A «cegueira» dos que defendem o Papa

Um amigo comentou que o recente texto do prof. Nougué parecia dirigido a mim, uma vez que lá ele criticava «alguns membros da chamada “linha média” católica [que] dizem, enquanto Francisco destrói o que resta dos escombros causados pelo Vaticano II e vai à Suécia comemorar os 500 anos da revolução luterana: “Francisco é o bom pastor que vai atrás das almas extraviadas”» e eu escrevi um texto aqui sobre o tema intitulado precisamente «O Bom Pastor vai ao encontro da ovelha desgarrada».

Sucintamente, a despeito da similaridade material entre as expressões empregadas nos dois textos, este blog não se identifica nos doestos do (aliás sempre excelente) Estudos Tomistas por uma simples razão: ao contrário dos comunistas, que vêem na coletivização dos meios de produção o fim último da sociedade, e dos liberais, que enxergam na democracia participativa o suprassumo da organização política, o Deus lo Vult! não encara a unidade dos cristãos como uma utopia a ser construída a qualquer preço. Enquanto os comunistas não podem aceitar uma sociedade onde exista a propriedade burguesa, este blog aceita um mundo onde exista a Igreja Católica e as seitas. Ao passo em que os liberais consideram errado um Estado que não seja erigido sobre o sufrágio popular, este blog considera verdadeira e correta uma Igreja que não inclua em Si todos os cristãos. Em uma palavra: comunistas e liberais acham que falta algo ao mundo que existe — e, não podendo aceitá-lo, querem construir um mundo diferente; já o Deus lo Vult! crê e professa que absolutamente nada falta à Igreja Católica que existe desde Cristo e existirá até a consumação dos séculos, e portanto em nada quer alterá-La.

A unidade dos cristãos não está para os católicos assim como o Socialismo Verdadeiro para os comunistas. Para alcançar este os comunistas aceitam destruir o mundo que existe, que consideram mau e errado; para atingir aquela, contudo, os católicos não querem — e aliás não podem — sacrificar a Igreja que existe, que consideram santa e perfeita. As duas situações portanto nada têm a ver uma com a outra, guardando entre si apenas uma semelhança material mas não formal. Ao se olhar de perto, as diferenças saltam aos olhos.

Um comunista tolera o extermínio de seus compatriotas como um meio para atingir o “bem maior” do Estado Socialista. Um católico, todavia, não pode tolerar a destruição da Igreja e a apostasia da Fé como um meio para atingir a “unidade” dos cristãos.

Há de fato “católicos” para os quais pode-se sacrificar questões doutrinárias em atenção à convivência pacífica entre os homens, “católicos” que entendem que a Igreja é uma espécie de ONG e não a portadora de uma Verdade a anunciar a toda criatura. Estes merecem censura e este blog jamais os poupou. No entanto, e graças ao bom Deus, não coaduno com as posições deles, que reputo equivocadas e que sempre mereceram, aqui, as mais acerbas críticas.

“Mas, então, como o Deus lo Vult! defende as fórmulas de compromisso da linguagem eclesiástica e a política vaticana de aproximação aos inimigos tradicionais da Igreja?” Ora, defende-as — e isso é importante — como uma opção de governo legítima, mas não necessária. Defende que as coisas possam ser conduzidas dessa maneira sem que isso implique em apostasia da Fé Católica, e não que elas devam ser assim realizadas sob pena de traição ao Evangelho. São duas coisas completamente diferentes. A Doutrina não exige que o Vigário de Cristo se sente com os falsificadores do Evangelho para discutir alguma colaboração mútua pontual; no entanto, a mera união contingente e acidental entre católicos e hereges para fins de uma empresa comum também não infirma a Doutrina Católica!

Não se trata, portanto, de fazer “vista grossa” a um mal presente em atenção a um bem futuro. Trata-se justamente de olhar o presente, analisá-lo, discuti-lo, esmiuçá-lo e, ao fim, concluir que ele não é exatamente o que os inimigos da Igreja andam alardeando. Não se trata de aceitar a ideologia de gênero para trazer os transexuais à Igreja: o ponto é que lavar os pés a um transexual não se confunde com sacramentar o transexualismo. Não se trata de liberar a comunhão eucarística para os adúlteros a fim de que eles se sintam acolhidos nas paróquias: a questão é que a Amoris Laetitia não manda dar comunhão indiscriminadamente a adúlteros. Mil outros exemplos poderiam ser citados; é sempre esta exata mesma coisa. É sempre conferir, prima facie e inaudita altera pars, a interpretação mais desabonadora possível a qualquer gesto esboçado pelo Romano Pontífice. É sempre transformar discordâncias de governo em questões doutrinárias inegociáveis. É o tempo inteiro confundir a pessoa de quem discordo politicamente com um apóstata excomungado que devo escorraçar como um cão sarnento — mesmo que se trate do Vigário de Cristo! Não, a alternativa a isso não pode ser uma cegueira voluntária moralmente censurável. Entender que o Papa pode tomar alguma atitude com a qual eu não concorde sem que ele seja, por isso mesmo, um papa iníquo que quer destruir a Igreja é questão de maturidade social, intelectual e espiritual. Evidentemente nada disso falta ao prof. Nougué e aos seus textos sempre equilibrados. Mas uma simples olhada pela caixa de comentários deste blog — e de outros blogs e páginas de Facebook que compõem o dito tradicionalismo lusófono de internet — mostra que estou longe de me bater contra moinhos de vento.

Em suma: a ida do Vigário de Cristo à Suécia não é a destruição «[d]o que resta dos escombros causados pelo Vaticano II». Este blog tem dedicado os últimos anos a argumentar precisamente que o Vaticano II não destrói a Doutrina Católica. Da exata mesma forma que os textos conciliares não implicam em uma apostasia da Fé, embora possam ser (e, aliás, tenham historicamente sido) lidos nesta chave, as atitudes do Papa Francisco não significam a negação da Fé Cristã — embora a mídia anticlerical e muitos dos sedizentes tradicionalistas estejam alegremente acordes nesta interpretação. O paralelismo é notável: se a ortodoxia do Concílio pode ser defendida então a das atitudes do Papa Francisco também o pode. No que concerne a este blog, tal praxis — esta «cegueira» — não vem de agora; trata-se, tão-somente, de coerência com os próprios pressupostos, com a Sã Doutrina da salvação, com a Fé Católica e Apostólica sem a qual é impossível agradar a Deus. Foi Santo Inácio quem disse estar disposto a afirmar que o branco que ele via com seus olhos era preto, se tal fosse assim definido pela Igreja; em matéria de não se deixar levar pelas aparências, portanto, o Deus lo Vult! parece estar em boa companhia.

«Por uma Filosofia Tomista»: Curso online ministrado pelo prof. Carlos Nougué

Divulgo com prazer o Curso on-line de 60 horas ministrado por Carlos Nogué, «Por uma Filosofia Tomista». A ementa do curso será a seguinte:

I) Apresentação geral: A necessidade de uma Filosofia tomista.
II) Preâmbulo 1: Resumo da História da Filosofia – Do impulso grego ao abismo moderno.
III) Preâmbulo 2: Se Santo Tomás era filósofo e/ou teólogo.
IV) Preâmbulo 3: A essência da doutrina de Santo Tomás, ou se o tomismo é um aristotelismo.
V) Preâmbulo 4: Como estudar a Filosofia, e em ordem a quê.
VI) Introdução geral à Filosofia, ou seja, a seus conceitos elementares (já aqui se implicam noções da Lógica, da Física e da Metafísica):
1) O que é conhecer 2) O ente e os primeiros princípios; 3) A quididade das coisas; 4) O essencial e o acidental; 5) Substância e acidentes; 6) A questão do an sit; 7) Ente e esse (ser ou ato de ser); esse e existência – uma primeira aproximação; 8) Divisão e definição; 9) Se os acidentes são entes e têm quididade; 10) Se as coisas artificiais têm quididade.
VII) Introdução à Lógica:
1) A simples apreensão; 2) As propriedades das coisas; 3) O juízo ou composição; 4) As causas; 5) O silogismo; 6) Em defesa da Lógica; 7) Se a Lógica é arte ou ciência; 8) As propriedades da Lógica; 9) O método da Lógica; 10) Lógica e Gramática.
VIII) Intermédio: A ordem das ciências e das artes.
IX) Introdução à Física geral:
1) O que é a natureza; 2) Os princípios da natureza: ato e potência, etc.; 3) O sujeito da Física Geral; 4) Existência e esse – segunda aproximação; 5) Em defesa da Física Geral aristotélico-tomista; 6) Se e em que caducou esta ciência; 7) O método da Física Geral; 8) Que classe de ciência é a Física moderna; 9) O que pensar da Biologia, da Psicologia, etc., atuais; 10) Uma crítica a Jacques Maritain.
X) Introdução à Metafísica:
1) Se tal ciência existe ou é válida ou necessária; 2) O sujeito da Metafísica; 3) Ente e esse – segunda aproximação; 4) As propriedades da Metafísica; 5) O método da Metafísica; 6) Diferença entre Teologia (ou Metafísica) e Sacra Teologia, e se elas se opõem; 7) As provas da existência de Deus; 8) O tratado de Deus uno.
XI) Apêndices:                                                                               
1) Os transcendentais; 2) Se o mal é algo; 3) A alma humana e sua imortalidade; 4) A Política e sua ordem ao Fim último do homem; 5) O mundo poderia ter sido criado ab aeterno (desde a eternidade)?

Para quem não conhece, o Prof. Nogué é, entre outras coisas, responsável pelo blog “Estudos Tomistas” e tradutor dos deliciosos contos policiais de Chesterton colecionados n’A Inocência do Padre Brown.