Na esteira do texto sobre a parede vazia atéia aqui publicado recentemente, um dos comentadores do blog trouxe um texto sobre os supostos respeito e consideração que os ateus têm para com as religiões. Como foge demasiadamente das questões sobre a imposição da simbologia atéia nos órgãos públicos (texto original), passo a comentá-lo aqui. Em vermelho e itálico, o texto comentado; em fonte normal, os meus comentários.
Um erro comum aos ateus, todavia, é demonizar completamente as religiões.
Este erro é mais do que “comum”, é virtualmente onipresente, mas vamos lá…
Não; a religião não é boa nem é má.
Começou mal…
A religião é indubitavelmente boa, pelo menos considerando o fim ao qual ela se presta, qual seja, o de religar o homem à divindade. Naturalmente, os que rezam conforme o credo ateu não são capazes de perceber este aspecto incontestavelmente positivo do fenômeno religioso, mas isso pouco importa. As coisas não mudam o seu ser para agradar às visões parciais e distorcidas de um subconjunto (e ainda ínfimo, diga-se de passagem) da humanidade.
Ela assume a característica que damos a ela: podemos usar a religião como desculpa para atos vis, ou como influência para grandes bondades.
Isto aqui são outros quinhentos.
Mutatis mutandis, podemos dizer que a linguagem é uma característica humana indubitavelmente boa, porque ela se presta a tornar possível a comunicação entre os homens, o intercâmbio de idéias, a expressão do pensamento, et cetera. E, naturalmente, alguém pode usar a linguagem para inventar mentiras, para caluniar, para ofender. Isto é uma distorção da linguagem, uma traição àquilo que é o seu fim precípuo.
Seria uma profunda insanidade dizer que, por conta disso, a linguagem “não é boa nem é má”! A linguagem, em si, é boa, ponto. O que não a impede de ser mal utilizada.
Já a religião (pelo menos a esmagadora maioria das religiões) não prescreve jamais “atos vis”, e sim somente atos virtuosos. Alguém “usar a religião como desculpa para atos vis” só é possível (na esmagadora maioria dos casos, ao menos) por meio da desobediência aos próprios preceitos da religião. Portanto, não faz o menor sentido fazer um juízo de valor negativo (ou “neutro”) das religiões por causa de coisas que são feitas à revelia delas.
A religião não é uma aberração; como estaria, então, presente em todas as culturas humanas?
Perfeitamente.
O que muitos ateus radicais precisam entender é que a religião nada mais foi do que o primeiro fazer-científico da humanidade. Como os egípcios, por exemplo, poderiam explicar os fenômenos ao seu redor? Como os primeiros humanos explicariam o fato de serem tão mais desenvolvidos que os demais animais? Como poderíamos entender, nesse tempo, a natureza da “consciência”?
Já isto aqui é um perfeito absurdo.
A religião nunca teve como objetivo (somente) a explicação de eventos empíricos [e, nas vezes em que ela fez isso, foi apenas de modo acidental]. A religião (considerada em si) é a resposta do ser humano à afirmação da sua consciência de que existe uma divindade, existe um transcendente, com o qual ele [o ser humano] tem o desejo de se relacionar. É este o problema que a religião “se propõe a resolver”. O problema das leis da matéria e dos fenômenos naturais é um outro problema.
Tanto que as duas coisas (religião e fazer científico) sempre coexistiram, não apenas “nos primórdios da humanidade” (o homem primitivo que tinha provavelmente religiões anímicas é o mesmo que inventou a roda e aprendeu a fazer fogo) como em todos os tempos, povos e culturas.
O conhecimento primitivo impulsionou a criação de mitos e crenças, tanto que as maiores religiões do planeta se originaram em eras de pouco conhecimento científico.
Bobagem completa. O Cristianismo converteu o mundo romano e o helênico, perto dos quais a virtual totalidade dos atuais inimigos da religião são de uma pobreza intelectual sofrível.
Outrossim, e apenas como ad hominem, é interessante: muitos gostam de exaltar o avanço científico de civilizações antigas, como por exemplo dos Maias, ou dos egípcios que construíram pirâmides sem que até hoje saibamos como, et cetera, et cetera. No entanto, todos esses povos foram sempre profundamente religiosos…
O problema da religião é que ela se infiltrou demais na cultura humana; somos seres naturalmente “religiosos”, mas deveríamos ir abandonando a religião conforme conhecemos a elegância do funcionamento das coisas, desde a física à biologia.
Outro completo absurdo. Se somos seres “naturalmente religiosos”, é óbvio que a cultura humana deve estar impregnada de religião. Estranho seria se fosse diferente. É como (de novo, mutatis mutandis) dizer que somos seres naturalmente comunicativos e lamentar, depois, que a linguagem tenha penetrado demais na cultura humana…
E a segunda parte do período padece, de novo, do mesmo erro de base ao qual já fiz referência acima: o objetivo da religião não é, e nem nunca foi, explicar “o funcionamento das coisas”.
A humanidade, porém, levou a religião muito “à sério”:
O que é uma coisa perfeitamente natural, considerando que a religião é inerente ao ser humano.
religião e ciência se tornaram coisas antagônicas, quando na verdade a religião nada mais é do que a primeira expressão científica do ser humano. É uma ciência rude, primitiva, mas é um tipo de ciência (os próprios religiosos fundamentam suas crenças em argumentos e desenvolvem teorias teológicas).
Isto aqui é o samba do crioulo doido.
Em primeiro lugar, religião e ciência só “se tornaram antagônicas” na cabeça de alguns religiosos fundamentalistas (e incluo aqui os adeptos da religiosidade atéia, como Dawkins, p.ex.). Ciência e Religião são perfeitamente compatíveis, como sempre o foram, e como qualquer pesquisa elementar sobre o assunto é capaz de mostrar.
Em segundo lugar, como já foi dito, é simplesmente falso que a religião tenha sido “a primeira expressão científica do ser humano”. Isto está errado, o objetivo da religião é outro, sempre foi. Enquanto os ateus continuarem tratando a religião sob este prisma desfocado, não terão a menor idéia do inimigo que se propõem a combater.
Em terceiro lugar, “teorias teológicas” não têm nada a ver com ciência, e não se faz a menor idéia de como isto veio parar aqui.
Mas é uma ciência que sobrevive apenas pela metafísica (uma forma de filosofia inteiramente subjetiva, baseada em especulações e pensamentos, não em observação analítica) e pelo fundamentalismo (a antítese moderna da razão).
Mais absurdos…
A religião não sobrevive “apenas” (!) pela metafísica, mas também pela filosofia em seu sentido mais amplo (da qual a metafísica é uma parte) e pela História. Estou, propositalmente, desconsiderando os fatores internos ao fenômeno religioso que o fazem sobreviver.
Depois, a (boa) filosofia em geral (e a metafísica em particular) é e sempre foi baseada na observação da realidade (tendo sido apenas a filosofia moderna quem rompeu com este princípio). “Metafísica”, aliás, foi um termo cunhado precisamente por Aristóteles e cujo estudo foi posto, em seus escritos, logo em seguida aos tomos que tratavam da física – e tendo esta por base, acrescente-se.
Ainda: não existe nenhum problema em tratar as coisas por meio de “especulações”. A menos, é claro, que se negue a capacidade da razão humana de atingir a verdade, pressuposto que no entanto faria toda a ciência experimental moderna cair por terra.
Ademais, a acusação de “fundamentalismo” é totamente gratuita.
A religião é o apêndice da ciência: foi útil para a humanidade em seus primeiros “passos”, mas se tornou, naturalmente, ultrapassada e inútil.
De novo: a religião tem objetivos diferentes da ciência. Enquanto esta se preocupa com os fenômenos naturais, aquela se preocupa com o transcendente e a sua relação com os homens. São dois campos de ação totalmente diferentes.
E a relação dos homens com Deus não se tornou, de modo algum, “ultrapassada e inútil”. Os homens continuam precisando se relacionar com Deus, hoje como nos primórdios da humanidade.
A recusa sistemática em tratar a religião da maneira como ela é – aliás, da maneira como ela se apresenta! – é típica do fundamentalismo irracional dos paladinos da nova religião atéia.
Ou, como diz Hitchens, “a religião é uma ciência que deu errado”.
Parafraseando (e corrigindo) Hitchens: o ateísmo, este sim, é uma religião que deu muito errado!