De volta…!

O meu período sabático forçado parece, graças ao bom Deus, já findo. Já retornei às minhas atividades corriqueiras – pessoais, profissionais, acadêmicas – e, por isso, não há mais razão para continuar impondo ao Deus lo Vult! o mesmo ritmo lento que vinha sendo sua característica desde o final do ano passado. Já me é possível voltar e, portanto, importa que eu esteja aqui de volta. Ainda há muito o que se fazer, e ainda me parece que eu tenha uma pequena contribuição a dar à luta em defesa de Nosso Senhor. Acho que ainda tenho dois grânulos de incenso a queimar em sacrifício. Que ardam.

Ano novo, vida nova. O blog completou em maio último o seu sexto aniversário; entramos no ano VII. É um número bonito e significativo. Ano novo, vida nova, cara nova: já há algum tempo quero dar um ar mais clean ao blog, mais voltado à leitura dos textos, mais palatável em meio a esta nossa tão poluída internet moderna. Outro dia eu comentava com não-sei-quem que o problema da internet indexada voltou a ser o do excesso de informação irrelevante. Quando surgiu, o Google resolveu maravilhosamente o problema; mas agora me parece que ele já não está conseguindo filtrar o conteúdo como fazia dez anos atrás…

Cara nova, políticas novas: doravante, pautar-me-ei mais pela qualidade dos textos do que pela mera meta de atualizações diárias. Nestes tempos de redes sociais, não há mais necessidade de posts meramente citando outros posts; para isso serve a página do Facebook (sigam lá). O conteúdo aqui pode até tornar-se mais escasso, mas será inédito e melhor trabalhado: com isso me comprometo.

Pretendo, também, fazer-me mais presente aos comentários; o aprofundamento permitido pela ferramenta de interação com os leitores continua sendo um dos eixos norteadores deste apostolado. Contudo, procurarei ser também mais criterioso: se o texto principal não é espaço para mera reprodução de conteúdo, tampouco a área de comentários deve ser usada para simples divulgação do que quer que seja. Mais uma vez, a esse fim melhor se presta a página do FB ou o email do blog (jorgeferraz@deuslovult.org – sim, eu o leio todos os dias). Isso naturalmente não é uma regra rígida a ser aplicada de maneira férrea; use-se o bom senso. Mas que se procure utilizar melhor esse canal de produção colaborativa de conteúdo. Firmemos o compromisso de fazer da internet um lugar mais agradável.

Vida nova, cara nova, políticas novas… mas o mesmo objetivo de sempre, que é o de colocar a serviço de Cristo e da Santa Madre Igreja os dons que recebi da Divina Providência. Como sempre me esforcei por fazer; melhor, espero, do que tenho conseguido realizar até então. Ajude-me Deus.

De volta…! Quem diria? No meio das tantas atribuições que já possuo, essa eu faço questão de manter ainda mais um pouco sobre os ombros. O espaço é precioso demais para ser abandonado; deu muito trabalho abri-lo para, agora, deixá-lo desguarnecido. Sim, para a alegria de alguns e decepção de muitos, estamos de volta, com efetivo imediato. Que rufem os tambores. Podem soltar as feras.

São João Batista, um santo que já nasce santo

De São João Batista comemora-se não o dia da morte (*), mas o do seu nascimento; porque ele, ao contrário dos outros santos e santas de Deus, já nasceu santo. Quando a Santíssima Virgem saudou santa Isabel e o menino pulou de alegria no ventre dela (cf. Lc I, 40ss), naquele momento aconteceu o primeiro milagre do Novo Testamento, depois do Milagre supremo da Encarnação do Verbo: naquele instante, uma mulher ficou cheia do Espírito Santo e uma criança – ainda no ventre da sua mãe – foi santificada.

[(*): Na verdade, a festa da Decapitação de São João Batista existe, e é celebrada (tanto no calendário novo quanto no antigo)  no dia 29 de agosto. Mas a festa do nascimento do Batista é maior e mais conhecida do que a de sua morte, e é ele o único santo (à exceção, claro, do próprio Cristo e da Virgem Santíssima) de quem se celebra o nascimento.]

São João Batista nasceu santo, assim com a Santíssima Virgem e assim como Nosso Senhor. Mas a razão desses três nascimentos luminosos é bastante distinta. Cristo nasceu santo porque é Deus e, por Sua própria natureza, não poderia jamais nascer de nenhuma outra maneira. A Santíssima Virgem nasceu santa porque foi preservada, no instante em que foi concebida, da mácula do pecado original: é o dogma católico da Imaculada Conceição. Já São João Batista nasceu santo porque, embora tenha sido concebido no pecado, foi santificado ainda no ventre de sua mãe. Cristo não teve e não poderia ter jamais a mancha do Pecado Original; a Virgem Santíssima poderia tê-la, e a teria, se dela não tivesse sido salva por Deus no instante da Sua concepção; São João Batista teve-a de fato, mas dela foi purificado ainda no ventre materno.

É um santo que já nasce santo quem hoje se celebra: tal acontecimento privilegiadíssimo não se tem notícia de que tenha voltado a ocorrer depois daquela noite bendita nas montanhas de Judá! O “precursor” que hoje nos nasce mereceu do próprio Cristo aquele elogio rasgado: dos nascidos de mulher, não surgira jamais outro que fosse maior do que João Batista (cf. Mt XI 11). Não é de se espantar que a Igreja lhe reserve esse lugar privilegiado. Não é de estranhar, portanto, que ele seja celebrado com tanta pompa no mundo inteiro e principalmente no Brasil.

Porque as fogueiras, os fogos, as danças, as bebidas e tutti quanti são, também, em honra a esse grande santo: não é só com primeiras vésperas, liturgias de primeira classe e procissões solenes que são honrados os santos de Deus! A piedade popular tem a sua maneira própria de impregnar o seu quotidiano com as luzes do calendário litúrgico da Igreja. Infelizmente, muitas de nossas festividades juninas estão completamente secularizadas, paganizadas até; mas convém não esquecer que elas, em sua gênese e, portanto, por direito, foram instituídas para honrar São João Batista. Por conseguinte, pode-se (e se poderia até dizer: deve-se!) usar tudo o que é propriamente junino para homenagear São João. Mesmo os fogos. Mesmo a quadrilha. Mesmo a canjica. Mesmo o quentão.

E que São João Batista seja honrado não só no dia de hoje, mas em toda a nossa vida, que esta é a maneira pela qual se honram mais perfeitamente os santos de Deus: imitando-lhes as virtudes no sacrifício quotidiano de uma vida agradável ao Altíssimo. O santo, aliás, não é propriamente conhecido por seus arroubos festivos: dele se disse que «nem comia pão nem bebia vinho» (Lc 7, 33), e a frase que lhe ficou mais característica foi aquela terrível «O machado já está posto à raiz das árvores. E toda árvore que não der fruto bom será cortada e lançada ao fogo» (Lc 3, 9).

Hoje, claro, celebra-se o pequeno filho recém-nascido de Isabel, o São João do Carneirinho, e não o corajoso mártir cuja cabeça foi servida numa bandeja de prata por desafiar os poderosos; mas não convém esquecer que ambos são o mesmo homem e, portanto, os gritos de «Penitência!» que esta criança um dia há-de fazer ecoar no deserto aplicam-se, sim, sem dúvidas, também ao dia de hoje, quando ainda festejamos o seu nascimento. Que essas considerações iluminem as nossas noites juninas e todas as noites que nos forem concedidas nessa vida. Que São João Batista, hoje honrado no mundo inteiro, rogue e interceda sempre por todos nós.

“O Papa parou em nossa casa!”

Eu mal soube da viagem pontifícia a Cassano, cidade da Itália meridional cuja maior característica, a julgar pelo que dizem os órgãos de mídia, é ser profundamente marcada pela atuação da Máfia. E foi bastante por acaso que eu fiquei sabendo deste pitoresco fato que aconteceu nas estradas italianas do sul:

Trata-se de um vídeo amador, certamente de celular, feito pelas pessoas que estavam à beira da estrada para acompanhar a passagem do automóvel pontifício. O mais impressionante não é nem a bênção concedida ao doente (depois do sr. Vinicio Riva, esse tipo de atitude vinda do Papa Francisco não deveria nos surpreender mais). O mais belo está nos detalhes.

Chama a atenção sobremaneira o título que deram ao vídeo: Papa Francesco si e fermato a casa nostra, algo como “o Papa Francisco parou em nossa casa”. Parece clichê e piegas, eu sei, mas não consigo ler essa legenda – colocada, repitamos, pelas próprias pessoas que estavam acompanhando a comitiva papal na beira da estrada; moradores do lugar – sem me lembrar das diversas passagens do Evangelho em que o hagiógrafo faz insistente questão de registrar que Jesus parou em certas casas: na de São Pedro (cf. Mt 8, 14), na de São Mateus (cobrador de impostos – cf. Mt 9, 10), mas também em algumas casas anônimas: «Em seguida, deixando aquele lugar, foi para a terra de Tiro e de Sidônia. E tendo entrado numa casa, não quis que ninguém o soubesse» (Mc 7, 24a).

Nem a Catena Aurea e nem a prestigiada “Vida de Jesus Cristo” de Lafayette dão maior relevância ao detalhe; mas eu fico pensando naquela casa precedida de artigo indefinido na qual Nosso Senhor um dia entrou. E embora não seja capaz de saber ou mesmo especular nada sobre ela (Quem eram aquelas pessoas? Será que já O esperavam? Será que já O seguiam como discípulos? Será que Ele pousava lá sempre que ia a Tiro e Sidônia? Será que Ele simplesmente chegou à porta e pediu para entrar?), uma coisa se me impõe à imaginação com clareza: a alegria que deve ter tomado conta daquele lugar, alegria da qual eu penso ver um lampejo naquele «se e fermato a casa nostra» com que rotularam um vídeo que mostra o Vigário de Cristo parando no meio de uma viagem para cumprimentar alguns moradores que estavam no caminho para o ver passar.

Uma parada singela, longe dos protocolos oficiais e das agendas diplomáticas; que ficaria para sempre desconhecida se a tecnologia atual não tivesse transformado qualquer celular em uma câmera filmadora. O Papa desceu do carro para abençoar um doente e cumprimentar alguns fiéis, e não havia nenhum fotógrafo d’Osservatore para o registrar. O fato em si é banal e corriqueiro, eu sei; mas não o é para as pessoas que o vivenciaram. Aquela casa in fines Tyri et Sidonis era tão comum que não recebeu do evangelista mais do que uma menção en passant: mas lá esteve Nosso Senhor, e isso por si só é um fato extraordinário. Por aquelas ruas do sul da Itália passou o Doce Cristo na Terra, naquela estrada o Papa Francisco parou para saudar alguns fiéis. Isso nada muda no Catolicismo; mas penso na alegria que não deve ter tomado o coração daqueles italianos que lá estavam. Na alegria que transparece do vídeo que vejo ainda mais uma vez.

E a Igreja são vários membros, e n’Ela o que acontece com um membro reverbera por todo o Corpo. A alegria daquelas pessoas é também a minha alegria; o contentamento com a ligeira delicadeza pontifícia chega também a mim. Mesmo quando dirigida a um grupo particular de católicos, toda boa obra atinge toda a Igreja. Felicito-me junto com os italianos que não conheço, mas com os quais compartilho a mesma Fé. Alegro-me com eles. E com eles também posso dizer: grazie, Papa Francesco.

[OFF] Eu, com câncer (XI): A nova fase da vida

Volto a escrever depois de um bocado de tempo, tendo-me ocupado com uma miríade de outras coisas. O paulatino voltar ao ritmo do trabalho, as atividades acadêmicas de um primeiro período universitário após alguns anos longe da Graduação, as sessões de Quimioterapia que ainda fiz, os cinqüenta dias de Páscoa. Foram muitas coisas, nem todas as quais eu tive a oportunidade de registrar aqui ou alhures. Mas penso que já posso voltar.

Do final de abril para cá (quando escrevi pela última vez) passaram-se outras duas sessões de quimioterapia. No início do meu tratamento, naquele já longínquo e tenebroso dezembro, seis ciclos haviam sido o meu prognóstico inicial. Findo eles, no final de abril e em maio último, eu fiz mais dois exames: uma TC de tórax e abdômen + um PET-CT. Os 21 dias entre ciclos esgotaram-se mais depressa do que os exames puderam ser realizados e ficarem disponíveis os seus resultados; no dia 06 de junho eu tomei a sétima QT. A TC (recém-saída) era bem animadora. Quinze dias depois, eu fiz o PET-CT. Os resultados foram ótimos. Sexta-feira última, dia 30 de maio, tomei a oitava dose de quimioterapia. Ontem voltei à minha hematologista. E ela se mostrou extremamente feliz com os resultados.

O PET é um exame muito interessante. Grosso modo, o que ele objetiva é identificar as áreas do seu corpo onde está havendo maior consumo celular de açúcar. Para fazer isso, ele injeta um Flúor radioativo (18F, ou FDG) na sua corrente sanguínea (é um análogo da glicose) que, depois, a máquina capta onde está sendo consumido. A relevância disso? Células tumorais apresentam um elevado consumo de glicose. Sabe-se que certas células (como as cardíacas e as cerebrais, v.g.) apresentam normalmente alto metabolismo glicolítico; no entanto, caso o PET identifique “focos” de consumo do 18F em locais inusitados, isto pode indicar atividade cancerígena. A combinação entre a imagem tomográfica e a obtida do PET (o “-CT” de “PET-CT” significa justamente “Computerised Tomography” – é uma tomografia computadorizada simples, que é feita simultaneamente com o PET e permite a composição das duas imagens) é capaz de localizar a área do corpo onde está acontecendo o consumo de glicose suspeito e, assim, identificar tumores em atividade (ou mesmo – o que é mais interessante ainda – que estejam apenas ensaiando entrar em atividade, i.e., cujas características morfológicas não são ainda suficientes para os caracterizar como tais). Trata-se, em suma, de uma coisa linda, obra-prima do engenho humano.

O resultado do meu PET-CT foi extremamente animador. As únicas coisas “acesas” foram as rigorosamente esperadas: cérebro e coração (graças a Deus), rins e bexiga (por causa do metabolismo do FDG). Nenhum consumo anormal de glicose ao longo do meu sistema linfático, o que me valeu o seguinte alvissareiro laudo médico:

pet-ct

Ontem estive com a minha hematologista querida; fui levar-lhe os exames. Ela mostrou-se extremamente feliz com os resultados. Uma sua colega de trabalho entrou no consultório, para lhe falar sobre não-sei-o-quê; ela mostrou-lhe orgulhosa o laudo do PET, acrescentando: “linfoma folicular”, como se para enfatizar o quanto o resultado era admirável. Nos olhos dela, a alegria e o orgulho do trabalho bem-sucedido; nos meus, a gratidão pela vida nova descortinada.

O que acontece agora? Bom. câncer é uma doença muito chata, e o meu tipo específico de linfoma – o linfoma folicular – parece ser mais chato do que a média. As buscas no Google são unânimes em lhe apontar as seguintes duas características: indolente e incurável. Desisti delas logo no início do tratamento, por uma razão muito simples: que minha doença fosse indolente era uma clara inverdade empírica e, que fosse incurável, eu não queria acreditar (até pela patente inadequação do primeiro adjetivo). A Dra. Rosa, claro, é cautelosa: disse-me que em casos como o meu fala-se mais que o linfoma está controlado do que propriamente curado. Independente de tudo isso, o fato é que a minha resposta ao tratamento é extraordinária, nada compatível com a baixa efetividade da resposta terapêutica que costuma ser apresentada como obstáculo à cura efetiva da doença. Revisões acadêmicas à parte, neste instante em que escrevo essas linhas, o fato é que eu não possuo mais nenhuma neoplasia linfoproliferativa em atividade detectável; e isso é uma grande vitória e uma grande graça. É o melhor e mais animador dos mundos, dado o meu quadro original.

O que acontece agora? Entro em “manutenção”, como se costuma chamar: uma dose de Rituximab a cada 60 dias pelos próximos dois anos, para evitar a recidiva. Sem dúvidas é bastante chato, mas é incomparavelmente melhor do que os ciclos de R-CHOP a cada 21 dias que eu vinha tomando desde o Ano-Novo. Os anticorpos monoclonais não são tão agressivos quanto as outras drogas quimioterápicas; entre outras coisas, minha imunidade não deve baixar, por exemplo. De agora em diante, posso paulatinamente me desvencilhar dos cuidados dos quais me cerquei nos últimos meses e dos problemas menores cuja solução protelei para depois da quimio: largar os antibióticos preventivos, reavaliar a trombose, consultar-me com a endocrinologista para fazer o acompanhamento da minha antiga disfunção tireoidiana – saudades dos tempos em que os meus únicos problemas de saúde eram a levotiroxina matinal! Como é saudável ter as coisas em perspectiva. Nunca vou cansar de dizer o quanto a perda de algo precioso é capaz de nos tornar mais gratos pelo que já tínhamos e a que não dávamos tanto valor assim. Oxalá todos o soubessem.

De agora em diante, posso voltar ao normal. Já venho voltando: o meu quadro clínico geral está ótimo, como atestam todas as pessoas que convivem comigo, em casa e na vizinhança, no trabalho e na faculdade: meu aspecto é muito melhor, assim como minha disposição. Perdi o semblante pálido e cadavérico que adquirira nos últimos tempos: minha aparência é excelente. Os exames corroboram o que se percebe exteriormente. À guisa de exemplo, segue abaixo o laudo do Raio-X que tirei ontem mesmo: é a primeira vez, desde dezembro, que nele não aparecem palavras como “derrame pleural”, “atelectasia” ou “seios costofrênicos obliterados”. É verdadeiramente um troféu.

raio-x

De agora em diante, a vida pode voltar a seguir. Ainda sob a sombra ameaçadora da doença insidiosa, é verdade: mas pode seguir. A nossa vida nessa terra não é um céu perpetuamente sem nuvens, mas sim a possibilidade de caminhar mesmo quando o tempo está ruim. E, definitivamente, o tempo agora está muito melhor do que nos últimos meses. Ainda não são os prados e campinas verdejantes e a estrada diante de mim ainda se apresenta bastante escarpada; mas, como escrevi outro dia no Facebook, daqui do alto onde ora me encontro já posso olhar orgulhoso para o caminho percorrido e dizer sem medo de engano: veni, vidi, vici. É admirável e animador. É gratificante e pleno de esperança. O horizonte alarga-se novamente. O futuro volta a acenar luminoso e promissor.

Agradeço de todo o coração a todas as pessoas que estiveram comigo ao longo de toda essa luta. Aos parentes e amigos e mais próximos, aos colegas de trabalho e aos novos amigos da Faculdade, aos vizinhos e aos amigos mais distantes, aos desconhecidos com os quais tive a oportunidade de travar contato, aos médicos e enfermeiras que cuidaram de mim: o momento que estou vivendo agora é devido à dedicação de todos vocês, e a vitória ora alcançada é fruto da generosidade da cada um. Que o bom Deus lhes recompense em abundância, mais e melhor do que me permitem as minhas misérias e indigências, é o que sinceramente desejo. Muitíssimo obrigado por tudo.

Uma nova fase da vida se inicia. Vou continuar precisando de todos. Até aqui tem me ajudado o Senhor; daqui em diante Ele há de me continuar auxiliando. Até aqui, agradeço-Lhe por tudo; peço-Lhe perdão pelo (tanto!) que desperdicei desse tempo de graças, e suplico-Lhe que me ajude a bem viver dora em diante. Doravante, viver melhor: para outra coisa não valeria a pena ter passado por tudo pelo que passei. Há agora uma vida nova para mim, que cumpre ser bem vivida, que deve ser aproveitada. Aux armes, ao combate, à guerra. À cruz. À glória!

[OFF] Nota de Falecimento

Não vi, de manhã, as manchetes dos jornais locais noticiando um «Médico (…) morto a tiros na BR-101». Só quase à hora do almoço recebi a ligação da minha pneumologista, ainda chocada, com a notícia de que Artur morrera.

– Que Artur, o meu cirurgião torácico?!
– Foi, ele saiu do Português ontem à noite e depois ninguém sabe o que aconteceu.

Só depois eu entrei na internet e fiquei sabendo dos detalhes. Vários tiros de pistola; carteira roubada; carro encontrado queimado em outro lugar, distante do corpo. Uma verdadeira tragédia. Não se sabe ainda ao certo o que aconteceu.

artur-azevedo

Foi Sandra quem me apresentou Artur quando, ainda em dezembro, eu cheguei no hospital completamente dispnéico. Ele ia drenar o meu líquido acumulado na pleura. Só o vi pessoalmente já no bloco cirúrgico: jovem e sorridente, explicou-me o que ia fazer e esteve conversando comigo durante todo o procedimento (a toracocentese a gente faz apenas com anestesia local). Pessoa agradabilíssima.

Em janeiro eu tive que me submeter a uma segunda drenagem. De novo Artur esteve comigo, e é a última lembrança que eu tenho dele. Dessa vez, dos dois lados das costas, a mini-cirurgia foi feita no próprio apartamento onde eu estava internado. Conversávamos sobre as nossas profissões; ao saber que eu trabalhava com informática, ele me saiu com não lembro qual chiste de computação. Acho que foi «a informática surgiu para resolver os problemas que antes dela não existiam», ou coisa parecida. Eu disse que ia contar também algumas anedotas sobre médicos, mas só depois que ele fechasse as minhas costas. Rimos. Não esperei tanto e soltei, de memória, aquela quadra de Bocage (acho que é de Bocage):

Aqui jaz um homem rico,
nessa rica sepultura.
Escapava da moléstia,
se não morresse da cura.

Ele riu a plenos pulmões. Ainda conversamos um pouco até eu começar a ficar tonto e ele decidir encerrar o procedimento, após três litros drenados. Deitei e fui descansar; depois disso não me lembro se voltei a me encontrar com ele, casualmente pelos corredores, ou n’alguma visita de rotina. Mas essa foi a última vez – disso tenho certeza – em que conversamos mais demoradamente.

Todos os dias, no espelho, ainda vejo dos dois lados das costas as pequenas marcas dos furos das duas drenagens às quais me submeti; e, respirando incomparavelmente melhor, ainda me lembro dos momentos angustiantes dos pulmões obliterados. Artur muito me ajudou para que eu chegasse até aqui, e é estranho; agora não me lembro se eu o agradeci devidamente, e me bate uma profunda tristeza por ele não ter podido acompanhar o desfecho do meu caso ao qual se dedicou desde o começo. Tenho ainda no meu corpo as marcas do seu trabalho médico, e ele não está mais aqui para se orgulhar dos frutos que me proporcionou. As minúsculas cicatrizes duraram mais do que o homem que as produziu. É assustador; somos mesmo pó e nada.

Artur tinha quase a minha idade: 35 anos. Deixa uma esposa e um filho pequeno. Aos que por aqui passarem, peço que rezem uma Ave-Maria por ele e pela sua família; que o Bom Deus leve em conta a dívida de gratidão que eu tenho para com ele, e que o possa recompensar por toda a atenção que dedicou a mim e à minha família nos piores momentos do meu câncer. Não sei por quê, vêm-me à mente agora duas estrofes de Augusto dos Anjos, escritas pelo poeta paraibano – conterrâneo do Dr. Artur – a um seu amigo falecido. A última delas é assim:

A água quieta do Tejo te abençoa.
Tu representas toda essa Lisboa
De glórias quase sobrenaturais,
Apenas com uma diferença triste,
Com a diferença que Lisboa existe
E tu, amigo, não existes mais!

E aqui existem coisas ainda muito mais perecíveis do que Lisboa – este próprio convalescente que escreve estas linhas, as ainda mais efêmeras cicatrizes que Artur legou às minhas costas -, e o jovem cirurgião não existe mais…! É muito triste. Só não posso concordar em absoluto com o niilismo do controverso poeta. Entendo-lhe a dor, sem dúvidas, mas vejo-a em perspectiva: Artur pode não estar mais entre nós, mas ainda existe, distante daqui; e rezo para que o Bom Deus lhe seja propício e o faça receber, lá, o meu preito de gratidão e minhas preces de sufrágio. Hoje é Treze de Maio, dia de Nossa Senhora de Fátima; que a Senhora do Céu possa valer-lhe e abrir-lhe as portas à Jerusalém Celeste.

Requiem aeternam dona ei, Domine,
– et lux perpetua luceat ei.

Requiescat in Pace,
– amen.

Convite para curso: «Doutrina e Ética Social»

Informação relevante aos meus leitores de São Paulo: o Prof. Rodrigo Pedroso iniciará amanhã um curso sobre Doutrina e Ética Social a que eu próprio gostaria muitíssimo de poder assistir. Os que não possuem os meus obstáculos geográficos (ou outros análogos), portanto, façam-se presentes. Estou convencido de que valerá muito a pena.

cursodoutrina

O programa do curso, conforme foi enviado por email, é o seguinte:

Curso de direito natural
PROGRAMA

  1. Introdução.
  2. Pressupostos epistemológicos.
  3. Pressupostos metafísicos.
  4. Análise da operação natural.
  5. O objeto da operação humana. O fim último do homem.
  6. Atividade humana em ordem a seu fim. Análise do ato humano.
  7. Noções de ontologia moral.
  8. A moralidade objetiva.
  9. A moralidade subjetiva.
  10. As virtudes e os vícios. O conceito de justiça.
  11. A lei natural.
  12. A consciência.
  13. O pecado e o mérito.
  14. O direito: conceito, fim e propriedades. Direito e moral.
  15. Deveres do homem em geral.
  16. Deveres do homem para com Deus.
  17. Deveres do homem para consigo mesmo.
  18. Fundamentos dos deveres mútuos entre os homens.
  19. O direito de propriedade.
  20. Os contratos.
  21. A sociedade em geral.
  22. Os componentes da sociedade.
  23. A formação da sociedade mediante fatos associativos.
  24. Sociedade e princípio da subsidiariedade.
  25. Natureza da ação social. Como age a sociedade.
  26. Divisão do direito: público e privado.
  27. Deveres da sociedade para com seus membros.
  28. A defesa social: jurisdição e direito criminal.
  29. Noção de societas perfecta. As partes do poder politico segundo suas funções.
  30. A transmissão do poder político.
  31. A usurpação do poder.
  32. A perda do poder legítimo.
  33. O poder constituinte.
  34. O poder legislativo.
  35. O poder executivo.
  36. A divisão dos poderes.
  37. Relações mútuas entre sociedades independentes – direito internacional.
  38. Deveres de um estado independente para com uma sociedade ordenada.
  39. Deveres para com uma sociedade desordenada (agressora ou conflagrada).
  40. A sociedade das nações, um governo mundial?
  41. O desenvolvimento material da sociedade. Liberdade economica e corporações.
  42. O desenvolvimento intelectual e moral da sociedade. A liberdade espiritual.
  43. Os regimes politicos.
  44. A sociedade domestica ou familia: o laço conjugal.
  45. A sociedade domestica ou familia: deveres e direitos reciprocos entre pais e filhos.
  46. Nexo necessário entre a teoria social e a religião.
  47. Análise filosófica da Igreja católica.

* * *

O quê: Curso de Doutrina e Ética Social
Onde: Paróquia de Nossa Senhora do Monte Serrate – Largo de Pinheiros, SP.
Quando: Às quartas-feiras, às 19h30.
Quanto: Gratuito.

Não percam essa oportunidade.

[OFF] Eu, com câncer (X): Eu já cheguei até aqui

A maior parte dos meus leitores já sabe que eu tive a honra de passar o último Tríduo Santo em tratamento de Quimioterapia. Na tarde da Quinta-Feira eu estava na clínica hematológica, de onde saí ao cair da noite; pude, assim, passar os últimos dias da Semana Santa sob os efeitos da medicação contra o câncer.

A melhor Quaresma da minha vida – iniciada com uma QT no dia seguinte à Quarta-Feira de Cinzas, encerrada com outra QT na Quinta-Feira Santa… – chegava assim ao seu término. Tenho medo de não a ter aproveitado tanto quanto poderia; que Deus tenha misericórdia das minhas muitas limitações e fraquezas. Mas sou ao mesmo tempo grato e confiante pelo tempo que me foi concedido. Não é sempre que nos vêm ventos favoráveis à santificação e a penitência; quando eles nos vêm, é preciso pois aproveitá-los.

Será que os aproveitei bem…? É difícil se furtar ao exame de consciência. Tenho aquele problema (sobre o qual já devo ter falado aqui) de, às vezes, não saber ao certo se estou sendo muito rigoroso ou muito condescendente comigo mesmo. Há decerto muito espaço entre o escrúpulo e a lassidão; mas, em se tratando da nossa vida espiritual, às vezes parece que esse espaço é mínimo e muito difícil de nele se equilibrar! Ó almas que se dilaceram entre o reclamar muito e o aceitar demais, eu vos entendo. Isso não é um problema exclusivamente espiritual. Apenas adquire contornos mais vívidos quando é encarado sob o prisma da nossa salvação ou danação eterna.

Quais as notícias que tenho para dar? Em dezembro, a minha hematologista prescreveu-me um tratamento composto de seis ciclos de quimioterapia (R-CHOP). E na quinta-feira passada eu tomei a sexta dose. Cheguei até aqui; graças ao bom Deus, eu cheguei até aqui. E cheguei muito bem: não tive nenhuma doença oportunista ao longo desses quatro meses em que estou em tratamento, a minha imunidade somente uma vez baixou para níveis preocupantes, o meu hemograma sempre esteve bom, a minha alimentação, idem, meus rins mantiveram-se funcionando. O maior contratempo foi mesmo a trombose que sigo tratando. Já é tempo de se perguntar: e agora?

E agora… vamos precisar ver. Na próxima semana farei outra tomografia com contraste do tórax e do abdômen. A partir dela verei a minha ascite, o meu derrame pleural e os meus linfonodos; se isso ainda existe e em que medida. Com base nisso é que será refeito o meu prognóstico e serão determinados os próximos passos.

Quais as possibilidades? Na mais otimista, não tenho mais nada. Sim, é possível. Se isso acontecer, entro na fase de manutenção (com não sei quantas doses de Rituximab para prevenir a recidiva), e depois é só monitorar pelos próximos anos. E aí, com um pouco de sorte, eu termino a segunda graduação em 2020 com a mesma expectativa de vida que possuía quando me formei pela primeira vez. É o que todos esperamos.

Mas pode ser, ao contrário, que ainda haja alguma coisa. Aí tudo se complica e tudo depende. Então eu posso tomar mais dois ciclos de QT (completando oito, ao invés dos seis originalmente previstos). Ou posso iniciar um outro ciclo de quimioterapia, com seis ou oito ciclos (ou outro número qualquer, sei lá). Posso tomar o mesmo R-CHOP ou iniciar outro protocolo. Ou qualquer outra coisa. Tudo isso é também possível.

O que será, sabe-o Deus. De qualquer modo, eu já cheguei até aqui. O futuro ainda é incerto; mas qual o futuro que se pode dizer “certo” nessa vida? Volto a agradecer a todos os que me acompanham e perguntam notícias, que me dedicam as suas orações e a sua torcida, a todos enfim os que estão caminhando comigo nesses últimos meses com muito mais dedicação e amor do que eu mereço: e peço que fiquem comigo ainda mais um pouco! Keep praying, que ainda preciso de orações. Foram alcançadas, sem dúvidas, vitórias espetaculares nessa minha luta; recebi, indiscutivelmente, graças extraordinárias durante esse tempo. Mas, agora como há quatro meses, ainda sou um pecador miserável que suplica a caridade de todos vocês.

Cheguei aqui: Deo Gratias! Vamos em frente. Os próximos passos, não sei ainda quais serão. Mas sei que quero caminhá-los como aprouver ao Bom Deus. De fronte erguida, como tenho feito até aqui. Aliás, melhor do que tenho feito até aqui. Sim, é o que quero. É o mínimo que posso fazer.

Pela historicidade de São Jorge, mesmo com o dragão

Hoje é-me um dia particularmente festivo: 23 de abril é festa de São Jorge, meu onomástico e também do Papa Francisco gloriosamente reinante. É um privilégio compartilhar com o atual Vigário de Cristo o nome de Batismo; neste dia de São Jorge, peço ao mártir que nos dê – a nós, jorges em honra e dívida a ele – a sua têmpera e a sua firmeza.

São-Jorge

São conhecidas as lendas modernas a respeito da festa de hoje. Muitos dizem que o santo não existiu de fato ou que a sua celebração foi suprimida pela Igreja. Nada disso procede. A festa litúrgica continua sendo celebrada, sim, no dia de hoje, 23 de abril, nos dois calendários (tradicional e reformado). Sobre os detalhes históricos da biografia tradicionalmente atribuída ao santo, é na minha opinião elucidativo escutar o que já foi dito por D. Estêvão sobre o assunto:

A respeito de São Jorge, portanto, apenas se pode dizer com segurança que nasceu em Lida (Lydda) na Síria por volta de 270 e foi martirizado em Nicomédia no ano de 303. São considerados como incertos ou mesmo lendários os pormenores habitualmente narrados: Jorge, como soldado do Império Romano, teria participado de uma campanha na Pérsia, após a qual haveria residido em Beirute (Síria); nesta cidade, teria lutado contra um dragão; depois disto, dizem que Diocleciano o enviou em expedição à Grã-Bretanha; Jorge atravessou então o mar da Irlanda, hoje também dito «Canal de São Jorge», e desembarcou em Porta Sistuntiorum; daí dirigiu-se para Glastonbury em peregrinação ao túmulo de seu compatriota José de Arimatéia…

Estamos falando de um santo que morreu há dezoito séculos. É claro que não temos hoje uma reconstituição precisa de sua vida, e nem isso é importante. A ausência de dados biográficos detalhados não implica na inexistência de ninguém. Para fins de culto litúrgico, basta saber que o santo existiu e praticou heroicamente a Fé (no caso, ao menos dando o supremo testemunho Martírio).

Naturalmente, se vamos nos espelhar no exemplo de São Jorge (ou de qualquer outro santo), ser-nos-ia muito útil conhecer mais detalhes da sua vida. As tradições piedosas que nos foram legadas pelo seu culto multissecular podem não ter a garantia férrea das fontes historiográficas incontestáveis, mas nem por isso nos é lícito afastá-las como se fossem “estórias” sem fundamento. Repetimos: nem tudo o que não é cientificamente demonstrado é, por conta disso, falso ou mítico. A biografia rigorosa de São Jorge pode ser extremamente lacônica, mas o santo tem também uma biografia passível de ser reconstituída a partir das tradições cristãs que, embora não possa pretender o mesmo grau de certeza daquele minimum ao qual D. Estêvão já aludiu, não obstante é ao menos possível e não é sensato descartá-la por mero preconceito tecnicista.

Que lições podemos tirar da vida do santo que hoje se celebra na Igreja? Para responder a esta pergunta, é interessante a leitura deste artigo sobre ele, que reconstrói os aspectos tradicionais da sua história a partir do que nos foi legado pela piedade cristã. Traz-nos tudo, naquela riqueza de detalhes tão caras às narrativas hagiográficas, inclusive as transcrições dos diálogos entre o mártir e as autoridades romanas que o condenaram nas longínquas perseguições anteriores ao Edito de Milão. “Que é a Verdade?”, pergunta o cônsul ao soldado cristão, parafraseando Pilatos. “É Jesus Cristo, meu Senhor, a quem perseguis”, arremata o grande Jorge. Bravo!

Por fim, vamos ao que todo mundo quer saber: e o dragão? O sr. Luís Azevedo – no texto acima linkado – diz que a história do dragão «não encontra fundamento real em sua vida». Não é tão simples assim. Na prestigiada Legenda Aurea de Jacobus de Voragine, sob o título de “São Jorge, Mártir”, é possível ler tudo, tintim por tintim: a cidade assolada pelo dragão, o povo reunido para matá-lo sem o conseguir, os sacrifícios feitos à fera – primeiro de animais, depois humanos – para a manter satisfeita, a sorte certa vez recaindo sobre a filha do rei, a princesa amarrada fora da cidade, prestes a ser devorada pela besta.

Milagres da Divina Providência: eis que por lá passa São Jorge! A nobre garota tenta dissuadir o valoroso cavaleiro de salvá-la, mas os seus rogos não são capazes de esmorecer o guerreiro. O dragão aparece e interrompe o diálogo, arremetendo contra ambos. São Jorge persigna-se e se lança à luta contra o monstro, conseguindo enfim prostrá-lo por terra. Amarra-o pelo pescoço com o cinto da princesa e a faz conduzi-lo de volta à cidade. À vista da fera todos se desesperam; mas São Jorge, imponente, pede àquele povo a profissão da Fé e o Batismo, que então ele mataria o dragão. O rei batiza-se com todo o povo – quinze mil homens, sem contar mulheres e crianças, a narrativa faz questão de quantificar – e São Jorge mata o dragão. Em agradecimento, o monarca oferece incontáveis riquezas a São Jorge, que as manda distribuir aos pobres e, deixando ao rei alguns conselhos, despede-se dele e parte. C’est fini.

Incrível? Sem dúvidas. De onde surgiu tão fabulosa história? Ela remete ao menos à Idade Média, há uns sete ou oito séculos atrás. O que há de verdade nela? Difícil dizer. Por favor, não me venham com os truísmos de “dragões não existem”, coisa que é evidente. Mas existem feras selvagens, povos rudes e maus, sacrifícios humanos, homens covardes e corajosos, lutas e conversões. O dragão é o que menos interessa na narrativa, e pode perfeitamente ser substituído por um urso feroz ou um cavaleiro poderoso sem alterá-la em praticamente nada. Impugnar a historicidade do santo por conta desse detalhe é tão sem sentido quanto negar a independência do Brasil por causa dos erros do quadro de Pedro Américo.

O problema aqui se situa em pelo menos dois níveis. Primeiro, não é – absolutamente! – necessário afirmar que é mítica a existência inteira de um personagem por causa de um trecho de sua biografia que nos soa inverossímil. Segundo, não é necessário nem mesmo, por causa da mescla de elementos fantásticos e plausíveis que se encontra nas narrativas sobre ele que nos foram legadas, reduzir toda a sua biografia a um minimum passível de ser criteriosamente estabelecido. Dá para descontar o dragão e mesmo assim haurir da controversa passagem virtudes heróicas capazes de nos aumentar a piedade cristã; e sem dúvidas é possível obter fruto, e muito, de outras passagens clássicas da vida do santo que ficam entre a inverossimilhança manifesta e o rigor documental, como as narrativas do seu martírio. E, claro, dá pra contar com a intercessão do valoroso São Jorge, cuja vida só conheceremos em detalhes quando nos encontrarmos na Glória de Deus. Que o glorioso mártir rogue por nós.

Sobre o “Noé” de Aronofsky que ainda não assisti

Eu não assisti ainda ao Noé de Aronofsky, mas acompanhei ultimamente muitas discussões sobre o filme entre os mais diversos círculos de amizade. De todas elas o que mais me chamou a atenção foi este texto – cuja leitura eu recomendo na íntegra. A tese do autor (Brian Mattson) é a de que o cineasta não tomou “liberdade artística” nenhuma com a história de Noé que nós conhecemos do Antigo Testamento, mas simplesmente a contou sob a ótica bem exata e bem fidedigna da Cabala. A despeito de ser um pouco longa, a originalidade da análise é cativante e perspicaz.

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Mesmo sem ver o filme, eu próprio já havia notado que todo mundo estava falando dele de maneira estranha: fosse pelo fato de Noé ser vegetariano, fosse por se tratar aparentemente de uma espécie de nômade que vivia longe da civilização, fosse por não agir com suficientemente docilidade à voz de Deus. Em poucas palavras: a história que me contavam do filme que eu ainda não vira não tinha nada a ver com a história de Noé cujos traços mais marcantes todo mundo guarda no subconsciente quando menos como reminiscência das aulas de Catequese – e todo mundo percebia isso. Havia algo de não muito católico na película que ainda está em nossas salas de cinema.

Diante dessa primeira universal impressão, chocou-me o fato de eu ter assistido ao trailer de “Noé” em duas ocasiões católicas. A primeira, foi na première de Blood Money aqui em Recife; a segunda, na Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro. Como era possível que depois de credenciais de tanto peso o filme me saísse como esta catequese às avessas da qual todo mundo estava falando? Infelizmente, parece que é mesmo verdade. No fim das contas, parece que o Brian Mattson estava certo quando escreveu:

Eu acho que Aronofsky se propôs a experiência de nos fazer de bobos: “Vocês são tão ignorantes que eu sou capaz de colocar Noé (Russell Crowe!) nas telas e retratá-lo literalmente como a ‘semente da serpente’ e, mesmo assim, todos vocês vão assistir e apoiar”.

Aronofsky está dando risada. E todos os que caíram no trote deveriam se envergonhar.

Fiquei, sim, com a sensação de que fomos enganados. E isso deve nos fazer atentar doravante para alguns pequenos detalhes.

O primeiro, que Hollywood não merece carta branca e um livro não deve ser julgado pela sua capa – nem um filme pelo seu trailer. Acho que não cheguei a recomendar “Noé” aqui no Deus lo Vult! simplesmente porque não é do meu feitio resenhar filmes antes de assisti-los, mas podia perfeitamente tê-lo feito dando crédito às boas pessoas que, em situações distintas, me “venderam o peixe” fazendo publicidade da produção em eventos voltados para o público católico. E provavelmente eu falei positivamente do filme em conversas informais, com base no que ouvira sobre ele aqui em Recife e na JMJ.

O segundo, que é humano ser enganado, mas uma vez percebido é mister denunciar o engodo. Vi ultimamente muitas pessoas descascarem o o filme do Aronofsky manifestando o seu desgosto e afirmando a incompatibilidade da película com a história que nos foi legada pelas Escrituras Sagradas. Cumpro aqui um pouco esse papel, trazendo à baila – enquanto o assunto ainda está “quente” – as repercussões do blockbuster dentro do orbe católico, mesmo sem fazer muitas contribuições de minha própria lavra. Acho que o momento é propício para registrar aqui este “estado da arte”.

O terceiro, que é preciso ter profundidade na crítica que se faz, e é justamente nesse aspecto que o texto linkado no início desse post pareceu-me tão particularmente meritório. Indo além do lugar-comum “ah, não é a história que tá na Bíblia”, o autor foi procurar a tradição religiosa que dá sentido e coerência a toda a narrativa, o que é muito útil tanto para entrever as motivações por trás da produção do filme quanto para aumentar o nosso conhecimento geral a respeito dos inimigos clássicos do Cristianismo – informações essas que, nos tempos que correm, não nos é prudente dispensar.

Faço, por último, uma última colocação de caráter estritamente pessoal, não necessariamente aplicável a este “Noé” ao qual, repito, não assisti. Eu gosto de ficção e não penso que toda obra precise ser biblicamente fidedigna para que seja apreciável. Acho que há muito espaço, sim, para se produzir uma obra de arte digna sem que se precise fazer paráfrase de histórias já contadas e bem estabelecidas. Não é este o cerne da crítica ao filme de Aronofsky.

Mas quando um diretor de cinema divulga um filme com um pano de fundo premeditadamente anti-católico através de meios católicos… aí já é caso de perguntar se não houve intenção de enganar, de conseguir para a obra a boa-vontade da publicidade católica, por meio de se lhe deixar ser aplicado um rótulo – o de filme católico – que de saída o produtor já sabia não ser cabível, mas não achou relevante avisar isso aos divulgadores do filme. Aqui, sim, já se pode falar em comportamento censurável. Liberdade artística não é um problema. Induzir as pessoas ao erro é que é.

Oração a São João Paulo II

[Fonte: Infovaticana.]

Estampa-San-Juan-Pablo-II

Ó São João Paulo, das janelas do Céu dá-nos a tua bênção! Abençoa a Igreja que amaste, serviste e guiaste, empurrando-A corajosamente pelos caminhos do mundo a fim de levar Jesus a todos e todos a Jesus. Abençoa os jovens, que foram a tua grande paixão. Ensina-os a sonhar, ensina-os a olhar para o alto a fim de encontrar a luz que ilumina os caminhos desta vida daqui.

Abençoa as famílias, abençoa cada família! Tu advertiste contra o assalto de Satanás contra esta preciosa e indispensável centelha do Céu que Deus acendeu na terra. São João Paulo, protege com tua oração a família e cada vida que floresce na família.

Roga pelo mundo inteiro, ainda marcado por tensões, guerras e injustiças. Tu combateste a guerra invocando o diálogo e semeando o amor: roga por nós, para que sejamos incansáveis semeadores de paz.

Ó São João Paulo, das janelas do Céu, onde te vemos próximo a Maria, faz descer sobre todos nós a bênção de Deus. Amen.