Ateus: reencenando velhos erros

Eu acho engraçado como ainda existem estudiosos com a audácia de prever que o ateísmo tomará o lugar das religiões. Parece que eles não aprenderam nada! Durante o Iluminismo francês, Voltaire já previra o fim da Igreja Católica para muito em breve, acusando-A de atrapalhar os avanços científicos (mesmo que grande parte dos cientistas da época fossem jesuítas) – como se vê, nada mudou. Faz quase trezentos anos! E o nosso século, que se gaba de ser progressista e avançado, ainda se mantém terrivelmente preso aos preconceitos iluministas. Enquanto o mundo gira e a Cruz permanece inabalável, enquanto os inimigos de Deus passam e a Igreja de Cristo permanece, parece não haver nada de novo sob o sol. Os modismos (inclusive os intelectuais) passam, e a palavra de Deus permanece. Os homens já deveriam ter aprendido. Mas somos uma gente de cerviz dura.

Écrasez l’Infâme! Esmagai a Infame! Embora a perseguição exista desde a época de Cristo, creio ter sido Voltaire o primeiro a formular o grito de guerra neste imperativo satânico. Contudo, o mais impressionante é que Voltaire perdeu e, mesmo assim, possui ainda hoje uma multidão de asseclas seguindo-lhe os passos que a História já mostrou não levarem a lugar algum – senão a um precipício. Por quê?

O fenômeno parece apresentar-se em todos os lugares – recentemente eu lia sobre um pastor protestante ateu… E, por mais que seja necessário relativizar os dados do estudo (pois quem se diz “sem religião” não quer, nem de longe, dizer-se “ateu”), o fato é que as coisas me parecem estar encaminhadas nesta direção sim. Afinal, o individualismo é já o primeiro passo para o ateísmo (como aliás mostra o caso do pastor ateu). Ter uma confiança absoluta em si é já ter perdido o senso das proporções, é já ter direcionado o seu ato de fé para quem dele não é digno. Daqui para o ateísmo explícito, é só dar mais alguns passos.

Trata-se, no fundo, de uma antiquíssima tentação, de um pecado provavelmente tão velho quanto o próprio mundo – quiçá ainda mais. Trata-se de uma paráfrase (apresentando-se sempre em formas novas mas, no fundo, com a mesma essência podre e carcomida pelos séculos de sempre) do Non Serviam! que Lúcifer lançou à face do Deus Onipotente. O ateísmo não é senão um orgulho doentio, uma confiança desmesurada em si próprio.

Recentemente alguém me falava de um filósofo que postulara a inexistência de Deus “argumentando” que seria inconcebível existir alguma coisa maior do que ele [= o autor do “argumento”] próprio. É bastante óbvio que isto não é um argumento, mas é uma desculpa psicológica que ao orgulhoso sem dúvidas deve parecer bastante razoável: “não, eu não acredito que exista alguém maior do que mim”. Para mim, é exatamente este o pensamento que a imensíssima maioria dos ateus faz – mesmo que seja apenas tacitamente, no fundo do coração, repetindo-o freqüentemente para amortecer a própria consciência.

Afinal, o que é a fé inabalável na Ciência senão uma confiança absoluta no poderio humano e, portanto, em si próprio – parte da espécie humana? Existe porventura alguém que exija confiança cega na inteligência humana e que não esteja, no próprio ato de proferir este dogma, pensando em sua própria inteligência? Colocar o progresso (feito por homens e direcionado a homens) como fim último da vida humana não é incluir-se entre os artífices disto que se compreende como sendo a razão da existência? Por mais voltas que demos, não dá para escapar da inevitável conclusão: “eu sou a coisa mais importante do mundo, e não pode existir no mundo nada mais importante do que eu”.

Assim, muito ao invés de ser um ato de “inteligência”, de “liberdade” ou de qualquer outro nome pomposo que lhe queiramos dar, o ateísmo é no fundo um ato de orgulho. Se o nosso mundo está ficando mais ateu, isto significa simplesmente que estamos criando gerações de orgulhosos pretensamente auto-suficientes, que julgam ter o rei na barriga e entendem que o modelo ptolomaico está errado porque o universo inteiro, afinal de contas, gravita em torno de seus próprios umbigos. Portanto, isto é antes motivo de sérias preocupações do que de júbilo. Como na esmagadora maioria das coisas que o engenho humano é capaz de produzir por si só, este “mundo ateu” é pobre, feio, mesquinho, triste, degradante.

“Comecei a achar o ateísmo aborrecido”

Várias pessoas já leram (e escreveram sobre) a interessantíssima entrevista que o Pondé concedeu recentemente à VEJA. Eu também quero dar os meus dois tostões sobre o assunto. Desnecessário dizer que vale a leitura na íntegra.

É bem verdade que – como disse o frei Rojão – “[u]m filósofo que conclui a existência de Deus é realmente um filósofo, não estes garotinhos mimados de classe média que leram Dawkins, que nem é cientista, nem filósofo”; e, nos tempos de indigência intelectual nos quais vivemos, isto é digno de ser mencionado e celebrado. Ainda mais quando o filósofo em questão – o Luiz Felipe Pondé – não é um cardeal católico, nem um piedoso padre católico, nem um renomado teólogo católico. Não é nem sequer um católico. Que, aliás – para horror dos livres-pensadores modernos -, foi ateu por muito tempo, até começar “a achar o ateísmo aborrecido”.

“Aborrecido”! É talvez dos mais elegantes adjetivos que eu vi serem usados recentemente para se referir – com propriedade – ao ateísmo. A miséria intelectual auto-elevada – ridicularmente – ao patamar de única posição socialmente aceitável, provocando os maçantes jantares aos quais o Pondé se refere com tanto bom humor. Como se fossem uma decrépita cerimônia ritual onde os velhos fiéis de uma religião sem fé bajulam-se mutuamente, em um mecanismo de auto-afirmação que é a antítese perfeita dos cultos religiosos onde os fiéis confortam-se uns aos outros. Nem mesmo nisso eles são originais. O diabo só faz mesmo tocar cover das canções do Céu.

E o ateísmo é aborrecido, porque auto-limitado. Porque pobre, raso, estéril. Incapaz de satisfazer aos anseios humanos mais profundos – insistindo em ficar às margens e negar a existência do oceano que se descortina diante dele. Um bufão que se julga rei, emitindo ordens disparatadas em sua estultície e rasgando as vestes, espantado, ao perceber serem bem poucos os que o levam minimamente a sério para além das mesas dos “jantares inteligentes”.

Chesterton vs. Blatchford

Os que acreditam em milagres os aceitam, certa ou erradamente, porque possuem evidência para eles. O que não acreditam em milagres os negam, certa ou erradamente, porque eles têm uma doutrina contra eles. [G. K. Chesterton]

Não deixem de assistir a este vídeo! É a dramatização de um debate entre Chesterton (cujo aniversário de morte foi comemorado esta semana) e Blatchford, sobre a irracionalidade do ateísmo. Brilhante o insigne inglês, mais uma vez!

A (in)coerência dos que acreditam na Igreja


A charge acima é atéia e o quinto quadrinho induz simplesmente a uma inverdade (afinal, ninguém defende que se devam “proteger” os padres pedófilos, e sim que não se pode sair entregando ao braço secular e à execração pública sacerdotes do Deus Altíssimo à primeira insinuação de comportamento imoral que se lhes faça – mas exigir tal distinção a inimigos da Igreja é um pouco demais); no entanto, ela retrata tão bem uma incoerência dos tempos modernos que merece ser citada.

Por incrível e contraditório que pareça (e até mesmo os ateus são capazes de o perceber), há “católicos” que se sentem no direito de discordar de tudo o que a Igreja ensina e, mesmo assim, continuarem se afirmando católicos. Em uma tentativa pueril de enganarem aos outros ou a si próprios, não sei; mas o fato manifesto é que a incongruência salta aos olhos. Ora, pode-se dizer de tais pessoas que “acreditam na Igreja”?

Acreditar na Igreja é acreditar que Ela foi fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo como guia infalível e certo da Doutrina e da Moral e que, portanto, escutar a voz d’Ela é escutar a voz de Cristo – e isto de tal modo que, igualmente, negar-Lhe assentimento é negar assentimento a Nosso Senhor. Quem não acredita no que a Igreja prega passa ipso facto a não acreditar na Igreja e, portanto, apropria-se indevidamente de um título – o de “católico” – que não mais lhe compete.

Acreditar na Igreja é acreditar que Ela é – nas palavras do Apóstolo – a “Coluna e o Sustentáculo da Verdade” (1Tm 3, 15), e isto de tal maneira que não é possível falar em “Verdade” sem que esta esteja sustentada pela Igreja fundada por Nosso Senhor. Acreditar em alguma coisa diferente disso pode ser acreditar em qualquer coisa, menos “na Igreja”.

Acreditar na Igreja é acreditar que Ela perdurará até a consumação dos séculos, e que as portas do Inferno jamais prevalecerão sobre Ela. Em particular, isto significa que a Igreja fundada por Nosso Senhor não irá jamais ensinar o erro em matéria de Fé e de Moral, de modo que não faz nenhum sentido uma pessoa, ao mesmo tempo, dizer que acredita na Igreja mas não acredita naquilo que Ela ensina.

Tudo isto é bastante óbvio; no entanto, com quanta frequência nós encontramos “católicos” comportando-se exatamente como a personagem da tirinha acima! Não é verdade que estas pessoas acreditem na Igreja Católica a despeito de não acreditarem no que Ela fala; na verdade tais pessoas, com esta atitude, demonstram que não acreditam nem na Igreja e nem nos princípios mais elementares da coerência.

Fé na esfera pública: remédio ao ateísmo das massas

Eu li bem en passant uma notícia de ZENIT hoje, onde o Papa diz que os católicos devem participar da vida pública. O conselho não é estranho a quem tem noções mínimas de catolicismo; mas, nos dias de hoje, talvez valha a pena falar um pouco sobre o assunto.

Hoje eu também vi em algum lugar (acho que numa chamada da “Folha de São Paulo” – não importa) a expressão “ateísmo de massas” empregada por (acho) um bispo. E o que existe de estranho no fenômeno é que, salvo grave engano da minha parte, nunca houve na história um “ateísmo de massas”. Como já tivemos a oportunidade de dizer outras vezes, o fenômeno religioso é inerente ao ser humano e, por isso, todos os povos e culturas sempre tiveram necessidade de externar, em alguma forma de culto, a sua admiração pelo transcendente e o seu reconhecimento a um ser superior. Se for verdade que, hoje em dia, as massas são atéias… cabe investigar um pouco quais poderiam ser as causas de tão inusitado fenômeno.

Há uma outra expressão que penso ser correlata a esta. Foi empregada por João Paulo II ao se referir à Europa. Trata-se de uma expressão extremamente dura mas nem por isso (infelizmente) menos verdadeira. Estou falando da expressão “apostasia silenciosa”.

Um “apóstata” é alguém que renega a Fé Católica uma vez que a tenha recebido. Como a religião em geral (e a Igreja em particular) é e sempre foi pública, visível, a apostasia sempre foi, também, pública. O fenômeno referido por João Paulo II consiste, assim, em uma maneira particularmente maliciosa de defecção da Fé: Ela é tratada com um desprezo tão grande que não merece sequer ser publicamente negada. Dá-se tão pouca importância a Deus que se passa, simplesmente, a viver como se Ele não existisse. Não se trata, assim, de uma apostasia consciente e deliberada, de uma negação na esfera da inteligência e da vontade: estamos falando de uma “apostasia prática”, daquela “tentativa – diz o Bem-Aventurado João Paulo II – de fazer prevalecer uma antropologia sem Deus e sem Cristo”.

Ora, estamos falando aqui precisamente do confinamento da religião à esfera privada, subjetiva, como se ela fosse algo que pouca ou nenhuma contribuição tem a dar à sociedade ou – pior ainda – que só pode ter nesta influências deletérias e nefastas. E isto – o que é mais espantoso – praticado por católicos! Somente com uma profunda perda de consciência da própria identidade religiosa é possível a um católico defender semelhante subjetivismo em matéria religiosa que é, ele próprio, um suicídio para a religião. Afinal, o que é subjetivo tem pouco ou nenhum valor para fora do sujeito. E, se a religião é subjetiva, não faz sentido sair pelo mundo inteiro anunciando o Evangelho a toda criatura, como disse Nosso Senhor.

O Evangelho não tem meramente valor subjetivo – ao contrário, as Escrituras nos ensinam que ele serve a toda criatura. E o que serve a todos não pode ser uma questão meramente privada, mas sim definitavemente pública. Aquilo pelo que toda criatura anseia não pode ser nunca algo de natureza particular, senão universal. Quem quer que acredite na autenticidade dos Evangelhos (e todos os católicos estão obrigados a fazê-lo) precisa acreditar neste caráter público, universal, da Sã Doutrina da Igreja. Não fazê-lo é trair a Igreja; é ser, pelo menos já em gérmen, apóstata.

E a apostasia silenciosa sem dúvidas começou com a perda da identidade católica. Com o confinamento da Fé à esfera particular, subjetiva. Com a (estúpida) idéia de se procurar entender o ser humano desvinculado de Deus e de Cristo e – pior ainda! – de construir sociedades em cima de tão frágeis alicerces. O resultado da apostasia silenciosa é, portanto, o “ateísmo de massas” do qual se falava acima.

Porque o homem tem necessidade de Deus e a Igreja de Cristo é a resposta aos anseios últimos de todos os homens; e se o sal perde o sabor, para nada mais há de servir senão para ser lançado fora e calcado aos pés dos homens. Se a religião católica é uma questão meramente privada, subjetiva, então ela não pode responder aos anseios universais de todos os homens. Se ela não é a resposta a estes anseios, então ela para nada serve e deve ser lançada fora. E, se é falsa a Igreja – a Igreja que é a Igreja, a Igreja que estabeleceu os alicerces morais sobre os quais foi construída a virtual totalidade do mundo que conhecemos, a Igreja que foi fundada por um Homem que morreu e ressuscitou, a Igreja que existe há dois mil anos enfrentando inimigos de dentro e de fora sem mudar uma vírgula do ensinamento do qual Ela afirma ser Guardiã, a Igreja da miríade de santos e de milagres no decurso dos séculos – se é falsa a Igreja, repetimos, então são falsas todas as religiões, pois nenhuma há que se Lhe equipare ainda que minimamente. Eis a gênese do ateísmo das massas! E eis porque, desde então, o catolicismo é calcado aos pés dos homens ímpios: se ele não servir à vida pública, então ele não serve para nada. Como o sal sem sabor.

O Santo Padre sabe perfeitamente disso, e é por isso que ele insiste na importância de que os católicos vivam a sua Fé publicamente. E, portanto, cabe a todos nós fazermos o que nos pede o Vigário de Cristo. Não podemos aceitar o confinamento da Fé à esfera privada, pois isto é o mesmo que esvaziar a Fé. Importa que testemunhemos publicamente a Cristo, que vivamos como cristãos, que lutemos contra os que zombam de Deus e da Sua Santa Igreja. Importa – como pediu o Papa – viver publicamente a Fé. Este é o único remédio à apostasia silenciosa e ao conseqüente ateísmo das massas. E somente assim estaremos correspondendo fielmente à nossa vocação cristã.

A Causa das causas e o Bule Voador

Todo efeito tem uma causa; este é um princípio metafísico tão elementar que chega às raias da auto-evidência, sendo inclusive constatado pelas ciências experimentais. Lavoisier (assassinado pela Revolução Francesa, a propósito) já chegou a postular que, na natureza, nada se perde e nem nada se cria: tudo se transforma.

Qualquer análise rudimentar dos encadeamentos de causa-e-efeito levam a um corolário também bastante óbvio: suprimindo-se a causa, suprime-se o efeito. Ora, se é o fogão aceso a causa do aquecimento da água na chaleira, apagando-se o fogão chega-se inevitavelmente à conclusão de que a água não há de ferver sozinha. Qualquer camponês analfabeto da Idade Média entende perfeitamente este mecanismo óbvio da realidade ao seu redor, e qualquer dona-de-casa, por simplória que porventura seja, sabe muito bem que se o gás do fogão acabar-se ela não conseguirá ferver a água do café.

Se todo efeito tem uma causa (e não se encontra uma única exceção a este princípio metafísico na realidade empírica ao nosso redor), segue-se inevitalmente que é mister haver uma Causa das Causas, é preciso haver Algo que tenha causado o mundo em que vivemos e que nós percebemos pelos nossos sentidos. A esta conclusão já chegaram os filósofos da Antiguidade e, com o advento do Cristianismo, a sentença tomou a sua forma lapidar que é utilizada até os dias de hoje: a esta Causa das Causas, a este Primeiro Princípio, nós chamamos de Deus.

“Ah”, pode objetar algum ateu moderno, “mas se Deus criou todas as coisas, quem foi que criou Deus? Se tudo tem que ter um Criador, porque a mesma lógica não se aplica a Deus?”. A esta pergunta (profundamente pueril) pode-se responder da seguinte simples forma: se Deus foi criado por Algo, então Deus não é Deus e este Algo que criou Deus é que é Deus. E, se este Algo foi criado por algum “Outro Algo”, então o Algo primeiro não é Deus e Deus é, na verdade, o “Outro Algo”. E assim sucessivamente: o princípio permanece integralmente válido independente de quantos “Algos” sejam colocados no encadeamento das causas. No entanto, devido ao princípio conhecido por “navalha de Ockham”, não faz sentido multiplicar desnecessariamente o número de explicações para os fenômenos. Basta que haja uma Causa das Causas para explicar a existência do mundo ao nosso redor.

“E por que precisa existir esta Causa das Causas?”, pode insistir o nosso ateu. A resposta é óbvia: se não houvesse uma Causa Primeira, então não haveria efeitos (uma vez que, supressas as causas, suprimem-se os efeitos) e, portanto, não existiria nada. Ora, mas é evidente que as coisas existem: portanto, a única explicação para a existência das coisas é que elas tenham sido causadas por Algo que, por Sua vez, é Não-Causado. Há, portanto, necessariamente uma Causa Incausada. A Ela, nós chamamos de Deus.

“Beleza. Há um Primeiro Princípio. Mas dizer que este Primeiro Princípio é um Deus Pessoal já é extrapolar as conclusões da filosofia” – ainda assim pode insistir o nosso teimoso ateu. Também a isto é fácil responder: é evidente que os efeitos são “da mesma natureza” das suas causas. Assim, o fogo que aquece a panela tem que ser ele próprio quente, a tinta que tinge o portão de vermelho tem que ser ela própria vermelha, et cetera. Também isto é bastante óbvio. Em linguagem filosófica mais específica, nós diríamos que a passagem da potência para o ato dá-se necessariamente por meio de algo que já possui, em ato, a qualidade transmitida: o fogo que aquece precisa ser quente, o gelo que resfria precisa ser frio, a tinta que pinta de vermelho precisa ser vermelha, etc. E a Causa das Causas é também – exatamente por ser Causa das Causas – Ato Puro, i.e., um Ser que possui em ato todas as características.

Ora, há inteligência no mundo: a despeito de alguns questionamentos que nós infelizmente somos obrigados a ouvir, a existência da inteligência (que não pode ser confundida com “todas as pessoas são inteligentes”) é outro dado da realidade facilmente perceptível. E, se há inteligência, também esta precisa de uma Causa, de um Princípio. Na formulação feita por Gilson é possível dizer: como é possível explicar a existência da inteligência no mundo de outro maneira que não através de um Princípio que já inclua, n’Ele próprio, a Inteligência? Ora, não é possível pintar uma casa de vermelho sem tinta vermelha, e não é possível ferver a água do chá sem fogo ou alguma outra coisa que aqueça a água. Se a casa é vermelha, a conclusão de que existe tinta vermelha é imperativa e, se o chá é-nos servido às três da tarde, a conclusão de que existe fogo (ou microondas, ou seja lá o quê) para aquecer a água do chá é totalmente indiscutível. Ora, se existe inteligência no mundo, a conclusão de que o Primeiro Princípio é Inteligente, de que o Ato Puro é também Inteligência, são absolutamente incontestáveis [p.s.: na expressão bíblica, nós dizemos que in principio erat Verbum…]. A Causa das Causas, que nós chamamos de Deus, existe e é inteligente: e isto é a definição mesma de “Deus Pessoal”.

Ora, todo este edifício filosófico foi construído pela humanidade ao longo de séculos para responder a questionamentos que, sem ele, não têm absolutamente nenhuma resposta! Após tudo isso, chega a ser frustrante ver alguém comparar Deus com um bule de chá voador. Ora, pra quê serve o Bule Voador? Ele porventura responde às questões sobre o ser das coisas que encontramos ao nosso redor? Ele traz alguma contribuição para as cadeias de causa-efeito cuja existência (e necessidade) nós conhecemos pela razão? Ele responde a algumas das perguntas relevantes da filosofia como, p.ex., por que existe algo ao invés de nada? Ele tem alguma relevância filosófica, psicológica, sociológica ou antropológica? A resposta é não, não, não e não: o Bule Voador nem de longe tem a mais remota relação com a Causa das causas e, portanto, trata-se de um estratagema pueril para se furtar às perguntas que conduzem o homem a Deus. E ainda vêm os ateus a dizerem que a religião impede as perguntas! Como se pode facilmente constatar, é exatamente o contrário: é a ideologia atéia que, na tentativa de afastar os homens do Primeiro Princípio, busca impedi-los de pensarem sobre as questões que somente no Deus Altíssimo podem encontrar respostas.

[p.s.: na expressão bíblica, nós dizemos que in principio erat Verbum…]

A cidade nascida junto à Cruz e a cidade imposta pelos materialistas

Embora longo e de leitura relativamente difícil para quem não é da área, este texto de Roger Scruton vale muito a leitura. Sou um completo ignorante em arquitetura urbana e confesso, envergonhado, não conhecer nenhum dos nomes citados no artigo; não obstante, o articulista tem o mérito de se fazer entender mesmo para quem (como eu) é leigo no assunto.

Porque as coisas que ele fala fazem bastante sentido e todos nós as percebemos, mesmo que não saibamos organizá-las sistematicamente do jeito que ele o faz. Em brevíssimas palavras, o autor fala da arquitetura como uma modalidade de arte intrinsecamente coletiva e que, como tal, não pode estar sujeita aos caprichos grandiloqüentes – e amiúde insanos – daquilo que ele chama de “arquitetos-superstars”, sempre preocupados em elaborar construções novas e totalmente destoantes da paisagem urbana que foi tradicional e organicamente moldada para se adaptar ao estilo de vida de uma população. E os exemplos que ele traz são bastante eloqüentes, como p.ex.:

Glazer é um sociólogo que dedicou à arquitetura e aos seus efeitos sociais uma atenção considerável ao longo dos anos; o seu livro reúne ensaios bem escritos que relatam a sua desilusão crescente com os estilos e arquétipos modernistas. Como muitos socialistas bem-intencionados (coisa que ele era na época), Glazer em princípio foi um entusiasta da mentalidade planificadora que fincou raízes na Grã-Bretanha do pós-guerra e que procurou varrer os cortiços superlotados e insalubres, substituindo-os por torres higiênicas cercadas de espaços onde a população pudesse desfrutar de luz e ar. Essa receita para melhorar a situação da classe trabalhadora das cidades foi mais influenciada por Gropius e a Bauhaus do que por Le Corbusier. Coincidia com o programa socialista, segundo o qual a habitação era responsabilidade do Estado, todos os arquitetos da época tendiam a endossá-la, e parecia oferecer vantagens insuperáveis em comparação com a receita antiga – que em todo o caso era antes um subproduto da liberdade do que uma escolha consciente -, segundo a qual as casas deviam ficar uma ao lado da outra ao longo da mesma rua.

Contudo, Glazer chama a atenção para o fato de a principal oposição ao projeto modernista de habitação não ter vindo dos críticos, mas das próprias pessoas a que esses projetos eram destinados. Para a surpresa dos planejadores, a população resistiu à tentativa de demolir as suas ruas e de eliminar as doenças familiares e domesticadas que grassavam nos seus quintais atulhados. As pessoas não gostavam nada de viver dependuradas no ar, nem de olhar por uma janela e não ver coisa alguma; queriam a vida da rua, queriam sentir a vida ao seu redor e ao mesmo tempo saber que podiam trancá-la do lado de fora ou deixá-la entrar conforme quisessem. Queriam ter os vizinhos ao lado, não acima ou abaixo. E a maioria delas queria uma casa própria, não uma que fosse propriedade da prefeitura e que depois não pudesse ser transmitida  como herança para os filhos. A tentativa de “bauhausizar” a classe operária foi, portanto, rejeitada pelos próprios operários, que nesse caso como em tantos outros se recusaram a fazer o que os socialistas lhes ordenavam até serem coagidos a fazê-lo pelo Estado.

Se é verdade que a arte é veículo transmissor de idéias e de valores, isto se aplica também à arquitetura urbana e a forma como as cidades são organizadas diz muito sobre os seus habitantes. Este texto surgiu em uma lista após alguém perguntar sobre o porquê das cidades medievais possuírem ruas estreitas. A melhor resposta, a meu ver, foi a que incluiu na sua explicação a importância das ruas estreitas de um ponto de vista militar, para facilitar a organização das tropas em defesa da população contra um exército invasor estrangeiro – e, por outro lago, avenidas largas são úteis quando o inimigo a ser combatido é a própria população da cidade, facilitando a movimentação rápida de tropas no interior da malha urbana (o que é exatamente o que se deseja evitar no caso de tropas invasoras)…

Curiosidades históricas à parte, isso me fez pensar na organização tradicional de cidades do interior de Pernambuco (que imagino não serem muito diferentes Brasil afora), onde o centro da cidade é a igreja com uma praça defronte, ponto a partir do qual a cidade cresce organicamente conforme for aumentando o número dos seus habitantes. Mas a pracinha e a igrejinha estão sempre lá, no centro, no início histórico da cidadezinha, como que dando testemunho permanente dos hábitos daquela população: a cidade nasceu junto à Cruz, e é em torno à casa de Deus que ela cresce e se desenvolve.

Contrastando com tudo isso está a arquitetura moderna: com seus prédios horrorosos e seus monumentos sem significado, com o planejamento tomando o lugar do crescimento orgânico, as formas das construções obedecendo aos devaneios de “arquitetos superstars” ao invés de refletirem o estilo de vida da população, e a nudez fria e impessoal dos prédios – em nome da “praticidade” e da “utilidade” – ocupando o lugar da variedade de adornos e ornamentos nas fachadas das casas, os mais espontâneos e diversos possíveis porque enfeitavam construções que, antes de prédios precisando ser úteis, eram lares que precisavam ser vivos. A arquitetura moderna é degradante, é desumana, é atéia. Reflete as tentativas modernas de impôr à paisagem urbana uma ideologia materialista, tentando fazer com que as pessoas, imersas neste ambiente que tesmunha anti-valores de modo tão claro, possam assim assimilar com mais facilidade as ideologias anti-naturais nele refletidas.

Mas só o que se consegue com isso é fazer com que os habitantes sintam-se desconfortáveis em suas próprias cidades, e passem a odiá-las e a desejar fugir delas. A arquitetura moderna é muito bizarra para ser aceita assim, sem resistências, por seres humanos criados para Deus e em cujos corações o Todo-Poderoso gravou de maneira indelével um anseio infinito por Ele próprio. E, forçando a vida em um ambiente desagradável (como acontece o tempo inteiro nas nossas cidades totalmente dominadas por esta “arte” moderna nefanda), não é possível obter senão prejuízos para a própria sociedade. Porque uma vez que – como diz Roger Scruton – “a cidade é o centro da vida social e criativa, (…) se fugimos dela acabamos por refugiar-nos numa solidão estéril”. E, portanto, é extremamente importante “o retorno à ordem natural da arquitetura, que permitirá que voltemos a sentir-nos em casa em um ambiente urbano”.

Ateísmo: religião que deu errado

Na esteira do texto sobre a parede vazia atéia aqui publicado recentemente, um dos comentadores do blog trouxe um texto sobre os supostos respeito e consideração que os ateus têm para com as religiões. Como foge demasiadamente das questões sobre a imposição da simbologia atéia nos órgãos públicos (texto original), passo a comentá-lo aqui. Em vermelho e itálico, o texto comentado; em fonte normal, os meus comentários.

Um erro comum aos ateus, todavia, é demonizar completamente as religiões.

Este erro é mais do que “comum”, é virtualmente onipresente, mas vamos lá…

Não; a religião não é boa nem é má.

Começou mal…

A religião é indubitavelmente boa, pelo menos considerando o fim ao qual ela se presta, qual seja, o de religar o homem à divindade. Naturalmente, os que rezam conforme o credo ateu não são capazes de perceber este aspecto incontestavelmente positivo do fenômeno religioso, mas isso pouco importa. As coisas não mudam o seu ser para agradar às visões parciais e distorcidas de um subconjunto (e ainda ínfimo, diga-se de passagem) da humanidade.

Ela assume a característica que damos a ela: podemos usar a religião como desculpa para atos vis, ou como influência para grandes bondades.

Isto aqui são outros quinhentos.

Mutatis mutandis, podemos dizer que a linguagem é uma característica humana indubitavelmente boa, porque ela se presta a tornar possível a comunicação entre os homens, o intercâmbio de idéias, a expressão do pensamento, et cetera. E, naturalmente, alguém pode usar a linguagem para inventar mentiras, para caluniar, para ofender. Isto é uma distorção da linguagem, uma traição àquilo que é o seu fim precípuo.

Seria uma profunda insanidade dizer que, por conta disso, a linguagem “não é boa nem é má”! A linguagem, em si, é boa, ponto. O que não a impede de ser mal utilizada.

Já a religião (pelo menos a esmagadora maioria das religiões) não prescreve jamais “atos vis”, e sim somente atos virtuosos. Alguém “usar a religião como desculpa para atos vis” só é possível (na esmagadora maioria dos casos, ao menos) por meio da desobediência aos próprios preceitos da religião. Portanto, não faz o menor sentido fazer um juízo de valor negativo (ou “neutro”) das religiões por causa de coisas que são feitas à revelia delas.

A religião não é uma aberração; como estaria, então, presente em todas as culturas humanas?

Perfeitamente.

O que muitos ateus radicais precisam entender é que a religião nada mais foi do que o primeiro fazer-científico da humanidade. Como os egípcios, por exemplo, poderiam explicar os fenômenos ao seu redor? Como os primeiros humanos explicariam o fato de serem tão mais desenvolvidos que os demais animais? Como poderíamos entender, nesse tempo, a natureza da “consciência”?

Já isto aqui é um perfeito absurdo.

A religião nunca teve como objetivo (somente) a explicação de eventos empíricos [e, nas vezes em que ela fez isso, foi apenas de modo acidental]. A religião (considerada em si) é a resposta do ser humano à afirmação da sua consciência de que existe uma divindade, existe um transcendente, com o qual ele [o ser humano] tem o desejo de se relacionar. É este o problema que a religião “se propõe a resolver”. O problema das leis da matéria e dos fenômenos naturais é um outro problema.

Tanto que as duas coisas (religião e fazer científico) sempre coexistiram, não apenas “nos primórdios da humanidade” (o homem primitivo que tinha provavelmente religiões anímicas é o mesmo que inventou a roda e aprendeu a fazer fogo) como em todos os tempos, povos e culturas.

O conhecimento primitivo impulsionou a criação de mitos e crenças, tanto que as maiores religiões do planeta se originaram em eras de pouco conhecimento científico.

Bobagem completa. O Cristianismo converteu o mundo romano e o helênico, perto dos quais a virtual totalidade dos atuais inimigos da religião são de uma pobreza intelectual sofrível.

Outrossim, e apenas como ad hominem, é interessante: muitos gostam de exaltar o avanço científico de civilizações antigas, como por exemplo dos Maias, ou dos egípcios que construíram pirâmides sem que até hoje saibamos como, et cetera, et cetera. No entanto, todos esses povos foram sempre profundamente religiosos…

O problema da religião é que ela se infiltrou demais na cultura humana; somos seres naturalmente “religiosos”, mas deveríamos ir abandonando a religião conforme conhecemos a elegância do funcionamento das coisas, desde a física à biologia.

Outro completo absurdo. Se somos seres “naturalmente religiosos”, é óbvio que a cultura humana deve estar impregnada de religião. Estranho seria se fosse diferente. É como (de novo, mutatis mutandis) dizer que somos seres naturalmente comunicativos e lamentar, depois, que a linguagem tenha penetrado demais na cultura humana…

E a segunda parte do período padece, de novo, do mesmo erro de base ao qual já fiz referência acima: o objetivo da religião não é, e nem nunca foi, explicar “o funcionamento das coisas”.

A humanidade, porém, levou a religião muito “à sério”:

O que é uma coisa perfeitamente natural, considerando que a religião é inerente ao ser humano.

religião e ciência se tornaram coisas antagônicas, quando na verdade a religião nada mais é do que a primeira expressão científica do ser humano. É uma ciência rude, primitiva, mas é um tipo de ciência (os próprios religiosos fundamentam suas crenças em argumentos e desenvolvem teorias teológicas).

Isto aqui é o samba do crioulo doido.

Em primeiro lugar, religião e ciência só “se tornaram antagônicas” na cabeça de alguns religiosos fundamentalistas (e incluo aqui os adeptos da religiosidade atéia, como Dawkins, p.ex.). Ciência e Religião são perfeitamente compatíveis, como sempre o foram, e como qualquer pesquisa elementar sobre o assunto é capaz de mostrar.

Em segundo lugar, como já foi dito, é simplesmente falso que a religião tenha sido “a primeira expressão científica do ser humano”. Isto está errado, o objetivo da religião é outro, sempre foi. Enquanto os ateus continuarem tratando a religião sob este prisma desfocado, não terão a menor idéia do inimigo que se propõem a combater.

Em terceiro lugar, “teorias teológicas” não têm nada a ver com ciência, e não se faz a menor idéia de como isto veio parar aqui.

Mas é uma ciência que sobrevive apenas pela metafísica (uma forma de filosofia inteiramente subjetiva, baseada em especulações e pensamentos, não em observação analítica) e pelo fundamentalismo (a antítese moderna da razão).

Mais absurdos…

A religião não sobrevive “apenas” (!) pela metafísica, mas também pela filosofia em seu sentido mais amplo (da qual a metafísica é uma parte) e pela História. Estou, propositalmente, desconsiderando os fatores internos ao fenômeno religioso que o fazem sobreviver.

Depois, a (boa) filosofia em geral (e a metafísica em particular) é e sempre foi baseada na observação da realidade (tendo sido apenas a filosofia moderna quem rompeu com este princípio). “Metafísica”, aliás, foi um termo cunhado precisamente por Aristóteles e cujo estudo foi posto, em seus escritos, logo em seguida aos tomos que tratavam da física – e tendo esta por base, acrescente-se.

Ainda: não existe nenhum problema em tratar as coisas por meio de “especulações”. A menos, é claro, que se negue a capacidade da razão humana de atingir a verdade, pressuposto que no entanto faria toda a ciência experimental moderna cair por terra.

Ademais, a acusação de “fundamentalismo” é totamente gratuita.

A religião é o apêndice da ciência: foi útil para a humanidade em seus primeiros “passos”, mas se tornou, naturalmente, ultrapassada e inútil.

De novo: a religião tem objetivos diferentes da ciência. Enquanto esta se preocupa com os fenômenos naturais, aquela se preocupa com o transcendente e a sua relação com os homens. São dois campos de ação totalmente diferentes.

E a relação dos homens com Deus não se tornou, de modo algum, “ultrapassada e inútil”. Os homens continuam precisando se relacionar com Deus, hoje como nos primórdios da humanidade.

A recusa sistemática em tratar a religião da maneira como ela é – aliás, da maneira como ela se apresenta! – é típica do fundamentalismo irracional dos paladinos da nova religião atéia.

Ou, como diz Hitchens, “a religião é uma ciência que deu errado”.

Parafraseando (e corrigindo) Hitchens: o ateísmo, este sim, é uma religião que deu muito errado!

A atéia parede vazia

Os símbolos religiosos (nas repartições públicas inclusive) refletem a cultura de uma sociedade. E, queiram ou não queiram os ateus, não existe uma sociedade atéia natural. Nem nunca existiu, nem nunca é possível que exista, porque o elemento religioso é parte integrante da cultura humana.

O ateísmo é profundamente anti-natural, uma vez que o conhecimento de Deus pertence à natureza humana. Nas palavras de Santo Agostinho, “criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós”. Nas palavras de São Paulo, “as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras” (Rm 1, 20). E, nas palavras do Primeiro Concílio do Vaticano, a Igreja “crê e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas” (Vaticano I, Seção III, Cap. II).

É preciso um profundo ato de “fé” irracional para negar a existência de Deus e, deste modo, professar positivamente o ateísmo. Por isso, embora haja (e sempre tenha havido) ateus individuais, nunca foi possível haver uma civilização atéia. Aliás, “ateísmo” e “civilização” são termos contraditórios entre si, uma vez que uma civilização se constrói com base no reto conhecimento, e não na ignorância; sendo o ateísmo ignorância do Deus Verdadeiro, não pode subsistir enquanto elemento civilizatório. Vivemos (ainda) em tempos (relativamente) civilizados apesar do ateísmo, e jamais por causa dele.

Estranhamente, o ateísmo costuma padecer da mesma sanha proselitista cuja alegada presença, nas religiões, ele gosta de atacar. Por ser irracional, no entanto, o discurso ateu pretende impôr-se por meio da força e da agressão, e jamais pela razoabilidade dos argumentos. Exemplos não faltam. Basta olhar, p. ex., para o sr. Richard Dawkins: neste exemplo belíssimo de argumentação racional (seguido pelos estúpidos aplausos da plebe ignara), ou nesta (mais recente) fanfarronice estúpida do ano passado da qual até mesmo os ateus mais razoáveis devem se envergonhar. Como o ateísmo jamais terá poder de penetração real em todas as camadas da sociedade (ou sequer em uma parte considerável delas), resta-lhe a sanha doentia de fazer o maior estrago possível por meio da imposição, a toda a sociedade, das suas crenças absurdas.

Talvez um dos mais claros exemplos desta intolerância atéia seja a luta encarniçada, travada a ferro e a fogo, contra os símbolos religiosos nas repartições públicas daquilo que o ateu gosta de chamar de “estado laico”. Esquece-se, contudo, ou finge esquecer, que a laicidade se caracteriza precisamente pelo respeito a todos os credos, e não pela eliminação deles. Esquece-se, ou quer esquecer, que o ateísmo também pode, em certo sentido, ser encarado como uma religião – às avessas, mas ainda uma espécie de religião -, a qual não pode receber nenhum favorecimento estatal. Esquece-se, ou reza para esquecer (e para que as outras pessoas não percebam), que a parede vazia é também ela um símbolo de um credo: no caso de um anti-credo, do espaço que não pode ser ocupado por Deus, da crença que confina a religião à esfera privada, da intolerância que nega a Deus o direito à cidadania.

Ao contrário do que pretendem fazer acreditar os inimigos da religião, não há menos ideologia nas paredes vazias do que nos crucifixos pendurados. Em se tratando de algo tão inerente ao ser humano como o fenômeno religioso, não há neutralidade possível. A escolha necessariamente precisa ser entre a cultura tradicional de um povo e a irracional imposição dos descrentes. Ou o símbolo religioso, ou a parede atéia – e terceira opção não existe.

“Resposta cristã ao cientificismo ateu” – Raniero Cantalamessa

[Publico trecho da primeira pregação de advento do pe. Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia. O texto na íntegra foi publicado em Zenit; os negritos são meus. O Tubo de Ensaio também republicou.]

Na semana em que a mídia espalhou a declaração (…) de que a ciência tornou desnecessária a hipótese de um criador, eu me vi na necessidade, na  homilia de domingo, de explicar a cristãos muito simples de uma cidade de Reatino onde estava o erro fundamental de cientistas e ateus e  porque não deveriam ficar impressionados com a sensação despertada por essa declaração. Fiz isso com um exemplo que pode ser útil repetir aqui em um contexto tão diferente.

“Existem aves noturnas, como a coruja, cujos olhos são feitos para ver no escuro da noite, não de dia. A luz do sol cega. Estes pássaros sabem tudo e se movem com agilidade no mundo noturno, mas não são ninguém no mundo diurno. Vamos adotar, por um momento, o tipo de fábulas nas quais os animais falam uns com os outros. Suponha que uma águia faça amizade com uma família de corujas e converse com elas sobre o sol: como ele ilumina tudo, como, sem ele, tudo iria mergulhar no escuro e no frio, como seu próprio mundo noturno não existiria sem o sol. O que diria a coruja? “Você mente! Nunca vi o seu sol. Nos movemos muito bem e conseguimos alimento sem ele. Seu sol é uma hipótese inútil, não existe”.

É exatamente isso que faz o cientista ateu quando diz: “Deus não existe”. Julga um mundo que não conhece, aplica suas leis a um objeto que está fora do seu alcance. Para ver Deus é necessário olhar com uma perspectiva diferente, aventurar-se fora da noite. Neste sentido, ainda é válida a antiga afirmação do salmista: “Diz o insensato: Deus não existe”.

[…]

Dizia antes como a marginalização do homem traz consigo automaticamente a marginalização de Cristo do universo e da história. Ainda sobre este ponto de vista o Natal é a antítese mais radical da visão cientificista. Sobre isso, escutaremos proclamar solenemente: “Tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito de tudo o que existe” (Jo. 1,3); “pois é nele que foram criadas todas as coisas, tudo foi criado através dele e para ele” (Col 1,16). A Igreja assumiu essa revelação e nos faz repetir no Credo: “Per quem omnia facta sunt”: Por meio dele tudo foi criado.

Ouvindo estas palavras – enquanto todos à nossa volta que não fazem mais que repetir “O mundo se explica sozinho, sem necessidade da hipótese de um criador”, ou “somos frutos do acaso e da necessidade” – se dá, sem dúvida, um choque, mas é mais fácil que se produza um conversão e floresça a fé depois de um choque como esse que com uma longa argumentação apologética. A questão crucial é: seremos capazes, nós que aspiramos reevangelizar o mundo, de expandir nossa fé a essa dimensão? Nós realmente acreditamos, de todo o coração, que “todas as coisas foram feitas por meio de Cristo e em vista de Cristo”?

Em seu livro Introdução ao Cristianismo, há muitos anos, Santo Padre, escreveu:

“A segunda parte principal do Credo coloca-nos propriamente diante do elemento cristão fundamental: a crença de que o homem Jesus, um indivíduo executado na Palestina pelo ano 30, é o ‘Cristo’ (ungido, escolhido) de Deus, e mais: é o próprio Filho de Deus, centro e opção de toda a história humana… Contudo, o primeiro impacto desta realidade causa escândalo ao pensamento humano: Não nos tornamos com isto vítimas de um tremendo positivismo? Será razoável agarrar-nos à palhinha de um único acontecimento histórico? Poderemos ousar fundamentar a nossa existência inteira, e até a história toda, sobre o que não passa de pobre palha de um acontecimento qualquer a boiar no grande oceano da história?”.

Para estas questões, Santo Padre, nós vamos responder sem hesitar, como faz o senhor nesse livro e como não se cansa de repetir hoje, na sua qualidade de Sumo Pontífice: Sim, é possível, é libertador e alegre. Não por nossas forças, mas pelo dom inestimável da fé recebemos e pela qual damos graças infinitas a Deus.