Aliás, por que não comenta a diferença [nas regras do jejum e da abstinência] do Código de Direito Canônico de 1917 com o atual?
Façamos melhor! Comparemos o Código Pio-Beneditino com a praxis ortodoxa e com a cristã primitiva. Que tal?
Para o Código de 1917, de acordo com esta excelente sistematização:
- faz-se abstinência toda sexta-feira do ano;
- faz-se jejum todos os dias da Quaresma;
- faz-se jejum e abstinência em algumas datas específicas («na Quarta feira de Cinzas, em toda Sexta-feira e Sábado da Quaresma e das Quatro Têmporas, nas vigílias de Pentecostes, da Assunção da Mãe de Deus ao Céu, de Todos os Santos e da Natividade do Senhor»).
Para os ortodoxos:
- faz-se «jejum normal às quartas e sextas-feiras» do ano todo (com algumas exceções: p.ex., «entre o Domingo do Fariseu e do Publicano e o do Filho Pródigo»);
- seguem-se complicadas regras de abstinência para a Quaresma (v.g. na primeira semana, além do jejum, é permitido «comer apenas vegetais cozidos com água e sal, e também coisas como frutas, nozes, pão e mel»; na Quinta-Feira Santa, «uma refeição é permitida com vinho e óleo»; no Sábado Santo, «ao fiel que permanecer na igreja para a leitura dos Atos dos Apóstolos, para sustentar suas forças é dado um pouco de pão e frutas secas, com um copo de vinho»; etc.).
Para os primitivos cristãos:
- fazia-se jejum toda semana, na quarta-feira e na sexta-feira;
- o jejum «consistia na abstenção de todo o alimento e de toda a bebida até a hora nona, isto é, até o meio da tarde»;
- além destes, os «jejuns que precediam a Páscoa (…) foram fixados em quarenta dias, em memória do jejum que Cristo fez no deserto».
Que conclusões podemos tirar dessas informações? Que os cismáticos ortodoxos são os que mais se aproximam da Igreja fundada por Nosso Senhor? Que o Código Pio-Beneditino era de um relaxamento modernista criminoso em comparação com as regras do jejum praticadas em outros tempos e lugares? Que a Igreja vem passando, ao longo dos séculos, por um gradual processo de degeneração no que concerne à pureza das práticas penitenciais que os Apóstolos legaram aos primeiros cristãos?
Nada disso. A única coisa que é legítimo concluir desse ligeiro excurso histórico-geográfico é que a Igreja de Cristo, naquilo que não é de direito divino, sempre teve o poder de moldar a Sua disciplina às diversidades dos tempos e lugares, aos usos e costumes legítimos, tendo em vista o que julga mais propício a conduzir as almas a Deus – este, sim, que é o fim mediato de toda a penitência cristã.
Em si mesmo, não adianta passar um terço do ano a pão e água, não adianta comer apenas nozes e lentilhas em determinados dias do ano, não adianta passar cinco dias com somente duas refeições. Não adianta, porque «o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e gozo no Espírito Santo» (Rm 14, 17). E atenção, que com isso não se está negando a importância da penitência na vida cristã; mas se está, sim, atacando a mentalidade que parece querer reduzir a ascese ao número anual de dias de abstinência obrigatória de carne no calendário oficial da Igreja.
Se o Código de Direito Canônico de 1983 for modernista e ilegítimo meramente porque prescreve uma disciplina mais relaxada do que a do Código de 1917, então o Pio-Beneditino também o é porque dispõe regras de jejum e abstinência muito mais brandas do que as mantidas – até hoje! – pelos cismáticos orientais. E os cismáticos orientais, ao complicar o jejum seguido pelos cristãos dos primeiros séculos (ao mesmo tempo, aliás, ao que parece, em que o abrandava em muitos dos dias da Quaresma), também são réus da corrupção da pureza dos costumes antigos e, por conseguinte, cabe-lhes a mesma censura. A seguir tal lógica, então, nunca houve fidelidade entre as autoridades eclesiásticas de nenhuma parte do mundo, e a história da Igreja é um enorme suceder de progressivas conspurcações da mensagem evangélica. Semelhante raciocínio, por óbvio, não tem o menor cabimento, é aliás ímpio e blasfemo, e ofende aos ouvidos pios que ele seja sequer cogitado.
Contra essa mentalidade neo-farisaica que julga encontrar a graça divina no mero cumprimento material de normas disciplinares, levantam-se, vigorosas, as palavras de S. Paulo: non est regnum Dei esca et potus! O valor das penitências não se mede pela magnitude daquilo que é sacrificado, mas pelo espírito com o qual se o sacrifica. Afinal de contas, a razão última de toda penitência é o conformar-se a Cristo, é o aproximar-se de Deus. Para quem ainda não se apercebeu dessa verdade elementar, infelizmente, nem todos os jejuns e abstinências do mundo haverão de servir.