Que Deus é Esse?

Após tomar conhecimento dos exorbitantes gastos com a manutenção do site da Arcauniversal, a minha curiosidade foi mais forte do que o meu senso de aproveitar bem o tempo e eu me pus a dar uma rápida navegada pelo site e pelo blog do Edir Macedo. Dois minutos foram o suficiente para que eu me deparasse com esta pérola de desabafo, que me levantou a seguinte questão: será que o sr. Macedo é ateu? Vejam só o que ele diz, rebatendo as críticas que lhe são dirigidas:

E se a santidade deles é tão acentuada assim, por que não são tão abençoados por Deus como gostariam? Seria Deus injusto para com eles?

Que Deus é Esse que abençoa um “bandido” e amaldiçoa os certinhos?

Oras, o Deus que “abençoa” [muitas aspas aqui e já digo o porquê] os iníquos é precisamente o Deus da Bíblia, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó! Como o sr. Macedo não conhece o Deus a Quem diz servir?! Será que o pseudo-bispo da Universal nunca leu os Evangelhos, onde Nosso Senhor diz que o Pai “faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos” (Mt V, 45b)? Não sabe ele que, desde que o mundo é mundo, os iníquos prosperam, a ponto do Rei Davi precisar cantar nos seus salmos: “[n]ão invejes o que prospera em suas empresas, e leva a bom termo seus maus desígnios” (Sl 36, 7b)? Nunca percebeu o “bispo” Macedo que o salmista queixa-se a Deus por causa da prosperidade dos maus, dizendo “[a]té quando, Senhor, triunfarão os ímpios? Até quando se desmandarão em discursos arrogantes, e jactanciosos estarão esses obreiros do mal?” (Sl 93, 3-4)? Nunca leu ele o salmo 72? Eis um excerto:

2. Contudo, meus pés iam resvalar, por pouco não escorreguei,
3. porque me indignava contra os ímpios, vendo o bem-estar dos maus:
4. não existe sofrimento para eles, seus corpos são robustos e sadios.
5. Dos sofrimentos dos mortais não participam, não são atormentados como os outros homens.
6. Eles se adornam com um colar de orgulho, e se cobrem com um manto de arrogância.
7. Da gordura que os incha sai a iniqüidade, e transborda a temeridade.
8. Zombam e falam com malícia, discursam, altivamente, em tom ameaçador.
9. Com seus propósitos afrontam o céu e suas línguas ferem toda a terra.
10. Por isso se volta para eles o meu povo, e bebe com avidez das suas águas.
11. E dizem então: Porventura Deus o sabe? Tem o Altíssimo conhecimento disto?
12. Assim são os pecadores que, tranqüilamente, aumentam suas riquezas.
13. Então foi em vão que conservei o coração puro e na inocência lavei as minhas mãos?
14. Pois tenho sofrido muito e sido castigado cada dia.

[Sl. 72]

O Deus, portanto, que abençoa um “bandido” e amaldiçoa os certinhos é o Deus da Bíblia, e todos os cristãos de todos os tempos e, antes deles, os judeus, sempre o souberam muito bem. Espanta-me que o Edir Macedo o desconheça! Na verdade – e este é o motivo da minha pergunta inicial -, o “argumento” por ele utilizado é precisamente aquele que os ateus utilizam para “mostrar” que Deus não existe! Compare-se a pergunta do sr. Macedo com, p.ex., este post de um blog ateu [sobre um padre assassinado em Recife] ou, para sermos mais recentes, este aqui que é desta semana [sobre um protestante que morreu ao cair do morro onde havia subido para orar]. Que Deus é esse que, ao que parece, não protege os Seus? A resposta [implícita] do “bispo” da Universal e a dos ateus é exatamente a mesma: este Deus não existe. Nós, porém, temos coragem de afirmá-lo ousadamente: este Deus é o nosso Deus!

Quanto ao problema da existência do mal [e as aspas acima colocadas que eu disse que iria explicar depois], o Papa Bento XVI disse em Auschwitz há quase três anos: “[n]ós não podemos perscrutar o segredo de Deus [vendo] apenas fragmentos e enganamo-nos se pretendemos eleger-nos a juízes de Deus e da história”. Nós acreditamos que, um dia, as injustiças serão reparadas, e toda lágrima será enxugada, e já não haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor (cf. Ap 21, 4). Nós acreditamos, como Santo Agostinho, que Deus não permitiria o mal se, dele, não pudesse tirar um bem ainda maior – ainda que não consigamos perceber claramente que bem pode ser esse. Nós acreditamos que a história ainda não terminou; e, se é permitido ao joio crescer junto com o trigo – por motivos que Deus em Sua Providência sabe -, um dia ele será lançado fora, pois o mal não tem a última palavra. Enquanto isso, esperamos e oramos, enquanto pedimos ao Altíssimo paciência nas tribulações e encontramos conforto na Cruz de Nosso Senhor. Sim, o nosso Deus é Senhor da História. Em tudo seja bendito o Seu Santo Nome.

Ateísmo Irracional

[Texto anterior: O agnóstico ateu]

Ateísmo irracional

Chegamos portanto àquele que é, a meu ver, o principal motivo pelo qual o ateísmo não se difunde tão facilmente nos nossos dias quanto o Cristianismo se difundiu na Idade Média: não é de modo algum evidente que Deus com certeza não exista, e esta idéia só a muito custo penetra na mente das pessoas. É necessário um verdadeiro bombardeio de falsos argumentos, unido ao desejo interior e a priori de que Deus não exista, para que alguém “se convença” de tão anti-natural tese.

Façamos desde já uma ressalva muito importante. Não estou chamando de “irracional” o ateísmo porque ele seja oriundo de uma loucura qualquer, sem contar com nenhum elemento racional. Não é isso. É claro que os argumentos ateus fazem um certo sentido – caso contrário, o número dos seus adeptos seria consideravelmente menor do que é hoje. O problema é que eles – ao contrário do que muitas vezes pretendem – simplesmente não esgotam a questão.

Imagine um Deus Onipotente – pode dizer um ateu. Este Deus pode criar uma pedra tão pesada que nem Ele mesmo consiga carregar? A resposta a esta questão pueril é muito simples: não, não pode, porque tal pergunta (e qualquer variante dela: o machado que tudo destrói contra a porta indestrutível, a meia-calça indesfiável contra as Facas Ginsu, etc) pode ser resumida em sua formulação mais genérica que é “Deus pode não poder”? E é claro que Deus não pode não poder, e isto, ao invés de provar a inexistência da onipotência divina, está na própria definição de “Todo-Poderoso”. Lembro-me de um catecismo antigo que trazia uma pergunta parecida com “Deus pode pecar ou morrer?” – cito de memória e não ipsis litteris. E a resposta dada era: não, Deus não pode pecar e nem morrer, porque tais coisas são frutos de fraqueza e não de potência. A plenitude da potência – a Onipotência – exclui a fraqueza. Pretender “provar” a impossibilidade da Onipotência desrespeitando a sua própria definição não é honesto e não prova nada.

Tome então o paradoxo de Epicuro, pode acrescentar o nosso ateu. Em linhas gerais: se Deus conhece o mal e pode acabar com ele e não o faz, então não é bondoso; se é bondoso e pode acabar com o mal e não o faz, então é porque não o conhece [não é onisciente]; se sabe que o mal existe, é bondoso e não acaba com ele, então é porque não pode [não é onipotente]. Faltou a Epicuro, no entanto [provavelmente por ter vivido antes do Cristianismo], uma quarta possibilidade para o seu Deus: e se Ele é bondoso, conhece o mal, pode acabar com ele e não o faz de imediato porque tem planos melhores?

A resposta ao problema do mal, reconheçamos, não é fácil. Mas a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo erguida diante de nós ensaia-nos uma resposta: o sofrimento tem sentido. Ele não é um mal absoluto, porque pode produzir [e amiúde produz] o bem. É análogo a, suponhamos, um pai que castiga o seu filho para ensiná-lo: a criança pode não entender, ou entender mal, o castigo que sofre, mas o pai sabe o que está fazendo. Também nós podemos não entender, ou entender mal, o porquê de existir mal no mundo: mas Deus o sabe. Deus permite o mal no mundo, pois, para respeitar a liberdade humana e porque pode tirar deste mal um bem ainda maior: eis as linhas gerais da resposta cristã. Que – vale salientar, antes que comecem os protestos dos ateus que não a aceitem – não é de modo algum uma demonstração da existência de Deus, mas sim uma alternativa a Epicuro que se propõe a eliminar o paradoxo por ele introduzido na definição de Deus.

E se o mundo “sempre existiu” – pode perguntar, por último, o nosso ateu – e não precisar, portanto, de ter sido criado em um dado momento? E se a ciência demonstrar que a matéria, ao menos em suas partículas elementares, não pode ser destruída e, portanto, tudo indica que ela “sempre existiu” mesmo? Para a teologia, isso à primeira vista não apresenta nenhum problema, porque [p.ex.] o inferno “sempre existiu” e vai existir para sempre e, nem por isso, a gente prescinde de Deus para criá-lo. Portanto, em uma resposta sucinta: se as coisas criadas “sempre existiram” – coisa que julgo muitíssimo pouco provável e que nem sei se é ortodoxa, admitindo aqui apenas para argumentar com o nosso ateu imaginário -, mesmo assim, pelo simples fato de serem criadas, elas precisam de um Criador.

A menos que elas fossem “incriadas”, mas a falsidade disso é empiricamente constatável. As coisas visíveis estão em constante movimento, degeneram-se, mudam, transformam-se: percebe-se que falta algo a elas, algo de onde elas possam tirar o próprio ser, que nelas sempre se apresenta… mutável. Os teístas, ao contrário do que devem pensar os ateus, não multiplicam os elos da corrente sem necessidade: se, ao investigar a Causa das causas, nós não paramos no Universo e damos um passo além para chegarmos a Deus, é porque o Universo não atende aos requisitos necessários para ser Causa Não-Causada, e não porque queiramos “multiplicar os entes” sem motivos.

A Fé, portanto, pode trazer argumentos em sua própria defesa e, se não os consegue erigir em demonstração matemática, é porque a natureza do objeto estudado é diferente e não o permite. A descrença, via de regra, resume-se a caluniar a Igreja Católica, “refutar” inadequadamente os argumentos em favor da existência de Deus, e apresentar considerações que tampouco se apresentam com a clareza de uma demonstração matemática. Os ateus, portanto, não provam as suas próprias teses da maneira que exigem que os teístas provem as suas. Podem optar por elas? Poder, podem (embora seja imprudente: lembrem-se de Pascal…), mas precisam entender que não são o baluarte do racionalismo contra as trevas religiosas, dado que a sua descrença é também culturalmente influenciada e não existe demonstração definitiva alguma da veracidade de suas teses.

O agnóstico ateu

[Texto anterior: A cultura atéia]

O agnóstico ateu

Como já foi colocado, uma coisa é não saber que Deus existe; outra, bem diferente, é saber que Deus não existe. O agnóstico pode afirmar a primeira; a segunda, no entanto, afirma-a o ateu. Se o agnóstico pode alegar em sua defesa a ausência de provas da existência de Deus, o ateu, no entanto, para embasar a sua afirmação peremptória, precisaria prová-la. A questão que se coloca, por conseguinte, é: como provar que Deus não existe?

Não dá para provar que Deus não existe. Desconheço até mesmo qualquer tentativa atéia de fazê-lo: todas as justificativas dos ateus para mostrar como é “racional” a sua posição resumem-se a [tentar] refutar os argumentos em favor da existência de Deus. Ora, em boa lógica, todo mundo sabe que a refutação de um argumento é somente a refutação do argumento, e não da tese; Schopenhauer até elenca entre os estratagemas da sua dialética erística [cf. “Como vencer um debate sem precisar ter razão”] um que consiste em tomar a prova de uma certa coisa por esta coisa em si. Em poucas palavras: “refutar” um argumento que se proponha a demonstrar a existência de Deus não é a mesma coisa de refutar a existência de Deus. Isso é claro. Mas muitos ateus não o percebem ou, se o percebem, agem como se não houvesse uma grande diferença entre uma coisa e outra.

Tomemos um agnóstico: um sujeito que se abstém de decidir pela existência ou inexistência de Deus, por considerar que não é possível saber se é verdade uma coisa ou a outra. Aceitemos – vá lá! – que uma mente aleijada graças ao envenenamento pela cultura descristianizada da qual falávamos anteriormente seja, de fato, incapaz de saber que Deus existe. O que ele deve fazer? A resposta correta para este dilema foi enunciada de maneira lapidar pela famosa “aposta de Pascal”: se não dá para saber se Deus existe e se, entre as duas posições a serem tomadas, uma delas fica entre ganhar tudo (caso esteja certa) e não perder nada (caso esteja errada) e, a outra, entre não perder nada (caso esteja certa) e perder tudo (caso esteja errada), é muito mais razoável “apostar” pela primeira, isso é, que Deus existe. Nós fazemos isso o tempo todo nas nossas vidas: ninguém tira órgãos para transplante de alguém que não se sabe se está morto, ninguém contrata um engenheiro que não se sabe se é formado em engenharia, ninguém liga um aparelho eletrônico de 110v em uma tomada que não se sabe se é 110v ou 220v, etc. É também famoso o princípio do Direito que diz que, na dúvida, deve-se decidir a favor do réu: in dubio pro reo. Ora, se nessas coisas mais simples a prudência manda optar por aquilo que vai causar o maior bem e/ou evitar o maior mal, mesmo que não se tenha certeza, por que motivo haveríamos de agir diferente quando a nossa incerteza é sobre uma coisa tão crucial quanto a existência de Deus?

Um agnóstico razoável, portanto, deveria acreditar que Deus existe, mesmo que estivesse convencido da impossibilidade de demonstrá-lo. Só que eu nunca vi um agnóstico agir dessa maneira: todos eles agem como se Deus não existisse, comportando-se na prática como se fossem realmente ateus. O ateísmo é uma escolha muito séria, que não pode deixar margem para dúvidas – lembremo-nos de Pascal. Portanto, um ateu que tenha consciência do que está fazendo precisa estar certo de que Deus não existe, sob pena de estar correndo um risco que ninguém em sã consciência ousaria correr. Dado, contudo, que não dá para demonstrar a inexistência de Deus, existe uma pergunta que não quer calar: de onde vem a certeza dos ateus?

Espantar-nos-ia constatar que ela não vem de lugar nenhum? É mera crença, que se impõe ao intelecto sem necessidade de demonstrações. Mera crença, que pode ter diversas explicações – desde a confusão acima mencionada entre a refutação da demonstração e a da tese, passando por problemas morais à aceitação da idéia de que existe um Deus, até puro preconceito, incompreensão do problema da existência do mal ou outros obstáculos intelectuais, etc. -, mas nunca razões verdadeiras. Aliás, diga-se de passagem, ao contrário da Fé, que sempre pode aduzir razões em seu favor…

Temos, portanto, que os “argumentos” em desfavor da existência de Deus poderiam conduzir no máximo ao agnosticismo, mas nunca ao ateísmo. Não obstante, vemos o tempo inteiro ateus encherem o peito para explicarem a sua opção por caminhos que a ela não conduzem de nenhuma maneira! Não se passa do agnosticismo ao ateísmo sem ser por meio de uma crença gratuita e irracional. Não deixa de ser irônico que todo o edifício construído pelos paladinos das luzes contra o obscurantismo medieval esteja assentado sobre bases tão frágeis como estas.

A cultura atéia

[Texto anterior: O nascimento de um ateu]

A cultura atéia

Sem pretensão de oferecer uma análise exaustiva da descristianização da nossa cultura, aponto três aspectos dela em particular que, no meu entender, muito colaboram para a proliferação dos ateus no mundo contemporâneo: os ataques à Igreja Católica, o desprezo da boa filosofia e o crescente progresso científico dos últimos séculos.

A Igreja Católica é a Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, é – fora de quaisquer dúvidas – a maior e mais eloqüente testemunha de que existe, indubitavelmente, um Deus que Se deixa alcançar pelos seres humanos por Ele criados. Lembro-me de que, há alguns anos, um amigo meu – católico convicto, convertido do protestantismo – disse que, caso a Igreja Católica não fosse verdadeira, ele seria ateu, porque então nada existiria. Há muito de verdade nesta frase, porque a Igreja reúne em Si a totalidade de tudo aquilo que é verdadeiramente espiritual; ora, se até mesmo a Igreja Católica for falsa, então todo o resto é também falso. A Igreja é o verdadeiro alvo das campanhas que tentam banir Deus da nossa cultura, exatamente porque os que fazem isso sabem perfeitamente que, caindo a Igreja, cai toda a religião – dado que em todas as demais religiões nada existe de verdadeiro que não pertença, por direito, à Igreja Católica e Apostólica.

A mais eficaz maneira de conduzir as pessoas ao ateísmo é, portanto, desacreditar a Igreja Católica, maior prova da existência de Deus que pode ser encontrada no mundo visível, dado que é obra fundada pelo próprio Deus. É por isso que, num mundo onde o catolicismo é menosprezado, onde os mais variados rótulos odiosos são aplicados à Igreja, onde Ela é alvo constante de um tão grande número de ataques que se torna tremendamente difícil encontrá-La por debaixo da poeira levantada pelos projéteis contra Ela atirados, o ateísmo pode crescer. Se a Igreja é falsa, tudo o mais é falso: os ataques à Igreja fornecem, portanto, excelente matéria-prima para o nascimento dos ateus.

O desprezo à boa filosofia vem engrossar as fileiras dos que militam pela descristianização da cultura ocidental. Também aqui não tenho tempo e nem tampouco competência para uma análise profunda, mas desejo apenas dar uma pincelada sobre o assunto: é francamente de se espantar o desdém que a nossa cultura nutre pela metafísica, como se fosse coisa de pouca monta, ou como se se resumisse a devaneios de desocupados, ou como se estivesse no campo das meras opiniões particulares! Como se as grandes mentes da humanidade que ao longo dos séculos se tivessem debruçado sobre estes problemas tivessem apenas desperdiçado tempo e energia.

Quando acontece de alguém ler, p.ex., as Cinco Vias de Santo Tomás de Aquino e pretender ser capaz de “refutá-las” com meia dúzia de argumentos simplórios (como se ninguém tivesse sido capaz de pensá-los até o século XX!), uma pessoa dessas certamente não entende o que está em discussão. Ou ela não sabe a quê se propõe a metafísica – que não é a mesma coisa de um experimento de laboratório, vale salientar – ou não lhe concede valor. Tomemos um exemplo da primeira opção: demonstra-se a existência de um Criador a partir das coisas criadas. Quando se percorre a seqüência até o fim e se chega ao Não-Criado, e um dos “refutadores” de Santo Tomás aplica a Navalha de Ockham (!) para “eliminar um passo” e dizer que o próprio Universo [p.ex.] pode ser incriado… o que dizer? É óbvio que o Universo não pode ser “incriado”, não pode ser o Primeiro Motor Imóvel simplesmente porque… ele (é empiricamente constatável) se move, se transforma, é contingente! Se uma pessoa não percebe isso, então ela não entende o que está discutindo. Aristóteles e Santo Tomás revirar-se-iam no túmulo caso vissem a qualidade dos “filósofos” que os desafiam!

Pode-se também não conceder valor à metafísica por achar que todo conhecimento digno deste nome é o dito “científico”. A única realidade existente – ou pelo menos a única digna de atenção – seria aquela mensurável em laboratório e reprodutível in vitro. Tal ilusão é fruto do deslumbramento provocado pelo progresso da ciência e pelos benefícios dele advindos. Não que o progresso em si seja uma coisa ruim – de modo algum, é excelente. Mas a má-formação filosófica das pessoas, como foi dito acima, faz com que elas passem a idolatrá-lo! E isso, sim, é inaceitável. É como se elas ouvissem: “ouve, ó século XX! A Ciência é o único conhecimento, e fora d’Ela não há nenhum outro”. Comportam-se, então, como sacerdotes de um novo culto intolerante, e não aceitam que haja mais nada para além dos limites da Deusa-Ciência. A caricatura não é exagerada, pois muitos comportam-se [à parte a terminologia] exatamente assim.

Eis, pois, em linhas gerais (mais não exaustivas), a cultura que propicia e enseja o surgimento de ateus: privados da Igreja Católica, amputados da sã filosofia e deslumbrados com os avanços da ciência, os homens findam por cair na descrença. O progresso científico provocou um terrível fascínio nas almas daqueles que não conseguiam mais enxergar a Verdadeira Igreja nem sabiam mais a arte do bom pensar, fascínio semelhante àquele que os fenômenos naturais provocavam nos povos primitivos: um e outro degenerou em uma crença irracional.

Ao me referir ao ateísmo falo em “crença”, sim, porque existe uma passagem nada sutil entre o agnosticismo e o ateísmo, mas que no entanto quase todo mundo realiza sem lhe dar a menor importância. É sobre ela que pretendo falar um pouco agora.

O nascimento de um ateu

Inicio hoje uma pequena série de despretensiosas considerações sobre o ateísmo. Se é verdade que sempre, desde que o mundo é mundo, existiram pessoas que não acreditavam em Deus, é igualmente verdade que, hoje em dia, o número dos que abraçam semelhante tese é bem mais considerável do que já foi em outras épocas. Acredito que seja também verdade que nunca na história houve um – chamemo-lo assim – “ateísmo militante” tão violento como o que vemos hoje em dia. De onde vem semelhante descrença? Qual é, na verdade, o cerne da discussão entre ateus e teístas? Tais perguntas que se apresentam não possuem respostas triviais. De maneira alguma pretendo esgotar o assunto; o meu objetivo é tão-somente expôr algumas (em grande parte, particulares) opiniões sobre esta realidade.

* * *

O nascimento de um ateu

Já ouvi por algumas vezes alguém dizer que o ateísmo é a “condição natural” do ser humano, porque ele nasce sem acreditar em Deus e, só depois, com a educação que recebe, com a influência da cultura onde vive, passa a abraçar tal ou qual religião. Não acredito que a tese possa ser subscrita assim, simpliciter, por uma razão bastante simples: se é óbvio que uma criança não tem nenhuma ciência da existência de Deus, ela igualmente não tem nenhuma ciência da Sua não-existência. Uma criança recém-nascida não é “atéia”; ela simplesmente ignora a existência de Deus, como ignora também uma série de outras coisas que só com o tempo vai passar a conhecer. O ateísmo não se apresenta, até onde eu saiba, como a “ignorância” de Deus (se bem que ele possa muito bem ser assim definido, mas deixemos isso para uma outra oportunidade), e sim, ao contrário, como o conhecimento de que Deus não existe. E este conhecimento, é óbvio que as crianças não possuem.

Deveriam, portanto, os ateus, que se vangloriam de serem racionais, pararem de equiparar a ignorância infantil à afirmação madura, consciente e deliberada de que Deus não existe. São duas coisas completamente diferentes. O ateísmo não se apresenta como “não saber que Deus existe”, e sim como “saber que Deus não existe”: a posição da partícula negativa na frase faz toda a diferença. Ninguém, portanto, “nasce” ateu; a pessoa passa a ser atéia quando, após atingir a idade da razão, após considerar por conta própria o problema da existência de Deus dentro da cultura na qual está inserida, opta por acreditar na Sua não-existência – exatamente como qualquer processo de “nascimento” de um religioso. O ateísmo não está imune à influência externa que ele tanto critica na formação da consciência religiosa. Também ele é construído, e não inato, como algumas vezes quer pretender.

Dizem-nos, por vezes, que “você é cristão porque nasceu no Ocidente; caso houvesse nascido em algum país do Oriente Médio, seria muçulmano e, portanto, a religião é meramente um produto cultural determinado pela aleatoriedade do lugar onde a pessoa nasceu e foi educada”. Se formos aceitar isso em suas linhas gerais [porque é óbvio que não existe este determinismo absoluto sentenciado, haja vista a existência, p.ex., de cristãos no Oriente Médio e de muçulmanos no Ocidente], poderemos igualmente dizer ao nosso interlocutor: você só é ateu porque nasceu no século XX do Ocidente descristianizado, e esta sentença não seria menos verdadeira do que a primeira. Alguns ateus gostam de pensar que, se tivessem nascido na Idade Média, seriam queimados nas fogueiras da Inquisição; eu julgo isso muitíssimo pouco provável, e tal erro é decorrente da mania que têm os ateus de analisarem-se a si próprios “isolados” da cultura onde nasceram. Se tivessem nascido na Idade Média, os ateus de hoje seriam, em sua grande maioria, cristãos e bons cristãos. Porque aí eles respirariam cristianismo desde a mais tenra infância, e não seriam envenenados pela triste cultura que hoje vivemos.

Parece-me fora de qualquer discussão que a cultura na qual vivemos propicia e enseja o surgimento de ateus, de um modo análogo àquele segundo o qual a cultura cristã da Europa Medieval propiciava e ensejava o surgimento de católicos. Se, no entanto, os ateus quiserem julgar o mundo inteiro com base em um modelo que não aceitam aplicar a si próprios, então eles não estão dispostos a discutirem seriamente – simples assim. Não é honesto utilizar dois pesos e duas medidas. Se os ateus querem enfatizar a importância da cultura no nascimento dos religiosos – coisa que, até onde eu saiba, é indiscutível -, devem também enfatizar a importância da mesma no nascimento de si próprios.

“Ah, mas se o meio cultural do Ocidente do século XX provocasse o surgimento de ateus, então estes seriam a maior parte da população, como os católicos o eram na Idade Média”, alguém pode dizer. Negativo, por três motivos. Em primeiro lugar, porque não existe determinismo na escolha religiosa [ou irreligiosa] dos indivíduos; influência, sim, mas necessidade, não. Em segundo lugar, porque hoje em dia existe ainda, embora em menor escala, a influência religiosa [principalmente – ainda! – no seio familiar], de modo que esta é capaz de oferecer uma opção [graças a Deus, ainda abraçada por muitos] à descrença. Em terceiro lugar, porque o ateísmo é – digamo-lo francamente – uma escolha que repugna a razão, de modo que são necessários grandes esforços para enfiá-la na cabeça das pessoas. Voltaremos a este último ponto mais adiante. Agora, falemos um pouco sobre o porquê da civilização ocidental descristianizada ser terra fértil para o aparecimento dos ateus, sem a qual o número destes não chegaria jamais a ser significante.

“Provavelmente, não existe motorista”

Esta eu vi no Fratres in Unum e é muito boa. Refere-se à campanha ateísta que começou recentemente – mas que já havia sido noticiada há algum tempo – na Grã-Bretanha, composta de slogans nos ônibus dizendo (tradução livre) “Provavelmente, Deus não existe”:

Provavelmente, não existe motorista.

Grã-bretanha. Segundo a rádio britânica (“Britische Rundfunk”), o motorista crente Ron Heather de Southampton, em Südengland, negou-se a dirigir um ônibus público com um slogan ateísta. Ao entrar em serviço, Heather viu o seguinte anúncio publicitário no ônibus: “Provavelmente, Deus não existe. Pare de se preocupar e desfrute a sua vida”. O motorista explicou ao seu chefe que não conduziria o ônibus e foi para casa.

Excelente.

Curtas de fim de sexta

– Os militantes ateístas norte-americanos queriam retirar, do juramento de posse que as autoridades fazem ao assumir cargos de Governo, a referência a Deus. Se tivessem sucesso, “quando Barack Obama assumi[sse] o cargo, no próximo dia 20, talvez ele não [pudesse] repetir a expressão “So help me God” (algo como “E que Deus me ajude!”) que sempre conclui o juramento formal da posse dos presidentes dos EUA”. Mas não tiveram. Deo Gratias! O juiz Reggie Walton não acatou o pedido dos que queriam impôr o seu ateísmo particular ao país inteiro. Obama deve pedir que Deus o ajude; rezemos para que Deus o escute mesmo, pois o país vai precisar como nunca.

– O Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom José Policarpo, deu um conselho às jovens portuguesas para que pensassem duas vezes antes de casar com um muçulmano. “Questionado por Fátima Campos Ferreira se não estava a ser intolerante perante a questão do casamento das jovens com muçulmanos, D. José Policarpo disse que não” – excelente! Respeito, sim; conluio promíscuo, jamais. Dialogar, sim; capitular, não. Conversar para converter, não para perder a Fé sem a qual é impossível agradar a Deus. A propósito do tema, vale muitíssimo a pena ler a história dos Mártires de Marrocos: Aí [em Sevilha] ficaram uma semana, finda a qual foram à mesquita, precisamente no dia em que os mouros festejavam Maomé e começaram a pregar a doutrina de Jesus e denunciando que o profeta Maomé não passava de uma idolatria. Corridos à pancada para fora da mesquita, passaram a Marrocos, onde começam a percorrer as ruas pregando o nome de Jesus e, quando vêem aproximar-se o Miramolim Aboidil, com mais ânimo continuaram a proclamar a mensagem cristã. O Miramolim mandou-os prender e ficaram numas masmorras vinte dias sem comer nem beber. (…) Com a sua ira no limite, o miramolim pegou na sua cimitarra a acabou com a vida daqueles cinco frades, rachando-lhes o crânio ao meio e depois decepando-lhes as cabeças. Era o ano de 1220. Cedo acabou a tarefa missionária daqueles cinco frades, mas a sua voz continua a ecoar por toda a terra e a sua mensagem até aos confins do mundo.

– Notícia de ZENIT: é a família que deve educar a sexualidade dos filhos. Não tem, portanto, nenhum direito o Estado de impôr a sua visão distorcida e depravada da sexualidade em pseudo-aulas de (des)educação sexual. Ao contrário, “[o]s pais têm «a obrigação moral de educar a pessoa em sua masculinidade e feminilidade, em sua dimensão afetiva e de relação: educar a sexualidade como dom de si mesmos no amor, esse amor verdadeiro que sabe custodiar a vida»”.

– Para vergonha nacional, o Ministro da Justiça, Tarso Genro, concedeu refúgio político a Cesare Battisti, um assassino italiano condenado por quatro homicídios – comentou o Reinaldo Azevedo. “Eis aí: o ministro que pretende rever a Lei da Anistia no Brasil transformou o estado italiano numa ditadura que persegue pessoas. E o faz para defender um assassino condenado, em duas sentenças, à prisão perpétua. Mas Tarso, claro, além de poeta, é também um humanista de mão cheia”. O professor Orlando Fedeli fez um comentário muitíssimo oportuno sobre o tema:

Tarso Genro, muito originalmente negou a extradição e colocou o assassino, que estava preso em Brasília, em liberdade, pretextando dúvida sobre a Justiça italiana, e alegando que é tradição brasileira sempre dar asilo político a quem o pede.

Essa decisão do ex-porta voz do partido Revolucionário Comunista a favor do Proletário Comunista Armado Cesare Bettisti, causou escândalo.

Pois não foi esse o critério aplicado pelo governo petista quando dois pugilistas cubanos—que não haviam matado ninguém–, fugiram de uma delegação esportiva e pediram asilo ao Brasil. Nesse caso, a ju[s]tiça petista foi célere: despachou imediatamente os dois pugilistas cubanos diretamente para as masmorras do comunista Fidel Castro.

Dois pesos e duas medidas.

Touchè.

O ataque dos ateus estrebuchantes

ou “A minha dor de cabeça matinal”.

De ontem para hoje, enquanto eu – cândida e inocentemente – tomava um chopp com os amigos e assistia um filme de terror engraçado no Shopping [REC], um grupo de baderneiros entrou no Deus lo Vult! para fazer vandalismo e floodar o blog com uma infinidade de “copies-and-pastes”, de acusações desconexas, de calúnias baratas já infinitamente refutadas, de agressões e palavrões. Quem está acostumado a visitar com certa freqüência este espaço virtual sabe que a situação observada de ontem para hoje foi absolutamente atípica, pelo que peço perdão.

A corja de delinqüentes conhece-se de um site chamado “Ateus do Brasil”. Graças ao wordpress – que faz o favor de informar ao dono do blog os links de onde vieram os visitantes do seu blog – eu tive acesso ao “plano infalível” dos pequenos baderneiros. Em certo momento, um dos integrantes do bando, alcunhado “Steven”, disse o seguinte:

ah.. bora zuar este blog…
http://januacoeli.wordpress.com/

Todos sabem que o Deus lo Vult! tem função apologética e que, neste sentido, a discussão é não apenas permitida como também incentivada: é este o motivo dos comentários aqui serem previamente aprovados. No entanto, como eu já tive a oportunidade de dizer, há discussões que são intrinsecamente infrutíferas. Considero como tais, de maneira eminente, as discussões com os vândalos imaturos que não querem senão “zuar” o espaço alheio. Sinto muito, mas os “zuadores” estão no lugar errado, porque isto obviamente não será permitido aqui. A má-fé a priori dos que, por falta do que fazer, procuram blogs para “zuar”, evidentemente não terá espaço aqui. Discussões exigem um mínimo de civilidade, bem como de capacidade argumentativa de ambas as partes; coisas que – como ficou evidente – os vândalos não possuem. Desnecessário dizer que isto não é apanágio do ateísmo em geral, porque há ateus civilizados com os quais se pode conversar; as criancices são restritas ao bando que passou por aqui.

Que se mantenham no seu próprio curral e não venham querer emporcalhar os sítios alheios. O interessantíssimo “Ateus do Brasil” tem um fórum que, ao que parece, é aberto. Portanto, os que têm vontade de discutir com os baderneiros, podem fazê-lo no site deles. O Deus lo Vult! não se prestará ao papel de picadeiro para que os palhaços venham montar um circo e fazer aqui a sua “zueira”. Não entendo o motivo que leva os delinqüentes a fazerem baderna nos sites de outrem; se está monótono o espaço de discussões do qual eles dispõem, eu não tenho nada a ver com isso, e não quero e nem preciso da “publicidade” nem do tráfego que os aprendizes de vândalos podem trazer para cá.

Um outro membro da trupe terrorista, o “Spockk” (que também deixou alguns comentários aqui), disse lá:

Steven

esse site que mandou é o Blog do caroleto. Além de carola, é absurdamente radical! É repulsivo.

Ótimo, Spockk. Desapareça, portanto, porque não faço a mínima questão de participar com você nem com ninguém da “zuação” que vocês estão dispostos a promover. Os xingamentos são, para mim, uma grande honra; quem me dera eu fosse “repulsivo” o suficiente a ponto de manter bem longe criaturas do naipe de você e dos demais “ateus do Brasil”! Ninguém é obrigado a me ler; eu, portanto, também não sou obrigado a ler o manancial inesgotável de abobrinhas que vocês são capazes de falar. Sugiro que gastem o tempo de vocês em alguma coisa mais proveitosa, porque aqui a estultícia imatura de ateus “zuadores” não é bem vinda.

Quando Saramago chorou…

Fui assistir ontem ao Ensaio sobre a Cegueira. Terminei no início da semana de reler o livro homônimo que inspirou o filme. Talvez eu não tenha sensibilidade cinematográfica alguma, mas fiquei bastante impressionado com a discrepância que existe entre uma obra e outra! Não encontrei Saramago na película; reconheci, sim, um monte de cenas cuja leitura recente ainda estava bem nítida na minha memória, passando com uma velocidade vertiginosa na sala escura, não raro incompreensíveis para quem está assistindo ao filme sem ter lido o livro e, em todos os casos, menos impressionantes – muito menos! – do que elas quando postas no papel.

Para dizer porque – na minha opinião – Saramago não está no filme, eu preciso voltar um pouco e dizer como é que Saramago está no livro. O escritor português (que tem até um blog) é ateu convicto e, no meu entender, o Ensaio é um grande tratado de irreligião, ou de anti-religião. O quadro apocalíptico apresentado pelo escritor ao longo da leitura perturbadora é um grande “experimento” que o português se permite fazer com a humanidade. Para começo de conversa, os personagens não têm nome; são esterótipos, são amostras, são cobaias. São genéricos, universais. Parece uma parábola, diz um cego no meio do romance (Saramago, José; “Ensaio sobre a Cegueira”, Companhia das Letras, 11ª reimpressão, 1999. p. 129. Doravante, as páginas citadas são desta referência) – uma parábola onde a cegueira é, na verdade, súbita iluminação.

Afinal, por que esta cegueira é branca, ao invés de negra? Por que é luz? Por que é luminosa? A idéia é repetida diversas vezes ao longo do livro (Como uma luz que se apaga, Mais como uma luz que se acende, p.22; a cegueira não era viver banalmente rodeado de trevas, mas no interior de uma glória luminosa, p. 94; tinham uma luz dentro das cabeças, tão forte que as cegara, p. 240; eles diluem-se na luz que os rodeia, é a luz que não os deixa ver, p. 260; etc), parecendo assim indicar qual o sentido da parábola: a cegueira é um instrumento utilizado para apresentar o homem tal e qual ele é (só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são, p. 128), é um bisturi manejado pelo narrador para pôr a descoberto a essência humana. Que, no livro, não tem nada de bonita (a luz e a brancura, ali, cheiravam mal, p. 96-97).

O longo circo de horrores, roubos, fome, violência, execuções sumárias, estupros e tudo o mais são, portanto, o homem posto a descoberto, trazido à luz, à luz da cegueira branca: quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos, p. 243. Se é verdade que há esperança no livro, personificada principalmente pela mulher do médico que nunca perde a visão, ela é insignificante ante a magnitude do horror: ela está sozinha, diante de um mundo de cegos, e é completamente incapaz de deter a marcha inexorável deste mundo rumo à barbárie.

Não consigo tirar da cabeça uma outra impressão de que tenho, um outro aspecto da cegueira de Saramago, que parece deixar entrever uma crítica mais áspera à religião. Há estes dois aspectos dos cegos, sem dúvida alguma: ao mesmo tempo em que a cegueira permite aos cegos verem a realidade humana tal e qual ela é, eles são de facto cegos e, por conseguinte, não vêem. A cegueira é, como já disse, uma espécie de “iluminação espiritual atéia”; mas parece-me que a metáfora se aplica também à – na opinião de Saramago – cegueira dos que têm Fé. Afinal, não é ela “luz”, “iluminação”, etc? Não são estas palavras que os religiosos aplicam à visão sobrenatural? Jogando com uma “dupla metáfora”, o escritor português parece querer dizer isso: a cegueira sob o aspecto físico é metáfora dos que têm a Luz da Fé, ao mesmo tempo em que a cegueira sob o aspecto metafórico – da “iluminação” que lhes permite ver a essência humana – é a anti-Fé, a anti-Esperança, a anti-Caridade (o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos, p. 135). Os que têm Fé são cegos; se vissem realmente, se fossem iluminados, veriam que o mundo é mau, radicalmente mau, intrinsecamente mau; em suma, que Deus não merece ver, p. 302. Ao longo do livro, os cegos de Saramago ora vêem, ora não vêem – penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem, p. 310 – comportando-se como metáforas, ora da cegueira da religião, ora da iluminação anti-religiosa. O narrador evidencia ora o fato de que estão cegos, ora o fato de que vêem as coisas como elas são: ora a Fé, ora a Descrença. Por um lado, a Luz provoca cegueira e, por outro, somente a cegueira permite ver.

A Descrença, a cegueira vista sob o aspecto iluminativo, é mais clara na obra. No entanto, a Fé, a contrapartida, a iluminação vista sob o aspecto de provocar cegueira, parece-me particularmente clara nas últimas frases do livro, quando a mulher do médico olha para o céu: A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava, p. 310. A mulher levantou os olhos para o céu, para o Céu, e teve a impressão de estar cega: abaixou os olhos, olhou para a cidade, para o Mundo, e viu que ainda via. A cegueira branca confunde-se com olhar para o céu, com ter os olhos fitos no Alto, de modo que foi necessário à mulher “baixar os olhos”, afastá-los do Céu, afastar-se da Fé, para ver.

No filme, entretanto, nada disso é facilmente perceptível. Primeiro, porque as cenas passam muito depressa, não deixando que o espectador tenha fôlego para pensar sobre o que está vendo (no livro, ao contrário, são as digressões feitas pelo narrador que constituem a melhor parte da narrativa); segundo, porque a trilha sonora é extremamente irritante, com musiquinhas alegres e lúdicas até mesmo nas piores cenas, aliviando-as bastante e dando-lhes um ar de “descontração” que, em absoluto, não existe no livro – o livro é tenso. Terceiro, porque nenhuma cena do filme consegue causar o mesmo impacto que no livro. As piores, como o estupro das mulheres, os cães devorando um cadáver, a igreja com as imagens vendadas, não conseguiram transmitir para a película o horror e o desconforto que elas provocam nos longos parágrafos de Saramago. Até um aspecto que perpassa o livro inteiro – a sujeira – é minimizado no filme: algumas manchas, papéis voando, e é tudo. No livro, quase se sente o mau cheiro.

Tudo isso fez com que o filme pudesse ser interpretado às avessas do livro, como notou e comentou um amigo meu quando o assistiu. Uma das primeiras cenas vistas no cinema mostra a mulher do médico perguntando o que é agnosia – uma doença, que o oftalmologista imagina poder explicar a cegueira súbita – e se tem alguma coisa a ver com agnosticismo, com ignorância, com descrença. A agnosia existe no livro, mas a sua ligação com o agnosticismo, não; é característica exclusiva da película. E então, subitamente, eis o tratado anti-religioso convertido em forte apologia da Fé: em um mundo de agnósticos, em um mundo onde todos fossem privados da Luz da Fé, a degradação moral é inevitável, como é inevitável para os cegos transformarem-se em animais. E então surgem as imagens das grandes tragédias da humanidade, dos milhões de mortos do comunismo e do nazismo, da degradação moral de nossos dias que só se agrava quanto mais as pessoas são “cegas” por não terem Deus, porque são descrentes.

E o tiro, então, sai pela culatra, e o ensaio anti-religião transforma-se em clara evidência do abismo onde se cai quando não se tem religião. Saramago chorou ao ver o filme; na minha opinião, não chorou por ter-se comovido, nem de alegria, como disse. Ao contrário, chorou por sentir-se traído, chorou de decepção ao ver no filme exatamente o contrário do que havia escrito.

Sugestão de leitura

Não li. Mas recebi a sugestão de um amigo e, pelo “abstract”, recomendo.

Trata-se do livro “God’s Undertaker: Has Science Buried God?”, da autoria do sr. John Lennox, matemático de Oxford. Na AMAZON, sai por dez dólares.

O sr. Lennox debateu com Richard Dawkins; o áudio está no site do militante ateu.

De acordo com o que disse o amigo que me indicou o livro:

O argumento dele [do sr. Lennox] é baseado em dois pilares:

1. O aparente ajuste fino necessário para a existência do universo.

2. O conteúdo informacional presente na Vida, juntamente com a conjectura de que, assim como a energia, a informação também deve se conservar.

Assim, ele justifica a necessidade de um criador inteligente para a criação do Universo e da Vida, baseando-se na Teoria da Informação.

Ainda sobre Dawkins, recomendo a leitura de um artigo publicado no Estadão em 2005, chamado “Os três pecados do biólogo ateu”. Um excerto:

Há uma angústia subjacente de que o ateísmo fracassou. Durante o século 20, os regimes políticos ateus acumularam um assombroso e (sem paralelos) recorde de violência. O humanismo ateu não gerou uma descrição de eventos e uma ética populares convincentes do que é o ser humano e nosso lugar no cosmo. Onde a religião recuou, o vácuo foi preenchido pelo consumismo, pelo futebol e por uma absorção insensata em desejos passageiros. Não sabendo como responder às grandes questões da vida, nós as colocamos na prateleira – certamente não desenvolvemos uma admiração e reverência pelo mundo natural que Dawkins gostaria.