Parece ter causado certo desconforto a minha menção a uma eventual “esquerda católica” no post sobre o Sínodo da Amazônia. A julgar por algumas reações que recebi e percebi, parece que a expressão foi tomada como um oxímoro, como se só se pudesse ser católico na razão inversa em que se é de esquerda — no limite, como se a “esquerda católica” não fosse católica de verdade.
Vamos por partes. Antes de qualquer outra coisa, convém notar que ambos os adjetivos, em princípio ao menos, dizem respeito a esferas diferentes da vida humana. Assim, o ser católico e o não ser católico estão no âmbito da religião, do sobrenatural, do relacionamento da alma para com Deus; e o ser de esquerda e o não ser de esquerda estão no âmbito da política, do natural, do relacionamento do homem com os outros homens em sociedade. São coisas distintas entre si; não independentes, mas efetivamente distintas. Obviamente o ser humano é uma unidade e não pode, por coerência, pautar-se em público por um conjunto de valores — ou de desvalores — incompatível com aqueles que professa em particular: ninguém pode amar a Deus e odiar o próximo. Há decerto uma extensa área da vida em que os deveres religiosos e os deveres cívicos se sobrepõem, e onde não é lícito ao católico adotar publicamente uma conduta que esteja em contradição com o que ele privadamente acredita. Mas há também uma amplíssima área de liberdade onde é perfeitamente possível haver diversidade de opinião legítima entre bons católicos sobre os rumos da πόλις, cujos limites não é legítimo estreitar sob o argumento da fidelidade religiosa.
Há outro detalhe fundamental. É que as afinidades políticas — principalmente nos nossos dias, em que as agremiações se dão de forma difusa e espontânea, mais orgânica do que institucional — geralmente não têm a mesma rigidez dos cânones religiosos. Na religião não se pode escolher acreditar na Santíssima Eucaristia e descrer do sacerdócio ordenado: mas, em política, alguém pode defender simultaneamente programas de distribuição de renda e casamento civil entre o homem e a mulher. Não posso ser contra o primado do Papa e a favor da Imaculada Conceição; mas posso ser contra o aborto e a favor do Bolsa Família. A incoerência destrói a religião e deixa a política incólume.
Em uma palavra, a religião é uma coisa muito lógica, muito coerente, muito constante, muito organizada. Já a política não. Em matéria religiosa nós temos a Santa Sé para dizer, por exemplo, que o sr. Rómulo António Braschi incorreu em excomunhão em 2002 ao tentar ordenar sete mulheres e, por conseguinte, não é católico. Causa finita. Já em matéria política, mormente no Brasil, no geral não existe ideologia nem doutrina política, mas apenas fisiologismo e opinião. E, principalmente, não existe instância judicante para dizer o que as coisas são e o que elas deixam de ser. Recentemente descobrimos que o parlamentar expulso do partido por infidelidade partidária sequer perde o seu mandato; que se dirá de seu fulano ou de dona sicrana, que selecionam suas opiniões sobre assuntos públicos como a criança displicente que recolhe flores a esmo no caminho de casa? São de esquerda ou de direita? E, sendo de uma delas, ficam acaso proibidos de adotar posições convergentes com a outra? Por força de quê?
Penso que é possível reconhecer que a população brasileira é majoritária e historicamente “de esquerda”. Isso, no entanto, quer apenas dizer que ela, no geral, gosta de estabilidade de emprego e de reforma agrária, quer um Estado paternalista e prestador de serviços, considera justo que os ricos paguem impostos e os pobres recebam assistência social. Mas essa esquerda brasileira no geral não abraça as pautas morais (ou, melhor dizendo, imorais) da esquerda histérica das redes sociais: o feminismo misândrico, a promoção do aborto, o uso de drogas, a ideologia de gênero, o orgulho LGBTQWXYZ, o ódio à autoridade etc. Ora, qual das duas esquerdas é “mais esquerda”? Qual é “a verdadeira esquerda”? Quem tem propriedade para emitir esse juízo? E que diferença isso faz?
Parece-me que os rótulos podem ser utilizados para fins de simplificação — às vezes eles são mesmo necessários. Mas os empregar para ignorar diferenças importantes ou fazer generalizações descabidas é contraproducente. A “esquerda católica” obviamente não pode ser a favor do aborto, do casamento gay ou da revolução proletária, sob pena, aí sim, de deixar de ser católica; mas existem tantos outros temas legítimos implicados no adjetivo “esquerda” que não dá para negar o catolicismo de quem assim se define por conta deles — para quem quer, por exemplo, políticas de igualdade regional, moradia popular, aposentadoria especial para trabalhadores rurais, ampliação da rede pública de água e esgoto, et cetera, et cetera. A lista seria interminável.
Não há nenhuma identidade necessária entre, por exemplo, querer investimentos em educação pública e aceitar o ensino das ideias de Judith Butler para crianças. Que ambas as coisas estejam presentes no programa de certas elites é tão-somente um dado de fato — que deve, sim, ser levado em consideração na hora de fazer política, mas que não pode servir para justificar, a priori, aceitações ou rejeições em bloco, nem para fazer juízos temerários, nem para fechar portas ou cerrar fileiras de maneira acrítica. Deus é o Sumo Bem. Todo bem, portanto, esteja onde estiver, radica em última análise em Deus e a Ele pode e deve ser ordenado. Não é defeso ao católico, assim genericamente, ser de esquerda, de direita ou de centro. De fato, parafraseando Santo Agostinho (na sua célebre e tão mal compreendida frase ama et fac quod vis), a grande e incompreendida verdade é que, sendo católica, a pessoa pode ser o que ela quiser.