O mundo é, definitivamente, cômico. Eu não sei o que foi exatamente que o Papa Francisco falou na homilia da Domus Sanctae Marthae na sexta-feira (20) – no momento em que escrevo essas linhas, a página do Vaticano está atualizada somente até o dia 19 de fevereiro -; mas sei que a manchete sobre a qual as pessoas desde sexta não param de falar (“Papa diz que pagar salários sonegando impostos é “um pecado gravíssimo””) é de um sensacionalismo grosseiro, que tem muito de lugares-comuns ideológicos e muito pouco de fatos jornalísticos. É realmente engraçado: sobre Fé e Moral ninguém quer escutar a Sua Santidade, mas em questões tributárias (!) o Papa Francisco rapidamente ajunta ao redor de si um auditório atento e deferente, ávido por espraiar, mundo afora, as jóias de sabedoria que julga ter logrado garimpar do que pensa ter ouvido o Papa dizer…
[Note-se, aliás, que o mesmo acontecimento, narrado pela mídia católica, não faz nenhuma menção a impostos.]
Houve de tudo: de quem dissesse que os impostos devem ser sempre pagos como se fossem o dízimo recolhido aos cofres do Templo de IHWH até quem falasse que isso era uma estatolatria ímpia com a qual cristãos não deveriam jamais condescender. Os impostos devem ser recolhidos ferreamente, podem ser pagos ao alvitre do contribuinte ou não devem ser repassados ao Estado de nenhuma maneira: cada qual que escolhesse a bandeira que melhor o representasse. No meio do pandemônio, convém fincar dois marcos para além dos quais é certo estar o erro. No espaço compreendido entre esse dois extremos é possível mover-se; já ultrapassá-los, aí não.
Primeiro marco: as autoridades constituídas têm poder conferido pelo próprio Deus para cobrar impostos, os quais portanto devem ser pagos. Omnis potestas a Deo: e se isso inclui até mesmo o poder de condenar à morte (cf. Jo XIX, 11), claro está que abarca também o de cobrar impostos. Outra coisa não diz o Apóstolo: “Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito (Romanos 13, 7)”.
Para o católico não pode haver dúvidas quanto a isso, por mais que esbravejem os libertários contemporâneos. O Catecismo Romano, escrito em seqüência ao Concílio de Trento – séc. XVI portanto, muitas gerações antes das revoluções burguesas -, já o afirmava. Com a clarividência que sempre lhe é peculiar, a Igreja transpassava o véu do futuro e fulminava, séculos antes de ser divulgada na internet, a ideia de que “imposto é roubo” hoje alardeada. É o contrário. Roubo é não pagar os impostos. Assim consta no antigo Catecismo (III parte, Cap. VIII, 10):
Nesta classe de ladrões se incluem os que não pagam, ou desencaminham, ou aplicam para si mesmos os impostos, fintas, dízimos e outras contribuições devidas aos superiores eclesiásticos e às autoridades civis.
E, respondendo à objeção de que se a vítima fosse rica a subtração de um bem de relativamente módico valor não lhe faria falta e, portanto, tal não seria pecado (qualquer semelhança com o Estado que “já tem dinheiro demais” não parece mera coincidência), o Catecismo fulmina (id. ibid., 23):
Mas que responder, quando por vezes ouvimos os ladrões afirmarem que não cometem pecado algum, roubando de pessoas ricas e abastadas, que disso não sofrem dano algum, e nem chegam a perceber o furto? Na verdade, uma vil e funesta desculpa.
O mesmo se diz, pouco antes, contra os que “tomam, por desculpa, a maior facilidade de levarem um padrão de vida mais confortável” (id. ibid. 22).
Não há, portanto, margem para tergiversar. O Estado não rouba ninguém ao cobrar impostos. Ao contrário, quem rouba é quem nega às autoridades civis aquilo que lhe é devido. Esta e não outra é a Doutrina Católica, da qual não se devem apartar os que têm mais amor à própria alma do que ao dinheiro.
Segundo marco: ninguém é obrigado a recolher impostos às custas da ruína de si próprio e dos seus.
Isso é bastante óbvio. Depreende-se da própria noção de subsidiariedade, segundo a qual não faz sentido prover às necessidades das esferas mais altas ao sacrifício das mais baixas.
Depreende-se, também, do fato de que o Estado, embora tenha legitimidade para promulgar leis, as vezes o faz de maneira ilegítima, se as leis que ele manda observar são injustas. Neste caso, tais leis não precisam ser obedecidas senão na medida de evitar o escândalo ou a desordem (cf. Summa, I-IIae, q. 96, a.4, Resp.). Ora, mas os impostos são instituídos mediante leis. Pode haver situações, portanto, em que seja legítimo deixar de pagar os impostos.
Por fim, já há, no próprio ordenamento jurídico positivo brasileiro, casos em que se reconhece não ser exigível o sacrifício do próprio patrimônio ao Fisco. P. ex.:
O conjunto probatório colhido no curso da instrução processual comprova a ausência de dolo na conduta do réu, restando testificadas as sérias dificuldades financeiras vivenciadas pela empresa contemporaneamente aos fatos esquadrinhados. A inadimplência para com o fisco foi constatada mediante simples fiscalização do INSS, uma vez que todos os descontos estavam devidamente escriturados nos documentos contábeis da empresa, detalhe que bem ajuda a corroborar o juízo de que o réu não se portou dolosamente,
Na hipótese dos autos, em que pese a comprovação da materialidade e autoria delitiva em questão, faz-se necessário reconhecer a incidência da causa de exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, em face das dificuldades financeiras apresentadas pela empresa. 2. Demonstradas, na forma da v. sentença apelada, as dificuldades financeiras vivenciadas pela empresa administrada pela acusada, faz-se necessária a manutenção da sentença a quo que a absolveu da prática do delito previsto no art. 168-A, § 1º, I, do Código Penal, com o reconhecimento da causa de exclusão de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa. 3. Sentença mantida. Apelação criminal desprovida.
Ou seja: do fato de o Estado ter legitimidade para cobrar impostos (falando-se em sentido amplo e genérico) não necessariamente segue que todo e qualquer imposto particular seja legítimo (falando-se, aqui, de cada caso concreto). Do fato de ser necessário pagar impostos, não segue que os impostos precisem sempre ser pagos sob pena de “pecado gravíssimo” – às vezes, aliás, como se mostrou, nem mesmo de crime.
Não se nos entenda mal. É evidente que não é legítimo a cada particular esquadrinhar as leis emanadas pelo Estado para, por conta própria, decidir se são justas ou injustas: isso geraria o caos social. As autoridades legítimas devem gozar de presunção de legitimidade, é lógico. A desobediência civil – mesmo no caso do pagamento de impostos – é para ser invocada com parcimônia, e somente em casos proporcionalmente graves. No entanto, é preciso deixar claro que ela existe. E, ao contrário do que alardeou recentemente certa mídia, não é sempre “pecado gravíssimo” deixar de pagar os impostos de César.
P.S.: Já saiu a meditazione da sexta-feira no site do Vaticano: Digiuno dall’ingiustizia. Não há nenhuma referência direta a impostos. A provável origem da manchete é a seguinte passagem:
«Va bene. E com’è il rapporto con i tuoi dipendenti? Li paghi in nero? Paghi loro il salario giusto? Versi i contributi per la pensione? Per assicurare la salute e le prestazioni sociali?»
Portanto, i) não se trata de “impostos” simpliciter, e sim daquilo que é devido pelo empregador aos seus empregados com vistas a pensões, saúde e prestações sociais – i.e., não se trata do dever do cidadão perante o Estado, mas do homem para com os que dele dependem; e ii) a censura pontifícia é dirigida à sonegação de impostos apenas mediatamente, uma vez que o que se condena na verdade é «quello che non fa giustizia con le persone che dipendono da lui». E a “justiça” ao empregado, definitivamente, não é a Previdência Social do estado brasileiro! Que não pensem que os deveres cristãos se esgotam em remeter os pobres aos tentáculos de Leviatã. Se a generosidade dos patrões não sobrepujar a dos burocratas de Brasília, ser-lhes-á difícil herdar o Reino dos Céus…