As matérias da segunda página

Certas matérias envolvendo a Igreja Católica são consideradas dignas, pela mídia anti-clerical, de ocupar com estardalhaço as manchetes das primeiras páginas: são as notícias desabonadoras à imagem da Igreja, ou as de fofoca eclesiástica que, no meio de um disse-me-disse sem fim, pretendem induzir o leitor incauto a crer que o Papa Francisco está para mudar a bimilenar doutrina moral da Igreja na próxima semana.

Outras matérias, contudo, somente a muito contragosto são noticiadas, na segunda página, em minúsculas notas de rodapé, que é para que o menor número possível de leitores tome conhecimento delas. É a típica informação que via de regra não interessa aos editores que seja lida.

Exemplo cristalino dessa segunda categoria é esta notícia, divulgada anteontem sem nenhum tipo de alarde: Vaticano oficializa excomunhão de padre que defende gays em SP. Refere-se ao famigerado caso do pe. Beto, que no ano passado protagonizou um escândalo de dimensões consideráveis aqui na Terra de Santa Cruz (afinal de contas, nos dias de hoje não é qualquer herege que ganha uma excomunhão oficial…) e não poupou nem mesmo uma patética incursão na justiça civil (!) para tentar reverter a sua pena canônica. «Nós como advogados, estaremos aptos a defender o nosso cliente até o com o Santo Padre em Roma se for preciso», disse à época um dos advogados contratados pelo padre. Não sei se eles chegaram a cumprir a ameaça. De um modo ou de outro, contudo… não deu.

Em comunicado no site da Diocese de Bauru, o Pe. Wenceslau – «Juiz Instrutor para as “matérias reservadas a Sé Apostólica”» – informa que a Congregação para a Doutrina da Fé (a quem fora submetido o caso), em comunicação oficial datada do dia 14 de outubro p.p., «ordenou que [se] tornasse formalmente pública a pena e a situação canônica» do padre Roberto Francisco Daniel. E, em obediência à determinação da Santa Sé, a Mitra de Bauru explica i) que o padre Beto «está e permanece excomungado segundo o Cân. 1364 § 1» enquanto perdurar a sua «contumácia»; ii) que esta está presentemente caracterizada «nos seus repetidos pronunciamentos e atitudes em relação à Igreja Católica e nos processos movidos nas instâncias judiciais do Estado brasileiro, contra a Igreja»; e, por conseguinte, que iii) «a Sé Apostólica confirma a referida pena até a pública retratação do réu».

Não se trata de nada excepcional: a coisa mais banal do mundo é que uma pessoa que não comunga com a visão de mundo da Igreja Católica não seja, ela própria, católica considerada. A Igreja é uma instituição que, absolutamente, não está obrigada a manter em Seus quadros os que d’Ela discordam em matérias onde Ela entende não ser possível haver discordância. Um mínimo de identidade é necessário para qualquer pertença a qualquer grupo e, se alguém não se identifica com a imagem de «fiel» que determinada religião apresenta, resta evidente que tal não pode ser identificado como a ela pertencente. Tudo isso são trivialidades tão óbvias que até cansa repeti-las.

O ponto, o grande ponto aqui, é que – nada surpreendentemente… – a realidade indômita está em franca oposição à agenda midiática. A Igreja segue excomungando. Ora, isso absolutamente não condiz com a imagem que querem passar do Novo Catolicismo: a de um Papa que, atento às novas necessidades do século XXI e liberto dos dogmas intolerantes da Idade das Trevas, abre enfim as pesadas portas da Igreja para receber alegremente a todos os que católicos não querem ser. Como poderão continuar vendendo esta imagem falsificada se a Santa Sé, veja só, tem a pachorra de reafirmar, pública e oficialmente!, a excomunhão de um padre que não crê no que a Igreja ensina?

Fala-se muita coisa sobre a Igreja nos dias de hoje. Olhando de fora, sob as lentes da mídia anti-clerical, tem-se a nítida impressão de que o Inferno venceu. Os católicos, contudo, depositários da Esperança, têm o dever de dar um pouco mais de crédito àquelas palavras de Cristo sobre non praevalebunt. Bem como de anunciar essa Boa-Nova mundo afora. E, muitas vezes, tal missão se reveste de contornos extremamente práticos e fáceis. Muitas vezes, fazê-lo consiste simplesmente em chamar a atenção para as matérias das segundas páginas dos jornais.

“Pedófilos não são excomungados, mas eu fui!”

Depois de tudo o que já foi falado aqui sobre o padre Beto, eu pensava em não mais voltar ao tema do arrogante sacerdote. No entanto, permito-me mais algumas palavras, por conta de um comentário sem sentido que, nos últimos dias, tem ganhado corpo e merece uma resposta.

Ele veio do próprio padre Beto: «Pedófilos não são excomungados, mas eu fui!», choramingou o sacerdote, em um arroubo patético de apelo sentimental vazio. É bem pouco provável que o padre Beto realmente não entenda o porquê das coisas serem assim; o mais verossímil é que ele esteja fazendo uma chantagem emocional barata, para posar de coitadinho ao mesmo tempo em que lança sobre a Igreja a pecha de intransigente e contraditória. Mas vá lá: tenhamos um pouco de paciência com a ignorância ou a cretinice alheia. Exponhamos o discurso do óbvio e expliquemos ao reverendo sacerdote por que sua situação é diferente da dos ditos “padres pedófilos”.

Convém ter em mente, antes de qualquer coisa, que a excomunhão não é um passaporte irrevogável para o inferno. Trata-se de uma pena eclesiástica, em última instância orientada – como aliás todas as penas eclesiásticas – para a salvação das almas. De que maneira?

Ora, os pecados não se dividem em leves, graves e “excomungantes”. Há somente os leves (ou veniais) e graves (ou mortais), e só. Os primeiros são os que mantém a alma em estado de graça e, os últimos, são os que fazem perder a graça santificante; aqueles permitem que se vá ao Céu passando pelo Purgatório e, estes, conduzem ao Inferno. Não há na alma de um assassino (ou adúltero ou ladrão) mais graça santificante do que na de um médico punido com excomunhão, e nem vai menos para o Inferno um católico impenitente do que um herege excomungado. Excomunhão não é, portanto, simples qualificador agravante de condutas pecaminosas. Que coisa é ela, então?

A excomunhão é uma espécie de censura eclesiástica ao mesmo tempo grave e branda. Grave, porque rompe no foro externo a comunhão com o Corpo Místico de Cristo que é a Igreja; branda, porque para ser retirada exige somente um pedido de perdão do excomungado. E os pecados punidos com excomunhão têm geralmente também essa curiosa antinomia: são, ao mesmo tempo, graves em si mesmos e negligenciados por quem os comete. Vejamos alguns exemplos.

Quem é este excomungado? Henrique VIII da Inglaterra. Que crime cometeu? O de separar a igreja anglicana da Igreja Católica. Que importância lhe deu? Nenhuma. Como se sentia? Julgava-se vítima das absurdas pretensões papais sobre o seu casamento, sobre o futuro da família real inglesa.

Quem são estes excomungados? Dom Marcel Lefebvre, Dom Antônio de Castro Mayer e os quatro bispos por eles sagrados sem mandato pontifício. Que importância deram à sagração episcopal ilícita? Nenhuma, pois se julgavam vítimas da Roma Modernista.

Quem é este excomungado? O pe. Roy Bourgeois. O que ele fez? Participou de uma tentativa de “ordenação feminina”. Que importância deu ao fato? Nenhuma, pois se julgava vítima da misoginia da hierarquia católica, do secular machismo eclesiástico.

Quem são estes excomungados? Os médicos que realizaram um aborto numa menina de nove anos aqui no Recife. Como se sentiam? Heróis injustiçados que salvaram uma criança dos obtusos e medievais dogmas da Igreja Católica.

Quem, por fim, é este excomungado? O padre Beto, que falsificou a doutrina da Igreja, corrompeu a juventude e, agora, adota um discurso vitimista, nem por instante se arrependendo do escândalo que suas atitudes provocaram e continuam provocando entre católicos e não-católicos.

O que todas essas coisas  têm em comum? São pecados graves, em primeiro lugar; cometidos não por impulso, mas friamente pensados e executados, insistidos mesmo após as admoestações e súplicas da Igreja, em segundo; e, em terceiro, considerados de pouca importância (às vezes nem percebidos como pecados!) por aqueles que os cometem e pelos que lhes são próximos. Em geral, são estas características e não outras as que a Igreja observa quando decide excomungar alguém.

A excomunhão é, assim, uma espada brandida pela Igreja com fins duplamente pedagógicos. Primeiro, para que se arrependa o excomungado, uma vez que os pecados punidos com excomunhão costumam ser de tal natureza que repelem o arrependimento e debilitam a vontade de se reconciliar com a Igreja; e, segundo, para que as outras pessoas percebam-lhes a gravidade (geralmente escondida sob a aparência de heroísmo, martírio, louvável resistência ou coisa análoga) e não se deixem seduzir por eles. E esta finalidade pedagógica da excomunhão se vê com clareza quando se considera que ela encontra o seu término no Tribunal do Sacramento da Penitência, ao qual o excomungado pode acorrer sempre que desejar.

A excomunhão, assim, só persiste enquanto o excomungado não se volta para a Igreja. Aliás, pode-se dizer que ela existe precisamente para constranger quem a recebe a voltar-se para a Igreja. Voltemos, enfim, ao caso atual. Foi excomungado o padre Beto? Mas, ora, se ele quiser, pode perfeitamente ter a sua pena remitida hoje mesmo, bastando para isso correr ao seu bispo e dizer-lhe que aceita, sim, integralmente, a Doutrina da Igreja Católica. No entanto, ele não o faz. Prefere continuar aferrado às suas próprias “reflexões” estúpidas a se render à clareza da Verdade que refulge no ensino da Esposa de Cristo. Está excomungado porque quer ser excomungado, essa é a grande verdade que convém não ser esquecida aqui.

Coisa totalmente diversa ocorre com o padre que viola o sagrado celibato. Primeiro porque o abuso sexual de crianças é em si mesmo coisa horrenda e repulsiva, sem que haja ninguém que o justifique ou defenda. Segundo, porque jamais se teve notícia de algum padre pedófilo que tivesse anunciado “é, eu sou pedófilo mesmo, a pedofilia é uma coisa boa e a Igreja devia refletir melhor sobre isso, porque os tempos mudaram e a gente tem mais é que ser pedófilo mesmo, etc.” – se o fizesse, é certíssimo que seria excomungado tão rapidamente quanto o padre Beto o foi, e pela mesmíssima razão. Querer no entanto equiparar um crime oculto e infame a um pecado glamouroso cometido pública e impenitentemente não passa de um sofisma grosseiro. Não se sabe a quem o padre Beto quer enganar com esse espantalho ridículo; mas o recurso a tal expediente desonesto por parte de um homem presumivelmente inteligente já diz muito sobre o seu caráter.

Como os padres pedófilos não saem por aí alardeando em público a sua pedofilia da mesma maneira que o padre Beto parece ter um prazer depravado em confessar-se publicamente herege, é impossível que ambas as coisas sejam punidas igualmente. Os pedófilos, portanto, só podem ser punidos ao final de um processo canônico próprio. E eles o são: as normae de gravioribus delictis da Santa Sé prevêem que os padres que pecam contra a castidade com menores de dezoito anos ou que recorrem a material pornográfico de menores de catorze anos «seja[m] punido[s] segundo a gravidade do crime, não excluída a demissão ou a deposição». E a demissão [do estado clerical] é mais dura do que a excomunhão, uma vez que esta é retirada pelo simples pedido de perdão do condenado e, aquela, não. Ou seja: o padre Beto pode levantar a sua excomunhão hoje mesmo, mas um padre pedófilo demitido do estado clerical “não pode ser reintegrado entre os clérigos a não ser por rescrito da Sé Apostólica” [CIC 293]! Para o padre Beto voltar a exercer as suas funções basta-lhe confessar-se com o seu bispo (coisa que, repito, ele pode fazer agora mesmo), enquanto que um padre que cometeu pedofilia só volta ao sacerdócio com autorização explícita da Santa Sé – e o sacerdote de Bauru ainda vem reclamar! Ainda tem a cara de pau de insinuar que a sua situação está pior do que a dos pedófilos!

Pedófilos geralmente não são excomungados, padre Beto, porque (ao contrário do senhor) não saem por aí dizendo-se orgulhosos de serem pedófilos. Mas, quando descobertos e julgados, são punidos com mais rigor. O senhor, padre Beto, foi excomungado porque é um vândalo hipócrita que quer ser excomungado: porque gosta mais de contar mentiras em público do que pregar o Evangelho para o qual a Igreja o ordenou. Pedófilos ao menos têm vergonha dos seus crimes, enquanto o senhor, padre Beto, tem orgulho dos seus.

E é por isso que o senhor foi excomungado: porque a excomunhão não é meramente um indicador de gravidade dos pecados, e sim a censura dos orgulhosos. Existe não para dizer que aquele monstro vermelho e chifrudo é o diabo, mas para desmascarar Satanás travestido de anjo de luz. É empregada não para coroar a maldade dos pecados que já são abjetos por natureza, mas para revelar a malícia escondida sob aqueles que parecem inofensivos ou mesmo virtuosos. E é exatamente por isso, em suma, que ela lhe cai tão bem. É exatamente por isso que os verdadeiros católicos estão serenos e agradecidos enquanto essas cretinices do senhor dissipam quaisquer dúvidas que porventura pudessem restar sobre o seu caráter ou a seriedade do seu ministério sacerdotal. É exatamente por isso, em suma, que poucas decisões recentes do episcopado brasileiro foram tão acertadas quanto essa declaração de excomunhão de Dom Ferrari.