A rapidez e a veemência com as quais se espalhou o boato (surgido há algumas semanas) de que o Papa teria dito que é “melhor ser ateu do que católico hipócrita” revela algo de muito perturbador a respeito do nosso senso moral. Aparentemente as pessoas consideram mais importante a coerência entre as idéias que alguém professa e o estilo de vida que ele leva do que o valor inerente àquelas idéias. É como se o criminoso hipócrita fosse de algum modo pior do que o criminoso altivo e convencido da justeza dos seus crimes — possivelmente porque, sendo ambos criminosos, a este último ao menos não se acrescenta o defeito da hipocrisia.
Tal concepção, conquanto pareça estar subjacente ao senso comum contemporâneo, não faz o menor sentido. Primeiro porque o valor das idéias repousa na sua coerência interna, na sua verdade intrínseca e não na capacidade de o seu propalador viver de acordo com elas. Afinal de contas a mesma idéia pode ser apresentada de maneiras diversas e por pessoas diferentes, e é perfeitamente possível que algumas dessas pessoas vivam-na com mais sinceridade do que outras. Isso só nos permite fazer (e no máximo!) um juízo de valor sobre estas pessoas, sobre o grau de sua convicção a respeito daquilo que falam; jamais no entanto sobre o conteúdo da sua mensagem.
Isso quer dizer, por exemplo, que o valor da mensagem cristã (para ficar naquilo que é talvez o maior pretexto dos ímpios para não darem crédito ao Cristianismo) não pode ser buscado nos eventuais defeitos de caráter dos pregadores do Evangelho. Os mensageiros podem eventualmente ser muito hipócritas e muito cretinos, sem que isso no entanto macule minimamente o valor da mensagem que eles portam. Se alguém me diz, por exemplo, que é errado mentir, este conselho será tão mais valioso quanto maiores forem os proveitos que eu possa obter pondo-o em prática (na obtenção da confiança dos outros, na paz de consciência e na amizade com Deus, por exemplo). O fato de alguém seguir ou deixar de seguir um conselho que dá é totalmente irrelevante para se saber se se trata de um bom ou mau conselho.
E isso sempre foi muito óbvio para todas as pessoas. Sempre se soube que a hipocrisia era um defeito da pessoa que era hipócrita, e não da idéia que ela comunicava. A rigor, o que existem são pessoas hipócritas e não idéias hipócritas. Aquela história de “faça o que eu digo, não faça o que eu faço” nos diz que a pessoa que assim nos interpela está errada — não que o que ela nos diz esteja errado. Da eventual incoerência do mensageiro não nos é permitido inferir a incoerência da mensagem. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Mas existe ainda um segundo motivo pelo qual esta confusão entre a (aparente) falta de sinceridade do pregador e a inveracidade da doutrina pregada não faz sentido. É que os seres humanos são essencialmente limitados e, portanto, o que parece hipocrisia pode ser simplesmente uma etapa provisória de um processo de crescimento pessoal.
Afinal de contas, somente duas pessoas são capazes de uma coerência radical e absoluta entre aquilo em que acreditam e o que fazem: os santos perfeitos e os completamente degenerados. Para todos os outros seres humanos o que existe é uma espécie de ambivalência moral, onde às vezes agimos em desarmonia com as nossas convicções e onde o domínio de nossa vontade (ainda) não atingiu o mesmo patamar da iluminação de nossa inteligência. Afinal — desgraçados de nós! –, podemos perfeitamente saber o que é correto sem no entanto conseguir agir corretamente em todos os instantes de nossas vidas.
Mais até: essa ambivalência, além de perfeitamente normal, é necessária a qualquer processo de crescimento. Afinal de contas, para que alguém possa melhorar é preciso que primeiramente saiba em quê precisa ser melhor: o conhecimento dos próprios defeitos e o reconhecimento do valor das virtudes que lhe faltam geralmente precede a obtenção dessas virtudes — que só se dá ao longo do tempo e via de regra ao dispêndio de muito sangue, suor e lágrimas. Ou seja: antes de fazer o certo (e até mesmo para que se possa fazer o certo, ou ao menos fazê-lo melhor do que já se faz) as pessoas precisam saber o que é certo mesmo que (ainda) não o vivam.
Tal é porventura hipocrisia, fingimento, insinceridade? Ao observador externo pode ser que assim se apresente, uma vez que os dilemas morais interiores só são do conhecimento daquele que os padece. Isso, no entanto, não deveria importar, por conta do que já se disse: primeiro porque as idéias têm valor a despeito dos hipócritas que as defendam, e segundo porque aquilo que parece hipocrisia em outrem pode ser apenas uma sua limitação sincera.
De volta à frase sobre o ateu e o católico, é preciso dizer que ela, do jeito que foi divulgada, é completamente falsa e irracional. Só existe uma maneira de encontrar lógica nela: se entendermos que é melhor (talvez se devesse até dizer é menos ruim) ser ateu sincero, por ignorância, que católico hipócrita por malícia. Quando menos porque se forem ambos para o Inferno o católico malicioso vai sofrer maiores penas que o ateu ignorante — aliás o Inferno é via de regra mais severo para os que possuem a Fé Verdadeira mesmo. O que o católico hipócrita tem de errado é a sua hipocrisia e não o seu catolicismo; do mesmo modo, o que talvez se possa louvar no ateu sincero é a sua sinceridade, jamais a sua descrença.
Os elogios que esta “declaração do Papa” recebeu nos dizem uma coisa muito séria: que as pessoas parecem achar melhor ter idéias erradas e medíocres, desde que se viva em conformidade com elas, do que as ter corretas e exigentes e não ser capaz de se portar integralmente à sua altura. Na inevitável ambivalência humana entre o que se é e o que se deve ser, entre o real e o ideal, as pessoas parecem mais dispostas a diminuir as exigências morais que a sair da própria zona de conforto e mudar de vida; mais propensas a envilecer os ideais que a converter a própria realidade. Com uma tomada de posição assim medíocre e mesquinha não é de espantar que vivamos imersos em males que tanto ultrapassam as nossas forças. Não ter coragem de lutar para se fazer melhor e, por conta disso, optar deliberadamente por ser um degenerado é uma das coisas mais ignóbeis de que a pusilanimidade humana é capaz.