– Essa tua barba vai cair. Mas depois nasce de novo.
Assim me disse a dra. Rosa, com um sorriso, naquela – parece já tão distante! – noite em que prescreveu minha quimioterapia. A primeira parte da “profecia” já se cumpriu à risca: minha barba e meu cabelo caem aos tufos, enquanto durmo, ao banho, quando lhes passo a mão. Fico feliz de voltar a ser imberbe: o simbolismo do rejuvenescimento é óbvio demais para não ser percebido…
O cabelo que nasce depois, dizem, é um cabelo todo novo; pode inclusive nascer diferente do que era antes, se estava já branco volta a nascer preto, se era liso pode nascer encaracolado, etc. Eu, no entanto, de calvície já avançada antes dos trinta, fico já animado com a mera possibilidade de que ao final do tratamento ele nasça simpliciter. Quem sabe um cabelo novo não vem, anos depois, estabelecer-se no lugar que lhe cabe, sobre a careca antiga? E não consigo deixar de conter um sorriso: quem sabe, ainda, eu não ganho de volta os cachos de anjo que eu tinha quando criança, quando o futuro não cabia num lance de vista e se tinha a vida toda pela frente…?
Amanhã (segunda-feira, 20 de janeiro) é minha segunda sessão de QT. Este primeiro ciclo guardou as suas intercorrências para o final; só na última semana a minha imunidade baixou, os meus cabelos começaram a cair, meus pulmões voltaram a encher.
A minha contagem de leucócitos caiu para 3.310 somente na última segunda-feira. Antes se manteve em queda, mas dentro dos valores de referência. Sinal amarelo: usar máscaras com mais freqüência, reduzir o número de visitas, essas coisas. Mas não tive nada. Trata-se de um número num exame de sangue, que se eu não o tivesse visto nenhum outro sintoma perceptível me avisaria da minha imunodeficiência.
Já quanto aos meus pulmões, estes, sim, eu percebi. A minha respiração cada vez mais curta não deixava margens para dúvidas: eles estavam enchendo de novo. Terror. A quimioterapia, disseram-me, deveria secar os linfonodos do mediastino cuja compressão era responsável pelo acúmulo de líquido linfático na pleura que tanto me incomodava. Não estava funcionando. Eu estava disposto a simplesmente esperar que funcionasse; no entanto, uma angustiante falta de ar no domingo passado (após o “esforço” de caminhar em terreno plano os pouco mais de cinqüenta metros que separam a minha casa da paróquia, que fica no mesmo quarteirão) me convenceram a ir ao hospital.
Lá o raio-x foi implacável: «seios costofrênicos com derrame pleural». Seja lá o que isso for. Mas olho a chapa, e entendo perfeitamente: a ameaçadora mancha branca sobe, dos dois lados, deixando-me menos da metade de cada um dos pulmões. O que significa que eles só se expandem até metade da caixa torácica, quando muito. Discutem entre si pneumologista, hematologista, cirurgião torácico: é melhor drenar antes da quimio, concluem.
Faço a punção, de novo. Dessa vez, dos dois lados. 1,9 l do lado direito, 1,3 l do esquerdo: mais de três litros ao todo, sem contar o (muito!) que ainda foi deixado nas bases. Respiro aliviado, literalmente. Os resultados dos exames confirmam que se trata do mesmíssimo caso da vez anterior. É normal, ainda é cedo: no segundo ciclo da QT é que os efeitos devem começar a ser perceptíveis. Deus, tomara que sim. A barba já começou a cair. A contagem de leucócitos já diminuiu. Já está na hora dos linfonodos começarem a atrofiar.
Implantei um port-a-cath na última sexta-feira. Fica do lado direito do meu peito, logo abaixo da clavícula, sob a pele, e é menos horrendo do que imaginara. Fica um “calombo”, como se fosse um pequeno osso fora do lugar, nada muito grotesco. A micro-cirurgia foi simples e não tive com ela maiores problemas; só as dores normais do pós-operatório, de quando passa a anestesia. Duraram pouco. Ontem já não doía quase nada, hoje já praticamente não dói. Mantenho ainda os curativos até amanhã, e os pontos ficam pelo menos até a próxima sexta-feira. Depois, só o “calombo” e a cicatriz. Ao menos preservo as veias periféricas do braço; ao menos, como todo mundo me disse, as sessões de quimioterapia serão agora mais fáceis e mais seguras.
Do último post para cá eu recebi um sem-número de recomendações sobre como cuidar da minha saúde. Agradeço de coração por todas elas. Li-as todas. Pesquisei sobre todas e, se todas não adotei, foi porque não considero sensato fazer mudanças radicais no meu estilo de vida agora, justamente no meio de um câncer e de um tratamento quimioterápico, sem nem ao menos consultar uma nutricionista. Tenho procurado melhorar a minha alimentação, sem contudo fazer extravagâncias que não são do meu feitio. Hoje como com mais freqüência (lancho entre as refeições), como mais frutas, bebo mais água. Prefiro mel natural ao açúcar (do qual nunca fui muito fã, a propósito), e introduzi gengibre e um probiótico (Kefir) na minha alimentação diária. Estou me dando bem com isso: meu apetite funciona, meu intestino, idem, minhas funções excretoras parecem estar em ordem.
Não tenho ainda autorização e nem condições para fazer exercícios, o que tem me incomodado um pouco. Por enquanto, apenas a fisioterapia respiratória com o Respiron e o esforço de andar da sala ao quarto algumas vezes ao dia, só para fugir do temível “repouso absoluto” que provoca tromboses em quem faz viagens longas de avião. Tenho sobrevivido bem. Como diz a clássica passagem das Escrituras, até aqui tem me ajudado o Senhor. E sei que Ele não há de me faltar.
Amanhã é a minha segunda sessão de quimioterapia. A partir de amanhã, as coisas vão melhorar mais: é mais um passo, another brick in the wall, uma hora a menos da noite escura que não pode durar para sempre. Uma hora a menos…! O arrebol já vem. Há aquela história dos três pedreiros trabalhando juntos, o primeiro dos quais disse estar cimentando um tijolo, o segundo, levantando uma parede e, o terceiro, construindo uma catedral. Eu poderia dizer que amanhã estarei tomando Rituximab ou me tratando de um linfoma. Mas, agora, vou preferir dizer que amanhã estarei fazendo crescer de novo um pouco dos caracóis dos meus cabelos infantis.