Resgatando o direito da Igreja de Se pronunciar sobre questões sociais

Em um discurso recente a trabalhadores de siderúrgicas italianas, o Papa Francisco falou o seguinte:

Ouvi alguns jovens operários que estão sem trabalho, e me disseram isto: “Padre, nós, em casa – minha mulher, os meus filhos – comem todos os dias, porque a paróquia, ou o clube, ou a Cruz Vermelha, nos dão de comer. Mas, Padre, eu não sei o que significa levar o pão pra casa, e eu preciso comer, preciso ter a dignidade de levar o pão pra casa”. E este é o trabalho! E se falta o trabalho, esta dignidade fica ferida!

A mensagem faz eco à outra declaração do Papa Francisco que já comentei aqui. Na ocasião, Sua Santidade utilizou “desemprego” e “maiores males modernos” na mesma frase, o que imediatamente levou as pessoas a dizerem que, para o Papa, o mal do século era o desemprego. Solene bobagem. Tanto lá como aqui, o trabalho era visto sob um enfoque espiritual. O materialismo estava e está somente nos olhos de quem lê.

Afinal, a mais nefasta conseqüência do desemprego não é a mera carência material, e sim a «dignidade de levar o pão pra casa» ferida. E este «pão» possui uma dimensão tão espiritual que o próprio Cristo fez questão de incluir uma súplica por ele na Oração que é modelo de todas as orações. Outrossim, quer coisa menos materialista do que a reminiscência permanente daquele longínquo «comerás o pão com o suor do teu rosto» que integra o anátema original? Prover ao próprio sustento e ao da própria família – levar o pão pra casa -, antes de uma contingência fisiológica, é um imperativo metafísico. A teologia tem exigências e conseqüências sensíveis; dizer diferente disso é dar razão, ainda que indireta, aos que propugnam uma separação radical entre religião e vida.

Quando li esta mensagem do Papa Francisco, lembrei imediatamente outra declaração da Igreja sobre assuntos aparentemente materiais, sobre um tema à primeira vista tão estranho às coisas do Céu quanto o salário mínimo. No entanto, foi Leão XIII o Pontífice que lhe dedicou alguns parágrafos na Rerum Novarum. Está lá, no número 27. da grande Encíclica:

Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem, inclusivamente, a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado.

E Pio XI foi ainda mais além e acrescentou algumas características mais específicas a esta justa remuneração (Quadragesimo Anno, II, 4.):

É um péssimo abuso, que deve a todo o custo cessar, o de as obrigar [as esposas], por causa da mesquinhez do salário paterno, a ganharem a vida fora das paredes domésticas, descurando os cuidados e deveres próprios e sobretudo a educação dos filhos. Deve pois procurar-se com todas as veras, que os pais de família recebam uma paga bastante a cobrir as despesas ordinárias da casa.

Escusado comentar o quanto o nosso «salário mínimo» legal está aquém dessas exigências estabelecidas – como «uma lei de justiça natural»! – pelo Supremo Magistério da Igreja…

Em suma, há muito em comum entre o «desemprego» sobre o qual fala atualmente o Papa Francisco e o «justo salário» sobre o qual versam as grandes Encíclicas Sociais do passado: ambos são temas à primeira vista «seculares» sobre os quais políticos, economistas, sociólogos e congêneres reivindicam exclusiva competência, com exclusão do parecer moral da Igreja; e ambos são temas que os filhos rebeldes do Catolicismo têm enorme facilidade de instrumentalizar em prol de uma certa “teologia” horizontal e intranscendente que tanto mal fez e continua fazendo à Igreja nos últimos tempos.

Cumpre frustrar os maus intentos de uns e de outros. É preciso defender com clareza, contra os naturalistas modernos, que a Moral tem exigências concretas a fazer inclusive à Economia; e ao mesmo tempo é preciso afirmar com ainda mais clareza a existência de uma doutrina social católica que não é aquela dos teólogos ditos «da libertação». A esquerda tem uma enorme facilidade em se apossar do discurso católico. Contra isso é preciso não negar à Igreja o direito de se pronunciar sobre questões sociais, mas sim anunciar ao mundo os Seus ensinamentos devidamente purificados da parasitagem marxista com a qual eles as mais das vezes são apresentados.

Penso que somos cegos das grandezas de São José

Guercino, Hl.Joseph - Guercino, St.Joseph - Guerchin, Giovanni Francesco Barbieri, d

Para ilustrar o “esquecimento” do Evangelho do qual padece o mundo moderno, dia desses um amigo mencionou um episódio significativo. Certo autor encontrava-se certa vez num museu de St. Petersburg, diante d’O Filho Pródigo de Rembrandt; e percebeu que pouquíssimas pessoas sabiam o que era retratado no famoso quadro. Para a maior parte dos transeuntes, era apenas “um quadro bonito” ou, no máximo, “um Rembrandt”.

O quadro acima é de um pintor barroco italiano, Guercino. Ao vê-lo hoje de manhã, lembrei-me imediatamente da conversa sobre a ignorância evangélica do século XXI à qual fiz referência acima; e pensei, com os meus botões, quantas pessoas seriam capazes de identificar o esposo da Virgem Maria nos traços de Giovanni Barbieri.

Hoje é dia 19 de março, e a data pode parecer corriqueira para muitas pessoas. No entanto, trata-se do dia do Glorioso São José, um santo que se destaca em envergadura acima dos outros santos e santas do Altíssimo como a Sagrada Família da Qual ele é chefe se eleva acima das outras famílias santas que a Igreja já produziu neste mundo. Trata-se de um homem tão santo que sob o seu patrocínio está não um único povo ou uma determinada classe de homens, mas a totalidade da Igreja de Deus.

Infelizmente, penso que estamos muitas vezes como os turistas que não reconhecem a Parábola do Filho Pródigo numa pinacoteca ou os internautas que não distinguem o rosto de São José numa Timeline de Facebook. Penso que somos cegos das grandezas de São José, ignorantes de suas glórias; o poder do Patrono da Igreja Universal é-nos estranho e desconhecido. Se o soubéssemos, provavelmente recorreríamos com mais freqüência à sua valorosa intercessão; e, se o fizéssemos, é certo que seríamos cristãos melhores.

Em uma meditação sobre o dia de hoje, alguém me lembrava que Deus confiou à guarda de São José os Seus dois maiores tesouros na terra: a Imaculada Virgem Maria e o Menino Jesus. Como não tremer de admiração diante da grandeza desse Paterfamilias? Como não se encomendar à proteção do Chefe da Sagrada Família de Nazaré?

Há farto material sobre o santo da lavra dos Papas dos últimos séculos, da Quamquam Pluries de Leão XIII ao Bonum Sane de Bento XV (em português aqui), chegando à Redemptoris Custos de João Paulo II. Outro não foi o tema da catequese de hoje do Papa Francisco. Para qualquer lado que olhemos, os Romanos Pontífices nos acenam com a importância do Protetor da Santa Igreja. Coloquemo-nos confiantemente sob sua providência. E rezemos, especialmente no dia de hoje, para «que mereçamos ter por intercessor no céu o que veneramos na terra como protetor». Que o ilustre filho de Davi nos proteja. Que São José interceda por todos nós.

Orientações sobre práticas penitenciais

Esses dias alguém me perguntou sobre se devia manter ou não a penitência quaresmal durante os Domingos da Quaresma. A pergunta revela um sadio interesse sobre os tempos litúrgicos da Igreja e oferece ensejo para esclarecer alguns termos que costumam aparecer juntos e, por isso, provocam às vezes confusões.

Em um apêndice (o X) ao Código de Direito Canônico disponível no site da Santa Sé encontram-se as «Normas de observância penitencial para as dioceses portuguesas». Vale a pena conhecê-las, mesmo em se tratando de um documento de uma Igreja Local, uma vez que as definições e as práticas lá mencionadas são tradicionais em toda a Igreja.

O jejum é «a forma de penitência que consiste na privação de alimentos» (Normas, 3.). A abstinência, a «escolha de uma alimentação simples e pobre» (Normas, 4.), definição que permite compreendê-la melhor do que falar simplesmente em «abstenção de carne». Todo católico está obrigado a deixar de comer carne nas sextas (no Brasil há indulto da Conferência que permite trocar essa abstenção por outra forma de penitência à escolha do fiel, mas isso é outra história); mas simplesmente trocar a carne por um farto rodízio de Sushi talvez não o permita vivenciar com igual fruto o significado da abstinência das sextas-feiras. Isso vale uma reflexão.

Jejuar é privar-se de alimentos. Certo, mas de que maneira? Nesses tempos penitenciais costumam aparecer explicações bem didáticas sobre como se pode jejuar. Não sei de onde saem os diferentes tipos de jejum, e imagino que isso seja de piedade pessoal ou costume local. Sei que o jejum (digamos) “canônico” é o que consiste em fazer somente uma refeição completa no dia, reduzindo-se as demais. Salvo melhor juízo, costumes locais (digamos, jejum absoluto até a hora do almoço e alimentação comedida a partir de então) cumprem o preceito da Quarta-Feira de Cinzas e da Sexta-Feira da Paixão (os dois dias do ano em que os católicos estão obrigados a jejuar).

Penitência é gênero do qual jejum e abstinência são espécies. É qualquer ato humano orientado à conversão; ou, como a conceituou João Paulo II,

penitência significa, no vocabulário cristão teológico e espiritual, a ascese, isto é, o esforço concreto e quotidiano do homem, amparado pela graça de Deus, por perder a própria vida, por Cristo, como único modo de a ganhar: esforço por se despojar do homem velho e revestir-se do novo; por superar em si mesmo o que é carnal, para que prevaleça o que é espiritual; e esforço por se elevar continuamente das coisas de cá de baixo para as lá do alto, onde está Cristo (Reconciliatio et Paenitentia, 4).

Em resumo, fazer penitência é mortificar-se, e mortificação é qualquer exercício que tenha por objetivo domar a vontade. Assim são penitenciais o jejum e a abstinência (sacrificando o prazer da alimentação), a esmola (enfraquecendo o nosso apego aos bens materiais em prol das necessidades dos outros), a própria oração etc. E é também penitência, em suma, qualquer sacrifício de prazer legítimo que se faça durante a Quaresma: «por exemplo, privar-se de fumar, de algum espectáculo, etc» (Normas, 9.).

Todos os cristãos estão sempre obrigados à penitência no sentido latu (cf. CIC 1249), e devem fazê-la a vida inteira. Certos tempos têm um caráter penitencial mais acentuado (como a Quaresma) e, portanto, devem neles os fiéis empregarem maior diligência em se penitenciar. À abstinência estão obrigados os fiéis maiores de 14 anos em todas as sextas-feiras do ano que não coincidam com solenidades (cf. CIC 1252) e, ao jejum, os cristãos entre 18 e 60 anos (cf. id. ibid.) na Quarta de Cinzas e na Sexta da Paixão.

Não se faz jejum aos Domingos, nem mesmo nos da Quaresma. Mas faz-se penitência na Quaresma, inclusive aos Domingos. Este é o espírito. Como o viver concretamente é matéria de piedade particular, a ser decidida pelo fiel em conjunto com seu confessor ou diretor espiritual. O que é realmente importante é distinguir os tempos: é viver a penitência do tempo comum de modo mais brando do que a penitência quaresmal, e a alegria de um Domingo da Quaresma de uma forma mais contida do que em outro Domingo mais festivo. Esta é a vida cristã, cuja essência não desconhece nem a dor do pecado nem a alegria do perdão: é por meio daquela que chegamos a esta. Aqui não há verdadeira oposição entre penitência e alegria. Entendê-lo é fundamental para viver com fruto este e todos os tempos litúrgicos.

Eu não sabia de quem se tratava

exatamente um ano este blog publicava em seqüência os anúncios de «Habemus Papam» e «Franciscus». Lembro-me da demora, diante da televisão, entre a fumata bianca e o esperado aparecimento do novo Pontífice no balcão diante da Praça de São Pedro. Pareceu-me demorar mais do que há alguns anos, à eleição de Bento XVI. Ou talvez eu estivesse mais velho, menos paciente, mais ansioso… mais contaminado com o espírito do mundo.

O velho jesuíta veio do fim do mundo e surpreendeu a todos. Confesso: eu não sabia de quem se tratava. Ao que parece, muitas pessoas também não. Daqui, do outro lado do Atlântico, ouvi-lhe o «buona sera» antológico. Recebi a primeira Urbi et Orbi do novo pontificado. A televisão continuou ligada, e eu saí. Estava perplexo.

Demorei um pouco a perceber que toda pressa era vã e, toda ansiedade, inimiga da compreensão serena. Não seria possível descobrir quem é o Chefe de uma Igreja de dois mil anos com a velocidade à qual nos acostumamos graças às modernas telecomunicações. A Igreja é Eterna, e isso faz com que haja algo de atemporal em todos os Papas. Quem entende isso, já sabe mais do que é possível aprender com uma legião de vaticanistas.

Um Papa fora eleito e eu não sabia de quem se tratava. Para meu temor, parece que hoje, transcorrido um ano, ainda há muitas pessoas que continuam sem saber. Leio uma profusão de matérias sobre o Papa Francisco na mídia secular, ouço falar dele o tempo inteiro em ambientes religiosos. É impressionante esse mistério: trata-se talvez da pessoa de quem mais se falou ao longo do último ano e, mesmo assim, ela permanece completamente desconhecida para a maior parte dos que ouviram falar dele.

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Como explicar? Tudo parece girar em torno da obsessão que se tem hoje em dia pelo conceito de «mudança», à luz do qual é impossível entender o Catolicismo. Pior ainda quando este conceito é substituído pelo de «Revolução», tão ao gosto da imprensa anti-clerical ou dos desgostosos – de séculos… – com a Igreja. Sob essa clave muito se falou e fala sobre o Papa Francisco. E sob ela o Bispo de Roma é aos homens de hoje cada vez menos conhecido.

Trago um exemplo somente, de tantos que se podiam coligir. Há poucos dias um amigo publicou no Facebook que o Papa era tão revolucionário que ele temia por sua vida, agora que ele – o Papa – estava tentando incluir os “casais gays” dentro da Igreja. A história é de um descabimento retumbante, de uma inverossimilhança tão grotesca que espanta alguém dar crédito. No entanto, ouve-se algo parecido com isso, as pessoas projetam suas expectativas no que acharam ter ouvido dizer, a história se repete e, de repente, tem-se a histeria formada. Contudo, longe dessa pirotecnia irracional, o humilde jesuíta que hoje calça as Sandálias de Pedro se encontra na mais solitária obscuridade. Já há um ano ele guia a Igreja e ainda não sabem de quem ele se trata.

Criou-se muita falsa expectativa em relação ao Vigário de Cristo, e qual o resultado disso? Passou-se um ano, o wishful thinking não se realizou e o papado do primeiro latino-americano permanece para muitos uma incógnita tão grande quanto o era naquele outro 13 de março.

Esta tragédia foi abertamente anunciada. Menos de quinze dias depois da eleição do Papa Francisco, eu ecoei aqui a denúncia de Vortex sobre o «seqüestro do Papa» que estava em andamento. Hoje, um ano depois, ficamos com a impressão de que o plano macabro teve uma perturbadora eficácia. Hoje, ainda há multidões de pessoas que não sabem quem é o Papa e nem se apercebem disso.

Sempre à volta com quimeras. Já se completou um ano. Quantos outros aniversários será preciso esperar para que as sucessivas frustrações com «mudanças» que nunca podem vir dêem enfim lugar à serena aceitação da realidade?

Tarefa difícil. Veja-se: abro um texto de uma revista não-religiosa sobre este primeiro ano de pontificado. Lá, perdido no meio de uma matéria enorme, é dito en passant, quase como se fosse uma curiosidade sem importância, que o Papa Francisco é um homem que passa uma hora em oração diante da Santíssima Eucaristia todas as tardes. E penso que há nessa pequena frase mais sobre o atual Bispo de Roma do que nos desvarios e tresvarios que se costumam apresentar como análises da Igreja. Se as nossas manchetes sobre o Papa Francisco do último ano fossem assim, talvez hoje os homens já soubessem melhor de quem ele se trata…

Faz um ano. Eu não sabia quem ele era. Mas sabia que se tratava do Vigário de Cristo, da Cabeça Visível da Igreja, daquele a quem toda submissão é necessária para os que desejam se salvar. Eu não sabia quem ele era, mas sabia que precisava rezar por ele. E refaço aqui as orações de um ano atrás, as súplicas de cada dia, pelo nosso Pontífice Francisco. A fim de que o Bom Deus o conserve e vivifique. A fim de que o torne feliz sobre a terra. A fim de que jamais o entregue nas mãos dos seus inimigos.

Uma morte boa decorre de uma boa vida

Foi com pesar que soube do falecimento recente do Mario Palmaro. Para quem não lembra, ele já foi mencionado no Deus lo Vult! em duas ocasiões, aqui e aqui, a respeito de uma polêmica envolvendo certas críticas ao Papa Francisco que lhe valeram a demissão de uma Rádio Católica. Posteriormente o próprio Papa teve a gentileza de entrar em contato com ele, oferecendo-lhe a sua proximidade.

É ainda válido o que eu disse há quase cinco meses sobre o assunto, e penso que seria desrespeitoso à memória do professor italiano se usássemos a tragédia presente para conferir ares de martírio à celeuma passada – ou, inversamente, de estopim da Ira Divina. Que Deus confira o descanso eterno ao Mario Palmaro, e que a Lux Perpetua possa brilhar sobre ele: a mesma Luz pela qual ansiamos neste claro-escuro da vida e para merecer a qual queremos viver e morrer.

Foi no Fratres in Unum que encontrei essa sua bonita meditação sobre a doença, talvez umas das últimas coisas que o jornalista tenha escrito. Ela me tocou sobremaneira porque também me encontro às voltas com uma doença, decerto menos grave do que a que vitimou o Palmaro mas, ainda assim, a mais grave que já atravessei. E me senti representado pelas suas palavras. Subscrevo particularmente o seguinte trecho:

Às vezes eu imagino a minha casa, o meu escritório vazio e a vida que ali prossegue embora eu não esteja mais lá. É uma cena que me dói, mas extremamente realística porque me faz compreender quem sou eu, e percebo que tenho sido um servo inútil, que todos os livros que eu escrevi, todas as conferências, todos os artigos são como palha.

Sim, a perspectiva da morte é uma coisa extremamente sadia, por mais paradoxal que a afirmação possa parecer à primeira vista. Faz-nos viver melhor. Trata-se de uma meditação que todos deveriam praticar com freqüência, sem que para isso fosse necessário encontrar-se de fato diante dos umbrais do Túmulo, já a sentir-lhe o bafo gélido. As pessoas viveriam melhor – e por conseguinte morreriam melhor – se se acostumassem a viver como se fossem morrer um dia.

Penso que morrem mal as pessoas que só percebem que vão morrer ao fixar os olhos escarnados da Morte diante de si. E morrem mal porque viveram mal; porque só então percebem terem passado a vida inteira sem aquela consciência – sobre a qual falou o Mario Palmaro – de ser um «servo inútil» e de não ter jamais feito senão «palha». É essa consciência que nos permite ser grandes; é somente com ela que podemos ser o que Deus espera de nós.

Quando eu era mais jovem, lembro que alguns amigos diziam querer uma morte rápida e indolor; qualquer coisa que os fizesse morrer depressa sem nem se aperceberem de que estavam morrendo. E eu discordava; essa perspectiva me aterrorizava. Era importante, eu pensava, morrer com a plena consciência de estar morrendo, com tempo para deitar na cama e agonizar pensando na vida, receber a visita dos parentes e dos amigos, dos sacerdotes a ministrar os Últimos Sacramentos.

Hoje eu já vejo as coisas um pouco diferente: não há nenhuma razão para colocarmos nos nossos últimos estertores essa reflexão sobre a própria vida que deve ser quotidiana. Não existe nenhum sentido em simplesmente desejar morrer pensando em como se viveu, quando podemos e devemos já viver pensando em como estamos vivendo. É uma coisa santa e piedosa desejar – como eu sempre desejei – uma “boa morte”, sem dúvidas, mas esse desejo só faz sentido quando tomamos consciência de que isso necessariamente inclui o desejo de uma boa vida. É por isso que precisamos meditar na nossa morte quando – e principalmente – a percebemos ainda distante de nós. Assim essa meditação nos será mais proveitosa.

Voltando àquelas palavras do jornalista católico, elas me consolam e fortalecem. Consolam, porque entrevejo nelas uma alma que morre bem; fortalecem, porque me instam, já agora, a preocupar-me a cada dia com bem viver; a fim de que eu também possa alcançar um dia este bom termo que é muito difícil obter quando se vive como se se fosse viver para sempre, como quem não precisará prestar contas jamais. Ao Palmaro, a minha admiração, meus agradecimentos e as minhas preces. O Senhor o saberá recompensar por este bem póstumo realizado.

[OFF] Eu, com câncer (VIII): #MeditandoComJuelho

No último sábado, fui convidado a fazer uma meditação no Retiro Mensal dos Membros do Movimento Regnum Christi, cujo tema era: Porque amo a Cristo, abraço a minha cruz. Agradeço imensamente a oportunidade e a confiança em mim depositada; alegra-me bastante poder ser útil de alguma maneira, mesmo com essas minhas limitações circunstanciais que hoje se somam às que já me são próprias por vida.

meditandocomjuelho

A palestra foi gravada, sem edições e sem revisão. Disponibilizo-a aqui, em formato .mp3 e em vídeo do Youtube, na esperança de que possa servir àquelas pessoas que não tiveram a oportunidade de presenciá-la neste final de semana. Que Deus nos ajude a amá-Lo mais. Amá-Lo sempre e cada vez mais.

Youtube:

Áudio:

[podcast]https://www.deuslovult.org//wp-content/uploads/podcast/TamoJuntoJuelho.mp3[/podcast]

[OFF] Eu, com câncer (VII): Ultrapassando a metade do caminho

Faz quase um mês do meu último off-topic sobre meu linfoma. Dizem que as notícias ruins chegam a galope solto, e há uma certa verdade na sabedoria popular: estas últimas semanas foram as que eu passei de maneira mais tranquila. A falta de notícias aqui no Deus lo Vult! era reflexo da relativa calmaria na qual me encontrava nesses dias.

Fiz meu terceiro ciclo de QT no dia 10 de fevereiro; na véspera tivera alta do hospital para tomar Clexane em casa, uma vez que meu INR ainda não estava estabilizado e eu precisava fazer a quimio na clínica (que não era no hospital). Os dias seguintes foram um misto de tensão e de agradáveis surpresas.

Eu já percebera que os dias imediatamente após as sessões de quimioterapia eram os melhores. Não sei se por conta dos corticóides que eu sigo tomando por uma semana ou se por conta do efeito das próprias drogas recém-injetadas no corpo, o fato é que os incômodos próprios da QT – os enjôos, as indisposições, as dores de cabeça – são leves e duram pouco. Com dois ou três dias eu já me sinto novo e revigorado.

Em contrapartida, o período entre quimios é o mais tenso. Nos dois primeiros ciclos, era exatamente aí – lá pelo décimo, décimo-quinto dia em diante – que o bem-estar começava a ceder espaço às crises. Principalmente a dispnéia, a temida e angustiante dispnéia provocada pelo enchimento dos pulmões. Eu nunca soube ao certo se eles esvaziavam para depois voltar a encher ou se eu adquiria alguma capacidade de respirar melhor mesmo com poucos pulmões nos primeiros dias pós-quimio, capacidade que era paulatinamente perdida com o avançar dos dias. Não sei a explicação. Sei que, sempre, infalivelmente, eu me sentia bem logo depois de um ciclo de QT e mal imediatamente antes do ciclo seguinte. E era este o meu temor.

Graças a Deus, os meus temores se mostraram infundados. Ontem tomei a quarta dose da QT; o período entre ela e a anterior foi até um pouco estendido por conta do Carnaval no meio do caminho; e, no entanto, em nenhum momento ao longo das últimas semanas a minha respiração me incomodou como até então vinha fazendo, a ponto de me exigir internamentos de urgência com uso de ventilação não-invasiva para que eu fugisse ao sufocamento.

Passei as últimas quatro semanas em casa, o que é um feito inédito desde que pus pela primeira vez os pés no hospital em meados de dezembro. Na última segunda-feira de fevereiro voltei à minha querida pneumologista para uma avaliação; o raio-x mostrou os pulmões cheios ainda até a metade, mas melhores do que a última chapa que eu possuía no meu histórico. De lá para cá eles certamente não pioraram; não cheguei a respirar pior do que naquela semana anterior ao Carnaval. E já lá eu ainda respirava.

Confessei-lhe (à minha médica) que eu morria de medo de que o derrame pleural aumentasse de novo, que eu ficava em casa o tempo inteiro repetindo os exercícios de fisioterapia (respirar em dois/três tempos e soltar, forçando a tosse ou não, prendendo a respiração ou não, etc.) que eu decorara enquanto estive internado. Ela ficou muito animada com os resultados, e mais ainda eu: o fato é que pela primeira vez eu não voltava a sufocar sozinho com o passar do tempo. E, como eu disse ainda antes do terceiro ciclo, com a respiração do jeito que estava eu suportava os meses que me separavam do fim do tratamento.

Passei em casa as últimas semanas, sem precisar voltar ao hospital, dormindo a cada noite com medo de acordar de madrugada sonhando afogar-me – mas sendo a cada dia surpreendido pela manhã a me despertar suavemente. Tive um único “susto” que me motivou uma ida à emergência do hospital: foi um pescoço dolorido, que imaginei ser [outr]a trombose, mas o vascular do plantão rapidamente me tranquilizou e me disse que era certamente algo muscular, para o qual me receitou analgésicos (que eu não tomei), e que melhorou por completo quando voltei a dormir na horizontal, abrindo mão do travesseiro em forma de triângulo no qual estava dormindo desde há muito tempo para ajudar a minha respiração. Sim, pus de lado até o decúbito elevado e, mesmo assim, consigo respirar à noite tranquilamente. É extraordinário.

Minha pneumologista autorizou-me a voltar aos poucos ao trabalho, coisa que fiz na semana passada e que me fez muito bem. Rever as pessoas, conversar, movimentar-me com mais freqüência (disse a alguém que uma única ida da minha sala ao banheiro me fazia caminhar mais do que um dia inteiro que eu passasse trancado no apartamento)… tudo isso ajudou bastante na minha convalescença, tenho certeza. Se ao final do dia eu às vezes estava cansado e um pouco ofegante, após descansar eu me sentia respirando até melhor. Não sou um atleta, mas consigo de novo levar uma vida relativamente normal. Louvado seja Deus.

Não sei se as minhas cruzes estão se tornando menores ou se estou simplesmente me habituando melhor a elas; sei que escrevo essas linhas melhor do que escrevi algumas passadas. Já se passou mais da metade do tratamento inicialmente definido; já fiz quatro dos seis ciclos que compunham o prognóstico inicial. Agradeço a Deus por me ter sustentado até aqui; sustentar-me-á, tenho certeza, os passos que ainda faltam. Não sei ao certo quais serão, mas sei que os quero, da forma como Deus os tiver reservado para mim. E neste caminho volto a agradecer e a continuar pedindo as orações dos amigos, tantas, que estão sendo de tamanha importância para mim ao longo dessa fase da minha vida. Não me canso de repetir isso, porque é verdade. Não existe nenhuma outra coisa que possa explicar a enorme distância entre a minha relativa serenidade diante desta situação e a vergonhosa pequenez das minhas virtudes particulares.

Concluí ontem o quarto ciclo de QT, como já disse; ultrapassei já a metade do caminho. Espero que até então ele tenha servido à glória de Deus e à minha santificação particular; rezo para que daqui em diante os meus dias possam santificar-me e glorificar a Deus ainda mais. Porque o que pior poderia ficar de tudo isso seria o desperdício do tempo favorável, o sofrimento vazio, as cruzes jogadas foras. Se é para demorar-se um pouco em prantos neste Vale de Lágrimas, que isso ao menos seja proveitoso para os nossos companheiros de infortúnio. Outra coisa eu nunca quis, e não vai ser agora que passarei a querer.

Only two more to go. Vamos em frente. Com a graça de Deus, vamos em frente. De cabeça erguida, e com um sorriso nos lábios. Tenho mais do que mereço. Na verdade, sempre estive melhor do que eu merecia. Obrigado, Senhor.

Ainda os pecados e a comunhão sacramental

Na minha postagem anterior, demonstrei como era descabido ignorar a diferença entre a união com Deus alcançada pela alma em oração daquela proporcionada como efeito objetivo dos Sacramentos, em particular da comunhão eucarística. A oportunidade é propícia para um esclarecimento.

Alguém poderia observar que a graça dos Sacramentos é de fato objetiva, mas os seus efeitos em quem os recebe depende em grande medida das disposições interiores e subjetivas com as quais ele é recebido. Em linguagem teológica, importa não se esquecer de que os Sacramentos operam ex opere operato, mas só são aproveitados ex opere operantis. Os termos latinos são ruins de traduzir e fáceis de confundir, mas o sentido deles é bastante claro: por um lado, os Sacramentos validamente ministrados produzem, efetivamente, a Graça que lhes é própria, independente de quem os ministra ou quem os recebe (ex opere operato). Assim, a Santíssima Eucaristia é de fato o Corpo de Cristo, ainda que o padre seja um pecador degenerado ou que o povo duvide da realidade da transubstanciação. Por outro lado, as graças produzidas no fiel pela recepção da Santíssima Eucaristia (v.g. o perdão dos pecados veniais, o aumento da Graça Santificante, etc.) só se realizam na medida das boas disposições de sua alma (ex opere operantis), e destarte podem ser maiores ou menores dependendo de como se A recebe.

Para ilustrar essa verdade, imaginemos uma Missa celebrada por um padre impenitente e na qual comunga um fiel piedoso. Para ficar ainda mais claro, imaginemos que se trata de uma Missa à qual só estão presentes duas pessoas, o padre que a celebra e o fiel que a assiste. O padre pronuncia as palavras da Consagração sobre a hóstia: ali, a partir daquele instante, Cristo está real e substancialmente presente. Na hora da comunhão, a hóstia é partida em duas; uma parte recebe o padre, a outra recebe o fiel.

Uma só foi a Hóstia Consagrada, e cada um dos dois – padre e fiel – receberam o mesmíssimo Corpo de Cristo; que diferença, contudo, entre os efeitos que essa comunhão produz num e noutro! O fiel piedoso, que está em estado de graça e se aproxima devotamente da comunhão eucarística, aumenta a sua união com Cristo e recebe do Altíssimo maravilhosos frutos espirituais. O padre impenitente, em pecado não-confessado e sequer arrependido, comete um horrível sacrilégio e – nos dizeres de São Paulo – “come e bebe a própria condenação”. Esta tão grande diferença entre um e outro só é possível justamente por conta da realidade da presença substancial de Cristo sob as espécies consagradas. Os efeitos ex opere operantis dos Sacramentos dependem por completo da sua eficácia ex opere operato.

Voltando à comunhão espiritual, alguém pode dizer que um fiel pode alcançar com ela maiores graças do que outro obtém da comunhão eucarística. Ora, mas isso é óbvio e evidente. É claro que alguém pode receber maior fruto espiritual fazendo a comunhão de desejo do que comungando de fato o Santíssimo Corpo de Cristo, principalmente se estiver em pecado mortal. Nesse caso, aliás, muito ao invés de receber os frutos da comunhão eucarística, o fiel cometeria um gravíssimo pecado se ousasse se aproximar indignamente do Corpo de Deus. Claro que os doentes precisam de remédio, mas nem todos os Sacramentos são igualmente medicinais. Não é por outra razão que existe a tradicional diferença entre os Sacramentos de mortos (os que restituem a Graça Santificante perdida) e os de vivos (os que a pressupõem para que possam ser recebidos).

A diferença entre a comunhão espiritual e a sacramental não é simplesmente que esta dê “mais frutos” do que aquela. Reside no modo como esses frutos se dão. Existe uma Igreja visível com Sacramentos sensíveis porque o ser humano não é uma entidade desencarnada e, assim, a sua natureza exige elementos sensíveis no seu culto religioso: nada mais razoável do que a Religião do Deus Invisível que Se fez Carne por nós possuir também graças invisíveis que se nos fazem sensíveis – para que de certa maneira as vejamos e ouçamos, toquemos com nossas mãos – por meios dos Sacramentos. E nada mais lógico do que a recepção dos sacramentos visíveis exigir uma certa sintonia com a Igreja visível, em particular na coerência entre a vida que se leva e os ditames morais que Ela apregoa.

Ninguém está dispensado de rezar. A comunhão espiritual não é um consolo de segunda categoria para quem não pode receber a comunhão eucarística, não é sequer um seu substituto. É todo mundo que deve cultivar o desejo do Santíssimo Sacramento, e não somente os casais em segunda união (cf. Ecclesia de Eucharistia, nn. 35ss). Este santo desejo pede pela comunhão sacramental e em última instância tem o seu término nela, mas de modo algum legitima que ela seja tomada à força, violando-se a comunhão visível da Igreja que é dispensadora dos Sacramentos. Uma comunhão eucarística realizada à margem da comunhão eclesiástica é no fundo uma contradição em termos.

É no fundo uma coisa bastante irônica e curiosa que os que desejam subtrair-se à autoridade moral da Igreja, arrogando-se o direito de tratar os seus pecados como um assunto exclusivamente de foro interno – a ser resolvido somente entre eles próprios e Deus, sem intermediários humanos -, tenham essa tão desesperada necessidade da aprovação da Igreja visível, maximamente representada pela concessão litúrgica do Santíssimo Sacramento do altar.

O “problema” dos casais recasados I: comunhão espiritual e comunhão sacramental

Não existe nenhum problema com os ditos “casais em segunda união” serem privados da comunhão eucarística. Ou, olhando a questão por outro ângulo, há sim: o problema é a naturalidade com a qual, hoje em dia, encaram-se o adultério e a bigamia. Isso, sim, salta aos olhos e choca, isso é escandaloso, isso deveria provocar-nos repulsa e inspirar-nos lágrimas de reparação pela facilidade com que Nosso Senhor é ofendido. Que aos pecadores públicos sejam negados os sacramentos de vivos é a conseqüência mais óbvia da Doutrina Católica. Que a julguem “dura demais” e procurem por todos os meios desfigurá-la, este é o verdadeiro problema que merece toda a nossa atenção.

Em recente pronunciamento preparatório para o Sínodo dos Bispos que tratará sobre o tema da Família, diante do Papa e dos cardeais reunidos em consistório, o cardeal Kasper fez um discurso que ganhou grande repercussão na mídia. Li primeiro sobre ele aqui e trechos mais amplos da fala do cardeal podem ser encontrados aqui. Algumas conclusões a que parece conduzir o raciocínio do Kasper são tão escandalosas que merecem alguns contrapontos, os quais espero fazer firmes e claros.

Antes de qualquer coisa, é digno de nota que o cardeal, que começou a sua alocução afirmando não ter respostas e sim somente perguntas, tenha vindo com “soluções” tão concretas (e equivocadas, como veremos) para o “problema” dos casais recasados. Há diferenças entre um questionamento verdadeiro e uma pergunta retórica, que podem até confundir as massas mas não escapam aos ouvidos atentos. Por exemplo, o seguinte excerto não contém um questionamento sério, e sim uma pergunta retórica cuja resposta já se encontra implícita na própria formulação do período:

Efectivamente, quien recibe la comunión espiritual es una sola cosa con Jesucristo. […] ¿Por qué, entonces, no puede recibir también la comunión sacramental?

A resposta implícita – à qual o sofista experiente fatalmente conduz o ouvinte incauto – é óbvia: não há nenhuma razão para que uma pessoa que já é «uma só coisa com Jesus Cristo» não possa receber a Comunhão Sacramental. Existe, portanto, uma absurda contradição na praxis da Igreja que precisa ser corrigida o quanto antes. Afinal de contas, se alguém pode tornar-se um só com Cristo, que autoridade terrena poderia negar-lhe a Sagrada Eucaristia?

O sofisma grosseiro por detrás desse raciocínio é ocultar a enorme diferença existente entre a presença real e substancial de Nosso Senhor nas espécies eucarísticas e a Sua presença espiritual na qual o fiel se coloca por meio da oração. É eliminar por completo a diferença existente entre as orações individuais dos fiéis e os Sacramentos – sinais sensíveis e eficazes da Graça – instituídos por Cristo e ministrados por Sua Igreja. É colocar em pé de igualdade a subjetividade da alma que reza e a objetividade da Graça conferida ex opere operato pelos Sacramentos da Nova Aliança. É, em suma, subverter por completo toda a teologia sacramental católica.

É verdade que Deus também confere a Sua Graça por meios desconhecidos aos homens, e que Ele não está de nenhuma maneira preso aos Sete Sacramentos. Mas é igualmente verdade que o modo como se dá a Graça dos Sacramentos é distinto e especialíssimo. Ninguém pode ordinariamente estar certo da pureza de sua contrição perfeita; mas qualquer penitente pode ter certeza de que, quando o padre pronuncia o Ego te absolvo, o perdão de Deus é efetivamente concedido. Um protestante em ignorância invencível pode perfeitamente estar em estado de Graça; mas como esse juízo não pode ser feito senão por Deus, não é lícito participar-lhe a Santíssima Eucaristia. O Batismo de Desejo pode tornar um catecúmeno apto a entrar no Reino dos Céus, mas não lhe permite receber a unção do Santo Crisma.

Os exemplos se poderiam multiplicar à vontade, mas creio que já tenha ficado claro o que quero dizer: os Sacramentos, por sua própria natureza de sinais sensíveis, exigem certas condições igualmente sensíveis para que possam ser ministrados. As “disposições interiores” sozinhas não bastam: ao pagão é preciso que esteja batizado para receber a absolvição sacramental, por mais pungente e contrito que seja o seu arrependimento, e ao pecador (principalmente ao público!) é necessário que esteja confessado para que possa receber a Sagrada Comunhão, por maior que possa ser a sua união espiritual com Nosso Senhor.

Deus é sempre livre para conferir a Sua Graça. Já os homens, dispensadores d’Ele, não têm a mesma liberdade divina para ministrar os Sacramentos de um modo distinto daquele que o próprio Deus estabeleceu. A (chamemo-la assim) Graça sensível só pode ser ministrada sob circunstâncias objetivamente definidas; em particular, a Comunhão Eucarística só pode ser conferida aos católicos que se encontram em estado de Graça, não o subjetivo, mas o objetivo: o estado em que se encontra o fiel que, havendo pecado mortalmente após o Batismo, tenha confessado arrependido cada uma de suas faltas graves e recebido de um sacerdote a absolvição sacramental. Esta organicidade vital dos Sacramentos não pode ser rompida, e neste itinerário sacramental não é lícito tomar atalhos.

Não é portanto verdade que se negue a Graça de Deus a – p.ex. – um pecador impenitente que se aproxime da Mesa Eucarística. Na verdade, é ele próprio quem A nega a si mesmo, primeiro pelo seu pecado, depois pela recusa a valer-se dos meios instituídos por Cristo para a obtenção do perdão. O caminho para se aproximar dos Sacramentos é público e bem conhecido por todos. Quem se recusa a percorrê-lo na íntegra é o único responsável se não obtém aquilo a que esse caminho conduz.

[OFF] Eu, com câncer (VI): o apoio dos amigos

As Escrituras Sagradas dizem que quem tem um amigo fiel, encontrou um tesouro. Como comentei algures, a expressão é exata: trata-se de um tesouro encontrado, não de uma coisa que você conquiste ou mereça. Um amigo é uma graça no sentido mais literal da palavra: um presente que lhe é concedido, uma dádiva que você recebe, um favor que lhe é feito e pelo qual você não pode senão sentir-se grato.

Eu não mereço os amigos que eu tenho e nem tenho palavras para expressar a minha gratidão pelo que eles fizeram e continuam fazendo por mim. A foto abaixo foi tirada no hospital, sábado último, em uma visita inesperada e emocionante que recebi.

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Como disse um deles, “cada um raspou o que podia entre o que a esposa/noiva/namorada deixou e a atividade profissional permitia”. Cabelo, barba e bigode. Simplesmente se juntaram na casa de um deles, rabiscaram frases de apoio num fundo de papelão e deram fim aos seus cabelos e demais pelos faciais. Com o gesto de amizade, abriram mão de mais cabelos do que a quimioterapia me tirou. Registraram tudo, claro. Depois eu pude ver as fotos, algumas das quais (as que encontrei no Facebook) vão abaixo. Vejam que coisa extraordinária. Eu não fazia a menor idéia de nada disso.

Volto a dizer que não tenho palavras para expressar o quanto fiquei tocado pelo gesto de carinho e consideração. Vejo algumas pessoas comentarem sobre o quanto estão aprendendo comigo ao acompanhar essa minha saga ou como é admirável a minha postura diante do câncer e coisas afins. Honestamente, não me vejo fazendo nada a não ser a minha obrigação. Tenho até medo de estar – Deus me livre! – desperdiçando este tempo favorável que o Bom Deus me concedeu para a minha santificação e para o bem de toda a Igreja, e este é um tema recorrente em minhas orações.

Nada há de heróico em mim ou em minhas atitudes. Os que vêem as postagens do Deus lo Vult! ou as atualizações de status do Facebook, na verdade, estão vendo somente uma parte da história; como canta a Florbela, “as lágrimas que choro, branca e calma, / ninguém as vê brotar de dentro d’alma! / Ninguém as vê cair dentro de mim!”. Ou, como diz o Erasmo Carlos, naqueles versos pelos quais sempre tive tanta afeição: “sempre me dizem, quando fico sério: / ‘ele é um homem e entende tudo’. / Por dentro, com a alma atarantada, / sou uma criança, não entendo nada”.

Sim, na verdade eu não passo de um jovem mimado e cheio de direitos como tantos que existem por aí. Possivelmente até pior do que muitos que existem por aí. É claro que eu não tenho condição alguma de enfrentar uma doença grave como um câncer e nem muitíssimo menos de ser exemplo para ninguém nessa situação. Mas existe um testemunho que eu posso oferecer:

O valor dos amigos. Se algumas vezes eu pareço estar de pé, é porque sou sustentado por um exército; se vez por outra pareço elevar-me alto, é porque para o alto sou lançado por uma multidão. Se algo merece ser conhecido nessa história toda, é a importância das orações de intercessão. Caso um dia alguém duvide da eficácia das orações, que ponha os olhos sobre essas linhas e dê um pouco de crédito a quem é um testemunho vivo dos frutos que rezando se podem arrancar a Deus. E caso alguém se admire com alguma coisa que encontrar por aqui, que saiba serem suas orações diretamente responsáveis por minhas atitudes diante da minha doença. A todos os que me acompanham: que Deus lhes recompense! Só Ele sabe o bem que vocês me têm feito.

Eu não mereço os amigos que tenho, como eu disse acima. E tenho certeza de que apenas sou o que sou por conta deles; porque eles não desistem de mim, a despeito de minhas muitas fraquezas, e porque têm a caridade de pedir a Deus em meu favor, mesmo quando eu próprio disso me esqueço. Já disse que tenho uma dívida de gratidão impagável (e que só faz aumentar…) para com as pessoas que vêm rezando por mim desde dezembro, não somente os que rasparam a cabeça em solidariedade a mim como também a multidão invisível e desconhecida de pessoas que por acaso ouvem a minha história e se dignam oferecer uma Ave-Maria em favor de um enfermo desconhecido. Se existe alguma força em mim, é essa. Se existe alguma lição a ser aprendida aqui, é a do valor da oração do próximo. Deus não deixa de superar as nossas expectativas.

Meus queridos amigos, ex imo cordemuito obrigado! Continuem rezando. Escrevo já de casa. Terminei hoje a terceira sessão de quimioterapia, e estou radiante. Meio caminho andado. A vida é sempre surpreendente. As coisas pioram apenas para poder melhorar. Graças a Deus eu já vivi um pouco, e já aprendi a antever o desabrochar da primavera nas folhas secas que o outono lança ao chão.