O Cristianismo é a religião do Verbo Encarnado, do Logos e, por isso, trata-se sem dúvidas de uma religião eminentemente intelectual. De facto, em sendo a racionalidade uma característica própria do ser humano, e tão intimamente sua que o distingue de todo o resto da Criação, é de se esperar que a Religião Verdadeira possa elevar o homem também – e, aliás, principalmente – em sua capacidade racional. Seria completamente absurdo pretender que a Religião, que trata da relação do homem com o Sagrado, o seu Princípio verdadeiro e seu Fim último, fosse descuidar daquilo que é intrínseco e essencial à natureza humana: a sua capacidade intelectual.
A oposição entre Fé e Razão, entre religião e racionalidade, portanto, é não apenas falsa como também absolutamente vazia de sentido. Os que postulam tal incompatibilidade ignoram quer a natureza humana, quer a natureza da religião. Nunca existiu – e nunca nem poderia existir – uma religião que se apresentasse como “irracional”, que fosse estranha à razão humana, a ela oposta ou mesmo que com ela não se importasse. O problema de Deus, posto em seus termos filosóficos elementares, pode também ser exposto da seguinte maneira (que Gilson já apontava no seu “Deus e a Filosofia”, e que cito de memória): dado que existe racionalidade no mundo, como postular um Princípio que não seja, ele próprio, também racional?
Estas considerações prescindem, até o presente momento, de qualquer credo específico. Não raro encontram-se pessoas que, à vista das provas metafísicas da existência de Deus (como as Cinco Vias tomistas, por exemplo), e não lhes podendo negar a força, afirmam que, do Primeiro Motor Imóvel à Trindade Santa, vai uma distância muito grande que a razão humana “sozinha” não é capaz de atravessar. Isto, concedemos facilmente (até porque nunca foi segredo que a Fé ensina coisas que, embora não contrárias à razão humana, por esta sozinha não poderiam ser descobertas); o que não concedemos é que tal constatação (aliás, do óbvio) seja suficiente para impugnar a racionalidade quer da própria existência de Deus, quer da Doutrina Cristã.
Porque, vejamos: da mesma forma como é necessário que haja um Primeiro Motor que seja a origem do movimento no Universo, que haja um Ser Subsistente no qual esteja a origem do ser dos entes criados, é também necessário que haja uma Inteligência que seja a causa da natureza racional encontrada no mundo. O Primeiro Princípio, portanto, é necessariamente racional. A esta conclusão é capaz de chegar a teologia natural; e, ao encontro dela, vem a Revelação Cristã dizer que in principio erat Verbum.
E, ainda: se o Primeiro Princípio é racional, então Ele é pessoa, porque pessoa – na definição de Boécio adotada por Santo Tomás de Aquino – é precisamente uma subsistência individual de natureza racional. Ora, o Primeiro Princípio é subsistente por definição. É necessário que Ele seja de natureza racional, para explicar a existência da racionalidade no mundo. Logo, o Primeiro Princípio é pessoa. Deus é pessoal, e não é (ainda) preciso que as luzes da Fé venham em auxílio à razão humana para que este conceito de Deus seja pelos homens atingido.
Se, portanto, Deus é Pessoa, Ele naturalmente pode relacionar-Se com os homens: segue-se daí, portanto, que a possibilidade de uma Revelação é perfeitamente coerente com a natureza humana e com a natureza divina conhecida a partir da razão humana. E então a Revelação judaico-cristã vem – mais uma vez – ao encontro deste anseio legitimamente humano, integralmente humano. Não se trata de uma “fuga” da realidade, de uma superstição irracional, mas ao contrário: da realização concreta de uma perfeita possibilidade racional. O homem investiga o Universo e conclui que há um Deus; investiga a si próprio e conclui que este Deus possui inteligência. E anseia por encontrar este Princípio racional, este Deus que é a causa da sua própria existência.
E Deus veio ao encontro do Homem. E uma Luz brilhou nas Trevas. E, a despeito das Trevas não A compreenderem, o Verbo – que no Princípio estava junto de Deus, e era Deus – Se fez Carne, e habitou entre nós.