusações de pedofilia contra o padre Urrutigoity parece que não foi aludida nas informações oficiais que nos chegaram. A nota da Sala de Imprensa da Santa Sé diz simplesmente que «[a] árdua decisão da Santa Sé, determinada por sérias razões pastorais, obedece ao bem maior da unidade da Igreja de Ciudad del Este e da comunhão episcopal no Paraguai». O comunicado de imprensa da Diocese de Ciudad del Este fala em «falta de unidade na comunhão com os outros bispos do Paraguai». Na já citada carta de D. Livieres, o prelado fala abertamente em «oposição e perseguição ideológica». Parece que o problema não é o que parece, e isso – mais uma vez – nos choca e atordoa.

No entanto, repita-se quantas vezes forem necessárias, estamos diante do Papa, e do Papa empregando a sua autoridade pontifícia de um modo muito mais duro do que tem sido o habitual nos tempos que correm…! Não é possível tergiversar. Aquele adágio sobre Roma locuta, causa finita tem um significado maior do que a mera afirmação da infalibilidade da Prima Sedes em questões doutrinárias: denota também a necessidade de uma comunhão efetiva mesmo naquelas decisões de governo sobre as quais não cabe falar em infalibilidade. Papas houve que mudaram a sede do Papado para a França, que negociaram o ultrajante armistício cristero, que dissolveram a ordem dos jesuítas, que permitiram a César executar os cavaleiros da Ordem do Templo; a Igreja, ainda assim, permanece sem mácula e ruga, indefectível esposa de Cristo – e quem não consegue entender isso é porque não entendeu ainda o que significa a indefectibilidade católica. Rezemos pelo Papa, rezemos por D. Rogelio, rezemos pela Igreja Santa de Deus. Afinal de contas, tudo coopera para o bem dos que O amam; passarão pela História Bispos e Papas, e essas palavras não hão de passar.

Se São Pedro tinha sogra, por que o Papa não pode casar?

Alguém me pergunta: Se Nosso Senhor curou a sogra de Pedro, é sinal de que ele era casado. Por que, então, o Papa não pode casar?

O raciocínio está corretíssimo quanto à primeira parte. Sim, é óbvio que S. Pedro, se sogra tinha, é porque era ou fora casado e não pode ser jamais de maneira diversa. O erro se faz presente quanto ao non sequitur elíptico: o argumento desdobrado tem a seguinte forma:

SE o primeiro Papa foi casado ENTÃO os próximos o deveriam [poder] ser também.

E a conclusão não segue das premissas. Não, não é porque S. Pedro tinha sogra que os outros papas deveriam ter também. Não é porque S. Pedro era ou fora casado, do mesmo modo, que os seus sucessores deveriam poder igualmente casar.

São Pedro tinha barba, como já ouvi alguém jocosamente retrucar. Disso evidentemente não decorre que os Papas precisem ser barbudos. Decerto eles podem sê-lo; mas – é este o ponto principal aqui – se fosse emitida uma regra canônica que instituísse a figura do Barbeiro Pontifício, sob cujo encargo ficaria manter sempre lisa e lustrosa a face do Romano Pontífice, isso poderia até ser visto por alguns como uma extravagância; mas decerto ninguém sustentaria haver, aqui, uma contradição com o que está consignado nos Evangelhos. Por que com relação às sogras as coisas são diferentes?

Ser celibatário não é uma condição para alguém ser validamente Papa; não se trata de uma imposição análoga àquela que exige, p.ex., que se seja batizado para receber os demais sacramentos. Outro exemplo talvez mais claro: uma mulher não pode ser “Papisa” porque o Papa precisa ser Bispo, e o Episcopado é um dos graus do Sacramento da Ordem, o qual não pode ser validamente ministrado senão a varões. Assim, uma mulher não pode ser “bispa” (“não pode”, aqui, significando verdadeira impossibilidade metafísica: nada pode ser feito que confira o caráter sacerdotal a uma mulher) e, se fosse – por engano – eleita ao sólio pontifício, não se trataria verdadeiramente de “sucessora de Pedro” com as prerrogativas que lhe são próprias (não gozaria, por exemplo, da infalibilidade).

Coisa distinta é ser casado / celibatário, relação (categoria aristotélica) que por si só não implica nem em condição para se ser Sucessor de Pedro e nem em impedimento ontológico para ascender ao Sumo Pontificado. Pode ser validamente ordenado o «vir baptizatus» (CIC 1024); é ser varão e batizado o que faz S. Pedro – e todos os seus sucessores – poder(em) ter sido Papa, e não o ser(em) casado ou celibatários.

Por quê, afinal de contas, não podem comungar os divorciados recasados?

A seguir, algumas considerações genéricas e rápidas sobre o assunto – que está na ordem do dia e sobre o que sempre me indagam – do iminente Sínodo dos Bispos sobre a família e a propalada possibilidade de que seja liberada a comunhão eucarística para casais em segundas núpcias:

1. O Matrimônio sacramental é indissolúvel. Trata-se de ipsissima verba Christi: «Não separe, pois, o homem o que Deus uniu» (Mc 10, 9). Não existe nenhuma possibilidade de reforma ou flexibilização quanto a isso.

2. Sendo indissolúvel o Matrimônio, as ditas “segundas núpcias” – se celebradas durante a vida do primeiro cônjuge ao qual se está ligado por Matrimônio válido – são, na verdade, uma situação de fato que se sobrepõe ao vínculo original (que permanece, a despeito do que digam os notários de César), violando-o.

3. Havendo vínculo conjugal, qualquer consórcio sexual que não seja com o cônjuge ao qual se está vinculado – independente do quão prolongada seja a separação primeira ou a coabitação presente – é, por definição, adulterino.

4. Adultério é matéria grave, propriamente capaz portanto de propiciar a existência de pecado mortal e conseqüente perda do estado de graça.

5. Uma vez que o estado de graça seja perdido, o Sacramento ao qual se deve recorrer para o recuperar é o da Confissão.

6. A recepção da comunhão eucarística exige o estado de graça. Mais uma vez, não existe a mais mínima possibilidade de flexibilização ou reforma quanto a isso, a respeito do que S. Paulo dirige as seguintes duras palavras: «Portanto, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será culpável do corpo e do sangue do Senhor. Que cada um se examine a si mesmo, e assim coma desse pão e beba desse cálice. Aquele que o come e o bebe sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a sua própria condenação.» (ICor 11, 27-29).

7. A razão pela qual os casais ditos “em segunda união” não podem comungar é simplesmente porque vivem em situação de pecado mortal – geralmente público, continuado e impenitente.

8. Público, porque todo casamento é uma união pública, da qual as pessoas do convívio do casal têm em geral ciência; continuado, porque o segundo casamento, embora tenha se realizado uma única vez no passado, atualiza-se com a coabitação que é mantida; impenitente, porque não existe o animus de fazer cessar a união adulterina.

9. Se o adultério não fosse público, não seria possível falar em proibição eclesiástica (uma vez que ninguém ia saber do pecado e, portanto, não haveria como fazer distinção à Mesa Eucarística) e, por conseguinte, não é sobre isto que se discute. O pecado oculto impede igualmente os pecadores de comungarem, se não no foro externo, indiscutivelmente no interno.

10. Se o adultério não fosse continuado, a comunhão eucarística seria (e aliás sempre foi) absolutamente permitida: cessado o consórcio carnal adulterino, cessaria a matéria do pecado do adultério, o qual se tornaria passível de confissão e absolvição sacramental – sendo assim restaurado o estado de graça e a consequente admissão ao Sacramento do Corpo e Sangue de Cristo.

11. Se o adultério não fosse impenitente, dirigir-se-ia à descontinuidade (e, assim, recair-se-ia, cedo ou tarde, no ponto anterior). Por sua vez, não é crível que uma pessoa esteja ao mesmo tempo sinceramente arrependida de algo e deliberadamente empenhada em continuá-lo.

12. O problema dos ditos “casais em segunda união” não se resume, assim, a “não poderem comungar”. Estarem privados da comunhão eucarística não é uma pena imposta pelas segundas núpcias passadas, mas uma conseqüência da situação de pecado na qual eles presentemente vivem. A questão não é, portanto, estes casais comungarem ou deixarem de comungar; a questão é recuperarem o estado de graça do qual têm absoluta necessidade não apenas para comungar, mas também e principalmente para serem salvos.

13. Reduzir o problema dos casais “em segunda união” à proibição de comungarem é falseá-lo, uma vez que pode passar a falsa – falsíssima! – impressão de que estes casais, se cumprirem a “pena” que lhes é imposta (= absterem-se da Eucaristia), estarão já “quites” com a religião católica, sendo filhos obedientes da Igreja e fazendo o que lhes é exigido para serem bons cristãos. Ora, é-lhes negada a Eucaristia como um apelo para que eles abandonem o adultério, e não como um meio para que possam legitimamente viver as núpcias adulterinas!

14. À luz de tudo isso, por fim, carece de qualquer sentido perguntar se a Igreja vai “mudar” a “disciplina” de negar a comunhão eucarística aos casais em segunda união. É evidente que o problema não é esse. Tal pode até ser a preocupação imediatista de quem desconhece os rudimentos da Doutrina Católica; para quem tem a missão de salvar as almas, contudo, o problema está posto com todos os seus contornos e desdobramentos. Aquela pergunta não tem lógica absolutamente nenhuma. Ter isso em mente é fundamental para que se possa enfrentar devidamente essa «vera piaga» (Sacramentum Caritatis, 29) dos nossos dias.

Quando o Matrimônio é a solução para o concubinato

Não me lembro agora quem foi aquele sábio contemporâneo que disse, certa vez, que os jornalistas eram as pessoas mais desinformadas que ele conhecia. A veracidade da sentença é passível de ser confirmada à mais banal e corriqueira observação da realidade; é incrível como este ramo de atividade humana – responsável justamente pela propagação da informação – pode contar com tantas e tantas pessoas absolutamente ineptas em suas fileiras.

Uma matéria recente do Estadão fala que o “Papa realiza casamento de casais que já moram juntos e têm filhos”. O primeiro parágrafo, dando o tom de toda a matéria, dispara que o Papa Francisco «celebrou o casamento de 20 casais neste domingo [14/set], alguns dos quais já vivem juntos e tem filhos, no mais recente sinal de que o pontífice argentino quer que a Igreja Católica seja mais aberta e inclusiva».

Custa crer que exista alguma pessoa na face da terra que ignore que a Igreja, desde que é Igreja, casa casais. [Na verdade, quem celebra o Matrimônio são os nubentes e não o sacerdote que o assiste, como o sabe qualquer catequizando adolescente; mas seria demais exigir esse nível de refinamento de quem se espanta com o fato de casais que «já vivem juntos e tem (sic) filhos» casarem…] Custa crer que alguém enxergue nessa coisa banal e prosaica um sinal de que a Igreja deseje ser «mais aberta e inclusiva».

Ora, desde que o mundo é mundo, a Igreja regulariza as situações de fato que encontra. As pessoas que podem se casar são, apenas e justamente, os casais que ainda não estão casados! Um absurdo inaudito, digno de manchetes, seria se fosse diferente. Se um homem e uma mulher vivem juntos maritalmente e não estão ainda casados – nem, óbvio, estão impedidos de casar por algum matrimônio prévio, por votos religiosos ou por qualquer outra razão -, então é lógico que a situação deles regulariza-se, da maneira mais simples possível, com a celebração do seu casamento. Isso sempre foi assim e qualquer pessoa com um mínimo de vivência eclesial sabe disso. No fato da Igreja casar casais que ainda não estão casados não se encontra nenhum sinal de “inclusividade”, no péssimo sentido que esta palavra tem na novilíngua contemporânea, mas sim da catolicidade da Igreja que, sempre, convida a Si todos os homens e anseia por congregar a todos no Seu seio.

Aqui, nos sertões do nosso Nordeste, uma das coisas que frei Damião fazia com suas missões [cf. “Em defesa da Fé”] era, justamente, ajustar o casamento dos que viviam amancebados. Ou seja: trata-se de prática extremamente “reacionária”, no sentido de que se preocupa com as formas tradicionais [= o matrimônio religioso] em preferência às novas configurações de fato [= o amor livre]. Na verdade, casar pessoas que já vivem juntas e têm filhos não é “incluir” essa realidade marginal – o concubinato – na Igreja Católica, mas precisamente o contrário: é arrancar o homem à mancebia para reintroduzi-lo nas práticas santas da religião católica, é elevar a amásia e concubina a cônjuge e esposa legítima. É, em suma, dizer que não se aceita que os casais simplesmente “vivam juntos e tenham filhos”, mas que, além disso, é imperioso que eles contraiam matrimônio válido e lícito diante da autoridade religiosa competente. Trata-se, evidentemente, de [mais] uma condenação do concubinato, e não de uma sua “inclusão” na Igreja.

Uma Igreja “aberta e inclusiva”, na mentalidade moderna, seria uma Igreja que permitisse o sexo fora do casamento, que aceitasse o casamento gay ou permitisse que divorciados tornassem a casar. Ora, não consta que as pessoas que recentemente se casaram diante do Papa Francisco tivessem algum impedimento canônico; não eram gays mas, muito ao contrário, casais de verdade, com filhos próprios inclusive; e o fato mesmo do Papa exigir-lhes o casamento é, por si só, sinal evidente de que faltava algo à situação de «vive[re]m juntos» em que já se encontravam. Muito ao contrário, portanto, de ser um “sinal” dessa realidade apocalíptica pela qual anseiam em vão os bárbaros modernos, o recente gesto do Papa Francisco foi uma reafirmação da Doutrina Católica: longe de ser uma realidade social dotada de valor, o concubinato é um mal que deve ser sanado – se possível, com o Matrimônio. E o Papa quis passar clara e abertamente essa mensagem para o mundo. E esta verdade é suficientemente inclusiva para valer para todos os homens.

Que assim seja o entardecer das nossas vidas

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Foi o professor Fedeli quem me disse, certa vez, que o entardecer era mais bonito que o alvorecer. Porque a agitação do dia levanta partículas que, em suspensão no ar, encarregam-se das mil-cores de que se costumam revestir os nossos ocasos: mas a explicação física não é tão importante quanto o simbolismo espiritual. O pôr do sol é mais bonito que o seu nascer para nos ensinar que uma boa morte é preferível a um berço de ouro: que, na verdade, não importam tanto as condições nas quais nós nascemos, mas sim o nosso estado quando deixamos este mundo.

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Sim, é belo o poente…! Que assim seja o anoitecer das nossas vidas. Que nos preocupemos mais com o fim do dia do que com início que há muito já ficou para trás – e com relação ao qual nada mais podemos fazer. Que a SSma. Virgem nos conceda almas mais inflamadas do amor de Deus do que este céu soteropolitano de fim de tarde. Que o bom Deus nos conceda um crepúsculo do qual nos possamos – no bom sentido – orgulhecer. Um que apraza a Nosso Senhor contemplar.

[Fotos em Salvador, no ligeiro mas agradável passeio em companhia do caríssimo Dionísio, a quem muito agradeço pela cordialidade.]

CNBB Sul 1 sobre as eleições 2014: considerações importantes

Eu também recebi por chat do Facebook este folheto assinado pela Comissão em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da CNBB, que até o presente momento só se encontra, na internet lusófona, no blog do Carmadélio e no Fratres in Unum. À parte o extraordinário furo jornalístico, é imperioso fazer algumas observações e questionamentos.

1. Por qual motivo o texto não foi divulgado pelos canais oficiais? A Conferência dos Bispos do Brasil tem uma página na internet e o Regional Sul 1 da CNBB tem ali uma área específica, além de um site próprio. Em nenhum desses lugares está presente o folheto que estou divulgando aqui. Penso que a mensagem  – aliás importantíssima, como já detalharei – adquiriria maior credibilidade e alcance se fosse tornada pública com o peso da Conferência Episcopal (ou mesmo de um de seus regionais!), ao invés de estar sendo difundida unicamente pela blogosfera católica.

[P.S.: Na verdade, como fui informado, o documento encontra-se no site específico da «Comissão Regional em Defesa da Vida», ocupando lugar de destaque na página principal (link direto aqui). Importa ler também esta Declaração do pe. Berardo Graz, coordenador da Comissão em Defesa da Vida do Sul 1 da CNBB.]

2. Dois outros documentos podem ser encontrados, em lugar de relativo destaque, nos sítios acima referidos. Um deles é este “Pensando o Brasil: desafios diante das eleições 2014”; o outro, estas “Orientações para as Comunidades Católicas da Arquidiocese de São Paulo”. Em que pese a sua possível pertinência, nenhum dos dois contém as informações detalhadas e concisas no que concerne à «defesa da vida» que o pessoal do Sul 1 sistematizou. Não se vê como os documentos possam ser concorrentes, ou mesmo com a presença destes dois possa suprir a lacuna daquele, quando os assuntos nuns e noutro abordados possuem enfoques diferentes.

3. Os que têm um pouco de memória hão de se lembrar do papel ostensivamente profético que o Regional Sul 1 da CNBB realizou nas eleições de 2010, mormente no épico episódio dos panfletos apreendidos e censurados pelo PT. Aqueles bispos elevaram-se acima, muito acima dos seus irmãos de báculo e mitra, e conquistaram para si a honra de serem os únicos nomes eclesiásticos imediatamente lembrados quando se fala em boas orientações católicas para o exercício da cidadania no Brasil. Não se entende, portanto, por qual razão não consta, entre as várias comissões de que se compõe o Regional Sul 1 da CNBB, o nome da Comissão em Defesa da Vida no sítio eletrônico do Regional:

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4. Entrando por fim no mérito da mensagem, creio já ter dito outras vezes aqui o seguinte: decerto existem muitas posições políticas que são lícitas ao católico, mas a indiferença diante da questão do aborto não se encontra entre elas. O ensinamento universal do Magistério é taxativo: «[a] lei divina e a razão natural excluem, portanto, todo o direito a matar directamente um homem inocente». Aqui não há espaço para dúvidas ou tergiversações: não se pode tolerar o aborto nem mesmo para a promoção de um “bem maior” e, portanto, não é lícito apoiar um candidato ou partido pró-aborto sob a justificativa de que o seu programa de governo é [o] melhor em outros pontos. Os direitos mais importantes são os primeiros critérios de exclusão: alguém que não defenda a vida «desde a concepção até a morte natural» não é uma opção legítima para o católico, mesmo que em outros pontos – como v.g. os direitos de propriedade, a liberdade da Igreja Católica e o justo socorro aos órfãos e viúvas – seja, por absurdo, a mais perfeita encarnação da Doutrina Social da Igreja. Alguém que promova o aborto não pode receber o apoio dos católicos, ainda que se apresente o mais justo dos governantes em todos os outros aspectos do exercício do poder.

Isso posto, merecem atenta consideração as informações trazidas pela Comissão do Sul 1. Em particular:

  • «[A]o se fazer um balanço sobre a atuação do atual governo na questão da defesa da vida, os resultados obtidos foram indiscutivelmente sombrios».
  • «[D]esde setembro de 2007, o PT assumiu em seu programa estatutário a legalização do aborto e a execução dessa prática em todos os casos no serviço público. Além do PT mais oito partidos políticos, registrados no Tribunal Superior Eleitoral, incluem explicitamente em seus estatutos ou programas a legalização do aborto, a saber: o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Popular Socialista (PPS), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o Partido da Causa Operária (PCO), o Partido Democrático Trabalhista (PDT), o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e o Partido Verde (PV)».
  • «[A] candidata do PSB à Presidência da República apoia a realização de um plebiscito sobre a legalização do aborto no Brasil. Esse posicionamento contradiz o direito à inviolabilidade da vida humana desde a concepção até à morte natural, sempre defendido pala Igreja».

Por mais que o nosso futuro político próximo seja inescapavelmente sombrio, não se pode perder a oportunidade de usar o efervescente período pré-eleitoral para colocar alguns pingos nos is e pontuar algumas coisas que, em outras épocas, ficam longe dos holofotes da mídia. Todo homem está obrigado a respeitar certos princípios universais da Lei Natural, independente da filosofia de vida que particularmente processe ou do partido político em cujas fileiras milite. Dizê-lo alto e claramente, ainda que diante de ouvidos moucos, é um dever ao qual não nos podemos furtar.

Cuba e os deveres para com a pátria

“O Estado controla tudo” e “a única esperança de vida para as pessoas é fugir da ilha”, explicou o núncio Musarò, descrevendo a situação de degradação, penúria e opressão dos cubanos. E concluiu dizendo que, inexplicavelmente, “até hoje, transcorrido mais de meio século, continua-se falando da Revolução e se louva-a, enquanto as pessoas não têm trabalho e não sabem como fazer para dar de comer a seus próprios filhos”.

Recebi por email a notícia sobre o núncio e a manchete jornalística. O artigo italiano original está aqui. Não faltou quem dissesse que o prelado devia ser expulso do paraíso caribenho. O fato pode ser novo, mas o drama é antigo; não nos surpreende mas, contudo, ainda nos choca e incomoda.

Lembro-me de um fato curioso da minha adolescência. Eu devia ter lá os meus dezesseis anos; conversava com alguns amigos sobre Cuba, e o assunto versava sobre os cubanos que se lançavam, mar afora, em fuga desesperada da ilha de Castro – sim, já naquela época os cubanos fugiam de Cuba. Um amigo defendeu que, de fato, Cuba não devia permitir que os seus cidadãos abandonassem o país. A justificativa: o governo cubano investia pesadamente na formação dos cubanos, suprindo-lhes as necessidades e (principalmente) dando-lhes educação de qualidade, e simplesmente não era justo que, depois de quinze ou vinte anos recebendo tudo do Estado, os cubanos dessem-lhe as costas e fossem embora, privando-o do retorno que ele esperava e merecia receber.

Não vou entrar no mérito das necessidades supridas ou da qualidade da educação cubana. Vou assumir, para argumentar, que lá na Ilha todos vivam no mais perfeito conforto material e, além disso, recebam, efetivamente, uma educação de ponta. Isso posto, a justificativa procede? Veja-se bem, o dinheiro do Estado é dinheiro público. Teoricamente, foi todo o povo cubano que sacrificou uma parte das suas economias para que um indivíduo recebesse a mais elevada formação científica. Não existe nenhuma dívida desse sujeito para com o povo que o financiou ao longo de sua vida inteira? É correto você tornar-se um profissional altamente qualificado às custas de seus conterrâneos e, depois, deixá-los à própria sorte? Não é justo que as pessoas recebam os benefícios do profissional por cuja formação pagaram?

Não lembro que objeção levantei à época, ou mesmo se levantei alguma. Se a conversa fosse hoje, no entanto, eu perguntaria ao meu amigo se ele estaria disposto a aplicar o mesmo raciocínio para o caso – banal e prosaico – da formação profissional do sujeito ter sido paga não pelo Estado, mas por papai e mamãe. Não têm direito os pais de se beneficiarem, de algum modo, do sucesso dos seus filhos, cuja possibilidade foi por eles proporcionada? Ou quando o Estado exige algo para si é um férreo dever de justiça, mas quando são os pais a reclamarem um quinhão dos haveres dos seus filhos, aí então passa a ser uma opressão medieval do patriarcado que se deve combater a todo custo, uma anacrônica ingerência na livre-determinação dos indivíduos que não pode mais encontrar lugar no nosso século XXI? Alguém seria capaz de defender que um pai proibisse seu filho de deixar a sua cidade natal? Por que, então, há quem defenda com tanto ardor que um país proíba os seus cidadãos de emigrarem?

Reconheço, em suma, certo fundamento no arrazoado; mas não ao ponto de justificar as violações ao direito de ir e vir que as autoridades cubanas praticam há décadas – violações de que desde a minha adolescência, a propósito, eu ouço falar. Sim, há deveres do homem para com a sua pátria; mas não um dever tal cujo cumprimento exija o sacrifício das liberdades individuais mais básicas. A pátria não se confunde com a configuração política da ocasião; patriotismo não é subserviência ao Estado.

É por motivos como esse, aliás, que não vejo com bons olhos que o Estado tome para si, de ordinário, a responsabilidade (quase) integral pelo sustento e formação dos cidadãos: a quem não foi financiado pela ditadura Castro, esta não pode – nem com aparência de propriedade! – exigir os sacrifícios que impõe aos que, de outra sorte, lhe devem algo. O mesmo raciocínio se aplica, guardadas as devidas proporções, para qualquer estrutura política cuja hipertrofia enseje certa desconfiança: que cada um tome cuidado para não depender em excesso dos poderosos do mundo! Mais sábio é, para usar os versos do Rostand, ser responsável por si próprio a ponto de «se acaso a glória entrar pela janela, / a César não dever a mínima parcela».

A terceira via (*) entre socialismo e capitalismo

[(*) P.S.: Percebi depois que a expressão, mal escolhida, poderia conduzir a dois equívocos (nenhum dos quais escrevi, a propósito, mas cuja possibilidade de serem inferidos a partir da leitura realmente existia, como os comentaristas me fizeram notar), para evitar os quais acho oportuno escrever esta pequena nota prévia:

i) a “terceira via” não está aqui dita como se fosse um “meio-termo” entre o liberalismo e o socialismo, [alegadamente] conjugando o que há de melhor em cada uma das ideologias (v.g. a social-democracia);

ii) a “terceira via” não é a Doutrina Social da Igreja, como se esta fosse um sistema econômico pertencente à mesma categoria do capitalismo ou do comunismo; na verdade, uma vez que a DSI é mais propriamente um conjunto de princípios aos quais se devem adequar quaisquer sistemas político-econômicos concretos que se pretendam compatíveis com o catolicismo, melhor seria falar em “terceiras vias”, no plural, significando com isso quaisquer formas de organização da vida pública que, fugindo aos erros quer do liberalismo individualista, quer do socialismo coletivista, fosse informada pelos ditames da Doutrina Social católica (e, nesse sentido, o próprio distributismo citado nos comentários, se é conforme à DSI, com ela contudo não se identifica, sendo sempre possível conceber um outro pensamento que não seja idêntico ao distributismo mas igualmente respeite o que por aquela Doutrina é apregoado).

Em suma, o que este texto intentava era, simplesmente, apontar para a necessidade – tão amiúde negligenciada – de não se cair em uma defesa irrestrita do capitalismo ao se combater o comunismo (ou vice-versa); e o pretendia fazer sem apontar a social-democracia (de maneira alguma!) como uma solução concreta e sem nem mesmo insinuar que a Igreja tivesse um regime econômico pronto, monolítico e universalmente válido a implantar. Aos que se confundiram com essas coisas, minhas sentidas desculpas.]

Faz muitos anos que li “O problema da liberdade” de Fulton Sheen, mas uma de suas frases ficou-me impressa na memória: segundo o prelado, o liberalismo (capitalismo) queria concentrar a maior parte dos ovos em poucas cestas, o comunismo queria quebrar todos os ovos e espalhar o produto pelas cestas todas e, a Igreja, defendia a distribuição mais justa dos ovos inteiros pelas cestas existentes. Acredito que tenha sido a primeira vez que li um ensaio que defendesse uma terceira via como resposta ao clássico embate entre capitalismo e socialismo. É de se lamentar, no entanto, que a senda aberta pelo arcebispo americano não tenha sido melhor explorada pelos católicos que o sucederam.

No afã – justíssimo – de combater o comunismo, muitas vezes acabamos empurrados para o erro oposto. Não é verdade que o católico precise defender intransigentemente o capitalismo ou mesmo possa ser liberal sem reservas: se é indiscutível que se deve no geral apoiar a economia de livre mercado, não é menos verdade que certa intervenção estatal é exigida para o correto funcionamento das forças econômicas em prol do bem comum. Neste sentido, recomenda-se a leitura dos parágrafos 347-350 do Compêndio de Doutrina Social da Igreja; o qual, alguns parágrafos adiante, termina por sintetizar que «[o] livre mercado pode produzir efeitos benéficos para a coletividade somente em presença de uma organização do Estado que defina e oriente a direção do desenvolvimento econômico» (Compêndio, 353). Isso talvez seja um terror para o libertarianismo puro; no entanto, como se disse acima, o católico não pode ser liberal simpliciter.

O espírito do capitalismo, aliás, segundo Weber, é próprio da ética protestante, para usar o título de sua provavelmente mais famosa obra. Uma das situações narradas pelo sociólogo alemão para explicar a diferença entre conservadores e liberais é bem curiosa. Sob a ótica econômica, incentiva-se a venda de uma mercadoria aumentando-se o valor que por ela se está disposto a pagar: são as leis básicas da oferta e da demanda. Se o trabalho é visto como uma mercadoria, então seria de se esperar que aumentar os salários incentivasse os trabalhadores a trabalharem mais. No entanto, Weber notou que exatamente o oposto disso verificava-se com certos indivíduos: recebendo mais, eles passavam a trabalhar menos, porque passavam a conseguir o mesmo salário de antes com um dispêndio menor de horas de trabalho.

Semelhante mentalidade não é favorável à atividade econômica racional que caracteriza o capitalismo, ou pelo menos não lhe é tão favorável quanto a outra mentalidade daquele que, diante de melhores salários, enxergue nisso mais uma oportunidade de aumentar o pão que de diminuir o suor do rosto. No entanto, é fato sociológico que os nossos – de nós, os católicos – antepassados europeus no geral preferiram trabalhar menos a acumular mais, e isso talvez seja digno de mais atenção do que até agora se lhe tem dispensado. Talvez devêssemos buscar melhores soluções para o problema dos ovos e das cestas, cuja importância não parece ter diminuído nas últimas décadas.

O problema maior que vejo na exaltação ingênua do capitalismo é o seguinte: dada ela, alguém não poderia pretender que o socialismo seja capaz de passar por um processo semelhante ao que atravessou o liberalismo: qual seja, o metamorfosear-se tanto que as razões da censura eclesiástica original deixem de subsistir (ou, pelo menos, transformem-se em elementos acidentais sem cuja presença seja possível a concepção filosófica continuar existindo)? Esta pergunta não pode ser respondida ao modo leviano ao qual as condescendências que atualmente fazemos ao liberalismo podem levar o observador incauto. Em uma palavra: não podemos abraçar tão acriticamente o capitalismo liberal que isso conduza a uma legitimação – ainda que meramente retórica – da adesão ao socialismo “mitigado”. Não é somente verdade que, numa escala de erros, o marxismo está mais alto que o liberalismo; não é uma questão meramente quantitativa. Nessa argumentação [precisa] entra[r] também o fato de que as idéias liberais não podem ser assumidas sem ressalvas. E, nisto, parece-me que temos sido um pouco relapsos.

Na Octogesima adveniens, o Papa nos ensina que, mesmo diante da multiplicidade de formas nas quais o marxismo atualmente se apresenta, «seria ilusório e perigoso mesmo, chegar-se ao ponto de esquecer a ligação íntima que [a]s une radicalmente, e de aceitar os elementos de análise marxista sem reconhecer as suas relações com a ideologia» (OA, 34). No entanto, no parágrafo seguinte é feita uma recomendação análoga no que toca ao liberalismo, à qual infelizmente se tem concedido muito menos importância que à primeira:

Mas, os cristãos que se comprometem nesta linha [da renovação da ideologia liberal] não terão também eles tendência para idealizar o liberalismo, o qual se torna então uma proclamação em favor da liberdade? Eles quereriam um modelo novo, mais adaptado às condições atuais, esquecendo facilmente de que, nas suas próprias raízes, o liberalismo filosófico é uma afirmação errônea da autonomia do indivíduo, na sua atividade, nas suas motivações e no exercício da sua liberdade. Isto equivale a dizer que a ideologia liberal exige igualmente da parte deles um discernimento atento (id. ibid., 35).

Cuidemos, portanto, para não subestimar o Magistério da Igreja, e para que a nossa involuntária aquiescência seletiva não induza outras pessoas a preterirem o ensino católico seguro em favor das doutrinas da moda. A resposta ao problema da liberdade não está em nenhuma das ideologias que assolaram o mundo das revoluções burguesas para cá. No nosso labor apologético, é preciso dar mais ênfase à terceira via entre socialismo e capitalismo que a uma – extemporânea e muitas vezes errônea – defesa demasiado crédula do liberalismo contemporâneo.

Não temos o direito de abandoná-Lo

Deparo-me, vez por outra, com a alegação de que os católicos estão desobrigados de cumprir o preceito dominical caso não disponham de uma missa específica (v.g. uma Missa Tridentina) para assistir. Ora, tal alegação é falsa e ímpia, e demonstrá-lo não é difícil. Porque os que alegam semelhante temeridade fazem-no com base no pressuposto de que tal ou qual missa (v.g. uma repleta de abusos litúrgicos, ou uma Missa Nova, ou mesmo – pasmem – uma Missa Tridentina celebrada de acordo com a faculdade concedida pelo Summorum Pontificum (!)) seja capaz de causar dano à Fé de quem dela participa. Ora:

1. Que uma Missa explicitamente autorizada pela Igreja visível possa em si mesma ser daninha à Fé contraria a infalibilidade da Igreja em matéria litúrgica. Se tal fosse possível, estar-se-ia então desobrigado não só de assistir a determinada Missa, senão todas elas, porque a Igreja, tal qual como A conheceu vinte séculos de Cristianismo, teria deixado de existir.

2. Ainda que se diga, para salvaguardar o munus sanctificandi da Igreja, que a nocividade de tal ou qual Missa é-lhe não intrínseca, mas acidental, ainda assim tal dispensa não pode ser deixada ao alvitre de cada um. Seria o caso da impossibilidade moral de que falam os antigos moralistas, cuja determinação precisa exige i) uma situação concreta; e ii) o juízo da autoridade competente (v.g. o pároco). Se se diz – p.ex. – que “toda missa celebrada de acordo com o Novus Ordo Missae é nociva”, então se recai no ponto 1. acima (uma vez que um acidente que se verifica inalterável em todos os entes de uma determinada espécie não pode de maneira alguma ser tratado como acidente vere et proprie).

3. Ainda: se não for caso de impossibilidade moral, mas meramente de conveniência – digamos, que a alegação seja a de que uma Missa má celebrada predisponha a alma a tratar com desleixo as coisas sagradas etc. -, então das duas uma: ou a pessoa tem consciência de estar sendo conduzida à tibieza, ou é a ela conduzida sem disso ter consciência, et tertium non datur. Se a pessoa não tem consciência do perigo a que (alegadamente) se expõe, então é evidente que não pode pleitear uma dispensa com base numa ameaça que ignora – na verdade, ela não pode nem mesmo imaginar a necessidade da dispensa. Se, ao contrário, a pessoa tem conhecimento o bastante para saber que tal ou qual situação a conduz à impiedade e ao enfraquecimento da Fé, então ela está em condições de resistir a estas influências e, portanto, não ser por elas afetada de modo suficientemente grave para justificar a dispensa. Trata-se aqui, na verdade, de um paradoxo da fundamentação impossível: as pessoas ignorantes que poderiam em princípio ser conduzidas para longe da Fé por conta de certas omissões ou ambiguidades em determinada celebração estão, por conta da ignorância mesma, incapazes de pedir a dispensa ou mesmo de imaginar que ela possa existir; ao contrário, as pessoas que têm suficiente conhecimento litúrgico para identificar aquelas omissões e ambiguidades, pelo fato mesmo de as identificarem, não estão sujeitas a terem a sua Fé por elas enfraquecida.

4. Por fim, se o caso for da ilicitude de se participar dos sacramentos – mesmo válidos e intrinsecamente santificantes – dos não-católicos (alegando-se, v.g., que os que celebram a Missa em tais ou quais condições não possuem a Fé Católica e, portanto, estar-se-ia cometendo uma communicatio in sacris proibida se se lhes assistisse às celebrações), trata-se aqui de donatismo totalmente extemporâneo e injustificado. Santo Tomás de Aquino distingue explicitamente entre os que estão privados de ministrar sacramentos por «sentença divina» (ex sententia divina) e por «sentença eclesiástica» (ex sententia Ecclesiae), e diz que somente das missas destes últimos é proibido ao fiel católico tomar parte:

Porque os hereges, cismáticos e excomungados estão privados do exercício de consagrar por sentença eclesiástica – pelo que peca todo aquele que ouça suas Missas ou deles receba os Sacramentos. Mas nem todos os pecadores estão privados do exercício dessa potestade por sentença da Igreja. De tal modo que, ainda que [alguns] estejam suspensos por sentença divina, não o estão no que diz respeito aos demais [fiéis] por sentença eclesiástica. De onde se segue que seja lícito receber deles a comunhão e ouvir as suas missas até que a Igreja pronuncie a Sua sentença.

Summa, IIIa, q.82, a.9., Resp.

Rejeitem-se, portanto, todos os arrazoados que intentem dispensar por conta própria os católicos do cumprimento de seus deveres religiosos. Mandamento é o que o próprio nome diz: é Mandamento, e é precisamente quando é difícil que o seu cumprimento se torna mais necessário. É particularmente duro ser católico nos dias de hoje; poucas coisas conduzem menos a alma à adoração do que as nossas missas medianas, medíocres de símbolos e repletas de abusos. Poucos ambientes são mais hostis à oração do que as nossas paróquias repletas de palmas, de baterias barulhentas, de leigos no altar. No entanto, é exatamente por ser mais difícil descobrir Nosso Senhor por debaixo da mundanidade eclesiástica que o nosso ato de Fé é mais meritório.

É à obediência da Fé que somos chamados, e não temos o direito de dar as costas à graça de Deus porque a indignidade dos Seus ministros nos ofende. Garanto que muito mais ofende a Cristo, e mesmo assim Ele não hesita em Se doar de novo e de novo debaixo do pandemônio litúrgico contemporâneo. Se Cristo permanece lá, nós não temos o direito de abandoná-Lo. Uma coisa justa e meritória é enxugar o rosto chagado de Cristo; outra, completamente diferente, é debandar do Calvário por não suportar os escarros que lançam sobre Sua Sagrada Face.