“O Estado controla tudo” e “a única esperança de vida para as pessoas é fugir da ilha”, explicou o núncio Musarò, descrevendo a situação de degradação, penúria e opressão dos cubanos. E concluiu dizendo que, inexplicavelmente, “até hoje, transcorrido mais de meio século, continua-se falando da Revolução e se louva-a, enquanto as pessoas não têm trabalho e não sabem como fazer para dar de comer a seus próprios filhos”.
Recebi por email a notícia sobre o núncio e a manchete jornalística. O artigo italiano original está aqui. Não faltou quem dissesse que o prelado devia ser expulso do paraíso caribenho. O fato pode ser novo, mas o drama é antigo; não nos surpreende mas, contudo, ainda nos choca e incomoda.
Lembro-me de um fato curioso da minha adolescência. Eu devia ter lá os meus dezesseis anos; conversava com alguns amigos sobre Cuba, e o assunto versava sobre os cubanos que se lançavam, mar afora, em fuga desesperada da ilha de Castro – sim, já naquela época os cubanos fugiam de Cuba. Um amigo defendeu que, de fato, Cuba não devia permitir que os seus cidadãos abandonassem o país. A justificativa: o governo cubano investia pesadamente na formação dos cubanos, suprindo-lhes as necessidades e (principalmente) dando-lhes educação de qualidade, e simplesmente não era justo que, depois de quinze ou vinte anos recebendo tudo do Estado, os cubanos dessem-lhe as costas e fossem embora, privando-o do retorno que ele esperava e merecia receber.
Não vou entrar no mérito das necessidades supridas ou da qualidade da educação cubana. Vou assumir, para argumentar, que lá na Ilha todos vivam no mais perfeito conforto material e, além disso, recebam, efetivamente, uma educação de ponta. Isso posto, a justificativa procede? Veja-se bem, o dinheiro do Estado é dinheiro público. Teoricamente, foi todo o povo cubano que sacrificou uma parte das suas economias para que um indivíduo recebesse a mais elevada formação científica. Não existe nenhuma dívida desse sujeito para com o povo que o financiou ao longo de sua vida inteira? É correto você tornar-se um profissional altamente qualificado às custas de seus conterrâneos e, depois, deixá-los à própria sorte? Não é justo que as pessoas recebam os benefícios do profissional por cuja formação pagaram?
Não lembro que objeção levantei à época, ou mesmo se levantei alguma. Se a conversa fosse hoje, no entanto, eu perguntaria ao meu amigo se ele estaria disposto a aplicar o mesmo raciocínio para o caso – banal e prosaico – da formação profissional do sujeito ter sido paga não pelo Estado, mas por papai e mamãe. Não têm direito os pais de se beneficiarem, de algum modo, do sucesso dos seus filhos, cuja possibilidade foi por eles proporcionada? Ou quando o Estado exige algo para si é um férreo dever de justiça, mas quando são os pais a reclamarem um quinhão dos haveres dos seus filhos, aí então passa a ser uma opressão medieval do patriarcado que se deve combater a todo custo, uma anacrônica ingerência na livre-determinação dos indivíduos que não pode mais encontrar lugar no nosso século XXI? Alguém seria capaz de defender que um pai proibisse seu filho de deixar a sua cidade natal? Por que, então, há quem defenda com tanto ardor que um país proíba os seus cidadãos de emigrarem?
Reconheço, em suma, certo fundamento no arrazoado; mas não ao ponto de justificar as violações ao direito de ir e vir que as autoridades cubanas praticam há décadas – violações de que desde a minha adolescência, a propósito, eu ouço falar. Sim, há deveres do homem para com a sua pátria; mas não um dever tal cujo cumprimento exija o sacrifício das liberdades individuais mais básicas. A pátria não se confunde com a configuração política da ocasião; patriotismo não é subserviência ao Estado.
É por motivos como esse, aliás, que não vejo com bons olhos que o Estado tome para si, de ordinário, a responsabilidade (quase) integral pelo sustento e formação dos cidadãos: a quem não foi financiado pela ditadura Castro, esta não pode – nem com aparência de propriedade! – exigir os sacrifícios que impõe aos que, de outra sorte, lhe devem algo. O mesmo raciocínio se aplica, guardadas as devidas proporções, para qualquer estrutura política cuja hipertrofia enseje certa desconfiança: que cada um tome cuidado para não depender em excesso dos poderosos do mundo! Mais sábio é, para usar os versos do Rostand, ser responsável por si próprio a ponto de «se acaso a glória entrar pela janela, / a César não dever a mínima parcela».