O sertanejo é, antes de tudo, um forte.
(Euclides da Cunha, “Os Sertões“).
Um forte, antes de tudo: assim se expressou Euclides da Cunha, referindo-se ao sertanejo – ao nordestino! -, no seu clássico livro sobre a expedição de Canudos. De acordo com o jornalista, o que impressionava na figura do nordestino era o contraste entre a sua aparência e esta força que se revelava, de maneira súbita, tão logo fosse necessária.
O sertanejo em “Os Sertões” é “desgracioso, desengonçado, torto“. Tem uma “postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente“. É um “homem permanentemente fatigado” e “[r]eflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo“. Todavia, “toda esta aparência de cansaço ilude“:
Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.
(id. ibid.)
Ao ler essas linhas e descobrir a surpresa que causa no jornalista encontrar tamanha força de vontade em uma figura de onde parecia que não poderia sair nada, não consigo deixar de imaginar que surpresa, então, não teria o ilustre escritor se se debruçasse um pouco sobre a figura mais simples, mais comum e mais corriqueira que ele poderia encontrar: o cristão. Bem que escreveria, então, e o faria com muito mais propriedade, que o cristão é que é, antes de tudo, um forte.
Acusa-se muitas vezes a religião de ser uma muleta de fracos, engodo de massas, pseudo-consolo para fracas inteligências, e tantas coisas assim parecidas. De fato, o cristianismo tinha tudo para ser uma religião de derrotados. Dentre os seus preceitos, constam coisas como dar a outra face para quem lhe esbofetear e oferecer a túnica para quem lhe roubar a capa. Dentre os seus valores mais básicos, está a noção de que ganhar o mundo inteiro não tem importância nenhuma se se vier a perder a própria alma. Entre as coisas que os cristãos podem esperar, citam-se serem perseguidos e sofrerem tribulações. Até mesmo o seu Fundador – e exemplo máximo a ser seguido – é representado no ápice da derrota, morto vergonhosamente como marginal, dependurado numa Cruz.
Colocadas as coisas desta forma, poder-se-ia esperar, realmente, que o seguidor sincero dessa doutrina fosse um fracassado, um traumatizado, um masoquista, um “Zé-Ninguém”, um “mosca-morta”, um inútil. Todavia, já São Paulo nos ensinava, há dois milênios, o grande segredo que se encontra escondido nessa doutrina: “Porque, quando eu sou fraco, aí é que eu sou forte” (cf. 2Cor 12, 10).
Ao contrário do que se poderia esperar, o Cristianismo venceu o mundo. Produziu não covardes, mas mártires. Construiu não favelas, mas civilizações inteiras. Conquistou não somente os rudes e ignorantes, mas as mais finas inteligências de todos os tempos. Saindo do subterrâneo das catacumbas, elevou-se até o céu com as torres góticas das catedrais medievais. Quem poderia imaginar tudo isso, se olhasse para os Doze homens rudes da Galiléia? Esta transmutação é muito mais portentosa do que a transfiguração do sertanejo fatigado em “titã […] potente“!
O segredo desta grande força motriz do Cristianismo encontra a sua mais eloqüente expressão em dois aspectos da Doutrina Cristã, que se referem à relação do homem consigo próprio e com o seu próximo, e que, reunidos, são capazes de mudar o mundo. Refiro-me ao aperfeiçoamento pessoal e à consciência da vida em sociedade, da qual os cristãos precisam ser fermento. Se uma construção portentosa é feita com material de má qualidade, então todo o edifício irá fatalmente ruir. Se, por outro lado, os melhores materiais do mundo estão jogados no canteiro de obras, eles continuam sendo um monte de entulho sem utilidade. Somente quando os materiais são bons e estão dispostos da maneira correta é que se podem levantar as catedrais.
Para o cristão, então, não é suficiente empenhar-se para a sociedade ser perfeita: ele precisa também cuidar da própria perfeição. Ao mesmo tempo, não é suficiente acumular bens, ciência, virtude, poder: todas essas coisas precisam estar ordenadas para o bem comum. Esmagados estão, pela Doutrina da Igreja, ao mesmo tempo, quer o egoísmo do capitalismo selvagem, quer o totalitarismo do comunismo igualitário. Nem os materiais de construção têm serventia sozinhos, e nem as construções úteis e belas são feitas com um tipo só de material. O homem moderno não percebe essas coisas e, por isso, não consegue erguer catedrais.
Preocupar-se com a sociedade mesmo quando o homem poderia ter tudo, e preocupar-se com o homem mesmo quando a sociedade poderia oferecer tudo: eis a grande fraqueza do cristão e que, ao mesmo tempo, é a sua grande força. Movido por este ideal, o cristão avança ao longo da História. É perseguido, e não se desespera; vê caírem impérios, e ele não se perturba. Por importar-se tanto consigo mesmo até o ponto de desprezar as benesses estatais, e por importar-se tanto com os outros até o ponto de desprezar o sucesso próprio, alguém bem que poderia dizer: – mas, então, este sujeito não se importa com nada!
Engana-se. O cristão, na verdade, importa-se com Deus; e isso é tudo o que importa. “Buscai primeiro o Reino de Deus“, diz o Evangelho, “e tudo o mais vos será acrescentado” (cf Mt VI, 33). A história da Igreja ao longo dos séculos revela o cumprimento desta promessa do Divino Salvador. Os seguidores do Crucificado não são uns derrotados, e sim os heróis da História. Escolhendo caminhar por si próprios quando outros lhes apresentam um caminho largo e fácil de ser seguido, e escolhendo caminhar junto com os outros quando poderiam ir muito mais longe por si próprios, a aparente contradição só pode ser resolvida quando se tem os olhos fitos no Alto: na verdade, nem há paraíso terrestre que os homens possam oferecer, nem há pote de ouro no fim do arco-íris para quem chegar lá primeiro. Há somente a Cruz, e Ela é a única esperança; e, carregá-la, a única alegria verdadeira. Eis a força cristã, eis a vitória por meios adversos, eis o que causa verdadeiramente estupor. Não merece tantos elogios o sertanejo: ser cristão, ah, isso sim – isso é que produz os verdadeiros fortes.