A verdadeira Igreja dos pobres

Estão particularmente excepcionais os dois últimos artigos de D. Fernando Rifan sobre a Igreja e os pobres. Valem uma leitura na íntegra; à guisa de destaque, trago os seguintes excertos:

1. A Igreja dos pobres: «Jesus, nascendo e vivendo pobre, não discrimina ninguém: no seu presépio vemos pobres e ricos, pastores e reis. Todos são bem-vindos ao berço do “príncipe da paz”. Com seu exemplo, ele prega a humildade e não a soberba, a caridade e não a inveja, o desapego e não a ambição, a paz e não a luta de classes. A desigualdade, quando não é injusta, é natural e normal, podendo ser suavizada e superada pela prática das virtudes cristãs. Amemos e consolemos os pobres, os preferidos de Deus, sem lançarmos no coração deles a amargura da inveja e ambição».

2. A riqueza dos pobres: «A riqueza dos pobres é a Igreja, sua rica doutrina e sua liturgia. As igrejas, os templos sagrados, são a casa dos pobres. Lá eles podem entrar sem serem impedidos. Lá eles podem se sentir bem, contemplar belas pinturas e arquiteturas, vasos sagrados, esplêndidas imagens, como não poderiam fazer em nenhuma outra casa ou palácio. Ali eles podem, pois é a casa deles. […] [O então cardeal Ratzinger assim se expressava sobre a beleza da Liturgia:] A riqueza litúrgica não é riqueza de uma casta sacerdotal; é riqueza de todos, também dos pobres, que, com efeito, a desejam e não se escandalizam absolutamente com ela. Toda a história da piedade popular mostra que mesmo os mais desprovidos sempre estiveram dispostos instintiva e espontaneamente a privar-se até mesmo do necessário, a fim de honrar, com a beleza, sem nenhuma avareza, ao seu Senhor e Deus».

Nestes nossos tempos em que uma certa retórica já putrefata de pauperismo teológico parece querer se aproveitar de algumas peculiaridades do Papa Francisco para se insidiar até mesmo em meios católicos, convém esconjurar o fantasma decrépito com a clareza da Doutrina da Igreja e a solidez da realidade dos fatos. Sim, é possível amar e defender os que nada têm sem excomungar os que têm alguma coisa; sim, é possível honrar a Deus com o que temos de melhor sem espezinhar os pobres e os pequeninos no caminho. Isto, aliás, é o Cristianismo de vinte séculos. A luta de classes tão tagarelada nos nossos dias é apenas uma excrescência pseudo-intelectual de cento e poucos anos para cá, é somente (mais) uma ideologia falida que perdeu o bonde da história e cujos asseclas parecem ter certa dificuldade patológica em compreender que já passou, e já vai tarde.

Sobre a JMJ: bons frutos e traições

Com relação à notícia de que a organização da JMJ Rio2013 convidaria para fazer shows no evento cantores como a Ivete Sangalo e o Michel Teló (!), foi publicada ontem uma nota de esclarecimento do Comitê de Organização Local da Jornada dizendo simplesmente que tal participação «não está confirmada pela organização do evento». O desmentido tanto conforta quanto incomoda.

Conforta, porque ao menos esclarece que «as apresentações durante a JMJ Rio2013 são analisadas e devem ter o parecer final do Pontifício Conselho para os Leigos (PCL), que exerce a função de Comitê Organizador Central da JMJ e está ligado ao Vaticano». Incomoda, porque parece não achar que se deva rejeitar com veemência a insinuação de que o show de um artista conhecido por cantar “ai, se eu te pego!, ai, ai, se eu te pego!” pudesse encontrar lugar em um evento católico com a presença do Papa e de fiéis do mundo inteiro.

Sobre o financiamento desses supostos shows, o pe. Marcelo Tenório esclareceu recentemente que «o dinheiro do patrocínio [da JMJ] não será usado para pagar os artistas», cujo cachê ficará ao encargo das próprias gravadoras – «que poderão adquirir posteriormente o contrato para produzir o DVD do evento». Mas, sinceramente, os maiores problemas aqui não são de ordem financeira. A mera proposta parece um escárnio deliberado; alguém pode me explicar qual a relevância cultural do Michel Teló que justifique a sua inclusão – mesmo como possível candidato! – numa “agenda de atividades culturais” de um evento católico?

Eu tenho um particular apreço pela Jornada Mundial da Juventude, desde que fui a Madrid há dois anos e me impressionei muito positivamente com tudo o que vi por lá. Foi lá, por exemplo, que demos eloqüente testemunho público a favor do Deus Altíssimo contra a turba dos inimigos de Cristo que nos assaltava; foi lá a última vez em que vi presencialmente o querido Papa Bento XVI, e guardo carinhosa lembrança de quando, após literalmente um dia inteiro de espera nos arredores da Plaza de Cibeles, fomos recompensados com um olhar direto do Vigário de Cristo, que voltou a cabeça e sorriu para nós. Foi naqueles dias fantásticos que o Vargas Llosa – agnóstico – escreveu que “Deus parecia existir”. Enfim, estou convencido dos bons frutos que o evento vêm dando ao longo dos últimos anos, e acho que ele tem tudo para continuar assim.

Bastando para isso, é claro, que ele não seja sabotado. E não consigo deixar de ver essas tentativas de acabar com a credibilidade da Jornada (desde p.ex. a recente matéria tendenciosa do Globo Repórter até essa idéia de colocar o Michel Teló para cantar para os católicos) como um levante orquestrado das forças do Inferno contra um evento católico que está dando frutos para a glória de Deus e a salvação das almas. Não consigo me dissuadir da idéia de que a JMJ incomoda a muitos, sim, e é isso que motiva tantas tentativas de corrompê-la.

Mas o evento acontecerá. Com o apoio dos bons ou as traições dos maus, ele acontecerá; e para o seu êxito a nossa participação é fundamental. O campo de apostolado é vasto e promissor, e nós não temos o direito de abandoná-lo aos salteadores que não têm compromisso com Deus nem amor à Sua Igreja. À Organização da Jornada eu suplico que avalie – de joelhos diante do sacrário – se o que quer que ela esteja cogitando fazer vai de fato servir à glória de Deus ou se, ao contrário, é vaidade mundana insuflada por Satanás para macular um evento católico. E a todos os que aspiram à glória de Deus e à exaltação da Santa Igreja eu peço que dediquem um pouco do seu tempo à JMJ: com a sua participação ativa ou com as suas orações pelo bom êxito do evento. Que a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro sirva para levar almas a Deus, é o que suplico à Santíssima Virgem Aparecida que nos conceda, apesar dos nossos tantos pecados.

O Marco Feliciano não me representa, mas o Pedro Gontijo também não

A nota da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB «sobre a eleição da Presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados» é desconcertante. Eu sinceramente nem sei o que falar. Se por um lado é justo precaver-se contra a militância política do pastor que ofende e hostiliza católicos, por outro lado é fato inconteste que as propaladas «mobilizações da sociedade civil» contra o Dep. Marco Feliciano não têm por alvo outra coisa que não a visão tradicional de Matrimônio cuja defesa ostensiva tem marcado a atuação parlamentar do referido pastor.

Alguém já disse com muita propriedade que não importa quem esteja na presidência da CDHM: se for alguém com posições claras e inegociáveis a favor do Matrimônio tradicional será alvo da mesma truculência que hoje a turba anti-democrática devota ao pastor da Assembléia de Deus. O alvo dos manifestantes não é o pastor, e sim a repulsa ao “casamento gay” que ele personifica. O resto é só cortina de fumaça para disfarçar a intolerância dos que militam para conferir direitos ao vício sodomita.

É verdadeiramente lamentável que estejamos tão mal-representados na Câmara, mas o fato é que a causa pró-família aparentemente não conta, entre os parlamentares, com muitos deputados diferentes dos que formam a assim chamada “bancada evangélica”. E se a política é a arte do possível, considero que se juntar aos que atualmente se mobilizam contra o pastor é se associar perigosamente à causa gay. É no mínimo uma irresponsabilidade sem tamanhos! Afinal de contas, parece óbvio para qualquer um que possua percepção política que a única minoria “prejudicada” na CDHM sob o Marco Feliciano será a formada pelos homossexuais que querem subverter o ordenamento jurídico brasileiro com a introdução de privilégios descabidos para a própria “classe”. Os quilombolas não serão reescravizados, as mulheres não serão espancadas, os índios não serão chacinados, os nordestinos não serão expulsos do sul do país, nada; a única coisa que se pode realisticamente esperar da atuação do Feliciano na referida Comissão será o atravancamento da agenda gay, a única coisa que ele pode politicamente fazer é frear um pouco o galope alucinado a que o gayzismo avança no Brasil.

Criticar o pastor é chutar cachorro morto, e aparentemente nem a própria CBJP se pergunta os reais motivos escusos pelos quais de repente todo mundo começou a malhar o infeliz deputado! É óbvio que o Marco Feliciano não me representa; no entanto e infelizmente, ele representa (talvez por mera vacuidade política) a visão clássica de “Matrimônio” que eu e a maioria dos brasileiros esposamos. É justo questionar a seriedade do pastor sim, mas para ser honesto é preciso questionar a seriedade de todo o sistema de governo brasileiro e da própria noção de “democracia” tupiniquim, da qual o pastor não se afasta tanto a ponto de justificar o seu sacrifício com a simultânea preservação de todo o resto do edifício podre. E, principalmente, não é justo sacrificar o matrimônio tradicional pelo fato dele ser defendido por um larápio protestante. Esta é a situação que todo mundo deve ter bem nítida na consciência antes de apoiar “manifestações” contrárias ao Feliciano na CDHM.

Sobre a CBJP, eu não me lembro de ter lido nenhuma nota do órgão quando o Jean Wyllys foi eleito relator do Estatuto do Nascituro, por exemplo. Ao sr. Pedro Gontijo, portanto, eu recomendo menos seletividade na redação de notas oficiais; e, principalmente, que ele tome o devido cuidado para não vincular as suas posições pessoais à Conferência dos Bispos da qual o órgão que ele dirige faz parte. Afinal de contas, o Marco Feliciano não me representa, é fato, mas o Pedro Gontijo também não.

Casa de Amparo pró-vida interditada!

[Publico trecho de denúncia divulgada pelo Heitor de Paola, que esta manhã chegou a ser marcada como “suspeita” pelo Facebook. Sobre o mesmo assunto, a Doris Hipólito fala num vídeo aqui. A Casa de Amparo é um belíssimo e importantíssimo trabalho realizado no Rio de Janeiro para defender mulheres grávidas em situação de risco; faço coro ao pedido da Doris e peço que quem puder ajudá-la não deixe de entrar em contato.]

Fui convocada a comparecer a uma Audiência no dia 30/04/2013, às 10h30, ao Fórum da Promotoria de Violência Doméstica, sala 308.

Disse a Promotora: “Quanto à gestante Eloá, ela poderá ficar na Casa até o dia 30/04/2013. Procure a família ou algum parente dela, pois esta Casa não pode funcionar como Amparo. Vocês podem entregar enxovais, mas não podem abrigar mulheres, até que as exigências sejam cumpridas”.

Fomos expressamente proibidos de recebermos gestantes menores de idade, mesmo que tenham sido encaminhadas por órgãos públicos.

Não me foi apresentado qualquer pedido para notificação ou fiscalização tampouco me solicitaram permissão para fazer as fotos ou abrir os armários. Não me pediram para assinar qualquer documento. Todas as exigências foram feitas apenas verbalmente.

Peço que, por favor, me oriente quanto ao modo como devo proceder.

“Levai adiante o testemunho de que Jesus está vivo” – Papa Francisco

P.S.: A tradução oficial já se encontra disponível no site da Santa Sé.

[…]

Um outro elemento: nas profissões de Fé do Novo Testamento, como testemunhas da Ressurreição, são lembrados apenas os homens, os Apóstolos, mas não as mulheres. Isto porque, de acordo com a Lei Judaica daquele tempo, as mulheres e as crianças não podiam prestar um testemunho digno de fé, crível. Nos Evangelhos, ao contrário, as mulheres têm um papel primário, fundamental. Que possamos colher [aqui] um elemento a favor da historicidade da Ressurreição: se fosse uma invenção, no contexto daquele tempo, [quem a inventou] não a vincularia ao testemunho das mulheres. Ao contrário, os Evangelistas narram simplesmente aquilo que aconteceu: são as mulheres as primeiras testemunhas. Isto [nos] diz que Deus não elege segundo os critérios humanos: as primeiras testemunhas do nascimento de Jesus são os pastores, gente simples e humilde; as primeiras testemunhas da Ressurreição são as mulheres. E isto é belo. Isto é um pouco da missão das mulheres: das mães, das mulheres! Dar testemunho aos filhos, aos netos, que Jesus está vivo, é o Vivente, é ressuscitado. Mães e mulheres, avante com este testemunho! Para Deus importa o coração, quando estamos juntos a Ele, se somos como as crianças que confiam. Mas isto nos faz refletir também sobre como as mulheres, na Igreja e no caminho da Fé, tiveram e têm ainda hoje um papel particular na abertura das portas ao Senhor, no segui-Lo e no comunicar a Sua Face, porque o olhar da Fé tem sempre necessidade do olhar simples e profundo do amor. Os Apóstolos e discípulos tiveram mais dificuldade para acreditar. As mulheres não. Pedro corre ao Sepulcro, mas pára no Túmulo Vazio; Tomé precisa tocar com as suas mãos as feridas do Corpo de Jesus. Também no nosso caminho de Fé é importante saber e sentir que Deus nos ama, não ter medo de amá-Lo: a Fé se professa com a boca e com o coração, com a palavra e com o amor.

[…]

Deixemo-nos iluminar pela Ressurreição de Cristo, deixemo-nos transformar por Sua força, a fim de que também através de nós os sinais da morte no mundo dêem lugar aos sinais de vida. Vi que há tantos jovens nesta praça: ei-los! A vós eu digo: levai convosco esta certeza: o Senhor está vivo e caminha a nosso lado na vida. Esta é vossa missão! Levai convosco esta esperança. Ancorai-vos a esta esperança, [com] esta âncora que está no Céu: segurai firme esta corda, ficai ancorados e levai adiante a esperança. Vós, testemunhas de Jesus, levai adiante o testemunho de que Jesus está vivo e isto nos dará esperança, dará esperança a este mundo tão envelhecido pelas guerras, pelos males, pelo pecado. Avante, jovens!

Papa Francisco,
Catequese da Quarta-Feira, 03 de abril de 2013

Amostras de conservadorismo ateu: as domésticas e o pastor na CDHM

O mundo é engraçado. Poucas pessoas seriam tão improváveis de terem os seus textos recomendados aqui no Deus lo Vult! quanto o Janer Cristaldo, ateu ferrenho com não raros rasgos de anti-clericalismo, cuja (louvável) verve anti-comunista sempre se me afigurou mais como dissonância do mainstream do que construção política propositiva. Hoje, no entanto, trago aqui dois recentes textos de sua autoria: um sobre a assim chamada “PEC das Domésticas” e, outro, sobre o deputado Marco Feliciano.

Faço-o mais como provocação do que outra coisa, mais como uma espécie de ad hominem do que para encerrar o assunto: com eles, quero mostrar que os costumeiros chiliques de sacudir o fetiche do “Estado Laico” diante do interlocutor e de acusá-lo de ser um fundamentalista escroque movido por obscurantismos religiosos escusos diante de qualquer tomada de posição mais conservadora (ou mesmo diante do único pecado de destoar da ideologia da moda!) não têm fundamento. Seria engraçado ver os trolls de plantão acusarem o pobre ateu de ser um agente da Igreja maquinando contra os avanços democráticos conquistados pela laicidade do Estado! A julgar por algumas peças que leio aqui e acolá, no entanto, eu não considero de todo impossível que o façam. Certas pessoas não têm noção nenhuma do ridículo. Parecem achar que todos os fatos têm o dever moral de se calar diante de seus furados argumentos.

1. Domésticas e Frilas. «Sim, o Brasil entrou decididamente no Primeiro Mundo. Calcula-se em sete milhões o número de empregados domésticos no Brasil, sendo 97% mulheres. A profissão vivia em meio à informalidade, mas existia. Com a nova lei, tende a extinguir-se, a médio e longo prazo. O legislador agiu como o alfaiate que quer encontrar o terno ideal que sirva a todos e acaba não servindo em ninguém».

2. Em apoio ao pastor. «Feliciano foi eleito deputado com mais de 200 mil votos, e eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos por seus pares. Contra a vontade do dito povo e dos demais deputados, ergueu-se uma chusma de ativistas, que querem retirar o deputado da presidência da comissão. Querem afastar o deputado no grito. Só porque teria manifestado sua condenação aos homossexuais – que antes de ser dele é bíblica. […] [O Deputado Marco Feliciano] é instado a renunciar, por suas opiniões sobre homossexualismo. O pastou bate pé e diz que não renuncia. Espero que não. Porque no dia em que um deputado legitimamente eleito para uma comissão tiver de renunciar em função da gritaria de baderneiros, acabou a democracia no país».

Também é orgulho ser sozinho

Um dos conselhos mais importantes de São Paulo no Novo Testamento é aquele “quem julga estar de pé, cuide para que não caia” que encontramos na primeira carta aos Coríntios. Não obstante, e infelizmente, sempre se encontrou na história da Igreja quem fizesse pouco caso dessa tão fundamental exortação, o que já levou muitas almas à mais terrível ruína.

São Luís de Montfort lamenta n’algum lugar do Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem os tantos cedros do Líbano que já caíram miseravelmente por terra devido à imprudência de se julgarem auto-suficientes. Não é sem razão que a espiritualidade católica sempre insistiu na importância de combater não apenas os pecados externos, mas também (e principalmente) os internos, dentre os quais o orgulho ocupa um lugar de infeliz proeminência. Enganar-nos-íamos se pensássemos que este vício anda sempre lado-a-lado com a arrogância manifesta! O orgulho é primariamente interior. Pode perfeitamente reinar no coração de um homem e, ao mesmo tempo, passar despercebido de todos os que convivem com ele.

Decerto não era nisso que pensava a Florbela Espanca quando o escreveu, mas há muita sabedoria naquele seu verso que diz “[q]ue também é orgulho ser sozinha”. A idéia de que somos mais especiais de que os nossos irmãos é sedutora, mas é terrivelmente falsa. A concepção de que podemos fazer alguma coisa de grande por nós mesmo é enganadora – e quantos não caem neste canto-de-sereia! A vaidade de desbravarmos o nosso próprio caminho nesta vida, desprezando a caminhada dos que nos são próximos, já conduziu muitas almas para o abismo.

Aqui é preciso tomarmos cuidado para não cairmos em engano; sem dúvidas cada pessoa tem o direito e até mesmo o dever de escrever a própria história, e o insubstituível protagonismo de cada um na sua própria salvação é uma necessidade que não nos convém nunca esquecer. Não obstante, por meio de um desses aparentes paradoxos que perfazem a complexidade humana, a nossa dimensão individual é inseparável da comunitária e, se é verdade que temos o dever de trilhar o nosso próprio caminho, não é menos verdade que ele deve estar inserido na teia de relacionamentos que o Altíssimo teceu para a nossa existência.

De modo particular, a nossa salvação – individual – passa necessariamente por aquela comunidade de fiéis que Deus estabeleceu no mundo para conduzir os homens à Bem-Aventurança Eterna; passa, necessariamente, pela Igreja de Cristo. Rejeitar a companhia daquelas almas ao lado das quais a Divina Providência determinou que caminhássemos neste Vale de Lágrimas, longe de ser um sadio protagonismo próprio das grandes almas, é orgulho mesquinho que se revela um horrendo sinal de perdição. Querer construir por conta própria um caminho que conduza aos Céus é loucura e, na verdade, é somente a velha tentação original apresentada sob uma nova roupagem. O verdadeiro e legítimo protagonismo que precisamos assumir é o de conferir as marcas da nossa individualidade ao caminho que Nosso Senhor Jesus Cristo já abriu para nós, e não o de buscar por conta própria um outro caminho para o Céu. A Igreja não é uma estrada para o Paraíso ao lado de tantas outras, muito pelo contrário: é o terreno seguro somente dentro do qual é possível ao ser humano abrir o seu caminho para Deus. Podemos ensaiar os nossos próprios passos sim, e temos total liberdade para fazê-los da nossa própria maneira – mas somente dentro do palco que Deus preparou para que fosse possível haver dança. Esforcemo-nos, sim, para salvar a nossa alma, e o façamos com todas as particularidades que nos são próprias; mas somente dentro da Igreja, criada por Deus para que pudesse existir salvação no mundo.

Eu pensava nessas coisas quando li aquela triste notícia segundo a qual Magdi Cristiano Allam, ex-muçulmano batizado por Bento XVI, anunciou ter deixado a Igreja Católica. Eu me lembro do seu Batismo, em uma vigília de Páscoa, no coração do Vaticano, diante de todas as câmeras do mundo; lembro-me de como fiquei feliz com o ex-muçulmano, cujo batismo no Sábado de Aleluia parecia uma resposta a uma das Grandes Orações da véspera. Lembro-me de que – insensato! – pensei que, este, a Igreja não haveria de perder, pois se convertera já na idade adulta e após experimentar os falsos credos, e estas conversões soem ser mais profundas e definitivas.

Infeliz de mim, que estava rotundamente engando! O converso abandonou a Igreja. Por que o fez? Por conta daquilo que ele chamou de “relativismo religioso” e, particularmente, pela suposta legitimação do Islam como verdadeira religião por parte da Igreja Católica. Aqui as coisas começam a ficar mais claras. É óbvio que o Islamismo não é “verdadeira religião”, porque a única religião verdadeira é aquela fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e Homem Verdadeiro. É óbvio que a Igreja jamais “legitimou” o Islam e nem o poderia fazer jamais, porque isso seria trair a Si mesma. Então, do que é exatamente que Magdi Allam está reclamando?

Arriscamos uma resposta. O que o incomoda é a – na visão dele – leniência da Igreja em enfrentar o Islam, o que lhe tira a paz é perceber que a Igreja não combate o islamismo com o denodo que ele julga necessário. Em uma palavra, o seu problema, aparentemente, é um só: a sua conversão à Igreja em 2008 parece ter sido mais para lutar contra Maomé do que para fazer-se discípulo de Cristo. Mais por ódio ao Corão do que por amor a Cruz. E o ódio, embora pareça mais intenso, é também mais inconstante e menos duradouro: o simples ódio a alguma coisa é incapaz de garantir a regularidade devotada que o Cristianismo exige como caminho de vida.

E essa história triste, na verdade, nos deixa ao menos uma preciosa lição: ninguém deve se converter à Igreja por ser contra o islamismo ou o protestantismo, o relativismo ou o esquerdismo, o feminismo ou o homossexualismo, a degeneração moral ou a crise de valores, nada. Vou até mais além: ninguém deve nem mesmo converter-se à Igreja porque os Seus ensinamentos são corretos. Na verdade, deve-se ser católico por uma única e simples razão: para salvar a própria alma, uma vez que sozinho ninguém é capaz de a salvar. Outra espécie de amor à Igreja que não esteja radicado em Cristo, que não seja amor a Cristo por Aquilo que Ele é em Si mesmo, não é amor verdadeiro à Igreja. Semelhante “conversão” (que eu nem sei se se pode chamar assim) não é aquela casa do homem prudente edificada sobre a rocha da qual nos fala o Evangelho. Ao contrário, é frágil construção edificada sobre a areia, cujos alicerces cedo ou tarde irão abaixo por conta das intempéries da natureza – e grande será a ruína de quem fez ali a sua morada.

O Papa do Sofrimento, o Pontífice da Cruz

Como alguns amigos já fizeram a gentileza de lembrar, hoje, 02 de abril, completam-se oito anos da morte do Papa João Paulo II. Era um sábado em 2005. Após uma longa agonia, a morte do Vigário de Cristo era oficialmente informada ao mundo. Eu me lembro.

Especificamente do papado do agora Beato João Paulo II, eu não tenho lembranças muito claras. Eram as fases negras da minha adolescência indiferente e juventude transviada. Ele foi o meu Papa por mais de duas décadas da minha vida, mas só comecei a prestar atenção nele quando as suas forças já se esvaíam. O Vigário de Cristo já estava na última fase do seu pontificado quando eu despertei para a Fé. Mas há pelo menos dois momentos da luta de João Paulo II pela restauração litúrgica que eu recordo muito bem.

O primeiro, a Ecclesia de Eucharistia, da qual é bastante comum só citarem a primeira frase (como se esta fosse a única coisa da Encíclica que tivessem de fato lido…) mas que, na verdade, contém piedosíssimos ensinamentos – que, diria eu, guiaram grande parte do (chamemo-lo assim) movimento litúrgico posterior. Em particular, foi nesta encíclica que eu li (pela primeira vez na pena de um Papa moderno) que a Eucaristia «tem indelevelmente inscrito nela o evento da paixão e morte do Senhor» (EE 11). Foi dela que reaprendi que «o ministério dos sacerdotes que receberam o sacramento da Ordem manifesta que a Eucaristia, por eles celebrada, é um dom que supera radicalmente o poder da assembleia e, em todo o caso, é insubstituível para ligar validamente a consagração eucarística ao sacrifício da cruz e à Última Ceia» (EE 29); e que se «o cristão tem na consciência o peso dum pecado grave, então o itinerário da penitência através do sacramento da Reconciliação torna-se caminho obrigatório para se abeirar e participar plenamente do sacrifício eucarístico» (EE 37). Entre outras preciosidades da sã Teologia Sacramental tão esquecida ainda nos dias de hoje.

O segundo, a Redemptionis Sacramentum, de caráter eminentemente prático, que já citei diversas vezes aqui e da qual relembro agora apenas um excerto:

[T]odos os fiéis cristãos gozam do direito de celebrar uma liturgia verdadeira, especialmente a celebração da santa Missa, que seja tal como a Igreja tem querido e estabelecido, como está prescrito nos livros litúrgicos e nas outras leis e normas. Além disso, o povo católico tem direito a que se celebre por ele, de forma íntegra, o santo Sacrifício da Missa, conforme toda a essência do Magistério da Igreja. Finalmente, a comunidade católica tem direito a que de tal modo se realize para ela a celebração da Santíssima Eucaristia, que apareça verdadeiramente como sacramento de unidade, excluindo absolutamente todos os defeitos e gestos que possam manifestar divisões e facções na Igreja (Redemptionis Sacramentum, 12).

De todas as imagens de João Paulo II, há uma única da qual não me esqueci jamais. Uma revista (creio ter sido a Veja) estampou-a na capa no final de março de 2005. Achei-a sensacional, digna de um santo, de uma pessoa à qual era impossível não devotar uma poderosa admiração. Foi a sua última aparição pública. É a imagem abaixo:

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Alguns julgam-na feia, acham que ela expõe desnecessariamente a fraqueza de um homem já velho, pensam que é mais bonito colocar uma foto do Papa sorridente. Pode ser. Mas o fato é que, pra mim, João Paulo II não é um jovem sorridente (eu não peguei essa parte da vida dele, lembram-se?). Para mim, João Paulo II é um homem que, como Cristo, soube sofrer até o fim. Para mim, a dor do Papa manifestada diante do mundo nos seus últimos dias de vida valeu por todo o seu longo pontificado e, se ele tivesse feito apenas isso, já seria justo considerar-lhe um candidato para os altares.

Para mim, João Paulo II é o Papa do Sofrimento, o Pontífice da Cruz, e ele soube viver radicalmente o que eu descobri, depois, que ele já havia ensinado muito tempo antes, quase no mesmo instante em que eu vinha ao mundo, na Salvifici Doloris:

De facto, aquele que sofre em união com Cristo — assim como o Apóstolo Paulo suportava as suas «tribulações» em união com Cristo — não só haure de Cristo aquela força de que em precedência se falou, mas «completa» também com o seu sofrimento «aquilo que falta aos sofrimentos de Cristo». Neste contexto evangélico, é posta em relevo, de um modo especial, a verdade sobre o carácter criativo do sofrimento. O sofrimento de Cristo criou o bem da Redenção do mundo. Este bem é em si mesmo inexaurível e infinito. Ninguém lhe pode acrescentar coisa alguma. Ao mesmo tempo, porém, Cristo no mistério da Igreja, que é o seu Corpo, em certo sentido abriu o próprio sofrimento redentor a todo o sofrimento humano. Na medida em que o homem se torna participante nos sofrimentos de Cristo — em qualquer parte do mundo e em qualquer momento da história — tanto mais ele completa, a seu modo, aquele sofrimento, mediante o qual Cristo operou a Redenção do mundo [SD 24].

Para mim, este é João Paulo II. E no dia hoje, em que a sua Páscoa definitiva completa oito anos, renovo a ele a minha estima e a minha admiração. Obrigado, João Paulo II, por todo o bem realizado pela Igreja de Cristo! E que nós, seus herdeiros, não cessemos jamais de divulgar as coisas boas que foram realizadas debaixo do seu cajado. Que não deixemos esmorecer a sua luta. E, se o bom Deus permitir, que um dia nós o possamos encontrar jubilosos na Pátria Celeste.

Domingo de Páscoa

E antes que o sol rompesse as trevas da noite, o Sol da Justiça rompeu as Trevas da Morte. Antes que os raios do sol iluminassem o horizonte, o Sol Triunfal iluminava o Sepulcro agora e para sempre Vazio. Antes que nascesse um novo dia, o Amor renasceu: ressurgiu dos Infernos para a nossa salvação, venceu a Morte para a nossa glória, Aleluia!

Porque “esta é a Noite que lava todo crime”, como todas as igrejas do mundo cantaram ontem no Praeconium Paschale. Esta é a Noite pela qual somos redimidos, e a partir da qual podemos ter esperança: o último inimigo era a Morte, e ela acabou de ser vencida pelo Rei dos Reis e Senhor dos Senhores. O Cristo que nós depositamos Sexta-Feira no Sepulcro deixou-o hoje para trás após ressurgir glorioso; se quando o Verbo desceu dos Céus a terra todos os anjos cantaram em êxtase o Gloria in Excelsis Deo, quão jubiloso não deve ter sido o cântico angélico nesta noite em que Ele subiu dos Infernos à terra?

Ressuscitou! A força desta palavra pode nos parecer já desgastada após o transcurso de tantos séculos; mas ela conserva todo o seu vigor e, se atentarmos bem, a glória do dia de hoje é perfeitamente justificada pelo singelo acontecimento d’Aquele Domingo de há quase dois mil anos. Enterramos os nossos mortos todos os dias, mas de todos eles apenas Um voltou por conta própria ao nosso convívio. De todos os túmulos que já foram levantados na história da Humanidade, este é o único cuja história não termina com o seu lacramento. Todos os dias nós entregamos os nossos defuntos ao pó da terra, mas esta é a primeira vez que a terra nos devolve vivo e glorioso Alguém que, anteontem, depositávamos frio e sem vida no sepulcro. Cristo ressuscitou, aleluia! Este grito que fora reprimido ao longo de toda a Quaresma pode, enfim, rebentar jubiloso do fundo de nossas almas. Cristo Ressuscitado é a razão da nossa esperança e o motivo pelo qual não é vã a nossa Fé.

Mais do que uma simples passagem da escravidão para a liberdade ou – mesmo! – do pecado para o perdão, o dia de hoje marca a verdadeira e definitiva passagem da Morte à Vida, e isto de um modo que está para muito além do alcance de nossas próprias forças. Cristo ressuscitou para que um dia ressuscitássemos também com Ele, e somos desde já partícipes de Sua gloriosa Vitória sobre a morte. Com Ele, é a nossa humanidade que ressucita para não morrer nunca mais. Que um Deus não ficasse prisioneiro da morte era coisa de pouca monta; agora, que um Homem ressurgisse dos mortos e irrompesse glorioso do Hades deixando atrás de Si um Sepulcro Vazio, é coisa que em muito transcende a nossa compreensão e que verdadeiramente nos assombra. Sim, hoje verdadeiramente podemos cantar o Aleluia triunfante, porque um de nós venceu a Morte e, a despeito de tudo o que fizemos, está gloriosamente Vivo!

E Aquele que nós crucificamos voltou para nos perdoar. Mais ainda: voltou Vivo para que pudéssemos viver para sempre com Ele. Ressurgiu dos mortos por amor de nós: a força do Amor é tão grande que a pedra do Sepulcro não a foi capaz de conter, nós não a podíamos mover mas Ele a removeu sozinho por nós. De fato, não cabemos em nós de tanto contentamento, agraciados que fomos com o supremo dom da Vida Eterna após o supremo crime da Crucificação do Filho de Deus: se é verdade que muito ama aquele a quem muito foi perdoado, quão transformadora não será em nossa vida a Ressurreição do Senhor se tivermos verdadeira consciência de que O matamos na Cruz do Calvário na última Sexta-Feira! Esta dignidade à qual fomos elevados com a Ressurreição de Cristo ainda hoje nos desconcerta. Ainda hoje e para sempre, aquele Túmulo Vazio nos maravilha e enche de temor.

Sábado Santo

É imenso o vazio do dia de hoje; incomensurável a tristeza dessas horas que Deus passou no Sepulcro frio. Sim, aprendemos no Credo que Ele desceu à Mansão dos Mortos, ouvimos no Catecismo que Ele foi aos Infernos para libertar os cativos, e muitos pregadores já nos ensinaram que, hoje, o Bom Pastor foi à busca de nossos Primeiros Pais, foi atrás das primeiras Ovelhas a se desgarrarem do aprisco do Senhor, foi encontrar-Se com Adão e Eva dos quais herdamos a mancha do Pecado Original. No entanto, nós não vemos nada disso. Temos diante dos olhos apenas o Sepulcro lacrado, em cujo interior depositamos há não muito tempo – ontem ainda! – o Santíssimo Corpo de Jesus, dilacerado por nós, assassinado por nossas próprias mãos.

Hoje o mundo inteiro está mais vazio porque o Rei do Mundo até ontem estava aqui, e agora não está mais. Até há bem pouco tempo Ele comia e bebia conosco, ensinava-nos com autoridade, curava os doentes e expulsava os demônios; hoje estamos privados da sua Alegria, que diríamos para sempre lacrada no Túmulo de um rico. Num túmulo anônimo, preparado às pressas – nem sequer a um funeral decente Ele teve direito! Praticamente desceu direto da Cruz ao Sepulcro. Expulsamo-Lo do nosso mundo sem Lhe dar o direito de Se despedir. E talvez agora, só agora que atingimos o nosso intento, estejamos notando o quão pouco realizados nos encontramos. Expulsamos o Filho de Deus para que tivéssemos paz, e tudo o que conseguimos foi esse Vazio enlouquecedor. Tudo fala d’Ele, pede por Ele, clama por Ele – mas Ele não está aqui.

Ela ficou conosco, é verdade. Ela ficou conosco e, n’Ela, nós conseguimos não nos desesperar. Ela nos consola porque, por incrível que pareça, tudo n’Ela fala de Cristo mais do que qualquer outra coisa que exista no mundo; Ele está mais vividamente presente n’Ela do que nas nossas melhores lembranças de quando – ainda ontem! – O ouvíamos falar. Foi nos braços d’Ela que, ontem, depositamos o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo; mas o luto d’Ela é sereno e, por incrível que pareça, consegue nos deixar em paz. O Seu olhar é mais de misericórdia do que de acusação; mais de compaixão do que de sofrimento vazio. No rosto d’Ela nós O vemos ainda!

E de repente parece que a história não vai terminar assim. De repente, parece que a serenidade d’Ela é um pouco mais do que resignação: parece que se trata de uma esperança que nós ainda não conhecemos. De repente, olhando para Ela, parece que tudo vai terminar bem. De repente, nós olhamos para o Sepulcro e ele parece diferente; como se se parecesse mais com um início do que com um fim. De repente, olhamos para o Túmulo e começamos a nos perguntar se não estamos prestes a presenciar um acontecimento extraordinário. Deitamos no colo da Virgem e nos perguntamos como o nosso mundo seria de agora em diante se, por um milagre, aquele Túmulo estivesse vazio.