A Jornada foi um estrondoso sucesso, mas este não pode (por questões de Justiça) ser atribuído aos seus organizadores. A todos os que participaram da JMJ, eu, na qualidade de voluntário do evento, gostaria de pedir sinceras desculpas – ex imo cor meum – pelo mais criminoso desleixo com o qual vocês foram tratados pela organização do evento, quer por parte das autoridades seculares, quer pelo Comitê de Organização Local (COL) da Jornada, empenhados todos que estavam – ao que parece – em tornar a experiência desses dias a pior possível.
Não penso que exagero. Falo do que eu vi e vivi ao longo de quinze dias no Rio de Janeiro, e que merece um registro, quando menos para que a glória de Deus resplandeça com um fulgor mais vívido ao se perceber quão adversas eram as circunstâncias em que ela se manifestou. Convivi com incontáveis pessoas de coração generoso e de boa vontade, e justamente por isso posso falar um pouco das dificuldades que encontramos para que esta Jornada Mundial se realizasse de maneira a servir à maior glória de Deus e à salvação das almas.
Dizem que peregrino não está à procura de luxo e que a JMJ é uma peregrinação repleta de provações. É verdade. No entanto, não havia nenhuma necessidade de se infligir contrariedades e sofrimentos desnecessários àquelas pessoas que foram ao Rio de Janeiro para ver o Doce Cristo na Terra. A impressão forte que passava a todos os que contemplavam atônitos as absurdas diretrizes emanadas das altas esferas de tomada de decisões era a de que tudo estava sendo feito da pior maneira possível, que por vezes nem o mais irresponsável amadorismo poderia explicar. Muitas vezes, a impressão que nos dava era a de haver uma vontade deliberada de melar de alguma maneira o evento.
Eu não vou nem mencionar as barbaridades feitas com os voluntários, amontoados na Catedral numa fila que nunca andava, alguns jogados para alojamentos distantes e depois tirados deles às pressas no meio da noite, outros obrigados a participar de treinamentos concorrentes, outros ainda separados de seus cônjuges (voluntários igualmente) por uma burocracia estúpida e sem sentido. Concedamos aos organizadores o benefício da dúvida, e concedamos que a semana da pré-Jornada tenha sido o “teste” que eles precisavam para acertar os ponteiros e prestar um serviço melhor na próxima semana. Nada justifica, no entanto, que na semana seguinte os mesmíssimos erros tenham sido repetidos de novo e mais uma vez, transformando todo o evento numa sucessão de martírios kafkianos que, não fosse a sede de Deus daqueles que foram ao Rio de Janeiro, teria certamente comprometido todo o evento.
Havia necessidade de se entregar kits peregrinos para centenas de milhares de pessoas? Que tal descentralizar a distribuição? Que tal separá-los por estado de procedência, por ordem alfabética, por número de inscrição, por qualquer coisa? Que tal antecipar o início da distribuição? Mas, não. Todos os peregrinos foram enviados (alguns inclusive sem o voucher de confirmação da inscrição que deveriam ter recebido…) para um único ponto, o Sambódromo [p.s.: conforme uma voluntária teve a gentileza de me avisar aqui no blog, havia um outro ponto de distribuição, menor, em Santa Cruz], onde enfrentavam diversas filas para pegar sucessivamente as credenciais, as mochilas, os livros que compunham o seu conteúdo, os vales transporte e alimentação. Custava ao menos entregar o kit completo de uma vez só? Era realmente necessário forçar os peregrinos a pegarem-no aos pedaços, enfrentando uma nova fila quilométrica para cada item do kit que deveriam receber? As filas se formavam desde as primeiras horas da manhã, e a distribuição só começava as 10h. Custava iniciá-la mais cedo, ao se perceber o estado caótico em que as coisas se encontravam?
Para se locomoverem no interior da cidade, os peregrinos recebiam um cartão de transporte que lhes permitia pegar os ônibus e o metrô. De repente, o MetrôRio decide que estes bilhetes não vão valer para a cerimônia de recepção do Papa da quinta-feira e nem para a Via-Sacra da sexta. Exige que adquiram um outro bilhete, válido por horário, para estes dois dias. E, de repente, o peregrino se vê na rua com um bilhete que pode usar para ir pra qualquer canto do Rio de Janeiro, exceto o único lugar para ir ao qual ele estava na cidade: o lugar onde o Papa estava. Pode-se adquirir o bilhete sem ônus na estação “Carioca”, dizem: e lá se vão outras filas quilométricas e mais um dia inteiro perdido para se conseguir um bilhete de metrô.
Na quinta-feira, o metrô do Rio pára, e esta foi uma das situações que me fizeram pensar em sabotagem explícita: de repente, toda a linha metroviária da cidade do Rio de Janeiro pára por completo, e justamente no instante em que todas as pessoas estavam se dirigindo à Zona Sul para recepcionar o Papa! Peregrinos ficam presos no subterrâneo, entre duas estações. Nem ligam: cantam, batem palmas, rezam, depois saem e vão como podem, andando ou de ônibus, ao encontro do Vigário de Cristo. Dizem depois que uma latinha de refrigerante jogada nos trilhos provocou o colapso. Eu fico pensando em quem foi o responsável por este caos.
Na sexta, durante a Via-Sacra, a Av. Atlântica é fechada do Forte ao palco (que ficava quase no Leme) para a passagem do Papamóvel. As grades são colocadas quando a avenida estava já tomada: grupos ficaram separados, e quem estava do lado da praia não conseguia atravessar para o lado dos prédios, e nem vice-versa. Passa o Papa, começa a Via-Sacra: eu, no cordão de isolamento, a orientação que recebo é que as grades só serão retiradas quando acabarem todas as estações, dali a uma hora e meia pelo menos. Uma senhorita de língua espanhola me chama às lágrimas: ela está do lado dos prédios, e quer ir à praia para rezar com o Papa. Onde ela está o som não chega, diz, e eu constato que é verdade. Digo-lhe que ela está coberta de razão. Reclamações análogas começam a pulular por todos os cantos: decidimos, nós mesmos voluntários, por conta própria, tirar as grades. Fazemos um cordão somente para impedir que as pessoas seguissem pela avenida, onde a Via Sacra ainda estava acontecendo: mas deixamos que elas passem de um lado para o outro. Lá pelas tantas, uma garota vem correndo dizendo que era para liberar a via para a passagem de não-sei-o-quê e perguntando quem havia mandado tirar as grades. Respondo que nós tiramos a grade sim, e há muito tempo, porque era necessário. Ela reclama alguma coisa e sai praguejando; ainda a ouço dizer que “os voluntários só atrapalham”. Quanto à senhorita de língua hispânica, não a vi mais, mas rezo para que ela tenha conseguido acompanhar a Via-Sacra como desejava.
No sábado, outras filas quilométricas se formam no MAM para pegar o kit vigília. Horas e horas e horas desperdiçadas. Quando chego no lugar de entrega dos kits, percebo que é um pavilhão que possui uns balcões de uns cinqüenta metros no total, atrás dos quais estão voluntários com os kits a serem entregues. A forma mais óbvia de se fazer esta distribuição seria formar diversas filas de frente para os balcões; mas as pessoas fizeram uma fila única vinda por somente um dos lados, no mesmo sentido do comprimento do pavilhão, e as pessoas entravam de dez em dez ou de vinte e vinte e eram orientadas a correrem até o fim para pegarem o kit. Claro que muitas ficavam no início do balcão, em cujo final distribuía-se kits com muito menor freqüência do que era possível.
Ainda no sábado, no percurso entre a Central e Copacabana, disseram haver banheiros para os peregrinos. De fato, há: duas ou três cabines a cada quilômetro ou mais, evidentemente insuficientes para uma marcha de um milhão de católicos. Também aqui formam-se filas. Na praia há também banheiros, em quantidade ridícula e que não foram limpos: no domingo pela manhã, o espetáculo dos peregrinos formando filas a mais de dez metros das cabines (para só correrem rapidamente em direção a ela quando chegasse a sua vez, e saírem depois o mais depressa possível) era digno das mais escabrosas cenas do “Ensaio sobre a Cegueira”. Ainda no domingo pela manhã, uma outra coisa me levou a cogitar a hipótese de sabotagem: fechada mais uma vez a avenida para a passagem do Papa com mais de duas horas de antecedência, as pessoas que estavam na praia não podiam atravessar para o lado dos prédios – e do lado da areia não havia banheiros químicos. Quero dizer, pelo menos um milhão de pessoas que haviam passado a noite em Copacabana e, de manhã, não tinham banheiros para se aliviar! Havia os banheiros dos postos. No que eu estava, o banheiro estava fechado: já há horas que faltava água, papel, material de limpeza. A fila se formava enorme na frente; muitas pessoas pediam pelo amor de Deus para que as deixassem entrar, e não havia como. Já perto das sete horas da manhã, a fila começou a andar em conta-gotas. Dali a que todas entrassem, passaram-se horas: a fila continuou durante toda a manhã.
E não falei do transporte público que escasseava a ponto de praticamente desaparecer à noite; dos protestos (de “Fora Cabral!” e da “Marcha das Vadias”) que permitiram acontecer em meio aos peregrinos; das irresponsabilidades ocorridas com as hospedagens (com locais totalmente inadequados recebendo peregrinos, e casas de família que haviam aberto as suas portas junto à organização do evento esperando os seus hóspedes que nunca chegavam); do pessoal do COL arrogantemente dizendo aos voluntários “só vá trabalhar onde foi alocado” quando era óbvio que havia necessidade de mais gente nos lugares onde a desorganização estava mais crítica (e, quando lá chegávamos, eram as próprias pessoas que lá estavam trabalhando a pedirem a nossa ajuda); dos cafés da manhã servidos não nos alojamentos, mas nos locais de catequese que muitas vezes distavam daqueles uma hora ou mais de locomoção; et cetera. A lista é extensa e este post já vai longo e chato demais. Apenas quero dizer mais três coisinhas.
Primeiro, é óbvio que nenhuma cidade no mundo comporta três milhões de pessoas a mais do que as que já vivem nela. Filas e locais lotados eram naturalmente esperados, mas havia uma infinidade de coisas simples que poderiam ter sido feitas para minimizar estes problemas. Coisas como melhor organização dos pontos de distribuição de kits, maior contingente de veículos de transporte público (inclusive madrugada adentro), maior número de banheiros químicos e melhor cuidado com eles. Estas coisas são básicas, e não existe justificativa possível para que tenham sido tão mal feitas.
Segundo, que os voluntários estão de parabéns por terem sabido se desvencilhar das orientações estapafúrdias do COL e organizarem as coisas à própria maneira, da melhor forma possível dentro das condições precárias em que eram colocados. O que dizíamos entre nós era que quaisquer pessoas conversando por dois minutos diante de um problema específico eram capazes de arranjar uma solução muito melhor do que a que fora dada pelo COL, e isso era verdade; trabalhamos muito e trabalhamos duro, às vezes sem apoio “dos bastidores” algum, para que as coisas pudessem acontecer de modo menos traumático.
Terceiro, e mais importante, e é isso que eu quero que fique deste post (e não somente a reclamação generalizada que pode fazer parecer que nada prestou ou valeu a pena): tenho certeza que cada um daqueles peregrinos passaria por tudo aquilo de novo para viver o que viveu. Aquela multidão era diferente das outras multidões, e os que tentaram expôr os jovens a situações-limite para forçar reações impensadas que pudessem comprometer o espírito da Jornada foram fragorosamente derrotados pelo espírito cristão daquelas multidões que, com cânticos nos lábios e amor a Deus nos corações, ultrapassaram todas as dificuldades com os olhos fitos no Cristo que foram encontrar. Não houve nenhum incidente, nenhuma briga, nenhum confronto com a polícia, nenhum quebra-quebra, nada enfim que pudesse desmerecer a Jornada Mundial da Juventude. Se é na nossa fraqueza que se revela a força de Deus, o fato da JMJ ter sido um sucesso mesmo com todo o caos dos bastidores revela de modo insofismável a ação poderosa d’Ele que, ultrapassando toda a má-vontade humana, foi capaz de congregar junto a Si em espírito de paz e harmonia aqueles milhões de pessoas dos quatro cantos do mundo que foram ao Rio de Janeiro para se encontrar com o Romano Pontífice. Com um tão vasto número de problemas, qualquer evento mundano teria sido um estrondoso fracasso; é somente porque a Jornada era um evento de Deus que tantos que lá estiveram podem hoje se lembrar daqueles dias como uma experiência espiritual positiva e frutuosa, que levarão com gratidão para sempre em suas vidas. Deus não Se deixa vencer em generosidade, mesmo quando O tratam com descaso. Deus realiza a Sua vontade, mesmo quando os homens trabalham e conspiram para a frustrar.