Algumas pessoas me perguntam se é verdade que o Vaticano proibiu a cremação. Não, não é verdade. O que aconteceu foi que hoje, 25 de outubro, foi publicada uma instrução da Congregação para a Doutrina da Fé — Ad resurgendum cum Christo — contendo algumas normas a respeito «da conservação das cinzas da cremação».
Primeiramente e antes de qualquer outra coisa, se estão sendo publicadas normas sobre o que se pode e o que não se pode fazer com as cinzas da cremação, é evidente que a cremação em si não pode ser proibida — senão não teria sentido disciplinar o destino das cinzas. A autorização para que os católicos sejam cremados, portanto, é tácita e se infere do próprio título da instrução. Se tal não fosse o bastante, o documento ainda diz textualmente que «a Igreja não vê razões doutrinais para impedir tal práxis [da cremação]; uma vez que a cremação do cadáver não toca o espírito e não impede à omnipotência divina de ressuscitar o corpo» (ARCC, 4).
Em segundo lugar, é preciso deixar também claro que a Igreja tem uma preferência manifesta e vultosa pelo enterramento: a prática de enterrar os mortos é muito mais adequada e muito mais conforme à Fé Cristã por várias razões. Primeiro porque é, historicamente, a prática distintiva do Cristianismo frente aos pagãos da Antiguidade (estes, que cremavam os seus mortos). Segundo porque propicia a existência dos cemitérios, dos campos santos, esses lugares sagrados de oração e de meditação onde aqueles que morreram esperam o dia terrível da Ressurreição dos Mortos. Terceiro porque ela representa melhor a crença na ressurreição da carne, este ponto da Fé Católica que, paradoxalmente, é tão negligenciado mesmo no século materialista em que vivemos.
Confesso não conhecer as minudências escatológicas das outras religiões (não sei, por exemplo, como os muçulmanos entendem o negócio do paraíso com as virgens), mas o credo cristão é bastante claro e literal: Deus haverá de ressuscitar o mesmo corpo que nós possuímos hoje. Não é um corpo “espiritual” nem “metafórico”, mas um corpo físico mesmo, formado de matéria, que ocupa lugar no espaço, que possui sentidos, enfim, um corpo como os corpos que nós conhecemos. “Ah, mas vai ser exatamente igual, vai sentir dor, vai ter os mesmos dentes faltantes, essas coisas?” Não, aí não. Na Ressurreição da carne o nosso corpo será glorificado e, portanto, vai possuir algumas características que hoje não possuímos — a teologia clássica elenca a impassibilidade, a sutileza, a agilidade e a claridade –, sem que contanto deixe de ser um corpo.
As relações disso com a inumação são bastante óbvias: se o Cristianismo vive da espera da ressurreição da carne, e se essa ressurreição dar-se-á no mesmo corpo que vivia, então a prática de deitar este corpo em repouso em algum lugar — o cemitério — é bastante proporcionada com a crença que os cristãos professamos. Se o corpo vai ressurgir, então existe nele alguma coisa de sagrado — e, portanto, exige-se-lhe um respeito diferente do que se concede a uma coisa (por útil que nos seja!) que nós usamos e depois jogamos fora, porque se estragou e não nos serve mais, e não a voltaremos a usar. Na verdade, nós não “usamos” o nosso corpo como querem os espíritas, nós somos o nosso corpo, por conta da composição hilemórfica — corpo e alma em união substancial — do ser humano.
“Ah, mas os corpos podem ter sido destruídos por ocasião da própria morte, como por exemplo um incêndio ou um naufrágio; além disso, os católicos sempre tiveram a prática de destruir os corpos dos santos, despedaçando-os em mil e uma relíquias”. Sim, tudo isso é verdade, e nada disso constitui verdadeiro empecilho a que Deus ressurja o corpo por ocasião do Juízo Final, e é exatamente por conta dessas coisas que não existe nenhum óbice intrínseco à prática da cremação. Deus é Onipotente para reconstituir os corpos ainda que os seus pedaços se tenham espalhado por toda a Terra: o mesmo corpo, convém lembrar, não significa a mesma matéria (até porque a matéria que o nosso corpo possui hoje não é mais a mesma que possuía quando éramos crianças, e não obstante continua sendo o nosso corpo). Santo Tomás já falava isso no século XIII: «as cinzas de um corpo humano devem, na ressurreição, voltar a constituir a mesma parte do corpo que nelas se dissolveu»? E concluía pela negativa: «nas cousas artificiais não é necessário, para reparar uma obra com a mesma matéria, que as partes dessa matéria sejam colocadas no mesmo lugar. Logo, nem é necessário que tal se dê com o homem».
O que diz, em suma, a Ad resurgendum cum Christo? Apenas disciplina aquilo que já estava dito no Catecismo. Este dizia: «[a] Igreja permite a cremação a não ser que esta ponha em causa a fé na ressurreição dos corpos» (CCE, 2301). Aquela enumera alguns atos concretos que põem «em causa a fé na ressurreição dos corpos» e que, portanto, são proibidos. As normas são as seguintes: as cinzas devem ser conservadas em um lugar sagrado, como um cemitério ou igreja (n. 5); apenas muito excepcionalmente, e com autorização da autoridade eclesiástica, podem ser conservadas em casas particulares (n. 6); não se podem dispersar as cinzas «no ar, na terra ou na água ou, ainda, em qualquer outro lugar», nem transformá-las em jóias ou outros objetos (n. 7). Com isso se condenam as práticas atualmente vigentes que vão de encontro àquela Fé na ressurreição da carne que é apanágio do Cristianismo.
O mundo precisa do testemunho da ressurreição. A Igreja, consciente do valor dos símbolos e zelosa pela fé dos fiéis, estabelece normas específicas sobre o cuidado que se deve ter com os mortos no mundo materialista e imanentista em que nós vivemos. As atitudes que nos cercam e as práticas sociais com as quais nos acostumamos podem não raro nos levar ao obscurecimento da Fé; para evitar este risco, em boa hora vem a lume esta instrução da Congregatio Pro Doctrina Fidei. Façamo-la conhecida, a fim de dissipar os equívocos tão comuns neste tema.