Novo bispo auxiliar de Brasília

[Press.catholica.va] «O Santo Padre nomeou bispo-auxiliar da diocese de Brasília (Brasil) o Reverendíssimo Mons. José Aparecido Gonçalves de Almeida, do clero da Diocese de Santo Amaro, até agora Sub-secretário do Pontifício Conselho para [a interpretação d]os Textos [Canônicos e] Legislativos, assinalando-lhe a Sé Episcopal Titular de Enera».

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Para quem não se recorda, o Revmo. Mons. Aparecido faz parte da equipe do “Salvem a Liturgia!” e também já apareceu recentemente aqui no Deus lo Vult!. É uma enorme alegria vê-lo subir à plenitude do Sacramento da Ordem! Que a Santíssima Virgem o culmine de graças e torne profícuo o seu ministério episcopal.

Uma questão mal colocada

Existe “cura gay”? Ou, refazendo a pergunta de um jeito melhor: quer ela exista, quer não, tem o Estado o direito de impedir os cidadãos de buscá-la junto aos psicólogos e estes de [tentar] atendê-los? A Gazeta do Povo abordou hoje esta polêmica e trouxe duas posições contrárias sobre o assunto.

O sr. Sergio Luis Braghini («psicólogo, doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e conselheiro do CRP-PR») acha que isso é preconceito. Para ele, é tudo a respeito de uma tal «maquinaria do controle sobre a sexualidade» sobre a qual as religiões malvadas querem esmagar homossexuais felizes – ou aos quais só falta aceitarem-se gays para alcançarem a felicidade, a paz, a harmonia plena e absoluta.

Já a psicóloga Marisa Lobo ao contrário, defende que se trata «da liberdade profissional e pessoal do psicólogo, e do direito da pessoa humana de buscar ajuda para seu sofrimento psíquico em relação a sua condição homossexual não aceita». E vai além: diz que «[e]xistem homossexuais que se aceitam e são felizes com sua orientação, porém, há muitas pessoas que apresentam comportamento homossexual, mas que não aceitam tal condição e nunca o farão. E os profissionais de psicologia não podem ignorá-los. A psicologia deve ser uma ferramenta de auxílio, tanto para os que se entendem e querem viver como homossexuais, como para os que não o desejam».

No meu entender, a questão está mal colocada pelos opositores da “cura gay”. Não interessa saber se o homossexual é capaz de ser [terapeuticamente] levado a canalizar para o sexo oposto toda a libido que ele comumente devota a pessoas do mesmo sexo. A grande pergunta é se ele pode ser ajudado a controlar seus maus impulsos, a resistir às suas inclinações desordenadas e a levar uma vida [paulatinamente] livre de atos anti-naturais. E, nestes termos, a resposta me parece ser evidentemente positiva: sim, parece-me claramente possível – mesmo às ciências humanas – auxiliar um homem a praticar virtudes humanas. Negá-lo seria absurdo!

A mim, parece que este é o ponto fulcral que deve ser defendido contra a mistificação dos pró-gay: não nos deixemos confundir por sua retórica vazia! Estou até disposto a aceitar que, em certos casos, não seja possível a um psicólogo “inverter” o objeto de desejo sexual de uma pessoa. Mas daí a defender que ela não possa exercitar o controle dos seus desejos vai um passo enorme; daí a postular que ela está inelutavelmente fadada à intemperança é um salto inteiramente descabido.

Atualização em 06/05/2012 sobre Estatuto do Nascituro

Atualizando os meus leitores sobre o que aconteceu com a votação do Estatuto do Nascituro, reproduzo mensagem que recebi hoje (06 de maio) da Dra. Lenise Garcia, presidente do Movimento Brasil Sem Aborto. No corpo dessa postagem eu trago apenas uma seleção resumida das informações mais relevantes; ao final, os leitores poderão baixar o comunicado na íntegra [P.S.: que também já se encontra disponível no site do Brasil Sem Aborto].

– Na última sessão (24 de abril p.p.) da Comissão de Finanças e Tributação (que é a Comissão da Câmara onde o projeto se encontra atualmente), foi dito que o projeto seria apreciado em uma sessão extraordinária.

– Não obstante, «[o] que se constata hoje (06.05.2013) é que a pauta publicada é a da Sessão ORDINÁRIA com 63 itens e o Estatuto do Nascituro está colocado no item no 18 da pauta».

– Ou seja, «não haverá SESSÃO EXTRAORDINÁRIA com pauta única para apreciação do Estatuto do Nascituro». Ele está normalmente na pauta da próxima sessão (quarta-feira, depois de amanhã).

– Quarta-feira, então, podem acontecer duas coisas. Pode ser feita uma solicitação de inversão de pauta que, se aprovada, (1) fará com que «o Estatuto do Nascituro seja apreciado logo após a análise dos Requerimentos da pauta». Caso contrário, (2) «é pouco provável que [o projeto] seja apreciado nesta sessão da próxima quarta-­feira, até porque tem uma audiência pública marcada para as 11 horas deste mesmo dia».

– Por isso, a solicitação do Brasil Sem Aborto é a seguinte:

A nossa sugestão é que a partir de hoje retomemos a pressão sobre os parlamentares da Comissão de Finanças e Tributação, enviando emails, ligando para os gabinetes solicitando que o parlamentar vote pela aprovação do Parecer do Deputado Eduardo Cunha­ PMDB/RJ. Mas também é importante que os parlamentares seja pressionados em seu Estado, em sua base eleitoral. E, nesse sentido, deve­ se procurar o parlamentar ou sua assessoria NO ESTADO pedindo o voto pela aprovação do Estatuto do Nascituro.

– E ainda: «[a] partir de agora a pressão deve ser permanente, todos os dias».

– Cliquem no link abaixo para terem acesso ao comunicado na íntegra e, junto com ele, uma tabela com todos os membros da CFT e seus respectivos contatos.

Atualização em 06/05/2012 sobre Estatuto do Nascituro

Continuemos fazendo o que estiver a nosso alcance para a aprovação desse tão importante projeto. Que a Santíssima Virgem nos proteja e guarde, e São Miguel Arcanjo nos defenda no combate!

“Uma Igreja que pode e não pode mudar” – Avaliação da obra de John T. Noonan

[Publico interessante tradução de uma resenha publicada na revista «Nova et Vetera» a respeito de alegadas “mudanças” no ensino moral da Igreja ao longo dos séculos: em temas como juros, escravidão, indissolubilidade matrimonial e liberdade religiosa, mas é fácil ver que coisas análogas podem ser ditas para outros temas polêmicos – como as greves, por exemplo. A tradução foi-me enviada por um amigo, ao qual agradeço.]

Uma Avaliação da Obra de John T. Noonan
“A Church that Can and Cannot Change”.

Por: Lawrence J. WELCH, Ph.D.,
Professor de Teologia Sistemática.

[“John T. Noonan’s A Church that Can and Cannot Change: An Evaluation.”
In: Rev. Nova et Vetera, vol. 4, fasc. 3, verão de 2006, págs. 697-708.
Cfr. “docwelch.net/noonanRevforweb.pdf”.]

[Introdução: o autor e sua tese]

John T. Noonan é um juiz federal do Tribunal de Recurso dos Estados Unidos e estudioso bastante conhecido por seu trabalho na história da ética. A presente obra aborda o problema do desenvolvimento e mudança doutrinal com relação à escravidão, à usura, à liberdade religiosa e à autoridade do Papa de dissolver matrimônios naturais. O tema do desenvolvimento doutrinal e da mudança doutrinal já faz tempo que interessa a Noonan, remontando até 1947, quando ele estudou a questão da liberdade religiosa, e a uma dissertação de filosofia de 1951 sobre a usura. O magistrado Noonan é conhecido também pelo tempo em que fez parte da sedizente Pontifícia Comissão para o Controle de Natalidade, quando ele pôs-se ao lado dos que defendiam uma mudança e reversão no ensinamento da Igreja sobre a contracepção.

O título do livre presente [“Uma Igreja que Pode e Não Pode Mudar”] exprime a convicção de Noonan de que, embora a Igreja não possa alargar nem reduzir o depósito da fé confiado a ela, a Igreja poderia mudar em “continuidade com suas raízes” (7). É inegável que a doutrina se desenvolve. O argumento central do livro de Noonan parece ser que o desenvolvimento doutrinal em muitos casos envolveria uma completa reversão do prévio ensinamento da Igreja, que estava equivocado e era errôneo. Noonan julga que o desenvolvimento é dirigido pela regra da fé. Ele explica essa regra da fé com a ajuda de Agostinho, que afirmou que o verdadeiro entendimento da revelação divina é do tipo que edificará o “duplo amor de Deus e do próximo” (222). O desenvolvimento emerge da experiência humana que é aprofundada pela fé. A mudança social e a identificação com a experiência do “do outro” permitem aos cristãos superar seus erros morais. Escravidão, liberdade religiosa, usura e divórcio (aplicado a matrimônios não-sacramentais) serviriam todos de exemplo.

[A Igreja e a escravidão]

Os capítulos que tratam da Igreja e da escravidão ocupam mais de cinquenta por cento do livro. Noonan argumenta que, ao longo da maior parte de sua história, a Igreja aceitou a escravidão como uma instituição que era simplesmente parte da sociedade. Embora o Novo Testamento não tenha confrontado a instituição da escravidão, Noonan acredita, corretamente, que o NT estipulou os paradigmas que acabaram por solapá-la ao longo de um extenso período de tempo. O mandamento de amar ao próximo como a si mesmo, a injunção de Paulo a tratar o escravo com amor (Epístola a Filemon) e sua proclamação de que em Cristo Jesus não há escravo nem livre, foram todas coisas que trabalharam contra a aceitabilidade moral da escravidão. Sem embargo, cristãos, e mesmo alguns papas, foram donos de escravos. Nenhum Padre da Igreja, nenhum Doutor da Igreja, nenhum Papa e nenhum decreto conciliar da Igreja jamais fez uma condenação completa que abrangesse toda e qualquer escravidão. Noonan reconhece, sim, que a Igreja de fato trabalhou para suavizar os efeitos da escravidão de alguns modos. A Igreja defendeu certos direitos para os escravos, e os Papas proibiram a escravização das populações nativas da América. Algumas vezes, segundo Noonan, a Igreja teve de ser incitada a denunciar os males conexos com a escravidão. A história por trás da bula papal de 1839 In Supremo Apostolatus fastigioi (*), na qual Gregório XVI condenou o comércio de escravos africano, serve como exemplo principal. Todas essas coisas, porém, não chegaram a ser uma condenação direta e total da escravidão como instituição.

[(*) Nota do Tradutor: Este importante documento do Magistério da Igreja pode ser encontrado na íntegra, em português, nas págs. 94-98 do livro A Igreja Católica em face da escravidão (São Paulo, 1988), trad. br. por José G. M. Orsini dos capítulos XIV-XIX da obra-prima do filósofo católico espanhol Jaime Balmes (1810-1848), El Protestantismo comparado con el Catolicismo en sus relaciones con la civilización Europea; existe também online outra tradução no site da Associação Montfort.]

É questionável se Noonan faz justiça completamente à história dos esforços da Igreja em mitigar os males da escravidão. Algo do tratamento que ele dá aos materiais históricos parece, por vezes, destacado e achatado. Por exemplo, tome-se o relato feito por Noonan dos eventos em torno da condenação, pelo Papa Gregório XVI em 1839, do comércio de escravos (104-108). Na narrativa da história por Noonan, foi necessária a exortação da Grã-Bretanha protestante, para incitar Gregório XVI a condenar o comércio. Será que os apelos do governo britânico foram a única razão que moveu o Papa a repudiar o cruel comércio de africanos por todo o Atlântico? Por que o Papa foi tão receptivo ao pedido britânico? O relato de Noonan deixa essas importantes questões sem resposta. Ele observa que um pedido anterior, em 1822, de denúncia papal do comércio de escravos foi malsucedido. A Congregação para os Negócios Eclesiásticos Extraordinários, composta principalmente de cardeais que aconselhavam o Papa, relatou que, embora o comércio causasse sofrimento, todavia a escravidão não era contrária à lei natural, e que o Antigo Testamento aprovou-a por princípio. Mas, em 1839, de acordo com Noonan, o mesmo corpo de cardeais-consultores considerou outro pedido britânico de condenação do comércio de escravos africano. A Cúria Romana preparou o estado da questão para os consultores papais reunidos e relatou a eles que “‘os mais competentes dentre os autores e teólogos’ refutaram os argumentos em favor da escravidão e do comércio de escravos’” (106). Os cardeais-consultores aceitaram a declaração do problema pela Cúria e, desta vez, conta Noonan, os consultores prosseguiram assistindo o Papa na formulação de uma proibição do comércio de escravos. Mas Noonan deixa as perguntas óbvias sem resposta. Por que os consultores papais em 1839 deram ao Papa uma conclusão completamente oposta, sobre o comércio, daquela que fora dada em 1822? O que estava se passando no pensamento católico na época, que levou os consultores a estas diferentes conclusões num intervalo de somente 17 anos? O leitor é deixado a ver navios, se indagando sozinho sobre esta lacuna da história e sobre a importância dela para o entendimento dos bastidores da bula papal que condenou o comércio de escravos.

O importante para Noonan, ao fim e ao cabo, é mostrar que no caso da escravidão o que antes fora considerado não pecaminoso teria sido mais tarde declarado intrinsecamente mau, ou seja, sempre e em toda parte mau. Ele contrasta os pensamentos de John Henry Newman, autoridade preeminente sobre desenvolvimento da doutrina, com o ensinamento papal do Papa João Paulo II. Newman comentou certa vez uma palestra proferida por William Allies, um católico converso, que defendia que a escravidão fosse intrinsecamente má. Newman respondeu que, se bem que a escravidão é má e deve desaparecer, ela não era intrinsecamente má. Embora má, a escravidão nem sempre e em toda parte era má. Nem toda forma dela era má per se. Por mais ojeriza que ele tivesse pela escravidão, Newman explicou que os escritores inspirados das Escrituras, especialmente Paulo, impediam-no de declarar intrinsecamente má a escravidão. Paulo não disse a Filemon: ‘Libertai todos os vossos escravos imediatamente.’ Pelo contrário, ele deixou a escravidão para o lento desenrolar dos princípios cristãos.

[A dificuldade apresentada por João Paulo II
e a Gaudium et Spes]

Em contrapartida, o Papa João Paulo ensinou que toda escravidão era intrinsecamente má. Noonan argumenta que essa mudança na doutrina aconteceu primeiramente em 1993 na encíclica Veritatis Splendor, que incluiu a escravidão numa lista de males sociais que se diz serem intrinsecamente mais. Ele aponta também para um discurso que o Papa proferiu no Senegal, na ilha de Goreia, na sede da infame “Casa dos Escravos”, onde ele denunciou a escravidão e o comércio de escravos. Ali o papa disse: “É oportuno que seja confessado, com toda a verdade e humildade, esse pecado do homem contra Deus.” Noonan observa que o que não foi mencionado nessa confissão foi o quão recentemente esse pecado havia sido descoberto. Mas o leitor não é alertado para o inteiro contexto do discurso do papa, cujo tom frisa a continuidade com uma declaração de um dos predecessores do Papa João Paulo. O papa cita o Papa Pio II, que em epístola a um missionário chamou o tratamento dado aos negros de “crime enorme”, magnum scelus. Visto no contexto, o discurso do Papa João Paulo na Goreia não é uma espécie de reviravolta dramática do ensinamento anterior da Igreja. Não há nada no discurso do papa que indique que ele via a si próprio como fazendo uma mudança na doutrina católica.

Noonan tem um argumento mais forte a partir do que é ensinado na Veritatis Splendor, 80. O argumento dele pode aparentar, à primeira vista, ser irrefutável: o Papa João Paulo fez aquilo que o prévio ensinamento da Igreja não fez, e que os teólogos, como Newman, se recusaram a dizer: a escravidão é intrinsecamente má, sempre e por toda parte má. Logo, o Papa reverteu o prévio ensinamento da Igreja. O argumento de Noonan aqui parece ser muito forte. Mas será mesmo? Será que o Papa pretendeu condenar toda forma de escravidão per se? Será que ele realmente quis corrigir o ensinamento de Paulo, dos Padres da Igreja e dos Papas anteriores? Será que a Veritatis Splendor realmente foi uma tal revogação do ensinamento anterior?

Para começar, é crucial determinar o que o papa quis dizer com escravidão (servitus) na Veritatis Splendor, 80. Que significado e escopo ele deu a essa palavra? Historicamente, existiu o tipo de escravidão de sujeição absolta, que priva as pessoas humanas de todos os direitos pessoais. Existiram outras formas de escravidão, que privaram pessoas de muitos, mas não de todos os direitos pessoais, e existiram muitas outras formas menores de servidão que, hoje, poderiam ser consideradas como equivalentes à escravidão, para fins práticos. Pretendeu o papa que a palavra servitus englobasse toda e qualquer forma de escravidão que apareceu na história, quando ele a deu como exemplo de algo intrinsecamente mau? Os leitores à procura de respostas a essas questões ficarão desapontados, pois Noonan não presta atenção a elas, e são importantes para a interpretação do ensinamento da Veritatis Splendor. Ele pressupõe que o significado do termo servitus na encíclica seja óbvio. Acontece, porém, que o papa usou o termo do mesmo jeito genérico que Noonan reconhece ter sido o da Gaudium et Spes, 27, quando ela incluiu a escravidão na sua lista de males sociais vergonhosos e ofensivos à dignidade humana. Noonan admite que a Gaudium et Spes, 27, usou a palavra servitutis (sic) “sem definição ou elaboração, nem explicação” (120). Só que isso se aplica à Veritatis Splendor também, pois quando a encíclica menciona a servitus como estando entre os males sociais que são intrinsecamente maus, ela cita verbatim a lista da Gaudium et Spes, 27! Esse problema sozinho já deveria ter levado Noonan a ter cautela em concluir que o Papa quisesse declarar que a escravidão em todas as suas formas é intrinsecamente má e, destarte, tencionasse corrigir seus predecessores, muitos Padres da Igreja e autores sacros como Paulo. Tais conclusões parecem temerárias, sem consideração alguma do que foi que o papa quis que servitus significasse, especialmente à luz do fato de que ele a tirou verbatim da Gaudium et Spes, que empregou a palavra sem precisão.

Há outras dificuldades na interpretação também. Por exemplo, Veritatis Splendor, 80, condena a deportação como intrinsecamente má. Se o Papa quisesse condenar toda e qualquer forma de escravidão como intrinsecamente má, então presumivelmente ele teria querido condenar toda e qualquer forma de deportação, igualmente. Devemos crer que é intrinsecamente mau que um Estado deporte estrangeiros que sejam uma ameaça para a sua segurança nacional? Seguramente que o pontífice deixou espaço para algumas distinções e qualificações, para as quais Noonan faz vistas grossas. Nada disso pretende dizer que não haja algo de novo no que o papa ensinou na Veritatis Splendor sobre a escravidão, ou que ele não tenha querido dizer, no mínimo, que certas formas dela são más per se. Seja qual for o desenvolvimento que haja na Veritatis Splendor, 80, Noonan não demonstrou que seja o tipo de revolução na doutrina moral católica pela qual um Papa revertesse completamente ensinamentos errôneos de seus predecessores, dos Santos Padres e dos escritores bíblicos também.

[Uma analogia indevida,
com um objetivo torpe]

O que parece é que Noonan pretende dizer que, se os ensinamentos da Igreja numa área, como a escravidão, podem ser revertidos, eles podem ser revertidos noutras áreas também. Numa passagem sintomática, Noonan repreende o finado John Ford, SJ, o qual, junto de Gerald Kelly, publicou um manual de teologia moral que condenava a “escravidão-mercadoria” (“chattel slavery”) sem perceber, segundo Noonan, que uma tal condenação era uma “mutação enorme” na doutrina moral (117). Ford teria sido incoerente, por admitir uma mudança no ensinamento da Igreja sobre a escravidão, mas sem se dispor a admitir nenhuma possibilidade de desenvolvimento sobre a contracepção. O “desenvolvimento” que Noonan exige aqui, com relação à contracepção, só pode significar uma reversão do ensinamento tradicional da Igreja de que a contracepção é sempre má. O argumento de Noonan parece claro o bastante: a mudança no ensinamento da Igreja sobre a escravidão significaria que outras doutrinas morais, tais como a doutrina contra a contracepção, poderiam mudar ou ser revertidas também.

Há numerosos problemas com esse argumento. Ele é um exemplo do fracasso do livro de Noonan em fazer distinções importantes e em fazer justiça à complexidade do desenvolvimento da doutrina. Há uma grande diferença entre a história complexa do ensinamento da Igreja sobre a escravidão e o ensinamento dela sobre a contracepção. Para começar, em parte alguma Noonan mostra que a prévia aceitação da escravidão pela Igreja, como algo que se acreditava pertencer à estrutura da sociedade, fosse ensinamento definitivo da Igreja considerado irreversível. A doutrina da Igreja respondendo ao mal da contracepção, um mal que sempre envolve a rejeição do plano divino para o pacto matrimonial, é coisa inteiramente diferente e é clarissimamente ensinamento definitivo da Igreja, como o último pontificado assinalou em múltiplas ocasiões. Mesmo que se admitisse que o ensinamento da Igreja sobre a escravidão mudou para melhor, é também verdade que a anterior tolerância da escravidão pela Igreja e a falta de condenação total dela não excluíam a possibilidade de que a Igreja mais tarde a proibisse como pecaminosa — sobretudo, em vista do fato de que a Igreja a via como pena pelo pecado radicado na Queda de Adão e ensinou, com Paulo, que em Cristo ninguém é escravo. É defensável que a mudança e o desenvolvimento no ensinamento da Igreja tenha sido uma fidelidade maior a estes princípios. Nada haveria nem de remotamente semelhante a isto numa reversão do ensinamento da Igreja sobre a contracepção, que envolveria declarar, depois de ensinar durante muitos séculos o contrário, que a frustração intencional da capacidade procriadora humana no ato da relação sexual teria deixado de ser uma coisa que é sempre má.

[A condenação da usura pela Igreja]

Em três sóbrios capítulos Noonan faz uma apresentação justa e altamente informativa da interação entre a doutrina da Igreja sobre a usura e as novas formas de economia que emergiram no começo da idade moderna. Ele mostra como o ensinamento da Igreja sobre a usura foi adaptado para dar espaço a novas circunstâncias econômicas, para permitir a justa compensação pelo risco de perda de um empréstimo, para perdas incorridas na cobrança de um empréstimo e pelos custos associados às atividades bancárias. Noonan monta o argumento de que o desenvolvimento no ensinamento sobre a usura deveu-se não simplesmente a circunstâncias econômicas. O desenvolvimento deveu-se também às “mudanças nas análises feitas pelos teólogos e na aceitação, por eles, da experiência de outros seres humanos” (213). Noonan argumenta que o exemplo da usura demonstra que o desenvolvimento do ensinamento moral da Igreja realmente ocorre pela experiência humana que leva a uma compreensão melhor e mais aguda da natureza humana.

O caso da adaptação da doutrina sobre a usura às circunstâncias econômicas cambiantes e à experiência humana não parece equivaler a uma completa reversão da doutrina original. Afinal de contas, o ensinamento sobre a usura, embora estritamente interpretado, ainda permanece, como Noonan reconheceu em sua obra anterior. Os princípios morais católicos ainda proíbem taxas de juros injustas ou então exorbitantes. Ainda que se concedesse, em prol da argumentação, que a experiência humana levou a uma melhor compreensão da natureza humana, não se segue necessariamente disso que, portanto, a doutrina moral da Igreja sobre outras questões que envolvam a natureza humana esteja sujeita ao mesmo tipo de desenvolvimento. O exemplo da usura não nos dá razão para pensar que certos atos intrinsecamente maus como a contracepção sejam capazes de adaptação similar.

[O problema da liberdade religiosa
ensinada pelo Vaticano II]

Para Noonan, o tópico da liberdade religiosa e do ensinamento do Concílio Vaticano II na declaração Dignitatis Humanae serve como exemplo de como um concílio geral da Igreja rejeitou definitivamente cerca de 1.500 anos de seu ensinamento magisterial, bem como o pensamento de Agostinho e Aquino sobre a questão. Noonan argumenta que o Vaticano II afirmou que a liberdade de crença era um direito sagrado, mas não explicou como o ensinamento prévio, “a velha mensagem da intolerância”, pôde ser posto de lado por um Papa e um Concílio. A descontinuidade entre o ensinamento do Vaticano II e a prévia doutrina da Igreja é apresentada como radical. Ironicamente, nada enxergando além de uma total reversão da doutrina da Igreja, Noonan chega à mesma conclusão, se bem que por razões diferentes, do notório oponente da DH no Vaticano II, Marcel Lefebvre.

É certamente verdadeiro que a declaração DH de liberdade religiosa como direito da pessoa humana e seu reconhecimento de que a Igreja não deve esperar da maioria das sociedades políticas seculares modernas que elas lhe deem reconhecimento e privilégios especiais, foram coisas novas. Noonan, contudo, exagera a descontinuidade da DH com o ensinamento passado da Igreja. Há várias razões para pensar que o ensinamento do Vaticano II sobre a liberdade religiosa não tenha sido de completa descontinuidade com o prévio ensinamento da Igreja. É decepcionante que Noonan não as reconheça nem discuta, nos capítulos dele. Por exemplo, Noonan passa batido, em completo silêncio, pelos indícios na própria DH que mostram que os Padres conciliares não entendiam que o que eles estavam ensinando fosse o tipo de desenvolvimento que equivale a uma completa reversão dos antigos ensinamentos da Igreja. DH, 1, declara que “o concílio pretende desenvolver a doutrina dos papas recentes sobre os direitos invioláveis da pessoa humana e a ordem constitucional da sociedade.” Não haveria muito sentido em os Padres formularem a coisa assim, se tudo o que se vissem fazendo fosse, simplesmente, revertendo o ensinamento anterior da Igreja, e não adaptando e desenvolvendo algumas das implicações dos ensinamentos anteriores num contexto novo. Durante os debates no Concílio, Émile De Smedt, bispo de Bruges e porta-voz da comissão que compôs e editou o texto da DH, argumentou que o ensinamento dela era compatível com ensinamentos prévios da Igreja. Noonan não menciona que teólogos em grande número defenderam a DH como efetivamente possuidora de maior continuidade com a tradição da Igreja, contra aqueles que nada mais viam nela do que uma alteração na fé da Igreja. Até mesmo John Courtney Murray, que era da opinião de que a Igreja havia demorado para reconhecer a liberdade religiosa como princípio ético, pessoalmente e coletivamente, ainda argumentava que a DH fosse “um autêntico desenvolvimento da doutrina no sentido de Vicente de Lérins, ‘um autêntico progresso, e não uma mudança, da fé.’” Ele também sustentou que o Vaticano II pôs de lado “uma teoria mais antiga da tolerância civil em favor de uma nova doutrina da liberdade religiosa mais harmônica com a autêntica e mais plenamente entendida tradição da Igreja.”

A falta de qualquer menção desses importantes indícios em contrário da alegação de Noonan de que a DH foi uma reversão e rejeição sem rodeios do prévio ensinamento da Igreja (157) deixará mal informado o leitor não instruído. Segundo observaram comentadores posteriores, o que documentos tais como a Mirari Vos condenaram não foi a própria liberdade religiosa, mas um conceito filosófico específico e determinado de liberdade religiosa que estava atrelado ao relativismo e a um secularismo antirreligioso. Comentando sobre a necessidade que os teólogos têm de discernir cuidadosamente o processo de mudança através da continuidade, o Papa Bento XVI observou recentemente que a Igreja deve rejeitar uma visão que enxerga a liberdade religiosa como expressando a incapacidade da humanidade de descobrir a verdade. Uma visão dessas implica que o relativismo seja a norma para a sociedade. Há uma diferença enorme entre essa visão da liberdade religiosa e o entendimento que decorre da verdade de que a liberdade de crer tem de vir de dentro e não pode ser imposta de fora, ou uma visão que enxerga a liberdade religiosa como algo exigido pela coexistência humana pacífica. Diante desse pano de fundo, explicar o desenvolvimento do ensinamento da Igreja sobre a liberdade religiosa no Vaticano II principalmente em termos de reversão e rejeição do prévio ensinamento da Igreja não faz jus à tarefa com que se depara o teólogo.

[A dissolução de matrimônios não-sacramentais
vs. o divórcio moderno]

Em quatro capítulos Noonan trata da dissolução de matrimônios não-sacramentais pela Igreja com base no privilégio paulino e no privilégio petrino, em “favor da fé”. Para Noonan, a complexa história dos privilégios mostraria que houve desenvolvimento da doutrina da Igreja sobre o “divórcio” para os não-batizados. Diz-se que essa aceitação do divórcio revelaria um novo entendimento da lei natural e uma interpretação em vias de desenvolvimento do Novo Testamento (214). O magistrado Noonan argumenta que o ensinamento bíblico “O que Deus uniu, homem nenhum separe” parece não admitir exceção e abarcar todos os casos, mas que nenhuma regra ou fórmula é suficiente para “evitar que ela seja torcida ou contornada” (212). Paulo foi o primeiro a dobrá-la e a abrir uma exceção a ela, quando permitiu que uma pessoa convertida à fé se separasse de um cônjuge não batizado.

O modo de Noonan encarar o mandamento divino sobre o matrimônio e a interpretação deste dada por Paulo é demasiado legalista. Nada mudaria realmente para o matrimônio com a vinda de Cristo, exceto pela repetição de uma regra. Na consideração do ensinamento bíblico por Noonan, Cristo nada mais tem a dizer, nada mais tem a dar ao homem para o matrimônio. Nunca parece ocorrer a Noonan que Paulo, com seus intérpretes, tivesse boas razões para pensar que os matrimônios entre uma pessoa cristã e uma não-cristã, por um lado, e os matrimônios entre cristãos, por outro, são diferentes por causa de uma relação com Cristo. Há uma coisa nova que Cristo dá ao matrimônio. Noonan não considera que a vida nova em Cristo dá a graça que permite respeitar o mandamento. Nem, tampouco, lida ele jamais com a importância do modo como o vínculo matrimonial foi elevado, no matrimônio sacramental.

Noonan discute como a Igreja interpretou o texto de Paulo como fundamento para permitir que se recase o cônjuge que crê. Ele observa que a visão predominante dos teólogos em torno da época de Aquino era que o segundo matrimônio do converso, contraído como cristão, dissolvia o primeiro matrimônio, contraído antes do batismo. Ele nota que Aquino explicou que “o mais firme” dissolvia “o menos firme”. Noonan alega que, embora houvesse a doutrina de que o matrimônio é naturalmente indissolúvel, grandes teólogos não contestaram a exceção. Mas, na realidade, o pensamento dos teólogos, como Aquino, aprofundou bastante a explicação de como a Igreja podia dissolver matrimônios não-sacramentais e ainda continuar fiel ao ensinamento bíblico. Por exemplo, Aquino explicou que no batismo de um convertido havia uma espécie de morte, aparentada à morte natural, que efetivamente dissolvia o vínculo corpóreo do matrimônio natural. Quando um convertido é batizado, ele é regenerado e morre para sua vida anterior. Ele deixa de estar vinculado na vida dele àquelas coisas às quais ele estava vinculado na sua antiga vida, “dado que a geração de uma coisa é a corrupção de outra”. Um homem que é regenerado em Cristo “é, mesmo corporalmente, sepultado junto com Cristo na morte” e, assim, é libertado da obrigação de “pagar o débito matrimonial”, mesmo que o matrimônio natural tenha sido consumado. Aquino refere-se aqui ao vínculo corpóreo do matrimônio natural. Uma esposa só tem direito ao corpo do marido na medida em que ele tenha permanecido na vida em que ele se casara, dado que somente ao morrer o marido fica a esposa liberada da lei de seu esposo. (Romanos VII,3). Assim como os incréus (e também os crentes, a propósito) deixam de estar ligados a seu cônjuge após a morte natural, assim também um incréu que receba o batismo e morra em Cristo, deixa de estar ligado ao cônjuge incréu (Supl. Q. 59, a.4, ver também a resposta ad 2).

Sto. Tomás de Aquino, tal como Agostinho, conhecia uma diferença entre o vínculo natural e o vínculo sobrenatural do matrimônio. A diferença entre os vínculos encontrava-se na santidade deles e no que eles significavam. Sto. Tomás mostra como a Igreja entende que existe uma certa hierarquia de vínculos matrimoniais. Ele explicou que o matrimônio natural é imperfeito, e portanto “menos firme”, pois tem a ver somente com a perfeição da natureza, enquanto que o matrimônio sacramental é uma perfeição na graça (ST. Supl. Q.59, a.2). O matrimônio sacramental para Sto. Tomás, é claro, participa na unidade indissolúvel entre Cristo e sua Igreja. O matrimônio em Cristo vincula “mais firmemente”, porque é perfeito. “Ora, a ligação mais firme dissolve a mais fraca, se for contrária a ela” (ST Supl. Q.59, art.5, ad 1). É por esta distinção que Sto. Tomás pode falar não de divórcio, mas da dissolução de um matrimônio natural. A esta luz, o privilégio paulino pode ser visto como algo que está em completa continuidade com o mandamento divino, um mandamento trazido à perfeição e ao cumprimento em Cristo e na união d’Ele com a Igreja. A dissolução do vínculo natural entre uma pessoa não-batizada e uma pessoa recém-batizada é dada em vista da possibilidade de a pessoa fiel batizada entrar na perfeição de um matrimônio sacramental com outra pessoa que crê.

Todo esse tópico do poder que o Papa tem de dissolver matrimônios não-sacramentais, mesmo entre dois cônjuges não-batizados, é um tema complexo. Noonan, porém, acredita que a dissolução de matrimônio não-sacramental em favor da fé seja algo como uma exceção à indissolubilidade do matrimônio. Ele pensa que nunca houve realmente uma explicação adequada, seja do privilégio mesmo ou do modo de seu exercício. Noonan acusa o Papa João Paulo II de continuar o exercício do privilégio, mas sem reconciliá-lo com aquilo que ele chama de “divórcio papal” com a doutrina da indissolubilidade (189-90). É claro que o que o papa defendeu, como muitos de seus predecessores, foi a absoluta indissolubilidade dos matrimônios sacramentais. A dissolução papal de um matrimônio não-sacramental em favor da fé só é concedida sob condições muito estritas, mas Noonan nunca indica esse fato. Ele faz parecer o contrário, ao dizer que os matrimônios dos não-batizados pareçam candidatos improváveis para a dissolução papal, por não serem na realidade nada diferentes, em grau, dos matrimônios dos batizados, já que são uniões carinhosas, amantes, fiéis e frutuosas também (180). A falta de toda e qualquer atenção real, por parte de Noonan, para o significado da sacramentalidade do matrimônio e para suas implicações, o fracasso dele em considerar como Cristo realiza a perfeição e elevação do vínculo matrimonial natural, faz com que fique difícil para ele enxergar o privilégio como qualquer outra coisa que não algo legalista, arbitrário, e divórcio com outro nome.

A chave para entender o poder do Papa de dissolver matrimônios não-sacramentais em favor da fé, e os limites desse poder, está na novidade que Cristo traz ao matrimônio. Trata-se de algo mais do que a repetição verbal de uma lei. É a perfeição das coisas mesmas que são intrínsecas ao matrimônio: a unidade e a indissolubilidade. Segue-se daí que, se Cristo aperfeiçoa o matrimônio natural elevando-o ao nível de sacramento, ele tem autoridade sobre o matrimônio não-sacramental. O Papa, Vigário de Cristo e Sucessor de Pedro, a quem os católicos creem que o Senhor fez rocha e detentor das chaves da Igreja, partilha dessa autoridade. A participação do Papa na autoridade de Cristo sobre o matrimônio natural é parte do poder das chaves e da autoridade de ligar e desligar dada por Cristo.

Entendido dentro desta moldura, o privilégio petrino não envolve contornar um mandamento divino, mas sim um privilégio que é dado para ser exercido a serviço do mandamento divino dado no Gênesis e repetido por Cristo. Matrimônios não-sacramentais foram dissolvidos em favor da fé, para que aqueles que foram liberados para casar conhecessem, ou pudessem ter a esperança de conhecer, a perfeição que é dada no matrimônio sacramental. O caso que Noonan cita de 1959, quando o Papa João XXIII dissolveu um matrimônio não-sacramental para que uma pessoa católica pudesse entrar em matrimônio com uma não-crente, pode ser entendido como estando a serviço da perfeição do matrimônio em Cristo porque havia a esperança de que o cônjuge incréu pudesse ser evangelizado e se convertesse, e assim entrasse na perfeição de um matrimônio sacramental. Que o privilégio está a serviço da evangelização pode ser visto nas normas atuais. Exigem estas que uma pessoa não-batizada, que foi liberada de um prévio vínculo matrimonial para se casar com um católico, declare que ele ou ela está disposto a permitir ao cônjuge católico a liberdade de praticar a religião dele ou dela e a batizar e educar os filhos como católicos. O profundo respeito que a Igreja tem pelo vínculo matrimonial natural é ilustrado pela exigência das normas atuais de que o postulante não pode ser “a causa culpável, exclusiva ou principal da destruição da vida conjugal” do matrimônio não-sacramental que há de ser dissolvido em favor da fé. Nem, tampouco, pode a outra parte, com quem o novo matrimônio será contraído, ser culpada de provocar a separação dos esposos da união não-sacramental. Nenhuma dessas coisas informa a apresentação de Noonan. São de primordial importância para entender o modo como o privilégio é exercido dentro de limites estritamente prescritos que respeitam, por um lado, a dignidade do vínculo natural do matrimônio e, por outro lado, a responsabilidade da Igreja de evangelizar.

Noonan alega que o desenvolvimento, partindo das palavras de Jesus em Marcos sobre o matrimônio, foi enorme. Se o pleno significado da sacramentalidade do matrimônio for mantido em vista, que implica um certo entendimento de uma hierarquia dos vínculos matrimoniais – “o menos firme” e “o mais firme” –, aí então o desenvolvimento não é do tipo que Noonan imagina que seja. Não envolve um contornar a doutrina da indissolubilidade. Se há uma coisa que o desenvolvimento foi e continua sendo, é uma questão de a Igreja discernir as implicações do significado sacramental do matrimônio e de aplicá-las a novas circunstâncias pastorais, em prol da realização daquilo que Cristo quer para a perfeição do matrimônio.

[Conclusão]

A força da obra de Noonan reside principalmente nos dados e fatos que ele descobriu na sua pesquisa. Se bem que ele tem uma tendência de apresentar o que ele descobriu de maneira carente de equilíbrio e unilateral, a pesquisa dele terá de ser plenamente considerada por todos os que quiserem explicar o desenvolvimento da doutrina da Igreja nas áreas de que Noonan trata. Não se pode dizer, contudo, que ele tenha obtido sucesso em demonstrar a tese dele de que o desenvolvimento doutrinal frequentemente signifique uma flagrante reversão de ensinamentos da Igreja que teriam estado equivocados e errôneos. Ademais, essa tese não faz jus aos dados históricos que o próprio Noonan desenterra.

Lawrence J. Welch
Kenrick-Glennon Seminary
St. Louis, MO

Há motivos para esperança

Publico o gráfico e o comentário abaixo conforme os encontrei no “Lavras Resiste!”. Concordo com o autor do texto: há motivos para esperança. Há três anos eu publiquei aqui este texto, com dados americanos que vão harmoniosamente ao encontro destes, britânicos, que com alegria trago hoje. Os números parecem-me claros: é da Tradição que surgem as vocações. Há esperança.

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Há motivos para esperança. À direita no gráfico, vê-se o número crescente de ordenações desde 2008. Suponho que esse seja o efeito da Tradição, revalorizada por S.S. Bento XVI. Para mim, o gráfico é claro. Fora da Tradição não há salvação.

“Pedófilos não são excomungados, mas eu fui!”

Depois de tudo o que já foi falado aqui sobre o padre Beto, eu pensava em não mais voltar ao tema do arrogante sacerdote. No entanto, permito-me mais algumas palavras, por conta de um comentário sem sentido que, nos últimos dias, tem ganhado corpo e merece uma resposta.

Ele veio do próprio padre Beto: «Pedófilos não são excomungados, mas eu fui!», choramingou o sacerdote, em um arroubo patético de apelo sentimental vazio. É bem pouco provável que o padre Beto realmente não entenda o porquê das coisas serem assim; o mais verossímil é que ele esteja fazendo uma chantagem emocional barata, para posar de coitadinho ao mesmo tempo em que lança sobre a Igreja a pecha de intransigente e contraditória. Mas vá lá: tenhamos um pouco de paciência com a ignorância ou a cretinice alheia. Exponhamos o discurso do óbvio e expliquemos ao reverendo sacerdote por que sua situação é diferente da dos ditos “padres pedófilos”.

Convém ter em mente, antes de qualquer coisa, que a excomunhão não é um passaporte irrevogável para o inferno. Trata-se de uma pena eclesiástica, em última instância orientada – como aliás todas as penas eclesiásticas – para a salvação das almas. De que maneira?

Ora, os pecados não se dividem em leves, graves e “excomungantes”. Há somente os leves (ou veniais) e graves (ou mortais), e só. Os primeiros são os que mantém a alma em estado de graça e, os últimos, são os que fazem perder a graça santificante; aqueles permitem que se vá ao Céu passando pelo Purgatório e, estes, conduzem ao Inferno. Não há na alma de um assassino (ou adúltero ou ladrão) mais graça santificante do que na de um médico punido com excomunhão, e nem vai menos para o Inferno um católico impenitente do que um herege excomungado. Excomunhão não é, portanto, simples qualificador agravante de condutas pecaminosas. Que coisa é ela, então?

A excomunhão é uma espécie de censura eclesiástica ao mesmo tempo grave e branda. Grave, porque rompe no foro externo a comunhão com o Corpo Místico de Cristo que é a Igreja; branda, porque para ser retirada exige somente um pedido de perdão do excomungado. E os pecados punidos com excomunhão têm geralmente também essa curiosa antinomia: são, ao mesmo tempo, graves em si mesmos e negligenciados por quem os comete. Vejamos alguns exemplos.

Quem é este excomungado? Henrique VIII da Inglaterra. Que crime cometeu? O de separar a igreja anglicana da Igreja Católica. Que importância lhe deu? Nenhuma. Como se sentia? Julgava-se vítima das absurdas pretensões papais sobre o seu casamento, sobre o futuro da família real inglesa.

Quem são estes excomungados? Dom Marcel Lefebvre, Dom Antônio de Castro Mayer e os quatro bispos por eles sagrados sem mandato pontifício. Que importância deram à sagração episcopal ilícita? Nenhuma, pois se julgavam vítimas da Roma Modernista.

Quem é este excomungado? O pe. Roy Bourgeois. O que ele fez? Participou de uma tentativa de “ordenação feminina”. Que importância deu ao fato? Nenhuma, pois se julgava vítima da misoginia da hierarquia católica, do secular machismo eclesiástico.

Quem são estes excomungados? Os médicos que realizaram um aborto numa menina de nove anos aqui no Recife. Como se sentiam? Heróis injustiçados que salvaram uma criança dos obtusos e medievais dogmas da Igreja Católica.

Quem, por fim, é este excomungado? O padre Beto, que falsificou a doutrina da Igreja, corrompeu a juventude e, agora, adota um discurso vitimista, nem por instante se arrependendo do escândalo que suas atitudes provocaram e continuam provocando entre católicos e não-católicos.

O que todas essas coisas  têm em comum? São pecados graves, em primeiro lugar; cometidos não por impulso, mas friamente pensados e executados, insistidos mesmo após as admoestações e súplicas da Igreja, em segundo; e, em terceiro, considerados de pouca importância (às vezes nem percebidos como pecados!) por aqueles que os cometem e pelos que lhes são próximos. Em geral, são estas características e não outras as que a Igreja observa quando decide excomungar alguém.

A excomunhão é, assim, uma espada brandida pela Igreja com fins duplamente pedagógicos. Primeiro, para que se arrependa o excomungado, uma vez que os pecados punidos com excomunhão costumam ser de tal natureza que repelem o arrependimento e debilitam a vontade de se reconciliar com a Igreja; e, segundo, para que as outras pessoas percebam-lhes a gravidade (geralmente escondida sob a aparência de heroísmo, martírio, louvável resistência ou coisa análoga) e não se deixem seduzir por eles. E esta finalidade pedagógica da excomunhão se vê com clareza quando se considera que ela encontra o seu término no Tribunal do Sacramento da Penitência, ao qual o excomungado pode acorrer sempre que desejar.

A excomunhão, assim, só persiste enquanto o excomungado não se volta para a Igreja. Aliás, pode-se dizer que ela existe precisamente para constranger quem a recebe a voltar-se para a Igreja. Voltemos, enfim, ao caso atual. Foi excomungado o padre Beto? Mas, ora, se ele quiser, pode perfeitamente ter a sua pena remitida hoje mesmo, bastando para isso correr ao seu bispo e dizer-lhe que aceita, sim, integralmente, a Doutrina da Igreja Católica. No entanto, ele não o faz. Prefere continuar aferrado às suas próprias “reflexões” estúpidas a se render à clareza da Verdade que refulge no ensino da Esposa de Cristo. Está excomungado porque quer ser excomungado, essa é a grande verdade que convém não ser esquecida aqui.

Coisa totalmente diversa ocorre com o padre que viola o sagrado celibato. Primeiro porque o abuso sexual de crianças é em si mesmo coisa horrenda e repulsiva, sem que haja ninguém que o justifique ou defenda. Segundo, porque jamais se teve notícia de algum padre pedófilo que tivesse anunciado “é, eu sou pedófilo mesmo, a pedofilia é uma coisa boa e a Igreja devia refletir melhor sobre isso, porque os tempos mudaram e a gente tem mais é que ser pedófilo mesmo, etc.” – se o fizesse, é certíssimo que seria excomungado tão rapidamente quanto o padre Beto o foi, e pela mesmíssima razão. Querer no entanto equiparar um crime oculto e infame a um pecado glamouroso cometido pública e impenitentemente não passa de um sofisma grosseiro. Não se sabe a quem o padre Beto quer enganar com esse espantalho ridículo; mas o recurso a tal expediente desonesto por parte de um homem presumivelmente inteligente já diz muito sobre o seu caráter.

Como os padres pedófilos não saem por aí alardeando em público a sua pedofilia da mesma maneira que o padre Beto parece ter um prazer depravado em confessar-se publicamente herege, é impossível que ambas as coisas sejam punidas igualmente. Os pedófilos, portanto, só podem ser punidos ao final de um processo canônico próprio. E eles o são: as normae de gravioribus delictis da Santa Sé prevêem que os padres que pecam contra a castidade com menores de dezoito anos ou que recorrem a material pornográfico de menores de catorze anos «seja[m] punido[s] segundo a gravidade do crime, não excluída a demissão ou a deposição». E a demissão [do estado clerical] é mais dura do que a excomunhão, uma vez que esta é retirada pelo simples pedido de perdão do condenado e, aquela, não. Ou seja: o padre Beto pode levantar a sua excomunhão hoje mesmo, mas um padre pedófilo demitido do estado clerical “não pode ser reintegrado entre os clérigos a não ser por rescrito da Sé Apostólica” [CIC 293]! Para o padre Beto voltar a exercer as suas funções basta-lhe confessar-se com o seu bispo (coisa que, repito, ele pode fazer agora mesmo), enquanto que um padre que cometeu pedofilia só volta ao sacerdócio com autorização explícita da Santa Sé – e o sacerdote de Bauru ainda vem reclamar! Ainda tem a cara de pau de insinuar que a sua situação está pior do que a dos pedófilos!

Pedófilos geralmente não são excomungados, padre Beto, porque (ao contrário do senhor) não saem por aí dizendo-se orgulhosos de serem pedófilos. Mas, quando descobertos e julgados, são punidos com mais rigor. O senhor, padre Beto, foi excomungado porque é um vândalo hipócrita que quer ser excomungado: porque gosta mais de contar mentiras em público do que pregar o Evangelho para o qual a Igreja o ordenou. Pedófilos ao menos têm vergonha dos seus crimes, enquanto o senhor, padre Beto, tem orgulho dos seus.

E é por isso que o senhor foi excomungado: porque a excomunhão não é meramente um indicador de gravidade dos pecados, e sim a censura dos orgulhosos. Existe não para dizer que aquele monstro vermelho e chifrudo é o diabo, mas para desmascarar Satanás travestido de anjo de luz. É empregada não para coroar a maldade dos pecados que já são abjetos por natureza, mas para revelar a malícia escondida sob aqueles que parecem inofensivos ou mesmo virtuosos. E é exatamente por isso, em suma, que ela lhe cai tão bem. É exatamente por isso que os verdadeiros católicos estão serenos e agradecidos enquanto essas cretinices do senhor dissipam quaisquer dúvidas que porventura pudessem restar sobre o seu caráter ou a seriedade do seu ministério sacerdotal. É exatamente por isso, em suma, que poucas decisões recentes do episcopado brasileiro foram tão acertadas quanto essa declaração de excomunhão de Dom Ferrari.

“A vera civilização ou é religiosa ou não existe”

Publico abaixo um pequeno trecho de um discurso de Alves Mendes, que eu não sei quem é mas que, a dar crédito ao Google, talvez seja este português daqui. Convém ignorar esta biografia meio capenga e, seguindo a sabedoria popular, prestar mais atenção ao que se fala do que a quem fala. O nome de “Alves Mendes” eu encontrei neste livro do Mário Ferreira dos Santos (“Curso de Oratória e Retórica”, São Paulo, 1962), que é de onde retiro o trecho abaixo.

Diríamos hoje que os arrazoados do orador não têm mais sentido? Não há – e abundantes! – contra-exemplos que hoje nos permitem cogitar a possibilidade de existir civilização sem crença religiosa? Não se multiplicam as nações onde o número de ateus é cada vez maior, os povos organizados em torno de valores anti-religiosos, os países que vivem como se Deus não existisse – e todos esses, inobstante, não continuam “progredindo”, não continuam “civilizados”?

Nego este aparente progresso e esta alegada civilização. A técnica, de fato, ainda progride, mas a técnica sozinha não é capaz de constituir um verdadeiro progresso humano. Os costumes estão há muito piores (e bem piores) do que os percebia Alves Mendes, e piorando a olhos vistos, e se não decaímos ainda na barbárie completa é porque o impulso civilizatório de dois milênios de Cristianismo ainda é capaz de manter as rodas da sociedade girando – como um ventilador cujas hélices giram ainda por um tempo, mesmo após ser puxado da tomada.

Estamos mais ricos e mais poderosos e, igualmente, mais insatisfeitos e perdidos do que os nossos pais e avós. Estamos decrépitos! Não, não me parece que continuamos “progredindo”, e sim apenas haurindo dos benefícios inerciais de um progresso cuja razão de ser já perdemos há algum tempo. Não, não me parece que ainda estamos “civilizados”: apenas nos abrigamos precariamente nas ruínas das civilizações que outrora fomos, para nos protegermos como podemos das intempéries do mundo que, sobre nossas cabeças, ameaçam-nos e açoitam impiedosamente estes séculos estranhos em que vivemos.

* * *

Quem denega ou desconhece que a crença é o maior tesouro da verdade, o mais adorável surgente de virtudes, o eterno timbre da nobreza do homem, a garantia suprema, a base inconcussa da grandeza social?

E não há de demonstrá-lo, basta vê-lo. Aqui a geo­grafia supre a retórica. Para provar-se que a civilização social deriva essencialmente da crença religiosa, é apon­tar para os povos que não têm podido assumir ou com­preender a ideia cristã. Jazem todos derrancados, jungidos a um ignóbil fatalismo. Se são povos primitivos, vivem imbecis numa eterna infância; se são povos poli­ciados, vivem ineptos numa eterna decrepitude. Exem­plo — a Oceania e o Bósforo. Nem numa nem noutra banda floresce a cultura humana, porque os seus habi­tantes não têm logrado ser cristãos; e assim, aqueles ar­rastam a existência de um menino ignorante; estes, a de um velho crapuloso. É natural, evidentíssimo. Não há progresso, não há civilização sem moral, e não há moral sem religião. Portanto, o progresso autêntico, a vera ci­vilização ou é religiosa ou não existe. No homem, mui­tíssimo mais que na matéria, reponta e refulge a mani­festação do progresso.

[…]

O positivismo teórico resulta o pessimismo prático: é espírito descrente, o espírito estéril; é o coração em ge­lo, o coração empedrado; é a antítese de toda a grandeza humana e de toda a grandeza moral; não pode ser a dou­trina de um povo militante, de um povo em progresso. Não pode. Povos grandes são povos progressivos, povos crentes, — porque a vida é de si uma luta e a crença é de si uma vitória!

Alves Mendes,
apud Mário Ferreira dos Santos,
op. cit., pp 91-92

“Da boca das crianças e dos pequeninos sai um louvor que confunde vossos adversários”

https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=WmMPc_xZJfA

«Antes de te formar no ventre de tua mãe, Eu te conheci; 
antes que fosses dado à luz, Eu te consagrei, 
para fazer de ti profeta das nações»
Jr 1, 5

É belíssimo! Não sei a idade do garoto; mas noto que ele, entre outras coisas, recita o Gloria [«O Glória é um antiquíssimo e venerável hino com que a Igreja, congregada no Espírito Santo, glorifica e suplica a Deus e ao Cordeiro. Não é permitido substituir o texto deste hino por outro», IGMR 53] e usa casula por cima da estola [«o sacerdote que se veste com a casula, conforme as rubricas, não deixe de pôr a estola», RS 123], cuidados que infelizmente nós nem sempre observamos nas nossas paróquias. Que a Virgem Santíssima abençoe e fortaleza a sua vocação; com sacerdotes assim, o nosso futuro estará melhor.

O título do post é o Salmo 8, 3a.

A incoerência do relativismo contemporâneo

Mais um texto do pe. Anderson Alves (a se somar aos outros que já foram recomendados aqui), pertinente e atual como de costume. Remeto à leitura da íntegra e apenas trago um curtíssimo excerto – uma frase, somente! – que julgo lapidar:

Da dignidade do ser humano, de fato, não se deduz a verdade de todos os seus conhecimentos, nem a bondade moral de todos os seus atos.

Nestes tempos enlouquecidos onde um padre que se aproveita da Igreja para apregoar em público uma doutrina espúria e contrária a tudo o que a Ela ensina é tratado como vítima enquanto a Igreja que Se defendeu dizendo que ele não fazia parte d’Ela é apresentada como vilã e opressora, convém denunciar abertamente a incoerência do relativismo contemporâneo. Isso faz mal não apenas para a alma, mas também para a inteligência. Acreditar em coisas contraditórias é não somente pecado, mas também defeito intelectual da maior gravidade.