Não obrigamos ninguém a se converter à nossa doutrina

[O excerto abaixo é do século XIII, e contém uma história de que os frades dominicanos provavelmente se utilizaram vezes sem conta em suas pregações públicas, pelas ruas e praças medievais, diante do povo comum. São alguns episódios da vida do Apóstolo São Tiago, o Maior, que, tendo ficado de fora das páginas canônicas das Escrituras Sagradas, foram recolhidos e compilados pela piedade cristã. A leitura é bastante agradável e edificante. Dentre outras coisas, chamo atenção para alguns detalhes: i) a afirmação de que S. Tiago pregou na Espanha enquanto era vivo, tendo obtido lá bem pouco fruto — o que impressiona, dada a devoção espanhola a Santiago que persiste até os nossos dias; ii) o tema, recorrente, do perseguidor que se converte em contato com o santo — mais com o seu exemplo do que com a sua pregação! –, primeiro o mago Hermógenes, depois o judeu Josias; iii) a instrutiva questão demonológica, onde os demônios podem exercer poder sobre os corpos tanto dos conversos (Fileto) como dos pagãos (Hermógenes), sendo contudo impotentes diante dos santos de Deus.

Chama também atenção a afirmação, singela, bruta, direta, que foge totalmente ao lugar-comum que se tem atualmente sobre a Idade Média, daquela verdade fundamental do Cristianismo: os cristãos “não obrigamos ninguém a se converter à nossa doutrina”. Isso está estampado com todas essas letras em um texto medieval da mais alta popularidade, e deveria nos levar a, no mínimo, questionar a alegada “intolerância” cristã da tal “Idade das Trevas” que os detratores do Cristianismo gostam tanto de alardear.]

I. O apóstolo Tiago, filho de Zebedeu, depois da ascensão do Senhor pregou na Judéia e em Samaria e foi para a Espanha onde semeou a palavra de Deus. Mas vendo que não tinha êxito e só havia ganho nove discípulos, deixou ali dois deles para pregar e com os outros sete voltou para a Judéia. O mestre João Beleth diz que Tiago converteu na Espanha somente uma pessoa.

Já de volta à Judéia, enquanto Tiago pregava a palavra de Deus, um mago chamado Hermógenes fez acordo com os fariseus e mandou seu discípulo Fileto encontrar o apóstolo para que, frente a frente com ele, convencesse os judeus de que sua pregação era falsa. Mas como diante de todos, o apóstolo racionalmente o convenceu e realizou muitos milagres, Fileto voltou até Hermógenes aprovando a doutrina de Tiago, contando os milagres que vira e tentando persuadi-lo a também se tornar discípulo. Irado, Hermógenes recorreu então à sua arte mágica para imobilizar Fileto, que não conseguiu se mover de forma alguma, e disse: “Veremos se Tiago pode soltá-lo”. Fileto encarregou um criado de contar a Tiago o que havia ocorrido. Este deu ao criado seu lenço dizendo: “Que ele pegue este lenço e diga ‘o Senhor levanta os oprimidos e livra os que estão atados’”. Logo que Fileto tocou o lenço, os vínculos das artes mágicas de Hermógenes foram rompidos. Fileto insultou Hermógenes e foi à procura de Tiago.

Cheio de raiva, Hermógenes passou a invocar demônios para que trouxessem Tiago e Fileto amarrados, porque queria vingar-se deles para que seus outros discípulos, sabendo o que ocorrera, não o insultassem. Os demônios vieram e dirigiram-se a Tiago vociferando pelo ar: “Tiago apóstolo, tem compaixão de nós, pois ainda não chegou nosso tempo e já estamos ardendo”. Tiago perguntou: “Por que vieram?”. Eles responderam: “Hermógenes nos enviou para que levemos você e Fileto até ele, mas assim que viemos para cá um anjo de Deus nos amarrou com correntes de fogo que nos atormentam enormemente”. Tiago: “Que os anjos do Senhor os soltem. Voltem para Hermógenes e tragam-no até mim amarrado, porém ileso”. Os demônios partiram, apoderaram-se de Hermógenes e amarraram suas mãos às costas, dizendo: “Você nos mandou a um lugar no qual fomos queimados”.

Depois o levaram atado até Tiago, a quem pediram: “Dê-nos poder sobre este homem para que possamos nos vingar por tê-lo ofendido e provocado assim nossas queimaduras”. Tiago: “Fileto está diante de vocês, por que não o prendem?” Eles: “Não temos poder para sequer tocar em uma formiga que esteja em seu aposento”. Tiago dirigiu-se a Fileto: “Conforme o ensinamento de Cristo, vamos retribuir o mal com o bem. Hermógenes prendeu-o, agora o solto”. Isso aconteceu, deixando Hermógenes confuso. Tiago olhou-o e disse: “Vá, você está livre para ir aonde quiser, não obrigamos ninguém a se converter à nossa doutrina”. Hermógenes disse: “Conheço a ira dos demônios, e se você não me der algo que possa levar comigo, eles me matarão”. Tiago deu seu báculo, Hermógenes foi buscar seus livros de artes mágicas e entregou-os para que fossem queimados. Mas Tiago, temendo que o forte odor da fogueira molestasse os desprevenidos, ordenou que os livros fossem jogados ao mar. Depois de fazê-lo, Hermógenes voltou para junto do apóstolo e prostrando-se a seus pés disse: “Libertador de almas, acolhe este arrependido que até agora o difamou, levado pela inveja”. Ele passou a se destacar no temor de Deus e a realizar muitas boas obras.

Vendo os judeus que Hermógenes havia sido convertido pelo zelo de Tiago, passaram a repreendê-lo por pregar Jesus, o crucificado. Ele no entanto recorreu às Escrituras, mostrou nelas as evidências do advento e da paixão de Cristo e muitos passaram a crer. Abiatar, que era sumo sacerdote naquele ano, sublevou o povo, que se apoderou de Tiago, amarrou uma corda em seu pescoço e o conduziu até Herodes Agripa, que mandou degolá-lo. Quando o conduziam ao local de decapitação, um paralítico que jazia estendido no caminho pediu ao apóstolo que lhe concedesse saúde. Tiago disse: “Em nome de Jesus Cristo, por cuja Fé sou conduzido à decapitação, levante curado e bendiga ao seu Criador”, e imediatamente o paralítico se levantou curado e bendisse ao Senhor.

O escriba chamado Josias, que havia colocado a corda no pescoço de Tiago e a puxava, ao ver isso se jogou a seus pés e pediu que ele o recebesse como cristão. Vendo isso, Abiatar agarrou Josias: “Se não maldisser o nome de Cristo, farei que você seja degolado junto com Tiago”. Josias: “Maldigo-o e maldigo todos os seus dias. Bendito seja o nome do Senhor Jesus Cristo pelos séculos!”. Abiatar ordenou que o esbofeteassem e mandou um mensageiro a Herodes solicitando permissão para decapitá-lo com Tiago. Quando iam ser degolados, Tiago pediu ao carrasco uma botija com água com a qual batizou Josias. Imediatamente suas cabeças foram cortadas e o martírio deles consumado. A decapitação do bem-aventurado Tiago aconteceu no dia 25 de março, quer dizer, na data da anunciação do Senhor. Seu corpo foi trasladado a Compostela em 25 de julho, mas seu sepulcro ficou pronto apenas em janeiro. A Igreja determinou 25 de julho como a época mais conveniente para celebrar universalmente sua festa.

JACOPO DE VARAZZE.
Legenda Áurea: vidas de santos. Trad. Hilário Franco Júnior.
São Paulo : Companhia das Letras, 2003. PP. 562-564

Pode um Bispo Diocesano proibir a comunhão na boca?

Embora o assunto já tenha sido tratado muitas vezes, ainda hoje surgem questões envolvendo normas diocesanas que proíbem a comunhão na boca. Alegam, as mais das vezes, questões sanitárias em si mesmas justíssimas: trata-se de medida para diminuir o risco de contágio pelo vírus da gripe. É certo que os Bispos são «promotores e guardiães de toda a vida litúrgica na Igreja que lhes está confiada» (CIC, Cân. 835, §1); é certo também que ao Bispo Diocesano, «na diocese que lhe foi confiada, compete todo o poder ordinário, próprio e imediato, que se requer para o exercício do seu múnus pastoral» (CIC, Cân. 381, §1). No entanto, existirá realmente uma competência diocesana para suprimir o modo tradicional de recepção da Santíssima Eucaristia — qual seja, diretamente na boca do fiel?

Ora, qual a legislação aplicável ao tema? Os documentos mais antigos são a Memoriale Domini (1969) e a Immensae Caritatis (1973). A primeira era acompanhada de uma carta contendo algumas normas práticas, das quais a primeira era a de que «[o] novo método de administrar a comunhão não deve ser imposto de maneira que venha a excluir o costume tradicional». A segunda já não fala nada sobre o método antigo, apenas enfatizando a reverência que é devida ao Santíssimo Sacramento (evidentemente) também no caso de comunhão nas mãos.

A partir daqui, ao que me consta, seguem-se algumas décadas sem que haja instruções específicas sobre o assunto. Há, talvez, algumas consultas feitas à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos às quais no momento não tenho acesso. Mas o próximo documento aplicável — e, sem dúvidas, o de maior importância, porque o mais atual e, portanto, o vigente — é a Instrução Redemptionis Sacramentum (2004). Nela se pode ler o seguinte parágrafo (grifos meus):

[92.] Todo fiel tem sempre direito a escolher se deseja receber a sagrada Comunhão na boca ou se, o que vai comungar, quer receber na mão o Sacramento. Nos lugares aonde Conferência de Bispos o haja permitido, com a confirmação da Sé apostólica, deve-se lhe administrar a sagrada hóstia.

Já questionei aqui no blog os problemas dessa redação; mantenho o entendimento de que a única coisa a que o fiel tem “sempre direito” é, justamente, a Comunhão na boca, porque a comunhão na mão é um indulto que apenas tem vigência “[n]os lugares aonde (sic) Conferência de Bispos o haja permitido”. Mas deixe-se isso de lado por ora. Retenha-se, por enquanto, esta norma claríssima e insofismável: o fiel, qualquer fiel, tem sempre direito a escolher se deseja receber diretamente na boca a Sagrada Eucaristia! Ora, isso significa que, conquanto ele até possa optar por receber a Eucaristia nas mãos (nos lugares onde tal é permitido), ele não pode ser jamais forçado a comungar dessa maneira.

Estas são as normas atualmente em vigor. Mas ainda tem mais. Em nota de rodapé, elas fazem referência ao número 161 da Instrução Geral do Missal Romano, cujo teor (na redação portuguesa da Editio Typica Tertia) é o que segue:

161. Se a Comunhão for distribuída unicamente sob a espécie do pão, o sacerdote levanta um pouco a hóstia e, mostrando-a a cada um dos comungantes, diz: O Corpo de Cristo (Corpus Christi). O comungante responde: Amen, e recebe o Sacramento na boca, ou, onde for permitido, na mão, conforme preferir.

Ora, o trecho final — na boca, ou, onde for permitido, na mão, conforme preferir — é um acréscimo da Terceira Edição do Missal Romano. As edições anteriores diziam, simplesmente, que o comungante respondia “amém” e recebia o sacramento. Ou seja, se antes havia silêncio sobre a forma de comungar, agora essa dúvida não subsiste mais: o comungante recebe o Sacramento na boca. A Editio Tertia é do ano 2000 e o conteúdo deste número é o mesmo que estamos aqui defendendo: o fiel recebe a Santíssima Eucaristia diretamente na boca, somente lhe sendo facultado optar pela comunhão na mão nos lugares onde isso seja permitido.

A leitura de quatro décadas de documentos revela, assim, essa verdade incontornável: em momento algum se fala (ou mesmo se infere) que o fiel possa ser proibido de comungar na boca! Ao contrário até, em diversos lugares esse seu direito é enfatizado, havendo inclusive uma mudança na redação da IGMR para que isso ficasse explícito. Corolário disso é que os bispos diocesanos, por mais que sejam a legítima autoridade litúrgica no âmbito de suas dioceses, não têm competência para proibir a comunhão na boca. Não a têm, porque todos os documentos da Sé Apostólica são uníssonos em afirmar, ao longo dos anos, com clareza crescente, que os fiéis podem sempre optar por receber a Sagrada Eucaristia diretamente sobre a língua.

Cuidem, portanto, os bispos e padres para não cercearem os direitos dos fiéis católicos. E saibam os fiéis que têm assegurado o direito de sempre receber a Comunhão na boca — direito que remonta a uma tradição imemorial e que já foi sucessivas vezes reiterados pela Igreja de Roma.

Apenas para finalizar: em 2009, quando do surto da gripe H1N1, um católico da Grã-Bretanha escreveu à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Nesta carta ele perguntava especificamente se era legítima a determinação de sua diocese para que a comunhão fosse distribuída somente na mão. O Dicastério respondeu fazendo menção à Redemptionis Sacramentum, reiterando que o fiel tinha sempre o direito de receber na língua a Sagrada Comunhão e que não era lícito negar a Eucaristia a quem não estivesse impedido pelo Direito. Ou seja, nem mesmo razões alegadamente sanitárias autorizam os sacerdotes e bispos a passarem por cima das normas litúrgicas aprovadas pela Santa Sé.

Desperdícios de tempo e de energia

Parece haver um grave problema de conteúdo nas nossas redes sociais, mesmo naquelas ditas “conservadoras”. Metade do tempo se gasta com superficialidades manifestas; a outra metade, dando demasiada atenção àquilo que em si mesmo tem pouca relevância. Por exemplo: parece que a política — e, por política, refiro-me principalmente à política partidária — ocupa um espaço desproporcional naquilo sobre o que se fala, que se curte e que se compartilha. Mesmo entre católicos. Isso, além de monotemático (e, em consequência, maçante), é também equivocado: porque uma visão política simplesmente contrária à esquerda não é, por si só, sinônimo de verdadeiro progresso civilizacional; e, principalmente!, não se lhe pode confundir com uma visão de mundo católica.

Que não se me entenda mal. Este blog já falou bastante sobre política e incluso sobre eleições; este autor está convencido de que esses assuntos precisam, sim, ser debatidos e assumidos também pelos católicos enquanto tais — porque é preciso exorcizar da vida pública o espectro agourento de um anticlericalismo malsão que pretende dizer que “a religião” (e, por extensão maldosa, os religiosos) não pode(m) ter vez nem voz na vida pública. Ora, quem é católico, é-o nas vinte e quatro horas do seu dia, onde quer que se encontre, o que quer que esteja fazendo: precisa ser assim, sob pena de não se valer a pena ser católico. O sujeito que se diz católico “na vida privada” mas que acha dever (ou mesmo poder!) tomar, na vida pública, decisões contrárias àquilo que a Doutrina Católica manda e prescreve, esse sujeito é, na melhor das hipóteses, uma besta — na pior, um hipócrita.

O Catolicismo não fala apenas sobre os católicos: ele importa também uma visão, mais ampla e mais geral, do homem em si mesmo, do homem enquanto homem. Essa antropologia, se é realmente antropologia, precisa se aplicar, é evidente, ao homem sem adjetivos, ao homem, simpliciter, qualquer que seja ele. Se alguém acha que a visão católica acerca do homem não se aplica, e.g., ao homem agnóstico, ou ao homem protestante, então esse alguém, na verdade, acha que a antropologia católica não é verdadeira. Ora, se se acha que o Catolicismo está errado neste particular, qual o sentido de se afirmar católico? Se a Doutrina Cristã está errada quanto ao homem, quem garante que ela não esteja igualmente errada quanto a Deus? É por isso que a Fé não comporta escolhas (em grego, heresias): ou Aquela de quem se recebe a Fé é fiável e, portanto, à Mensagem d’Ela se deve aquiescer, ou então é preciso a tudo pôr sob escrutínio — e, nesse caso, quem é digno de confiança não é mais a Mensageira, e sim o escrutinador da Mensagem. Ainda que ambos os caminhos possam eventualmente levar ao mesmo resultado prático, os fundamentos de um e outro são completamente diferentes — e, por isso, apenas um deles merece ser chamado de “Fé”, daquela Fé sem a qual não é possível agradar a Deus.

Enfim, este blog sempre pugnou para que o católico pudesse, sim, assumir-se como católico em tudo o que faz: nas suas relações para com Deus, mas também, e principalmente, nas suas relações para com o próximo e para com a sociedade. Impedi-lo de agir dessa maneira é, em última instância, impedi-lo simplesmente de ser católico. Afirmar que religião é assunto de foro íntimo é uma estupidez sem medidas; somente é capaz de proferir um absurdo desses quem não faz a menor idéia do que seja uma religião.

Isso é uma coisa. Uma outra coisa, completamente diferente, é se deixar ser tragado pela voragem política dos arranjos partidários de ocasião, exaurindo, nas tomadas de posição contrárias ou favoráveis a tais ou quais políticos ou partidos, a própria atuação pública. E, o que é pior, confundindo isso com vitórias ou derrotas estratégicas no campo social, perdendo completamente de vista a amplidão do cenário onde se precisa atuar de maneira verdadeiramente eficaz.

O exemplo mais recente (?), que é apenas um entre muitos e que trago aqui apenas para ilustrar o que estou dizendo, foi o vai-e-volta do habeas corpus do ex-presidente Lula no último fim de semana. Todos viram a história, que envolveu três desembargadores, um juiz de primeira instância e uma sucessão desenfreada de despachos atrás de despachos, em pleno domingo, cada um dos quais pretendendo portar a mais lídima justiça, todos demandando cumprimento imediato. Não se trata de perquirir as más intenções do desembargador plantonista e nem de dissertar sobre os mecanismos de reforma de decisões judiciais providos por um direito dogmaticamente organizado; o ponto aqui é, tão-somente, apontar para a enorme quantidade de energia e atenção gastas (por este blogueiro inclusive, para o meu embaraço) em tão pouco tempo, com um assunto tão banal.

Porque não se trata de nenhum evento histórico — muito pelo contrário, é mesmo como se fosse um evento anti-histórico. Porque, domingo, as informações se sucediam e contradiziam em um ritmo tão descomedido que (acho até que já usei a imagem alhures) mesmo as últimas notícias já saíam velhas. A situação exigia um acompanhamento constante, real-time, para que não se tivesse uma informação desatualizada. E uma informação com prazo de validade exíguo é, exatamente, o tipo de informação que não entra para a história. É a exata definição de algo desimportante.

Ora, sejamos sensatos: a informação que agora serve mas que pode estar desatualizada daqui a vinte minutos não deve ocupar senão um lugar muito modesto na hierarquia de nossos conhecimentos. E, definitivamente!, não merece consumir os nossos domingos, nossas conversas, nossos pacotes de dados do celular. Se parte considerável daquilo que para nós importa não tem senão um interesse imediato, descartável, como poderemos almejar alguma espécie de permanência? Como poderemos nos elevar acima da bruta correnteza dos fatos, se é majoritariamente por eles que nos interessamos?

Como eu disse, o pandemônio do último domingo é apenas um exemplo. Porque a impressão que eu tenho é que as nossas redes sociais estão inundadas de questões da mesma natureza: as polêmicas versam sobre futilidades efêmeras e são, elas próprias, efêmeras também. É por isso que fazem tanto sucesso a timeline do Facebook ou as stories do Instagram: são, em essência, coisas que a gente vê agora e que daqui a cinco minutos podem não estar mais lá, e ninguém se importa.

A internet é uma coisa maravilhosa. Há uns anos, poucos anos!, desempenhou inestimável papel civilizacional ao franquear a palavra àquelas vozes que estavam excluídas dos meios de comunicação oficiais; hoje, no entanto, corre grande risco de dissipar esforços ao invés de os fazer convergir. Evitar essas armadilhas é empresa difícil, mas também necessária: seria um grande retrocesso permitir que a internet, após abrir um mundo de possibilidades aos homens do início do Terceiro Milênio, terminasse reduzida ao éter das redes sociais em que consiste atualmente.

“E para ter uma vida tranquila, mata-se um inocente.”

Nos últimos dias, a mídia anti-clerical parece ter “descoberto”, embasbacada, o catolicismo do Papa Francisco. Foi por ocasião da recente, infame e ilegítima votação da Câmara dos Deputados argentina que, por 129 votos a favor e 125 contra, aprovou um projeto de lei (que ainda precisa passar pelo Senado e pela sanção presidencial) autorizando o crime do aborto até a 14ª semana de gestação. Em meio à escalada da sanha homicida das sociedades degeneradas contemporâneas, ninguém parece ter se levantado contra o enorme absurdo que é admitir que cinco míseros votos parlamentares — verdadeira e evidente maioria de ocasião — tenham o poder de condenar à morte crianças no ventre materno. Veja-se, que o direito de vida e morte sobre outrem fosse submetido a votação, ainda que por maioria qualificada, ou mesmo por unanimidade, já seria um retrocesso, uma barbárie! Que tal “direito” possa ser admitido por uma diferença de cinco votos entre duzentos e setenta e cinco votantes, aí já é um escárnio e uma loucura. Trata-se de 1,8%. É óbvio que nenhuma coisa em favor da qual se possa decidir legitimamente com base em uma diferença tão pequena é levada a sério por quem se sujeita a essas regras. Por cinco votos dentre trezentos é possível decidir sobre a data da festa da colheita da cidade, entre duas datas igualmente boas; ou sobre o nome do próximo presidente do Parlamento, entre dois nomes igualmente legítimos. Decidir, no entanto, entre a vida e a morte por essa margem, é coisa que deveria fazer corar de vergonha até mesmo os abortistas que guardam algum apreço pelos processos democráticos.

Mas o que isso tem a ver com o catolicismo do Papa? É que, no final de semana seguinte, Sua Santidade fez um discurso improvisado — no qual, aliás, nem mencionava a Argentina — onde disse o óbvio: que é um absurdo matar crianças para que se tenha uma vida tranquila, que isso é uma regressão ao paganismo mais abjeto, que hoje fazemos o mesmo que os nazistas faziam, só que «com luvas brancas». Foi o suficiente para que a mídia, que passou os últimos anos enaltecendo com tanto afinco a figura deste Papa progressista, que estaria empenhado em modernizar a Igreja, que seria o perfeito oposto do seu antecessor alemão, foi o suficiente, eu dizia, para que essa mesma mídia transformasse o Papa em inimigo público número 1 e passasse a exigir, aos berros, a sua renúncia.

Não é figura de linguagem. A Carta Capital estampou uma manchete onde pedia “Deixe o trono, Francisco”, e onde fazia questão de reafirmar a sua «dissidência com esta Igreja que se recusa a reconhecer as mulheres como sujeitas de suas histórias». Oras, agora ser contra o assassínio frio e deliberado de crianças no ventre de suas mães passou a ser recusar-se a reconhecer as mulheres como sujeitas de suas histórias! O que tem uma coisa a ver com a outra? Estivéssemos em pleno regime escravocrata, essa revista censuraria os abolicionistas por negarem aos senhores de engenho o serem sujeitos de suas próprias histórias? É evidente que a questão escravagista não era mera implicância contra os donos de escravos, mas sim uma questão básica de humanidade para com os seres humanos escravizados; como, do mesmíssimo modo, é óbvio que a questão pró-vida não é displicência para com mulher gestante, mas sim defesa do ser humano em risco de ser abortado.

Menos inflamada, mas ainda assim bastante reveladora, foi a coluna da Cora Rónai para O Globo (excertos aqui). Sem esconder o seu descontentamento e a sua insatisfação, a autora afirma que «[o] Papa Francisco é um perigo» porque — ó novidade! — «é tão aferrado aos dogmas medievais da Igreja quanto o papa Ratzinger». E expõe assim a sua preocupação:

A palavra de um líder religioso aparentemente aberto e antenado ao seu tempo tem um peso muito maior do que a palavra de um homem que cultiva ostensivamente a tradição, e não faz a menor questão de ser popular.

O papa Francisco pode causar estragos muito maiores do que o papa Ratzinger jamais sonhou.

Ora, que os Papas sejam (necessariamente) católicos é um pressuposto que não se deveria sequer pôr em discussão. Com o Papa Francisco até essa obviedade foi posta em causa; defendeu-se, dizendo que era católico e filho da Igreja. Quanto a isso, jamais pode ser acusado de haver querido enganar ninguém. No entanto, vemos, agora, os não-católicos virem à mídia carpir as suas alegadas decepções e se insinuarem traídos por uma Papa que — coisa incrível! — se recusa a abraçar as doenças do Terceiro Milênio.

Os doentes e os pecadores sempre receberam uma atenção especial do Papa Francisco. Porque é esta a verdadeira missão revolucionária da Igreja, desde sempre, desde as mais singelas páginas do Evangelho onde Nosso Senhor afirma ter vindo não para os sãos mas sim para os doentes, não para os justos, mas para os pecadores. No entanto, ao contrário do mundo, não se verá jamais a Igreja ou o Papa abraçando a doença ou o pecado — e essa é a diferença essencial entre quem realmente se preocupa com a humanidade e quem mancomuna-se com Satanás para espalhar dor sobre o mundo.

Entre o Papa que ama os doentes e o mundo que espalha doenças, não deve ser difícil escolher quem merece ser ouvido. A Igreja acolhe os pecadores enquanto o mundo exalta o pecado: é por isso que a Igreja permanece enquanto o mundo cai de degeneração em degeneração. No fundo, a histeria dos anti-clericais, como tudo o que fazem, não tem verdadeira razão-de-ser: é somente outra tentativa vil e desonesta (igual em seus objetivos, aliás, à que procura apresentar o Papa como um Che Guevara de branco) de afastar as pessoas do Vigário de Cristo e da verdadeira Igreja de Nosso Senhor — único lugar onde o homem pode encontrar realmente a felicidade e a paz.

Ó Beleza tão antiga e tão jovem

Foi divulgada hoje a lista dos prelados brasileiros que participarão, no próximo mês de outubro, do Sínodo dos Bispos que ocorre em Roma. O tema do Sínodo é a juventude. Foi divulgado também o Instrumentum Laboris da Assembléia, sobre o qual parece que a única coisa que a mídia foi capaz de falar foi que tinha sido a primeira vez que o termo “LGBT” era empregado em um documento oficial da Igreja.

Neste quesito o progressismo tem bem pouca coisa para comemorar. Acontece que um instrumentum laboris é aquilo que o próprio nome diz: um instrumento de trabalho. Trata-se de um documento, por assim dizer, descritivo e não prescritivo: o que nele se contém não é a doutrina nem a praxis da Igreja (nunca foi), mas sim um relato de alguma situação do mundo sobre a qual a Igreja é instada a se pronunciar. É aliás exatamente para isso que periodicamente se reúne a Assembléia do Sínodo dos Bispos.

Por exemplo, o Instrumentum Laboris do Sínodo de 2001 dizia o seguinte: «a mentalidade secularizada de grande parte da sociedade, bem como a ênfase exagerada sobre a autonomia do pensamento e a cultura relativista, levam as pessoas a considerarem as intervenções do Bispo, e também do Papa, sobretudo em matéria de moral sexual e familiar, como opiniões entre outras opiniões, sem influência na vida» (n. 107). Trata-se, como é evidente, de uma descrição do problema. Ninguém em sã consciência poderia ler esse texto e acreditar que a Igreja estivesse abrindo as Suas portas para o relativismo.

Ainda outro exemplo: o Instrumentum Laboris do Sínodo de 2010, sobre o Oriente Médio, dizia que a “islamização penetra nas famílias também através dos meios de comunicação em massa e das escolas, modificando assim as mentalidades que, sem o saber, vão-se islamizando” (n. 34). Mais uma vez, isso não se trata de capitulação da Igreja perante o Islã, mas tão-somente da apresentação — tão exata quanto possível — da situação que a assembléia sinodal era chamada a apreciar. É essa a forma de trabalho deste organismo eclesial desde há muito tempo.

E com isso chegamos ao documento atual, cujo teor é o seguinte:

Alguns jovens LGBT, mediante várias contribuições feitas à Secretaria do Sínodo, manifestaram o desejo de «se beneficiar de uma maior proximidade» da Igreja e experimentar um maior cuidado por parte d’Ela, ao passo que algumas Conferências Episcopais se perguntam sobre o que propôr «aos jovens que, ao invés de formarem casais heterossexuais [sic — coppie eterosessuali], decidem constituir pares homossexuais [coppie omosessuali] e, sobretudo, desejam permanecer próximos da Igreja». (n. 197)

A esta redação é possível fazer dois reparos. O primeiro deles é que “LGBT” não é propriamente uma identidade (a rigor, ninguém “é” LGBT), a não ser como uma espécie de identidade tribal: trata-se de um fenômeno gregário da juventude atual, da mesma forma que, há alguns anos, os jovens se reuniam sob a subcultura punk. E o segundo é que seria muito conveniente evitar o emprego da mesma palavra — no italiano, coppie — para se referir a duas coisas tão gritantemente distintas como os casais e as duplas homossexuais: afinal de contas, para citar outro Instrumentum Laboris do mesmo Sínodo dos Bispos, de há apenas três anos, «[n]ão existe fundamento algum para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimónio e a família» (Instrumentum Laboris da XIV Assembléia Ordinária do Sínodo dos Bispos, n. 130).

Mas o que é verdadeiramente impressionante é o dado social que estas linhas revelam. Ora, o pecado é, por definição, uma revolta contra Deus. É possível até compreender como uma fraqueza o pecado eventual, o pecado irrefletido: mas o pecado que é conscientemente defendido, o pecado que é erigido a um estilo de vida, este é a coisa mais anticatólica que pode haver. É possível amar verdadeiramente a Deus e, ainda assim, cair ao longo da vida em muitos pecados, mesmo graves. Mas defender racionalmente aquilo mesmo que Deus abomina, isso só é possível dando-se orgulhosamente as costas ao Criador.

A Cidade dos Homens é oposta a Cidade de Deus; a subcultura gay é oposta à Cultura Católica. No entanto, para horror dos revolucionários, mesmo os jovens iludidos com o canto-de-sereia da tribo LGBT não conseguem dar totalmente as costas ao chamado que lhes faz a Igreja de Nosso Senhor! Ora, isso significa que a cultura tribal não lhes é o suficiente. Os anticlericais quiseram libertar os homens do peso da Igreja; hoje, livres, distantes d’Ela, os homens A contemplam de longe e sentem vontade de a Ela retornar. A descristianização foi um fracasso fragoroso; os livre-pensadores de outrora ficariam envergonhados.

O que está escrito neste documento, em curtas palavras, é que a «cultura gay» não é suficiente para a juventude. E nem o poderia ser jamais: criados para as coisas grandiosas, para a glória do Altíssimo, para o heroísmo, é somente no amoroso cumprimento da vontade de Deus que os jovens podem se sentir enfim realizados. Enquanto não abraçarem esta Doutrina libertadora, sentirão sempre que falta alguma coisa e estarão constantemente insatisfeitos. Satanás construiu uma eficiente prisão para manter os homens afastados de Nosso Senhor; no entanto, ele não pode impedir que, por detrás dos seus muros fétidos, as almas enxerguem a cruz que se ergue sobre o campanário da igreja — e experimentem, ainda que inconfessadamente, o desejo furtivo de trocar a decadência da tribo pela riqueza da grande família dos filhos de Deus.

O terço do presidiário

Sobre o tal terço supostamente enviado pelo Papa Francisco ao ex-presidente Lula, somente três pequenos apontamentos se fazem necessários.

Primeiro, que não há evidência absolutamente nenhuma de que o envio do presente tenha sido um desejo específico do Papa Francisco. O perfil do Vatican News nas redes sociais, a propósito, publicou hoje — inclusive com uma celeridade inusitada — uma nota de esclarecimento dizendo que em nenhum momento o advogado argentino sequer afirmou que o terço havia sido enviado pelo Papa: de acordo com o órgão de comunicação, na entrevista apenas foi dito que se tratava de um objeto abençoado pelo Santo Padre.

Ou seja, o que aconteceu foi simplesmente o seguinte: um advogado foi fazer uma visita particular ao sr. Luís Inácio, levando-lhe de Roma um terço abençoado pelo Papa. Não pôde entrar porque não era dia de visita. Ato contínuo, em um instante, os órgãos de imprensa tupiniquins transformam-no em um legado papal, agindo em missão eclesiástica, encarregado pessoalmente pelo Vigário de Cristo de entregar ao ex-presidente um símbolo do apoio pontifício e impedido de cumprir a sua missão santa pela arbitrariedade policialesca de Curitiba!

A coisa é por demais fantasiosa para merecer muita atenção.

Segundo, que o dr. Juan Gabrois afirma que o Papa sabia da entrega do terço. Ora, ainda que seja verdade, tal é completamente irrelevante: nem torna menos jurídicas as sucessivas condenações sofridas pelo sr. Luís Inácio, nem confere solidariedade internacional ao criminoso caeteense. Na verdade, Sua Santidade bem que poderia ter enviado mesmo o terço, com um carta assinada de próprio punho, e nisso não haveria nada de inusitado. Afinal de contas, ao longo da história os criminosos condenados sempre puderam contar com assistência religiosa — sem que isso significasse jamais a condescendência para com o crime que os anti-clericais do século XX gostam de ver nas manifestações de misericórdia do Pontificado atual.

Um criminoso recebeu um terço. E daí? Por séculos, mesmo os condenados à morte receberam absolvição sacramental quando já se encontravam no cadafalso, sem que se pretendesse jamais que isso pudesse tornar injustas as condenações criminais que pesavam sobre eles. Antes, é ao contrário: era justamente por serem criminosas condenadas que aquelas pessoas precisavam de um sacerdote ao seu lado. Ao ex-presidente Lula faria muito bem rezar alguns terços — como aos condenados que subiam ao patíbulo fazia muito bem ouvirem as exortações da Irmandade da Misericórdia. O Papa bem que poderia ter lhe enviado o presente com este santo propósito.

Terceiro, por fim, que se o Papa Francisco tivesse enviado uma rosa de ouro para o sr. Luís Inácio, alardeando altissonante a sua solidariedade para com a vítima inocente de um sistema judicial corrupto, isso seria um escândalo político e só. É evidente que Pontífice nenhum fala em nome da Igreja quando toma partido em favor de tal ou qual governante, quando firma alianças com determinada nação em detrimento de outras, quando sagra imperadores ou depõe reis. Ninguém está obrigado a seguir as preferências políticas daquele que se assenta no Sólio de Pedro, e se por um lado todo Soberano Pontífice faria muito bem em se manter relativamente afastado da política secular, por outro lado a Igreja tem também o direito (e por vezes o dever) de exortar os poderosos do mundo. Ora, nestas questões de natureza prudencial descabe até mesmo falar em munus docendi da Igreja; no entanto, são assuntos que por vezes se impõem.

Na hipótese de alguém de boa fé acreditar na inocência do ex-presidente, o que é que se pode fazer? Mostrar à pessoa que ela está errada, contradizê-la em público, sim, mas não transformá-la em cúmplice dos desmandos lulopetistas e nem muito menos atribuir-lhe os mesmos propósitos que a esquerda brasileira se esforça por fazer valer neste já tão maltratado país. Uma coisa é ter dúvidas acerca da lisura do processo que culminou na condenação do sr. Luís Inácio, outra totalmente diferente é endossar em bloco o programa político do Partido dos Trabalhadores. De um ponto a outro o salto é muito largo: não pode ser simplesmente inferido e nem é possível demonstrá-lo à base de razões tácitas ou motivos implícitos.

Em resumo, o terço que o presidiário não pôde receber ontem é um objeto religioso vergonhosamente transformado em arma política. Nós, católicos, ao invés de ficarmos dizendo o que o Papa quis ou não quis dizer com o seu gesto, deveríamos era rechaçar de pronto e com veemência esta instrumentalização odiosa da Fé.

Erguendo a velha espada

Esticando os membros após muito tempo parado… a sensação é estranha. Será que o corpo ainda responde como antigamente, será que os dedos possuem ainda a mesma agilidade? Será que os golpes sairão, ainda, com a destreza de outrora? É preciso ir com calma e testar o gume da espada sem pressa, sem lhe exigir demais. Si vis pacem — diz o antigo adágio –, para bellum. E esta santa preparação para o combate deve se dar, justamente, nos tempos de (relativa) paz.

Porque os grandes feitos não se fazem do nada, de repente, em um rompante de heroísmo no calor da batalha. Ao contrário, as grandes vitórias maturam lentamente, no escuro, no silêncio, na solidão. Há muitas e muitas horas de preparação por detrás de quaisquer quinze minutos de liça, e é preciso que seja assim. Se for de outro modo, é sorte de principiante. Se for de outra maneira, os louros são fortuitos e quem os ostenta na fronte, na verdade, não os merece.

Quisera ter empregado minha ausência na preparação para o combate! Quisera chegar aqui, agora, com a espada já afiada, com as mãos já preparadas para o combate, com os dedos já adestrados para a guerra. Mas é exatamente o contrário: os músculos estão demasiado rijos e, infelizmente, se me fosse exigido manejar a espada agora, é provável que ela depressa tombasse inócua. Se eu fosse chamada à guerra agora, neste instante, é provável que o batalhão em cujas fileiras eu me alistasse ficasse desfalcado. Para minha vergonha e minha tristeza.

Não, não venho aqui, agora, exibir as habilidades conquistadas em um tempo — até demasiado longo… — de exercícios e de preparação. É o contrário, eu dizia: o tempo levou-me o manejo a duras penas adquirido, aqui e alhures, de modo assistemático, espontâneo, improvisado. Levou-mo e não foi capaz de lhe substituir a contento. Agora levanto-me vacilante, claudicante, testando a força das pernas, a elasticidade dos braços; agora me levanto não para mostrar os dons adquiridos, mas para recuperar os que ficaram para trás. E devo fazê-lo ainda que doa, ainda que custe, ainda que demore.

Porque as artes da guerra exigem diligente preparação; é preciso respirar o combate. E é natural que os braços pesem e se fadiguem quando se concede ao corpo o luxo de um descanso mais prolongado. Mas não é lícito demorar-se tanto assim em lençóis de seda enquanto, no front, a batalha ainda prossegue tão encarniçada quanto antes. Talvez até mais.

E não é possível ficar por mais tempo parado: seria enterrar talentos. É mais digno a uma espada estilhaçar-se no calor da luta do que enferrujar lentamente em um canto escuro da casa. As canções de heroísmo do passado não eximem ninguém de derramar o sangue que lhe é exigido no presente. Ao guerreiro não cabe senão guerrear; que os bardos após ele recolham-lhe, em pedaços, as façanhas do caminho.

A batalha ainda é sangrenta e preciso me acostumar de novo com a espada. Preciso sentir-lhe o peso, testar-lhe o fio, medir-lhe o alcance; preciso, em suma, reaprender a usá-la, porque os inimigos de Nosso Senhor não serão repelidos sozinhos. Porque não se sabe quando será preciso tomar — mais uma vez — o lugar às brechas da muralha; e porque não quero ser pego de surpresa quando a lâmina vier a ser necessária.

Os músculos doem; por enquanto, apenas me estico. Espreguiço-me e me massageio, pego as armas, brandindo-as lentamente, como que tateando. Doce nostalgia; esperança inflamada. Conceda-me Deus a graça de ainda lutar por Sua glória. Apraza a Nosso Senhor que eu possa voltar aos campos do bom combate.

Novo Rei e nova Mesa

Sua Excelência Reverendíssima Dom Fernando Saburido, Arcebispo Metropolitano de Olinda e Recife, saindo da Missa de Corpus Christi para a procissão pública do Corpo de Deus. Olinda, cidade alta, 31 de outubro de 2018, perto das onze horas da manhã.

Quantum potes, tantum aude 
Quia maior omni laude
Nec laudare sufficis.

Feliz Páscoa!

É Páscoa! Nosso Senhor ressurgiu Glorioso do túmulo para nos infundir coragem. E se antes estávamos fracos e acabrunhados, se agonizávamos sob o peso das nossas culpas, se vagávamos a esmo, sem destino, agora todas essas coisas passaram, agora o mundo é novo e o futuro nos chama a coisas grandiosas.

Cristo ressuscitado dos mortos não morre mais — é, assim, segura a nossa esperança, certa a nossa vitória. Se o nosso Deus deixou atrás de Si o sepulcro, que haveremos de temer? Que são os nossos pecados, nossas fraquezas, nossos medos, perto da glória da Ressurreição? Se o nosso Deus chegou a morrer por nós, que coisa haverá que Ele não faça em nosso favor?

Que Cemitério é este de onde brota tanta vida? Que Tumba é essa que exala o doce odor do Paraíso? Que Homem é esse que caminha à nossa frente, altivo, garboso, sob o estandarte da Cruz? Sigamo-Lo!

A manhã do domingo de Páscoa, junto com as trevas da noite, dissipa as trevas dos últimos dias, dos últimos séculos, da história da humanidade inteira desde Adão. Cristo ressuscitou! Deixemos as coisas antigas para trás. Vivamos a vida que o Salvador nos mereceu.

Feliz Páscoa!

Tempus tacendi

Estando Cristo morto e sepultado, cabe indagar qual é ou deveria ser o comportamento dos discípulos. Porque não parece que lhes restassem muitas opções além da tristeza e da prostração que presumivelmente se abateram sobre eles. Não foi justamente o Salvador quem disse: “sem Mim, nada podeis fazer” (Jo XV, 5)? Ele é a Videira e nós não somos senão os ramos; se a videira está morta, poder-se-ia acaso esperar que os ramos estivessem vicejantes?

O Sábado Santo radicaliza aquela passagem do Eclesiastes segundo a qual para tudo há um tempo debaixo dos céus (cf. Ecl 3, 1-8). É-nos por vezes muito difícil imaginar que possa haver um «tempo para calar» (v. 7b) em meio à sempre premente necessidade de anunciar “oportuna e inoportunamente” (cf. IITm 4, 2) o Evangelho da Salvação. Ora, como podemos ficar calados se o Templo Santo de Deus encontra-se tomado por vendilhões? Como ficar calados se as ovelhas, dispersas, vagam a esmo, sujeitas às feras selvagens, à chuva e ao frio, aos espinhos e às ribanceiras? Como ficar calados se o povo de Deus definha e falece, sedento da Sã Doutrina da Salvação? Como ficar calados sem que as próprias pedras, para nossa vergonha, ponham-se a clamar em nosso lugar?

Mas, no entanto, há tempus tacendi, e quem no-lo diz é o próprio Deus através das Escrituras Sagradas, tanto por palavras quanto por exemplos. Por palavras, na já referida passagem do Eclesiastes, onde a sentença se profere insofismável: de fato, há “tempo para calar, e tempo para falar” (Ecl 3, 7). Mas Deus o atesta também através de exemplos, o mais eloquente dos quais nós podemos encontrar no dia de hoje, no Sábado Santo, no grande Silêncio que caiu sobre a terra enquanto Nosso Senhor jazia no sepulcro.

O Verbo de Deus jaz silente no túmulo. E, considerando os acontecimentos dramáticos que vivenciámos nos últimos dias, isso parece um verdadeiro anti-clímax. Em menos de vinte e quatro horas, entre a noite da Quinta-Feira Santa e a tarde da Sexta-Feira da Paixão, assistimos à sucessão vertiginosa de acontecimentos intensos: a Ceia, a agonia no Horto das Oliveiras, a traição de Judas, a prisão, os sucessivos julgamentos — em casa de Anás e de Caifás, perante Pilatos, perante Herodes –, a flagelação, a coroação de espinhos, o caminho do Calvário, a Crucificação, a morte, a sepultura. Todas essas coisas se sucederam umas às outras tão depressa que mal tivemos tempo de respirar; e agora já faz uma noite inteira e um dia inteiro que nada acontece, e este silêncio contrasta pesadamente com a loquacidade dos dois primeiros dias do Tríduo Santo.

E o mais perturbador é isto: as coisas aparentemente nunca estiveram tão fora de controle quanto depois da Morte do Salvador. O Messias foi crucificado, o grupo que Ele passara os últimos três anos formando se encontra agora desacreditado, disperso e perdido, e todas as promessas com as quais Ele conquistou os corações dos Seus discípulos afiguram-se, agora, incumpridas e incumpríveis. Se formos olhar pelo aspecto teológico a coisa é ainda mais desoladora, porque com o Deicídio parece que o Pecado Original encontra a sua última e definitiva realização: os pecadores que um dia foram expulsos por Deus do Paraíso agora reafirmam e aprofundam a ruptura primeva expulsando a Ele do mundo dos vivos.

E, no entanto, para nossa perplexidade, é justamente nesta hora dramática, neste momento decisivo, que o Altíssimo decide não fazer nada: Deus permanece morto no Túmulo enquanto o mundo desmorona, Cristo simplesmente Se retira da terra justamente no momento em que d’Ele mais precisamos.

E não se diga que o Salvador estava ocupado obrando milagres no mundo dos mortos. Sim, é fato que Nosso Senhor morto desceu aos infernos para resgatar os justos do Antigo Testamento aos quais o Pecado Original até ontem fechava as portas do Paraíso; para tal, no entanto, não haveria necessidade dos três dias que separam a Cruz da Ressurreição. Na verdade, ao descer aos infernos Cristo quebrou-lhes imediatamente as trancas, como ensina o Aquinate (Summa, IIIa, q. 52, a. 2. ad. 2); se se demorou por lá foi por conveniência e vontade livre, não por necessidade. E se houve um dia em que aprouve a Deus quedar-se silente enquanto as ovelhas se dispersavam, talvez devêssemos levar isso em consideração nos nossos apostolados e na nossa vida particular.

Porque sem Deus não há nada que possamos fazer; e se Ele se cala, talvez não seja a nós que compita gritar. Ora, Cristo é Senhor da História e é Cabeça da Igreja; e, portanto, o que o Corpo Místico de Cristo obra na História não escapa aos misteriosos desígnios da Providência que rege o mundo.

Se a Igreja permanece em silêncio, se Ela parece dormir, talvez não seja a nossa vocação substituir-nos à Hierarquia Sagrada — ou pelo menos não na condenação in concreto dos erros que grassam no mundo. Ainda que as ovelhas saiam em debandada, ainda que a obra do Divino Redentor pareça fracassar — não pareceu assim no Sábado Santo? –, ainda que o mundo pareça ruir: há momentos em que Deus silencia e, por absurdo que nos pareça, por difícil que nos seja, pede-nos o silêncio também.

Mas não qualquer silêncio: o «tempo de calar» não se confunde com a acomodação nem com a covardia. O silêncio que devemos a Deus é um silêncio obsequioso e confiante, um silêncio que guarde a palavra de Deus e anime a Fé dos que estiverem conosco: um silêncio como o dos Apóstolos reunidos em torno da Santíssima Virgem durante o tempo em que Jesus permaneceu no Sepulcro.

Talvez a Igreja esteja vivendo um grande Sábado Santo, e talvez devamos olhar com mais cuidado para este último dia do Tríduo a fim de discernir aquilo que Deus espera de nós nos dias de hoje. Porque, enquanto o Senhor jazia nas profundezas da terra, não parece que o debate público com os fariseus fosse aquilo que os discípulos de Cristo devessem fazer. O apologeta é uma vocação necessária na Igreja, sem a menor sombra de dúvidas, mas o apologeta que não suporta o sofrimento, a dor, a humilhação, o silêncio, não é um apologeta e sim um polemista. Há momentos em que um silêncio esperançoso é mais útil e edificante do que um falatório desesperado.

O Senhor jaz no Túmulo, mas não nos deixará para sempre. É noite na Igreja, mas a Aurora do Domingo já vem. Que a Virgem do Silêncio, Nossa Senhora da Soledade, sustente-nos nestes dias difíceis — como sustentou a Igreja nascente durante o tempo em que o Seu Filho esteve morto. Os assaltos do Inferno não prevaleceram naquele tempo; também hoje não haverão de prevalecer. A Vigília Pascal já começa. Um dia haveremos de chamar gloriosa a esta noite.