[Trata-se de uma obra de ficção, recém-inventada e mais recreativa do que qualquer outra coisa. Creio já ter falado o suficiente nos artigos passados sobre os aspectos morais envolvidos na festa que hoje se finda. Uma última distração carnavalesca: amanhã é quarta-feira de Cinzas. Amanhã já iniciamos a Quaresma. Que venha! Que Deus nos ajude nestes dias de roxo que já se avizinham. Que ela nos faça melhores.]
– Eu nunca mais brinco carnaval na vida!
Derpina repetiu a frase em voz alta, praticamente aos gritos; tanto que a sua colega, que dormia na cama ao lado, acordou sobressaltada com tão estranha histeria matinal. Ainda era terça-feira.
– O que é isto, Derpina? Que zoada é esta de manhã cedo?
Derpina estava transtornada. Acabara de acordar quando foi assaltada por uma crise daquilo que costuma ser designado por “ressaca moral”: este mal terrível que costuma afligir as pessoas que ainda não aprenderam a díficil arte de dar um nó na própria consciência a fim de que ela não mais lhes perturbe, independente das barbaridades que cometam. Na verdade, a maior parte das amigas de Derpina já tinha conseguido praticar com sucesso esta lobotomia moral. Derpina se esforçava por imitar-lhes, mas era sempre em vão.
As imagens do dia anterior surgiam confusas na mente de Derpina: muita Jurubeba, muitos sorrisos, muitos flertes, muitos beijos. A gota d’água fora um garoto que se aproximou dela já tentando beijar-lhe. Ela não queria, mas não tinha condições físicas ou envergadura moral diante de suas amigas para resistir decentemente: tanto que o mancebo enfim lhe arrebatou o beijo, sob os aplausos frenéticos dos amigos dele e dela. E foi embora sem nem olhar para trás.
E isto, pra Derpina, não era de forma alguma aceitável. Não se tratava mais de diversão consentida entre adultos (a maneira como as amigas de Derpina costumavam se referir às relações descompromissadas entre pessoas irresponsáveis): isto era se permitir ser tratada como uma coisa, como um animal. Aliás, pior que um animal, porque os cachorros a gente ao menos afaga quando eles chegam junto. Nunca ela se sentira tão ofendida. E às vezes – Derpina pensava – a gente precisa chegar ao fundo do poço para notar que precisa de um pouco de ar e de luz do sol.
– Ele nem olhou para mim! – Derpina gritava, sob o olhar atônito de sua colega de quarto que não fazia a menor idéia do que estava acontecendo. E, num súbito lampejo de raiva e de dor, Derpina pegou a sua fantasia branca-e-preta (de “palhacinha”, como ela chamava), armou-se de uma tesoura e se preparou para fazê-la em pedaços. A amiga, percebendo o que estava para acontecer (ainda que não atinasse para as razões efetivas da atitude intempestiva), gritou:
– Derpina, está louca?! Ainda é terça-feira, e esta roupa custou cento e vinte reais!
Se foi pela referência ao calendário ou ao cartão de crédito, não deu para saber; o fato é que Derpina vacilou por uma fração de segundos, tempo suficiente para que sua amiga saltasse sobre ela e, desarmando-a, salvasse a pobre fantasia que estava prestes a pagar o pato sem ter nada a ver com o mau comportamento da menina que a vestira nos dias anteriores. Derpina agora chorava.
– Isto é uma porcaria de festa, vocês são umas porcarias de amigas, onde já se viu isso… – e chorava. A sua amiga lhe afagava complacente, sem no entanto prestar a mínima atenção nos queixumes. Não entendia dessas coisas de ressaca moral. Para ela, Derpina estava era “muito doida”, ou tivera um pesadelo do qual não acordara direito. Às vezes isso acontecia com ela.
* * *
– Colombina! Colombina!
Derpina passou direto.
– Ah, Colombina, não faça isso! Eu te procurei tanto, o Carnaval inteiro!
Derpina virou-se. Viu outro “palhacinho” muito parecido com ela, preto-e-branco e com uma lágrima pintada no rosto. Achou-o simpático.
– Desculpe, eu não lhe conheço. Você deve estar me confundindo. O meu nome é Derpina, e não esta outra coisa aí da qual me chamaste.
– Colombina. Isto que você está usando é uma fantasia de Colombina.
– Ahhhh o nome dessa palhacinha é Colombina?
– Ela não é uma “palhacinha”. É Colombina e é… é uma personagem típica do Carnaval, que tem uma conhecida história de romance com outros dois personagens. Os palhaços são outra fantasia e têm outra história.
-Ahh… sei.
– Mas veja, eu sou um Pierrot, e o Pierrot é o namorado da Colombina: eu estava te procurando o Carnaval inteiro! Acho que nós devíamos ficar juntos. Nós formamos um belo casal! Podemos passear juntos, brincar com as outras pessoas, dançar um pouco… o que você acha?
Derpina olhou pra ele. Não estava com muito clima de ficar com mais ninguém, mas… bom, pelo menos ele conversara com ela! Coisa bem diferente dos outros “relacionamentos” que ela tivera nos últimos dias. O palhacinho de rosto pintado fora muito mais humano do que os outros caras com o rosto descoberto. O rapaz da fantasia preta-e-branca tratara-a muito melhor do que os outros moços sem fantasia.
– Sabe? Você me agradou muito mais do que os outros caras que encontrei por aí. – Derpina deu-lhe o braço. Nem percebeu que suas amigas perderam-se mais à frente, tentando arranjar o décimo-sexto cara para a menina mais tímida do grupo que não tinha conseguido ficar com quase ninguém.
– É que só um Pierrot consegue entender Colombina.
* * *
– Sabe, amiga? Eu tenho que lhe agradecer. – Derpina disse à sua amiga de noite, quando estavam se preparando para dormir. – Eu ia fazer uma grande besteira se tivesse rasgado a fantasia de Colombina.
– Fantasia de quê? Ah, essa palhacinha aí? Ah, que bom. E aí, aproveitou bastante o último dia?
– Sim, aproveitei. Descobri que eu estava fazendo tudo errado e a culpa era de vocês. Na verdade, a culpa era minha que queria ser igual a vocês; mas, enfim, o interessante foi ter visto como as coisas acontecem diferente daquilo que a gente espera. Eu pretendia ficar em casa hoje e acabei saindo com vocês; você queria que eu “aproveitasse” o Carnaval como nos outros dias e eu acabei me perdendo e passando o dia inteiro conversando com um rapaz legal. Eu achei que não ia acontecer nada diferente hoje, mas aconteceu e foi fantástico. Eu descobri que eu não preciso ser como vocês para me divertir também!
– Ahhm… É, Derpina, Carnaval é isso mesmo, todo dia acontecem coisas interessantes! Ano que vem tem mais!
– É… boa noite!
* * *
É Carnaval de novo. Derpina abre o guarda-roupa e pega a sua fantasia de Colombina. Dá os últimos retoques na maquiagem. A campanhia toca e ela se prepara para sair. Na porta, um rapaz está com uma fantasia muito parecida com a dela. Os dois se abraçam e saem juntos. Derpina quase não encontra as amigas que saíam com ela nos carnavais passados! Com Pierrot, no entanto, ela nunca mais deixou de sair.