A respeito das declarações do Card. Meisner sobre a licitude do uso da “pílula do dia seguinte” em casos de estupro (aqui o artigo original do Tornielli, aqui a tradução do Fratres in Unum) que estão provocando alvoroço nos meios católicos, é preciso dizer que o problema aqui é de ordem científica e não moral.
Embora a Doutrina Católica expressa de maneira lapidar na Humanae Vitae diga que é ilícita «toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação» (HV 14), cabe notar que isto se refere ao ato conjugal, ou seja, à relação sexual legítima entre dois cônjuges unidos sob os laços do Sagrado Matrimônio. Obviamente não há nenhum “ato conjugal” entre um estuprador e sua vítima, e portanto evocar a HV aqui é simplesmente nonsense. É importante lembrar que, ao contrário do aborto – que é sempre moralmente condenável e um pecado de per si –, o uso de contraceptivos dentro de relações sexuais ilegítimas (como a prostituição ou o estupro) é uma non-issue. A procriação aqui é excluída não pelo uso do contraceptivo, e sim pela própria natureza do consórcio sexual gravemente desordenado.
No caso específico do estupro, há um enorme precedente para a declaração do Cardeal Meisner. Del Greco, no seu famoso “Compêndio de Moral Católica para o clero em geral e leigos”, falando justamente sobre o estupro e o risco de gravidez, diz que «em caso de uma menor estuprada (…) é lícito expelir o sêmen ou torná-lo estéril, desde que isso ocorra imediatamente depois da cópula; neste caso se verifica a defesa contra o injusto agressor» (op. cit., §200, 1.). Como o fato da vítima ser menor ou maior de idade não parece fazer diferença significativa alguma neste quesito (ou, dito de outro modo, como não se consegue imaginar por qual motivo um mesmo ato possa ser lícito ou ilícito dependendo unicamente da idade de quem o pratica), é legítimo concluir que a mulher estuprada pode licitamente fazer o que estiver a seu alcance para impedir a concepção.
O que ela não pode, claro, é atentar contra o embrião caso ele já tenha sido concebido; em uma palavra, abortar. E é aqui que as coisas começam a ficar complicadas: embora o Cardeal tenha dito com todas as letras que a chamada pílula do dia seguinte só seria legítima se fosse «utilizada com a intenção de impedir a fecundação» (traçando aqui um paralelo analógico incontestável com a doutrina de Del Greco) e tenha até mesmo rejeitado com veemência a hipótese do seu emprego enquanto micro-abortivo («seu uso “não é aceitável” quando se usa para impedir que um óvulo já fecundado se implante no útero», diz o texto traduzido pelo Fratres), o fato é que a gente não tem como garantir que exista um tal medicamento com efeitos unicamente anti-conceptivos mas não anti-implantatórios. Alguém precisa assessorar melhor o Cardeal Meisner: embora o que ele diga esteja perfeitamente correto, não se conhece um composto químico no mundo real que aja rigorosamente dessa maneira. A orientação, a rigor exata, é inexeqüível.
Especificamente sobre a pílula do dia seguinte, a Pontifícia Academia para a Vida já publicou um comunicado no ano 2000 dizendo que se trata de um medicamento anti-nidatório, que age também na parede uterina e cujo resultado (ao menos provável) é a expulsão de um embrião já fecundado. Ora, a mera possibilidade de que a droga ponha fim à vida de um ser humano em estágio embrionário já é suficiente para justificar o interdito moral ao seu emprego: se é possível que a pílula tenha efeito abortivo, então ela não pode ser utilizada. E, conforme me informou um amigo médico, a inexistência dos efeitos pré-implantatórios da pílula do dia seguinte ainda não foi demonstrada com a segurança que a gravidade da questão exige. Estão, portanto, certíssimos os hospitais católicos de Colônia ao se negarem a administrá-la. Errada é a tentativa leviana de levantar dúvidas sobre estas necessárias diretrizes práticas já corretamente seguidas pelos hospitais católicos.