Nota de falecimento: Eduardo Barreto Campello

Faleceu esta madrugada o dr. Eduardo Jorge do Carmo Bahia Barreto Campello, ex-presidente do Círculo Católico de Pernambuco, advogado, professor, católico fervoroso, amigo dedicado. Recuperava-se de um transplante de fígado, e se recuperava bem; aprouve no entanto a Deus chamá-lo para junto de Si, para a Eternidade onde — assim cremos e esperamos — hoje recebe a glória que este mundo lhe negou em vida.

Deixa esposa e filhos, e primos e sobrinhos, e uma multidão de amigos que hoje se reuniu — em uma segunda-feira à tarde que “coincidiu” de ser o dia de Nossa Senhora de Lourdes — para lhe prestar as últimas homenagens. A todos consolava a esperança da Ressurreição, a certeza de que a vida não termina com a morte — antes começa! — e a confiança de que os corpos que deitamos nos nossos cemitérios haverão, um dia, de ressurgir livres da corrupção da velhice e da doença. Semeamos as nossas fraquezas para colher, um dia, a Imortalidade.

No Círculo Católico, com D. Bertrand

Estive no velório e no sepultamento, pude rever alguns amigos — uma pena que o tenha sido, assim, em tão pungentes condições…! — e lançar um último olhar ao velho colega, ao guerreiro alquebrado, ao servo fiel de Deus que retorna ao Pai antes de nós. Mas, que digo? Não foi um último olhar. Do Céu, agora que pode mais perante Deus, tenho certeza de que o Dr. Eduardo olha por nós com paternal cuidado. Somos cristãos e as nossas cerimônias fúnebres, com todos os seus laivos de tristeza, são, ainda assim, antes um até-logo do que um adeus definitivo.

Estive no Cemitério de Santo Amaro e pude acompanhar o féretro no seu percurso doloroso pelas ruas da cidade dos mortos. Saindo da capela dos velórios por entre os corredores estreitos dos ossuários — cada um em seu escaninho, / cada um em sua gaveta, / com o nome aberto na lousa, / quase sempre em letras pretas, como canta João Cabral –, chegando às suntuosas avenidas dos mausoléus ([a]s avenidas do centro, / onde se enterram os ricos) e seguindo mais além, passando diante da igreja até uma pequena clareira, em um canto, sem pompa, sem luxo, sem nada, debaixo de uma árvore seca, em uma cova rasa de areia, ali desceu o caixão à terra. Ali se derramaram as últimas lágrimas e as últimas orações. Ali deixamos Eduardo, o grande, buscando talvez um lugar esquecido dos homens para que fosse lembrado de Deus.

Descanse em paz, Dr. Eduardo, e que o Altíssimo possa lhe recompensar o zelo apostólico como o mundo não foi capaz de o retribuir.

Pater Noster + Ave Maria.

Requiem aeternam dona ei, Domine,
et lux perpetua luceat ei.

Requiescat in Pace.
Amen.

Um dia seremos nós

Ontem foi o dia de Finados, a «comemoração dos fiéis defuntos» que a Igreja celebra anualmente. É um dia que fala muito mesmo ao homem contemporâneo, alheio que ele costuma ser a questões religiosas: afinal a morte, cedo ou tarde, nos atinge a todos indistintamente. Mesmo um católico não-praticante pode ter alguma dificuldade para entender, por exemplo, o que é a festividade de Corpus Christi; já o valor da recordação dos mortos, por sua vez, isso até um militante ateísta consegue perceber.

Nós não temos uma relação lá muito saudável com a morte: raramente pensamos nela, somos displicentes na preparação para a sua chegada e, no geral, vivemos os nossos dias como se ela nada tivesse a ver conosco. Aquelas palavras de Santo Agostinho têm uma aplicação que perpassa os séculos e dizem respeito a todos os homens desde que o mundo é mundo: enterramos os nossos parentes e amigos, vemos funerais todos os dias e, não obstante, continuamos a nos prometer longos anos de vida. Faz bem a Igreja em dedicar um dia aos finados; cuidando dos mortos, pensando neles, de certo modo é de nossa própria morte que cuidamos.

purgatory

A Liturgia dos defuntos sempre me impressionou. O negro dos paramentos, o tom grave da celebração, a essa fúnebre na nave central, o Dies Irae… tudo converge o pensamento para o Juízo, parece que as próprias paredes do templo exalam compunção. Alguém talvez critique o caráter mórbido da solenidade — “parece até que vamos morrer”. Bom, não parece, a verdade é que nós vamos morrer mesmo e quanto antes aceitarmos isso melhor. A vida é um piscar de olhos — é uma noite mal dormida em má pousada, como diz Sta. Teresa. Deixar de viver por conta da morte, aí sim é doentio, aí sim é morbidez; mas tal não tem nada a ver com ter consciência da própria morte e se comportar de acordo com isso.

Gosto da Liturgia dos defuntos; de uma certa maneira, enquanto nós rezamos por eles é como se estivéssemos rezando também por nós. Primeiro porque toda a Liturgia faz pensar na morte, como eu disse. E pensar nos novíssimos — não canso de o dizer aqui — é um exercício salutar e necessário à vida cristã: levaríamos uma vida mais perfeita se pensássemos na morte com mais frequência.

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Segundo porque naquela liturgia nós por diversas vezes nos pegamos rezando em primeira pessoa: por exemplo, ao longo da sequência é como se estivéssemos nós próprios perante o Juízo Final. Sou eu que, miserável, não sei o que dizer (quid sum miser tunc dicturus?); é o meu rosto que enrubesce de vergonha pelos meus pecados (culpa rubet vultus meus); são as minhas orações que não são dignas de chegar a Deus (preces meæ non sunt dignæ); é o meu fim que confio aos cuidados do Juiz (gere curam mei finis). E é bom recitar essas preces em nosso próprio nome enquanto tal nos é permitido: talvez a nossa voz ecoe até os umbrais da Vida Eterna e, um dia, diante do Justo Juiz, cheguem até ele as súplicas que Lhe fizemos enquanto ainda podíamos suplicar.

Terceiro porque livrando almas do Purgatório nós conquistamos amigos no Céu. Pode-se lucrar uma indulgência plenária no Dia de Finados; diferente das outras, no entanto, essa indulgência, que se pode ganhar visitando uma igreja no dia 2 de novembro (ou visitando um cemitério entre o dia 1º e o dia 8 de novembro), é aplicável aos defuntos e não ao fiel que pratica a obra indulgenciada. Não é só um exercício particularmente desinteressado de caridade — conquistar uma coisa que vai servir totalmente para outrem e não para si; é a maior graça que um fiel falecido pode receber. Se um fiel vivo consegue em um determinado momento a remissão total das penas temporais devidas pelos pecados que ele já cometeu, nada impede que ele volte a delinquir e, até o fim da vida, acumule outras tantas penas sobre as que foram apagadas. Uma alma no Purgatório, no entanto, não peca mais, e recebendo uma indulgência plenária ela entra direto no Céu. Quer dizer, são as indulgências mais eficazes do mundo: aqui o tesouro de méritos da Igreja encontra a sua máxima realização. De um modo maravilhoso aqui se cumpre a prece do Dies Irae: «tantus labor non sit cassus». Estas indulgências — entre todas — não ficam em vão. Maravilhas da misericórdia de Deus.

É bela a Liturgia dos defuntos, com os seus cantos graves e seus paramentos negros. Não porque a morte seja uma coisa bela, mas por conta da esperança da Vida Eterna que perpassa toda a Fé Cristã e, no dia de ontem, resplandece com um fulgor todo especial: no 2 de novembro aplacam-se um pouco as chamas do Purgatório e, graças à atividade da Igreja Militante, muitas almas benditas deixam a Igreja Padecente e ingressam jubilosas nas fileiras da Igreja Triunfante. Nessa Missa nós não temos direito sequer à bênção final, dedicada que é aos mortos a celebração inteira; mas na absolvição do catafalco com a qual se encerra a cerimônia a nossa esperança é reavivada e o nosso papel neste mundo adquire um renovado sentido. Do féretro simbólico aspergido pelo sacerdote sobem almas para o Céu. Elas vão lá nos preceder, preparar-nos um lugar. Um dia seremos nós. E apraza a Deus que haja então ainda dias de Finados para nos valer.

A ressurreição da carne e a cremação

Algumas pessoas me perguntam se é verdade que o Vaticano proibiu a cremação. Não, não é verdade. O que aconteceu foi que hoje, 25 de outubro, foi publicada uma instrução da Congregação para a Doutrina da Fé — Ad resurgendum cum Christo — contendo algumas normas a respeito «da conservação das cinzas da cremação».

Primeiramente e antes de qualquer outra coisa, se estão sendo publicadas normas sobre o que se pode e o que não se pode fazer com as cinzas da cremação, é evidente que a cremação em si não pode ser proibida — senão não teria sentido disciplinar o destino das cinzas. A autorização para que os católicos sejam cremados, portanto, é tácita e se infere do próprio título da instrução. Se tal não fosse o bastante, o documento ainda diz textualmente que «a Igreja não vê razões doutrinais para impedir tal práxis [da cremação]; uma vez que a cremação do cadáver não toca o espírito e não impede à omnipotência divina de ressuscitar o corpo» (ARCC, 4).

Em segundo lugar, é preciso deixar também claro que a Igreja tem uma preferência manifesta e vultosa pelo enterramento: a prática de enterrar os mortos é muito mais adequada e muito mais conforme à Fé Cristã por várias razões. Primeiro porque é, historicamente, a prática distintiva do Cristianismo frente aos pagãos da Antiguidade (estes, que cremavam os seus mortos).  Segundo porque propicia a existência dos cemitérios, dos campos santos, esses lugares sagrados de oração e de meditação onde aqueles que morreram esperam o dia terrível da Ressurreição dos Mortos. Terceiro porque ela representa melhor a crença na ressurreição da carne, este ponto da Fé Católica que, paradoxalmente, é tão negligenciado mesmo no século materialista em que vivemos.

Confesso não conhecer as minudências escatológicas das outras religiões (não sei, por exemplo, como os muçulmanos entendem o negócio do paraíso com as virgens), mas o credo cristão é bastante claro e literal: Deus haverá de ressuscitar o mesmo corpo que nós possuímos hoje. Não é um corpo “espiritual” nem “metafórico”, mas um corpo físico mesmo, formado de matéria, que ocupa lugar no espaço, que possui sentidos, enfim, um corpo como os corpos que nós conhecemos. “Ah, mas vai ser exatamente igual, vai sentir dor, vai ter os mesmos dentes faltantes, essas coisas?” Não, aí não. Na Ressurreição da carne o nosso corpo será glorificado e, portanto, vai possuir algumas características que hoje não possuímos — a teologia clássica elenca a impassibilidade, a sutileza, a agilidade e a claridade –, sem que contanto deixe de ser um corpo.

As relações disso com a inumação são bastante óbvias: se o Cristianismo vive da espera da ressurreição da carne, e se essa ressurreição dar-se-á no mesmo corpo que vivia, então a prática de deitar este corpo em repouso em algum lugar — o cemitério — é bastante proporcionada com a crença que os cristãos professamos. Se o corpo vai ressurgir, então existe nele alguma coisa de sagrado — e, portanto, exige-se-lhe um respeito diferente do que se concede a uma coisa (por útil que nos seja!) que nós usamos e depois jogamos fora, porque se estragou e não nos serve mais, e não a voltaremos a usar. Na verdade, nós não “usamos” o nosso corpo como querem os espíritas, nós somos o nosso corpo, por conta da composição hilemórfica — corpo e alma em união substancial — do ser humano.

“Ah, mas os corpos podem ter sido destruídos por ocasião da própria morte, como por exemplo um incêndio ou um naufrágio; além disso, os católicos sempre tiveram a prática de destruir os corpos dos santos, despedaçando-os em mil e uma relíquias”. Sim, tudo isso é verdade, e nada disso constitui verdadeiro empecilho a que Deus ressurja o corpo por ocasião do Juízo Final, e é exatamente por conta dessas coisas que não existe nenhum óbice intrínseco à prática da cremação. Deus é Onipotente para reconstituir os corpos ainda que os seus pedaços se tenham espalhado por toda a Terra: o mesmo corpo, convém lembrar, não significa a mesma matéria (até porque a matéria que o nosso corpo possui hoje não é mais a mesma que possuía quando éramos crianças, e não obstante continua sendo o nosso corpo). Santo Tomás já falava isso no século XIII: «as cinzas de um corpo humano devem, na ressurreição, voltar a constituir a mesma parte do corpo que nelas se dissolveu»? E concluía pela negativa: «nas cousas artificiais não é necessário, para reparar uma obra com a mesma matéria, que as partes dessa matéria sejam colocadas no mesmo lugar. Logo, nem é necessário que tal se dê com o homem».

O que diz, em suma, a Ad resurgendum cum Christo? Apenas disciplina aquilo que já estava dito no Catecismo. Este dizia: «[a] Igreja permite a cremação a não ser que esta ponha em causa a fé na ressurreição dos corpos» (CCE, 2301). Aquela enumera alguns atos concretos que põem «em causa a fé na ressurreição dos corpos» e que, portanto, são proibidos. As normas são as seguintes: as cinzas devem ser conservadas em um lugar sagrado, como um cemitério ou igreja (n. 5); apenas muito excepcionalmente, e com autorização da autoridade eclesiástica, podem ser conservadas em casas particulares (n. 6); não se podem dispersar as cinzas «no ar, na terra ou na água ou, ainda, em qualquer outro lugar», nem transformá-las em jóias ou outros objetos (n. 7). Com isso se condenam as práticas atualmente vigentes que vão de encontro àquela Fé na ressurreição da carne que é apanágio do Cristianismo.

O mundo precisa do testemunho da ressurreição. A Igreja, consciente do valor dos símbolos e zelosa pela fé dos fiéis, estabelece normas específicas sobre o cuidado que se deve ter com os mortos no mundo materialista e imanentista em que nós vivemos. As atitudes que nos cercam e as práticas sociais com as quais nos acostumamos podem não raro nos levar ao obscurecimento da Fé; para evitar este risco, em boa hora vem a lume esta instrução da Congregatio Pro Doctrina Fidei. Façamo-la conhecida, a fim de dissipar os equívocos tão comuns neste tema.

Drummond, os mortos, o corvo, o Reveillon

E passou 2010, e chegou 2011. Findou-se, aliás, a primeira década do século XXI. Do terceiro milênio! Muita coisa poderia (e deveria) ser escrita sobre isso, mas não o vou fazer agora. Estou – ainda – longe de casa, e com um (terrivelmente egoísta!) desejo incontrolável de pensar em mim próprio. De ver o que foi feito no ano que passou, e o que pode ser feito no ano que se inicia agora.

Eu nunca gostei (acho que já disse isso algures) das listinhas de ano-novo. Mas pretendo fazer algumas coisas bem concretas este ano. Porque, na verdade, olhando para trás, fico com uma incômoda sensação de ter desperdiçado muito tempo. Bastante coisa foi feita! Mas quantas mais não seriam, caso eu me empenhasse mais? E não quero esperar que esta cantilena vire um epitáfio.

Aqui, em Paris, quando fomos ao cemitério na terça ou quarta-feira, havia alguns corvos por lá. São bonitos estes animais agourentos. E, em um certo momento, um deles grasnou (ou seja lá qual for o tipo de som que os corvos fazem): cras, cras. E eu, imediatamente, lembrei-me da história de Santo Expedito e respondi-lhe sozinho: hodie. Sozinho no cemitério – meu irmão olhava não-sei-o-quê mais à frente -, os mortos e um corvo a me darem lição de moral. A me dizerem com eloqüência como o tempo passa rápido; dentro em breve, são apenas os ossos no cemitério. Cras, cras, cras… é preciso dizer não. É preciso dizer hodie. É preciso fazer já.

É de Drummond aquele trecho sobre o ano: “Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Ai entra o milagre da Renovação e tudo começa outra vez… com outro número e outra vontade de acreditar que daqui para adiante vai ser diferente”. Sim, com todos os clichês do mundo, o Ano-Novo tem esta espécie de (digamos assim) poder: a capacidade de fazer acreditar que, doravante, vai ser diferente. Pode ser diferente. Precisa ser diferente.

Porque, se dermos ouvidos aos corvos – cras, cras, cras -, restar-nos-á somente a inscrição fúnebre do que poderia ter sido. E ninguém quer isso. O “milagre” da Renovação – tradicionalmente expresso nas listinhas de coisas a fazer no ano novo – é esta capacidade de acreditar que as coisas podem mudar. É uma auto-crítica, com propostas concretas de pontos a serem melhorados; é, na verdade, no plano natural, aquilo que o arrependimento (e posterior Confissão) faz no plano sobrenatural. E por que não aproveitar o momento, para consertar tudo aquilo que, na vida inteira, precisa ser consertado?

Ano novo, vida nova – é um clichê. Mas não deixa de ter lá a sua verdade. Como um clichê também é o texto de Drummond e, nem por isso, menos verdadeiro. Mudar é preciso – dizem-nos os corvos, os mortos, os poetas, o Reveillon. Que 2011 seja melhor do que 2010, é o que eu desejo a mim e a todos. Feliz ano novo!