Já fazia bastante tempo que eu não escrevia neste espaço; a internet mudou nos últimos anos — bem debaixo dos nossos olhos! — e o interesse das pessoas por textos compridos, publicados em sites particulares, deu amplamente lugar ao conteúdo consumido no feed do Facebook ou, mais ainda!, nos stories do Instagram. É um fenômeno que manipula com extrema maestria o nosso senso de prioridades: a palavra escrita na areia da praia muito em breve será apagada pelas ondas do mar, enquanto a palavra gravada na pedra estará sempre disponível para nossa consulta futura. Posto o problema nestes termos abstratos, é natural que se dê preferência à escrita arenosa, efêmera e volátil. No entanto, quando temos legiões de escribas lutando freneticamente contra o avanço das marés — não no sentido de prolongar no tempo a escrita, mas no de não deixar, nem por um segundo sequer, um palmo de areia lisa após a passagem das ondas –, quando os homens se entregam com todas as forças ao éter das redes sociais elevado ao paroxismo, aí é natural que as pedras sejam deixadas de lado e, recobertas de musgos, somente a um observador mais atento — ou a um visitante dos tempos passados — revelem as mensagens que nelas costumavam ser gravadas.
Este sítio estava assim, mais como um monumento às batalhas do passado que como palco das lutas do presente. No entanto, hoje sou forçado pelas circunstâncias da vida a retornar a estas paragens, a soprar a poeira destas páginas e a empunhar a pena mais uma vez, para me desincumbir de uma tarefa que eu desejara não cumprir. Hoje sou constrangido a escrever um pungente necrológio, e aos obituários não fica bem a volatilidade das redes sociais: cai-lhes melhor a palavra grafada em pedra, sem luzes, sem cores, sem espalhafatos, mas duradoura. Gostaríamos que os nossos entes queridos não se fossem! Incapazes, no entanto, de fazer frente à imperiosidade da morte, esculpimos laboriosamente os seus nomes no mármore dos cemitérios — a fim de que ao menos alguma coisa deles permaneça conosco, no nosso mundo, para a qual nos possamos voltar de quando em vez, quando nos cansarmos do vaivém das ondas do mar.
Na manhã deste 30 de julho, na véspera do seu sexagésimo aniversário, aprouve ao Senhor chamar a Si o Seu filho Wagner Marchiori — esposo, pai e avô dedicado, amigo fiel. Os mais antigos do Deus lo Vult! certamente hão de se lembrar dele, se não pelo nome de Batismo, ao menos pelo pseudônimo de Lampedusa com o qual ele costumava abrilhantar a área de comentários deste site. Há anos o meu amigo lutava contra uma grave doença neurológica — um tipo de esclerose amiotrófica — que lhe roubava paulatinamente o movimento do corpo, preservando-lhe no entanto intacta a mente. Não sou capaz de imaginar o sofrimento pelo qual ele passou — perdendo pouco a pouco o controle dos músculos, logo a força dos braços, o movimento das pernas, a sensibilidade dos dedos da mão. No entanto, com quanto garbo ele soube entornar o cálice até o fim, até o fundo, sem derramar uma gota sequer, sem murmurar! O corpo padecia, mas a alma se agigantava. Se é verdade que há heroísmo na vida ordinária dos cristãos, há uma espécie de super-heroísmo em quem atravessa dificuldades extremas sem esmorecer, sem titubear.
Conheci Wagner na época do Orkut, na pré-história da internet. Dividimos, junto com outros amigos, a moderação da melhor comunidade “Católicos” em língua portuguesa daquela rede social. Daquela época nos ficou uma seleta lista de e-mails, de nome sigiloso, por meio da qual nos correspondemos — por vezes, todos os dias — ao longo dos anos. Também as listas de discussão tiveram o seu ocaso; fomos para os grupos de WhatsApp. E assim, ano após ano, em meio a plataformas de comunicação à distância que surgiam e caíam no esquecimento, nós continuamos amigos próximos. É por isso que, hoje, mesmo tendo sido recebida pelo celular, a notícia do seu falecimento me abate como se tivesse sido um familiar que nos deixasse.
Quanto tempo, e tão depressa! Em um feriado prolongado de sete de setembro, em 2009, Wagner convidou-nos, a mim e a uns amigos comuns, para passarmos uns dias em uma casa de férias que ele possuía no interior de São Paulo. Já lá se vão mais de dez anos; mas quanta coisa mudou de lá para cá! Desejamos repetir a experiência daqueles dias outras vezes; chegamos até mesmo a comentar, mais de uma vez, que deveríamos achar uma oportunidade para marcar um grande encontro, onde cada um pudesse levar a sua família, para lembrarmos os velhos tempos. Éramos jovens e tolos. Toda uma vida passou por debaixo dos nossos olhos, e o desejado encontro nunca veio. Resta-nos agora esperar que as lágrimas vertidas pelos que ainda aqui ficamos possam comover o coração de Deus, a fim de que Ele, olhando para a amizade cultivada entre os Seus filhos aqui nesta terra, digne-Se preparar um dia, no Céu, os encontros que aqui não se puderam realizar.
Em 2018 voltei a São Paulo depois de muitos anos; fui com a esposa para um congresso de Direito. Wagner nos convidou para jantar, e graças a Deus conseguimos acertar a nossa agenda para tornar possível o encontro! Foi uma noite bastante agradável, com bom vinho e boa comida e boa conversa até tarde. Surpreendeu-me, na ocasião, como Wagner estava debilitado: já em uma cadeira de rodas motorizada, só movia as mãos e a parte superior do tronco. Mas falava com tanta vivacidade, e conversava conosco com tanto interesse, e sorria com tanta jovialidade que um transeunte ocasional que porventura escutasse por detrás da porta certamente diria ser ele o menos enfermo dos que ali se encontravam.
Despedimo-nos nos desejando ver mais uma vez em breve, e os anos correram de novo. Chegou 2020 e o Coronavírus atirou para o futuro distante qualquer possibilidade de viagens a lazer. Aquele jantar foi a última vez em que estive com Wagner, e sou grato a Deus por me ter proporcionado esta oportunidade de me despedir do meu amigo sem que o soubéssemos. Ou pelo menos sem que eu o soubesse; Wagner provavelmente já tinha então uma consciência mais nítida da fragilidade da sua condição. Mas ele não permitiu que nenhuma sombra de tristeza tisnasse a alegria daquele último reencontro.
Jamais o permitiu. Daquele grupo de católicos que se conheceu no antigo Orkut (e alguns de nós antes mesmo disso, no mIRC), tenho a alegria de dizer que uma parte considerável de nós manteve e mantém até hoje um contato frequente, quase diário. E Wagner, cujo corpo se deteriorava dia a dia, jamais deixou que a sua doença monopolizasse as nossas conversas: era de uma discrição heroica. E jamais deixou de conversar conosco, e de se importar, e de agir com toda a generosidade e grandeza de alma que lhe eram próprias. Na última mensagem que nos mandou, ontem mesmo, manifestava condolências a outro amigo, cujo sogro falecera recentemente. E hoje, no início da tarde, a próxima mensagem quem nos manda é a esposa, de posse do celular dele, dizendo que ele falecera pela manhã…
É o primeiro de nós que se vai, e isso provoca em mim uma tristeza profunda. Que a Virgem Santíssima o receba, meu amigo! Que você possa um dia desfrutar, na presença de Deus, do corpo são que lhe foi tão dolorosamente negado nos seus últimos anos nesta terra. E que a alegria dos anjos e santos com a sua chegada possa suplantar infinitamente a tristeza que a sua partida nos causa aqui. Descanse em paz.
Uma Ave-Maria por Wagner, para que seja recebido depressa no Paraíso, e para o consolo dos familiares e amigos, é o que peço aos que chegaram até aqui.