“E para ter uma vida tranquila, mata-se um inocente.”

Nos últimos dias, a mídia anti-clerical parece ter “descoberto”, embasbacada, o catolicismo do Papa Francisco. Foi por ocasião da recente, infame e ilegítima votação da Câmara dos Deputados argentina que, por 129 votos a favor e 125 contra, aprovou um projeto de lei (que ainda precisa passar pelo Senado e pela sanção presidencial) autorizando o crime do aborto até a 14ª semana de gestação. Em meio à escalada da sanha homicida das sociedades degeneradas contemporâneas, ninguém parece ter se levantado contra o enorme absurdo que é admitir que cinco míseros votos parlamentares — verdadeira e evidente maioria de ocasião — tenham o poder de condenar à morte crianças no ventre materno. Veja-se, que o direito de vida e morte sobre outrem fosse submetido a votação, ainda que por maioria qualificada, ou mesmo por unanimidade, já seria um retrocesso, uma barbárie! Que tal “direito” possa ser admitido por uma diferença de cinco votos entre duzentos e setenta e cinco votantes, aí já é um escárnio e uma loucura. Trata-se de 1,8%. É óbvio que nenhuma coisa em favor da qual se possa decidir legitimamente com base em uma diferença tão pequena é levada a sério por quem se sujeita a essas regras. Por cinco votos dentre trezentos é possível decidir sobre a data da festa da colheita da cidade, entre duas datas igualmente boas; ou sobre o nome do próximo presidente do Parlamento, entre dois nomes igualmente legítimos. Decidir, no entanto, entre a vida e a morte por essa margem, é coisa que deveria fazer corar de vergonha até mesmo os abortistas que guardam algum apreço pelos processos democráticos.

Mas o que isso tem a ver com o catolicismo do Papa? É que, no final de semana seguinte, Sua Santidade fez um discurso improvisado — no qual, aliás, nem mencionava a Argentina — onde disse o óbvio: que é um absurdo matar crianças para que se tenha uma vida tranquila, que isso é uma regressão ao paganismo mais abjeto, que hoje fazemos o mesmo que os nazistas faziam, só que «com luvas brancas». Foi o suficiente para que a mídia, que passou os últimos anos enaltecendo com tanto afinco a figura deste Papa progressista, que estaria empenhado em modernizar a Igreja, que seria o perfeito oposto do seu antecessor alemão, foi o suficiente, eu dizia, para que essa mesma mídia transformasse o Papa em inimigo público número 1 e passasse a exigir, aos berros, a sua renúncia.

Não é figura de linguagem. A Carta Capital estampou uma manchete onde pedia “Deixe o trono, Francisco”, e onde fazia questão de reafirmar a sua «dissidência com esta Igreja que se recusa a reconhecer as mulheres como sujeitas de suas histórias». Oras, agora ser contra o assassínio frio e deliberado de crianças no ventre de suas mães passou a ser recusar-se a reconhecer as mulheres como sujeitas de suas histórias! O que tem uma coisa a ver com a outra? Estivéssemos em pleno regime escravocrata, essa revista censuraria os abolicionistas por negarem aos senhores de engenho o serem sujeitos de suas próprias histórias? É evidente que a questão escravagista não era mera implicância contra os donos de escravos, mas sim uma questão básica de humanidade para com os seres humanos escravizados; como, do mesmíssimo modo, é óbvio que a questão pró-vida não é displicência para com mulher gestante, mas sim defesa do ser humano em risco de ser abortado.

Menos inflamada, mas ainda assim bastante reveladora, foi a coluna da Cora Rónai para O Globo (excertos aqui). Sem esconder o seu descontentamento e a sua insatisfação, a autora afirma que «[o] Papa Francisco é um perigo» porque — ó novidade! — «é tão aferrado aos dogmas medievais da Igreja quanto o papa Ratzinger». E expõe assim a sua preocupação:

A palavra de um líder religioso aparentemente aberto e antenado ao seu tempo tem um peso muito maior do que a palavra de um homem que cultiva ostensivamente a tradição, e não faz a menor questão de ser popular.

O papa Francisco pode causar estragos muito maiores do que o papa Ratzinger jamais sonhou.

Ora, que os Papas sejam (necessariamente) católicos é um pressuposto que não se deveria sequer pôr em discussão. Com o Papa Francisco até essa obviedade foi posta em causa; defendeu-se, dizendo que era católico e filho da Igreja. Quanto a isso, jamais pode ser acusado de haver querido enganar ninguém. No entanto, vemos, agora, os não-católicos virem à mídia carpir as suas alegadas decepções e se insinuarem traídos por uma Papa que — coisa incrível! — se recusa a abraçar as doenças do Terceiro Milênio.

Os doentes e os pecadores sempre receberam uma atenção especial do Papa Francisco. Porque é esta a verdadeira missão revolucionária da Igreja, desde sempre, desde as mais singelas páginas do Evangelho onde Nosso Senhor afirma ter vindo não para os sãos mas sim para os doentes, não para os justos, mas para os pecadores. No entanto, ao contrário do mundo, não se verá jamais a Igreja ou o Papa abraçando a doença ou o pecado — e essa é a diferença essencial entre quem realmente se preocupa com a humanidade e quem mancomuna-se com Satanás para espalhar dor sobre o mundo.

Entre o Papa que ama os doentes e o mundo que espalha doenças, não deve ser difícil escolher quem merece ser ouvido. A Igreja acolhe os pecadores enquanto o mundo exalta o pecado: é por isso que a Igreja permanece enquanto o mundo cai de degeneração em degeneração. No fundo, a histeria dos anti-clericais, como tudo o que fazem, não tem verdadeira razão-de-ser: é somente outra tentativa vil e desonesta (igual em seus objetivos, aliás, à que procura apresentar o Papa como um Che Guevara de branco) de afastar as pessoas do Vigário de Cristo e da verdadeira Igreja de Nosso Senhor — único lugar onde o homem pode encontrar realmente a felicidade e a paz.