O rei está nu

Eu não tinha comentado até agora sobre a baderna no STF [youtube, Zero Hora, Estadão], em parte porque não estava acompanhando as notícias e em parte porque nunca levei o Supremo a sério [já disse inclusive aqui há alguns meses, por ocasião da aprovação das pesquisas com células-tronco embrionárias, que ele “parece ser a Casa da Mãe Joana, onde cada um faz o que quer, e onde nenhuma seriedade é exigida”…]; mas gostaria de comentar uma coisa [só uma] sobre um artigo que li no Diário do Comércio. E de explicar o porquê do meu silêncio sobre o bate-boca.

Primeiro, o comentário; mostra o sr. Paulo Saab surpresa e decepção – por meio da alusão ao assassinato de Júlio César – porque o STF “embarcou na nau dos insensatos em que parece ter se transformado o poder público em nosso País”. Oras, só agora que a pólvora foi descoberta?! Pois a mim não causa surpresa nenhuma. Não me sinto, de modo algum, como o Imperador Romano traído, e sim com o alívio de ver que outros também percebem as garras do lobo. Uma elite de todo-poderosos arrogantes, frutos da má-formação intelectual e moral da nossa sociedade, que não prestam satisfações a virtualmente ninguém, com mandato quase vitalício [salvo engano, vai até a aposentadoria compulsória], que formam a mais alta instância da Justiça brasileira, que são em número de 11 ministros dos quais 7 foram nomeados pelo presidente Lula… o que se poderia esperar dessa receita? Baluartes da honestidade? A Probidade encarnada?

Por isso que não me causa nenhuma surpresa que “a mais elevada corte de Justiça nacional” tenha descido “ao nível das brigas de botequim”. Para mim, há muito já está no chão “a honorabilidade de comportamento que um tribunal supremo exige para ser respeitado”. E aqui chegamos ao porquê do meu silêncio sobre o assunto: após os ministros do Supremo terem feito a grande burla que foi feita no caso das CTEHs, após o ministro Marco Mello ter “cantado o voto” de uma causa ainda não apreciada e após a representação contra ele movida por causa deste flagrante descumprimento da legislação que ele, como magistrado, deve obedecer – um Ministro da mais alta corte de Justiça deste país! – ter sido engavetada, reclamar de um bate-boca no STF é filtrar o mosquito para engolir o camelo. Se nem as coisas mais sérias são levadas a sério, quanto mais os bate-bocas! Mas o min. Joaquim Barbosa prestou um serviço a este país com a sua atitude. Ao menos, o barraco armado – única coisa à qual o povo brasileiro parece dar atenção – tem a função didática de mostrar que o rei está nu.

A importância do bate-boca

Há discussões e discussões. Algumas são intrinsecamente infrutíferas, quando o assunto tratado tem pouca ou nenhuma importância para a salvação das almas ou – pior ainda – quando é-lhes prejudicial. Outras, são extrinsicamente infrutíferas, quando as condições não são propícias, ou quando os interlocutores não estão com as disposições de espírito exigidas para um debate frutuoso, ou quando se observa algum motivo semelhante. Por fim, há outras que são profícuas, que são todas as demais.

Tenho um natural otimismo com relação às discussões. Acredito que um número considerável delas vale a pena – a despeito do pouco fruto que elas pareçam dar – porque acredito que o ser humano tem uma natural sede da Verdade, e que argumentos racionais tendem a atrair a atenção das pessoas. Parece-me que foi Chesterton quem certa vez disse que, se ele tivesse um bom amigo e pudesse conversar com ele todas as noites por longos anos, conseguiria converter este amigo à Fé Católica. Neste aspecto, estou com o insigne escritor inglês.

Primeiro, porque acredito que a Fé Católica é “intrinsecamente convincente”; sendo Ela verdadeira, e possuindo o ser humano um inato desejo de Verdade, a Fé é, em Si, a resposta às aspirações últimas de todas as pessoas. Segundo, porque acredito na capacidade humana de mudar; uma vez que Nosso Senhor Jesus Cristo disse-nos para que pedíssemos, pois receberíamos, e batêssemos, pois abrir-se-nos-iam as portas, acredito piamente que um desejo sincero de encontrar a Deus é capaz de “mover o coração do Altíssimo”, e de provocar mudanças profundas e verdadeiras na visão de mundo das pessoas, quaisquer que sejam elas.

Para Chesterton, todavia, é necessário que o amigo dele seja “muito amigo” e que eles possam conversar por “muitos anos”. Isso acontece porque a Fé, embora seja em Si convincente, não Se apresenta à alma de maneira imediata. Obstáculos podem ser colocados ao esplendor da Verdade Católica. Principalmente dois: as duas pessoas que estão discutindo. E, exatamente por isso, discutir é necessário.

É necessário, porque existem preconceitos da parte de quem ouve que precisam ser quebrados – e quebrar preconceitos leva tempo. É também necessário, porque existem limitações de expressão da parte de quem fala, que precisam ser contornadas da melhor maneira possível – isso também requer tempo. Não acredito muito em “conversões miraculosas” de mudanças radicais de pessoas após pouca conversa e pouca discussão, porque milagres são raros e a minha (parca, reconheço) experiência me ensinou que é muito fácil colocar obstáculos a Fé, e muito difícil contorná-los. O que não significa que eles sejam “incontornáveis”.

Mas não é suficiente somente tempo, se não houver aquela “disposição de ânimo” necessária à assimilação daquilo que é ouvido. Chesterton fala em ser “muito amigo” do interlocutor; isso sem dúvidas seria muito bom, mas parece-me suficiente que você não seja muito inimigo dele. Ter inimizade por um contendor é a maneira mais fácil e eficaz de transformar uma discussão interessante em uma daquelas extrinsicamente estéreis – porque, mesmo que o assunto em si seja nobre e verdadeiro, se o adversário estiver “cego” pela inimizade que devota a você, não adianta de nada. Tempo, pois, para que os preconceitos sejam efetivamente derrubados; amizade (ou pelo menos “não-inimizade”), para que eles possam ser derrubados.

Há uma história atribuída a [se não me falha a memória] Santo Inácio de Loyola, segundo a qual o santo, certa vez, ao encontrar os seus filhos espirituais em silêncio, perguntou-lhes irado por que eles não estavam discutindo. Não sei se é história verídica ou se é anedota, e também vale salientar que a discussão entre a Fé e a incredulidade é de uma espécie diferente daquele na qual se busca aprofundar a Fé, mas o que eu quero reforçar trazendo este episódio à baila é que a discussão é importante, tão importante que não se podem privar dela nem mesmo os que já quebraram os muros iniciais do preconceito e começaram a dar passos em sua caminhada espiritual; a meu ver, nem mesmo estes o podem por três motivos principais.

O primeiro, para que aprendam a discutir. É necessário exprimir com fidelidade o que deve ser expresso, é necessário entender o pensamento do seu interlocutor [sem isso nada funciona], é necessário saber manter a calma e evitar a todo custo angariar inimizades. E discutir é fundamental para a pregação do Evangelho, para a propagação da Fé Católica, para a glória de Deus e para a salvação das almas.

O segundo, para que aprofundem o seu conhecimento; “entender para crer, crer para entender” é o conhecido adágio agostiniano, e é pressuposto da caminhada espiritual. Um corpo que não se desenvolve é um corpo morto e, nos caminhos espirituais, não progredir já é um retrocesso – para usar dois conhecidos ditados que vêm muito a calhar. Sempre há para onde progredir pois, aqui na Terra, é-nos impossível chegar onde não haja mais progresso espiritual possível.

O terceiro – e muitas vezes ignorado – motivo, é para que aprendam a aprender; coloquem-se “do lado de lá” da discussão, e saibam reconhecer os próprios erros e as próprias limitações. Isto é fundamental para o progresso espiritual – afinal, sempre há o que aprender – e é também fundamental para entender melhor a situação daqueles a quem os argumentos são dirigidos; sem isso, não se aprende a discutir.

“Estai sempre prontos a responder para vossa defesa a todo aquele que vos pedir a razão de vossa esperança”, escreveu o primeiro Papa; mas acrescentou logo em seguida: “mas fazei-o com suavidade e respeito” (1Pd 3, 15). De onde nós temos que, sim, discutir é essencial, mas também é essencial a maneira como discutimos. Se o bate-boca não dá resultado, não pode ser por culpa da Doutrina Católica; por conseguinte, deve ser procurado entre os contendores o culpado. Afinal, como já dizia o pe. António Vieira no Sermão da Sexagésima:

Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? — Por culpa nossa.

Isto pode, mutatis mutandis, ser aplicado a nós também. Aprendamos a discutir, para podermos trabalhar pela maior glória de Deus. E termino com as palavras do mesmo pe. Vieira, com as quais termina o conhecido sermão:

Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum.

Amen.