Oxalá tivéssemos as mãos vazias

Muitas pessoas têm muitas visões sobre Nosso Senhor: para uns Ele é um taumaturgo, para outros, um sábio divulgador da regra áurea, uns O vêem ainda como um Rei generoso e providente, e ainda outros O querem um defensor das liberdades individuais. Já eu penso que nada resume tão bem o Cristianismo como a Sexta-Feira Santa, e os homens errariam bem menos acerca de Cristo se se acostumassem a encará-Lo como a Liturgia de hoje O apresenta ao mundo.

Porque a história do dia de hoje nos mostra duras verdades. A primeira e mais óbvia delas é a realidade da nossa maldade, entregando à morte um Homem inocente, preferindo, a Ele, um bandido conhecido e condenado. Naquela turba que pediu a Pilatos a Crucifixão de Cristo todos nós estamos vergonhosamente representados, e isso se trata de um dos pontos mais básicos do Catecismo: Cristo morreu por nós. Dito assim, em palavras curtas, em uma sentença já gasta pelos séculos, a frase parece perder muito de sua verdadeira força de expressão, e é por isso que precisamos ler e reler incontáveis vezes as quatro narrativas da Paixão de Cristo, e é por isso que a Igreja precisa repetir, a cada ano, todo o ritual da Semana Santa: quando se diz que Cristo morreu por nós, o que se quer realmente dizer é que cada um de nós pode e aliás deve se reconhecer naqueles judeus que, hoje, exigiram que o Sangue d’Ele fosse derramado.

Não fosse o suficiente, a nossa ira destrutiva não foi dirigida contra um nosso semelhante: foi contra o Deus Todo-Poderoso, o Criador do Céu e da Terra, Aquele de Quem viemos e sem o Qual nada podemos fazer. Trata-se, assim, de verdadeiro instinto auto-destrutivo: querer matar o Criador é o mesmo que desdenhar da própria Criação, e as Trevas que envolveram o mundo enquanto Cristo agonizava na Cruz somente por muito pouco não tragaram definitivamente todo o Universo. Nunca o mundo esteve tão periclitante quanto naquelas horas terríveis em que Nosso Senhor sufocava no alto do madeiro! Nós morríamos enquanto O matávamos. Aceitávamos lançar sob trevas a terra inteira, contanto que O lançássemos à escuridão do Sepulcro. Trata-se de uma inversão perversa da ética humana: a nossa razão nos manda fazer aos outros o bem que gostaríamos que nos fizessem, mas no Gólgota nos regozijávamos em sofrer o mal que nos satisfazia infligir ao Filho de Deus. Dir-se-ia que de bom grado aceitaríamos até padecer na cruz, contanto que pudéssemos também crucificar a Nosso Senhor inocente.

E essa lógica perversa é o retrato da história humana: nós somos, no fundo, uns animais cujo instinto destrutivo supera até mesmo o de autopreservação. “Chorai por vós mesmas”, disse Cristo enquanto subia o Calvário, “porque, se eles fazem isto ao lenho verde, que acontecerá ao seco?” (Lc 23, 31).

Essa maldade não costuma ser suficientemente compreendida. Não é simplesmente que não valêssemos nada: nós já nada valíamos antes, na época dos Profetas, durante a vida pública de Jesus, até o Domingo de Ramos, vá lá. Com a Paixão de Cristo, no entanto, a nossa situação sofre uma piora inimaginável, porque acrescentamos, ao nada que já somos, a culpa infinita do deicídio. Oxalá estivéssemos de mãos vazias! Hoje elas estão cheias de sangue — e o sangue dos justos clama aos Céus vingança e atrai a ira de Deus.

Mas ao lado da nossa perversidade está o amor incondicional de Deus — amor usque ad mortem, até a Cruz. É um paradoxo notável. É precisamente quando temos mais culpa que somos enfim perdoados. O ato que é o maior dos nossos crimes é também, ele próprio, a fonte da nossa Redenção, e isso é assombroso e, passados vinte séculos, até hoje nos assombra.

E diante da Cruz de Cristo todos os demais aspectos da Sua vida são colocados em sua correta perspectiva. De todos os milagres que Ele se realizou, nenhum se compara a essa prodigiosa transmutação de crime em perdão, de morte em vida. Os ensinamentos que Ele nos transmitiu, somente após resgatados pelo sangue do Cordeiro nos os podemos cumprir. A maior das riquezas que Ele tem para nos dar é a Vida Eterna que nos foi alcançada do alto da Cruz. E tudo o que podíamos ser e fazer até o dia de hoje, tudo é palha e cinza e nada agora que temos a santa liberdade dos filhos de Deus.

A suprema doação da Cruz é prova do amor de Deus por nós; e diante desse amor é impossível não se comover. Quando o véu do Templo rasgou-se ao meio, também alguma coisa precisa se ter rasgado dentro de nós. Quando a lança perfurou o coração de Cristo, também o nosso coração precisa haver sido traspassado. O mal que entrara em nós lá no Éden foi finalmente, após séculos, extirpado. Nosso Senhor morto desce ao sepulcro; e agora também nós podemos, enfim, morrer em paz.

Os perpétuos incapazes

Hoje as pessoas têm uma verdadeira aversão à pena de morte. Tratam-na como se fosse uma violência, uma agressão, uma injustiça; mas à primeira vista tanta ojeriza parece não ter sentido. Afinal de contas, por definição, toda e qualquer pena legitimamente aplicada é de algum modo um exercício de força, é um mal infligido, é um dano causado; não fosse desse modo, pena não seria. Mesmo assim, a coisa mais comum é encontrar pessoas que exercem, sobre a pena capital, um juízo de reprovação por vezes até mais severo do que contra o próprio crime de homicídio. Como se explica isso?

Penso que há dois pressupostos elípticos que ajudam a compreender essa mentalidade. Há, primeiro, uma exacerbação da sensibilidade cristã. Aquela história de que deveríamos oferecer a outra face a quem nos esbofeteia ficou de tal modo impregnada na cultura ocidental que por (muitas) vezes, ao não agirmos assim, sentimos que estamos violando um dever. A metáfora do sândalo perfumando o machado que o derruba tornou-se universal; e nós, quando nos negamos a perfumar aqueles que nos destroem, percebemo-nos como se fôssemos de algum modo transgressores de uma lei ainda mais alta do que a que proíbe o crime.

A verdade é que parece de algum modo mais censurável a pena que o crime por uma razão análoga àquela que faz com que a vingança seja por vezes mais reprovável que a própria agressão. O agressor avilta-se pelo próprio fato de agredir; já o agredido, espera-se que seja magnânimo. Se o agressor praticou o mal movido por sabe-se lá que condições — a necessidade, o medo, o impulso –, o mesmo não se pode dizer da vingança: ela é sempre premeditada, ela não tem outro propósito senão retribuir o mal sofrido. E quando se institucionaliza a pena de morte o contraste fica ainda mais marcante: é fácil imaginar um criminoso premido pelas circunstâncias, enquanto o mesmo não se pode jamais dizer da impessoalidade burocrática da justiça.

Mas há aqui também um outro pressuposto inconfessado: é a noção de que a civilização é superior ao crime e, portanto, nós, homens de bem, somos de alguma maneira superiores aos criminosos — não estando assim autorizados a agir com eles da mesma forma que eles agem para conosco. Em crianças nós toleramos certos comportamentos que, em um adulto, seriam dignos da mais áspera censura; repreender uma criança da mesma forma que repreenderíamos um adulto soa-nos um absurdo injustificável. Se uma criança nos bate com todas as suas forças, nós nem assim poderíamos bater-lhe de volta com toda a força de que dispomos. Ora, o criminoso está em um nível evolutivo inferior ao homem civilizado — e, portanto, ainda que ele nos faça todo o mal que esteja ao seu alcance, nós não lhe poderemos causar em resposta todo o dano de que somos capazes. Não deixa assim de ser irônico que o humanismo abolicionista tenha esses rasgos de condescendência: a pena capital é repelida porque, coitado, o criminoso não a merece.

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O estranho é que a abolição da pena de morte termina por resvalar, no limite, para a supressão de toda e qualquer pena. Executar um criminoso é uma crueldade, concedamos; mas não é também uma coisa cruel encarcerar um infeliz? Se um assassino não merece ser executado porque a sociedade não pode pagar o mal com o mal, por que um sequestrador mereceria ser encarcerado? Tal não seria punir a privação da liberdade do cativeiro com a privação da liberdade do cárcere? Se não aceitamos que se possa castigar unicamente para pagar o mal praticado — a clássica função retributiva da pena –, haverá realmente boas razões para se castigar por qualquer motivo que seja? Não deveríamos procurar outras formas de resolver os conflitos, formas que causem menos danos?

Gustavo Corção, falando sobre o valor da vida, escreveu certa vez que a consciência católica sempre viu na pena capital «um recurso extremo graças ao qual os homens mais perversos recuperaram a dignidade perdida e o direito ao respeito de todos». A afirmação, que provavelmente será considerada estranha aos leitores contemporâneos, tem no entanto um fundamento bastante simples: nós só atribuímos responsabilidades pelos seus atos àqueles que são perfeitos como nós. Inimputáveis são os loucos e as crianças — aqueles coitados que, na fórmula jurídica, são incapazes de perceber o caráter ilícito de sua atitude ou de se determinar de acordo com esse entendimento (Código Penal, 26). Inimputáveis são seres humanos defeituosos, incompletos, inferiores. Apregoar o abolicionismo universal das penas, assim, é no fundo tratar a todos como perpétuos incapazes, é não lhes conceder a plenitude da condição humana.

Riquezas do Catolicismo: consciência das próprias misérias

Acho que é de Chesterton a frase segundo a qual tornar-se católico é o único meio que o ser humano tem de escapar à condição de ser escravo do seu tempo. Ao converter-se à Igreja Católica todo fiel coloca-se, imediatamente, sobre os ombros de vinte séculos de humanidade, e adquire uma visão de mundo de um tal alcance que não seria capaz de obter de outra maneira.

Isso tem incontáveis implicações. Uma delas — fundamental, aliás, para qualquer processo de conversão sério — é notar que não existe nenhum pecado que não seja alcançado pela misericórdia de Deus. Nenhuma ofensa, por grande que nos pareça, é capaz de oferecer obstáculo verdadeiro à Graça alcançada por Cristo na Cruz do Calvário; não existe nenhum pecado que não possa ser verdadeiramente remido (e faço um parêntese: é por isso que rezamos, no Símbolo Apostólico, que cremos “na remissão dos pecados”, remissão verdadeira e própria, i.e., extinção, aniquilamento, destruição, desaparecimento. Isto é muito mais forte do que “ficar quite” após o cumprimento de uma pena: a remissão dos pecados é o fim da própria dívida que implicava na pena); não existe, dizia, nenhum pecado que não possa ser perdoado pelo Deus que é Todo-Poderoso exatamente para cancelar a paga que, por dívida de justiça, incumbe-nos prestar pelo mal que praticamos.

Não há pecado algum que não possa ser perdoado: esta é uma verdade que nos deve reconfortar. Mas a ela corresponde uma outra verdade, infelizmente menos lembrada mas nem por isso menos verdadeira, e que deveria nos fazer vigilantes e cuidadosos: do mesmo modo que não há pecado que não possa ser perdoado, não há também pecado, por grave que seja, que não possa ser cometido. Ninguém está imune a ofender a Deus! Ao contrário até: se não o fazemos, é porque Ele nos sustenta com a Sua Graça. Se não fosse por Ela, se Ela nos faltasse um instante sequer, pereceríamos verdadeira e miseravelmente, sem que nada pudéssemos fazer.

A tradição da Igreja é rica neste tipo de meditação, desde a advertência paulina (qui se existimat stare videat ne cadat — “quem julga estar de pé cuide para que não caia”, 1Cor 10, 12) até, por exemplo, esta eloquente passagem de S. Luís de Montfort que sempre me pareceu comovente:

Ah! Quantos cedros do Líbano, quantas estrelas do firmamento não têm-se visto cair miseravelmente e, em pouco tempo, perder toda a sua elevação e claridade! Donde proveio esta estranha mudança? O que faltou não foi a graça, que não falta a ninguém, foi a humildade. Julgaram-se mais fortes e mais capazes do que eram; julgaram que podiam guardar os seus tesouros. Fiaram-se e apoiaram-se em si mesmos. Acharam a sua casa bastante segura e os seus cofres bastante fortes para guardar o precioso tesouro da graça.

Tratado da Verdadeira Devoção, 89

Somos fracos, ainda que não o experimentemos, ainda que as pessoas que nos são próximas não o sejam capazes de perceber. Temos no nosso interior o desejo do infinito, sim, e uma capacidade extraordinária de abertura à graça de Deus; mas temos também, inafastavelmente, o poder de pecar, a capacidade da mesquinharia, a possibilidade da traição vil e covarde, a aptidão para os mais horrendos pecados. Tal consciência é uma riqueza da experiência cristã multissecular, parte do tesouro atemporal que se recebe ao tornar-se católico.

Eu pensava em tudo isso quando li esta matéria sobre um senhor de 67 anos que matou, decapitou e cortou os dedos da mulher com quem era casado há 37 anos. Esta espécie de crime bárbaro a gente costuma imaginar que é praticado por monstros, por doentes mentais, por pessoas cujos valores são totalmente diversos dos nossos; não parece ser o caso do sr. Jair. Pela história que foi contada não se tratou de nada minimamente premeditado: após uma briga, ele empurrou a mulher que «bateu a cabeça no chão e, por conta do ferimento no crânio, acabou morrendo». Naquele momento, «[d]esesperado», ele «decidiu decapitar a mulher e cortar as pontas dos dedos das mãos da vítima, para dificultar a identificação por parte da polícia»; na delegacia, ao relatar o seu desaparecimento, acabou entrando em contradições e, pressionado, terminou por confessar o crime.

Eu li a história e ela não me pareceu somente uma desculpa fajuta de um criminoso inveterado; talvez pelos cabelos brancos do idoso, pelos seus muitos anos de casamento, pela reação do filho do casal… não sei ao certo, mas acreditei no relato. E me parece, sim, que o sr. Jair está sofrendo, intimamente, as conseqüências das suas atitudes. Isso o torna mais humano. E isso nos torna, a todos nós, humanos miseráveis, mais próximos dele. E também ele, por mais inquietante que isso nos pareça, mais próximo de nós.

Quantos cedros do Líbano não têm caído por terra…! “Bom marido”, quase quatro décadas de casado, cabelos brancos, bons antecedentes. Que ninguém se julgue bom demais, perfeito demais, evoluído demais, auto-suficiente demais. Não o somos, e a realidade nos grita aos ouvidos, o tempo inteiro, que não o somos. Há sempre espaço para o arrependimento — esta é a grande maravilha da misericórdia de Deus! Mas há também sempre espaço para a queda. O demônio anda à nossa espreita, procurando nos devorar…! Tomemos cuidado. Vigiemos, que são muitos os melhores que nós que já caíram em suas garras.

E a redução da maioridade penal?

Um leitor do Deus lo Vult! apresenta os seguintes (pertinentes) questionamentos:

1ª) Ser contra reduzir a maioridade penal é uma posição oficial da Igreja? Se sim, baseada em quê?

2ª) Você é a favor de reduzir a maioridade penal?

3ª) Por quê é tão polêmico esse tema pra a Igreja? Tendo em vista que a violência precisa ser combatida, são seria mais do que justo punir baixando a maioridade penal, de forma contundente, quem comete crimes?

Primeiramente, é preciso deixar claro a Igreja não tem “posições oficiais” sobre temas tão essencialmente contingentes como o modo adequado de punir as pessoas de acordo com a idade que elas tenham. A Igreja trabalha com princípios, deixando (ampla) margem à sua variada concretização de acordo com os tempos e lugares, os costumes e os modos de vida de cada sociedade.

Aquilo que mais aproximadamente se pode procurar a este respeito na Igreja são as disposições do Código de Direito Canônico. Dois cânones particularmente interessam aqui; encontram-se no Livro VI – “das sanções na Igreja” – do Código e, dentro dele, no Título III – “da pessoa sujeita às sanções penais”. São os seguintes:

Cân. 1323 — Não está sujeito a nenhuma pena aquele que, ao violar a lei ou o preceito:

1.° não tinha ainda completado dezasseis anos de idade;

* * *

Cân. 1324 — § 1. O autor da violação não se exime à pena, mas esta, imposta por lei ou preceito, deve atenuar-se ou em seu lugar aplicar-se uma penitência, se o delito for praticado:

[…]

4.° por um menor que tenha completado dezasseis anos de idade;

Daqui se vê que, no que se refere à punibilidade do fiel católico em razão de sua faixa etária, vigoram três regimes na Igreja:

  1. os menores de 16 anos não estão sujeitos a nenhuma pena;
  2. os que já completaram 16 anos e ainda não completaram 18 anos estão sujeitos a penas atenuadas ou substituídas por penitências;
  3. os que já completaram 18 anos são punidos normalmente.

Isto – atenção! – não diz respeito à legislação civil dos diversos países do globo: isto é o que a Igreja dispõe para a aplicação das penas canônicas. Os dois ramos do Direito – o canônico e o civil – são relativamente independentes e, portanto, é perfeitamente possível que uma pessoa seja civilmente inimputável e canonicamente punível, ou vice-versa, sem que haja nenhum problema intrínseco com isto.

No que se refere ao direito secular, às penas estabelecidas pelo Estado, o que vale é o que está no Catecismo (III parte, Segunda Seção, Cap. II):

2266. O esforço do Estado em reprimir a difusão de comportamentos que lesam os direitos humanos e as regras fundamentais da convivência civil, corresponde a uma exigência de preservar o bem comum. É direito e dever da autoridade pública legítima infligir penas proporcionadas à gravidade do delito. A pena tem como primeiro objectivo reparar a desordem introduzida pela culpa. Quando esta pena é voluntariamente aceite pelo culpado, adquire valor de expiação. A pena tem ainda como objectivo, para além da defesa da ordem pública e da protecção da segurança das pessoas, uma finalidade medicinal, posto que deve, na medida do possível, contribuir para a emenda do culpado.

Desta passagem é possível extrair as seguintes importantíssimas conclusões:

  1. não existe nenhuma referência à idade da maioridade penal;
  2. é dever do Estado reprimir os comportamentos socialmente deletérios;
  3. o primeiro objetivo da pena é “reparar a desordem introduzida pela culpa” (função retributiva);
  4. a emenda do culpado (ressocialização) deve ocorrer “na medida do possível”.

Ou seja: é dever do Estado punir os crimes. A maneira concreta como esta punição se dará é deixada à prudência política dos governantes; nada obsta a que, por exemplo, existam estabelecimentos prisionais diferentes de acordo com a faixa etária do criminoso, ou – no meu entender mais importante ainda – de acordo com a lesividade do delito. Uma sociedade, caso queira, pode estabelecer vinte faixas etárias diferentes com diferentes modos de punição para cada uma delas: havendo certa razoável proporcionalidade entre eles, não existe a isso nenhum óbice de natureza moral. O que a sociedade não pode é deixar os delitos impunes: até aqui a doutrina da Igreja.

A respeito da maioridade penal, as duas posições antagônicas – pelos menos as duas posições sérias antagônicas – podem ser resumidas, parece-me, nas seguintes: por um lado, há quem ache que punir mal é menos ruim do que não punir e, pelo outro lado, há quem julgue que não punir é menos ruim do que punir mal.

Acho que ninguém discorda disto: o nosso sistema carcerário pune muito mal. Já o disse alhures, aliás: estou convencido de que, no futuro, os nossos descendentes olharão para nós com horror e, implacáveis, censurar-nos-ão a indiferença com a qual parecemos levar as nossas vidas enquanto, nas nossas prisões, seres humanos – nossos semelhantes – vivem pior do que animais.

Reconhecê-lo não é esquerdismo. O insuspeito Nelson Rodrigues, em uma de suas crônicas d’A Cabra Vadia (“A fotografia do ódio”, pp. 62-65), traz-nos os seguintes interessantíssimos parágrafos:

Imaginem um chefe de família, de origem italiana. Mas a origem pouco importa. Era uma criatura doce, cálida, generosa. Um dia foi preso porque não tinha, na hora, a sua identidade. Sua mulher, seus oito filhos, estão em casa, esperando para o jantar. Mas ele não vem porque foi atirado no fundo de um xadrez. Passou lá, entre marginais, 24 horas, e gritando. Digo eu que o verdadeiro grito parece falso. E o motorista gritava como se estivesse imitando, apenas imitando a dor da carne ferida.

Eis o que aconteceu: — fora estuprado por seis ou sete marginais. Saiu do xadrez, foi para casa. Empurrou a mulher, entrou no quarto e trancou-se. Lá, meteu uma bala na cabeça. Morreu de ódio, morreu odiando, como a fotografia de Manchete. E, como a leitora, não sabia a quem odiar. Os marginais eram, decerto, os menos culpados. Episódios assim são uma rotina que jamais variou. Isso pode acontecer com o filho, o pai, o irmão de qualquer um; pode acontecer com qualquer um. A vítima pode uivar três dias e três noites. Ninguém se mexe na delegacia.

Ora, isso foi escrito em 1968…! O que diria o cronista se visse, em todo o esplendor do terceiro milênio, o Carandiru, Pedrinhas ou o nosso Aníbal Bruno?

A grande questão de fundo, sobre a qual ninguém fala, é a seguinte: o sistema carcerário é ruim para o “adolescente” de 17 anos como o é para o “jovem” de 19. Quem é contra a redução da maioridade não quer que apenas o “de menor” seja poupado dos horrores dos presídios: quer, igualmente, que o seja o “de maior”. Apenas não existe viabilidade para a bandeira e, portanto, por uma mera questão de contenção de danos, ele aceita a incoerência acidental da própria posição.

Tal é legítimo? Lógico que é. O problema é que se está diante de duas posições injustificáveis. O Estado não pode deixar de punir. Mas tampouco pode pôr em grave risco a integridade física e mental de seus cidadãos. Alguém pode justificar a sua posição favorável à redução da maioridade afirmando que se devem tolerar os males do sistema carcerário em vistas a evitar a impunidade generalizada, que é um mal maior. Por outro lado, alguém pode defender a não redução da maioridade alegando que se deve tolerar a relativa impunidade a fim de mitigar os danos injustos do sistema penitenciário patrício, que – este sim! – é o mal maior aqui. Como determinar, de uma vez por todas e absolutamente, a qual dos dois litigantes assiste razão?

O que precisa ficar claro é que a questão não tem absolutamente nada a ver com a idade a partir da qual os brasileiros conseguem entender o caráter ilícito de seus atos e se determinar de acordo com este entendimento. É lógico que – salvo exceções extraordinárias e que devem ser provadas a posteriori, jamais presumidas – pessoas de quinze, dezesseis ou dezessete anos sabem perfeitamente o que estão fazendo. A questão é o que fazer com quem comete crimes, dentro das circunstâncias históricas concretas em que estamos inseridos. E, aqui – excetuando-se, é claro, posições tresloucadas como “não se pode punir, apenas reeducar” ou congêneres -, há espaço para bastante diversidade legítima de opinião.

Por que não deixar “as pessoas fazerem o que quiserem”?

Um leitor fez o seguinte comentário aqui no Deus lo Vult!:

eu sou a favor do livre arbítrio.. quem quiser abortar, aborta! acho que o pai e a mãe tem que decidir se querem ou não viver uma vida infeliz cuidando de uma criança que obviamente será inútil e morrerá quando o sentimento por ela já estiver imenso. larguem de hipocrisia e deixem as pessoas fazerem o que quiserem.

Ora, é completamente sem sentido apelar para o “livre-arbítrio” quando se está falando de eliminar uma vida humana inocente. Todo mundo é a favor do livre-arbítrio, é lógico; mas defender determinado emprego do livre-arbítrio que redunde em dano injusto a um bem de um terceiro, aí já é coisa que não faz sentido algum.

Apliquemos o mesmo “racio-símio” a outros tipos penais previstos no ordenamento brasileiro:

  • eu sou a favor do livre arbítrio..[.] quem quiser assaltar, assalta! Acho que o assaltante tem que decidir se quer ou não viver uma vida infeliz (…) larguem de hipocrisia e deixem as pessoas fazerem o que quiserem.
  • eu sou a favor do livre arbítrio..[.] quem quiser sequestrar, sequestra! Acho que o sequestrador tem que decidir se quer ou não viver uma vida infeliz (…) larguem de hipocrisia e deixem as pessoas fazerem o que quiserem.
  • eu sou a favor do livre arbítrio..[.] quem quiser desviar dinheiro público, desvia! Acho que o corrupto tem que decidir se quer ou não viver uma vida infeliz (…) larguem de hipocrisia e deixem as pessoas fazerem o que quiserem.
  • sou a favor do livre arbítrio..[.] quem quiser cometer qualquer crime, que cometa! Acho que o criminoso tem que decidir se quer ou não viver uma vida infeliz (…) larguem de hipocrisia e deixem as pessoas fazerem o que quiserem.

O “argumento”, como se pode ver, é completamente insustentável. A gente só pode advogar o direito à liberdade quando o seu exercício estiver direcionado para coisas em si mesmas boas ou pelo menos neutras. Antes, portanto, de se dizer “a favor do livre arbítrio” para o aborto, é preciso demonstrar que o aborto, considerado em si mesmo, é moralmente bom ou, pelo menos, indiferente. Sem enfrentar essa questão em primeiríssimo lugar, “hipocrisia” é querer aplicar aos opositores a pecha de estarem querendo violar o sacrossanto livre-arbítrio de outrem. Aqui, não!

[A mesma situação, aliás, poderia ser também resolvida simplesmente dizendo: ok, que cada um tenha o livre-arbítrio de fazer o que quiser, contanto que arque com as conseqüências de suas atitudes. Assim, o assaltante continua com o livre-arbítrio de assaltar, correndo com isso o risco de ser preso; o assassino, continua com o livre-arbítrio de assassinar, contando com o risco de ser morto em legítima defesa por sua vítima ou por um terceiro que por acaso o surpreenda no ato da realização do homicídio; e, o abortista, continua com o livre-arbítrio de abortar, ficando por conta disso sujeito às conseqüências penais que decorrem da sua conduta.

Se não o dizemos, contudo, é porque nos parece que esta visão conota uma espécie de “jogo de soma zero”, como se dispôr-se a sofrer a sanção penal de um crime fosse algo análogo a pagar o preço devido por um bem: como se transformasse o crime, assim, em uma transação normal e socialmente aceitável.

Acreditamos, ao contrário, que sofrer as consequências jurídicas de um crime não é, de nenhuma maneira, o “preço justo” que transforma o cometimento do crime em um negócio jurídico normal. As condutas criminosas devem ser evitadas, ponto; e não  é correto dizer que elas possam ser cometidas mediante o pagamento de x reais de multa ou y anos de reclusão. Parece-nos, assim, que meramente defender o livre-arbítrio para o mal, desde que com suas consequências, é um erro de perspectiva. Há que se distinguir a liberdade em abstrato do exercício concreto dessa liberdade: condenar algumas modalidades deste não equivale, sob lógica nenhuma, a negar aquela.]

Sobre a «criança que obviamente será inútil e morrerá quando o sentimento por ela já estiver imenso»… o que dizer diante de tamanha barbaridade? É evidente que tal conclusão é fruto unicamente da mentalidade doentia do autor do comentário; é patente que ele não tem o menor suporte fático, nenhum dado empírico a lhe autorizar. Porque o que nos contam as pessoas que tiveram filhos deficientes – mormente anencéfalos – é coisa completamente distinta. Busquem-se, a título de informação, as histórias de Marcela de Jesus ou Vitória de Cristo que já foram contadas neste mesmo blog.

Mas, mesmo assim, olhar unicamente para o sentimento dos pais é um erro de proporções. Em uma escala valorativa minimamente decente, o direito à vida da criança – mesmo deficiente! – ganha do direito a “bons sentimentos” dos pais. E, se não se pode exigir de ninguém que enfrente como homem as adversidades que a vida lhe trouxer, pode-se ao menos (e, aliás, deve-se!) impedi-lo de violar gravemente os direitos de outrem em reação àquelas adversidades. Eximir-se de fazê-lo é decair na mais horrenda barbárie, onde o que vale é a lei do mais forte e onde o estado de ânimo de alguém o autoriza a tudo para fazer valer a própria vontade, independente de quem seja pisoteado neste processo.

É lógico que ter um filho com uma deficiência grave é algo devastador. No entanto, matar o próprio filho por ele ser gravemente deficiente é de uma desumanidade atroz. É possível, sem dúvidas, levantar uma infinidade de argumentos para justificar, in casu, a atitude desesperada do pai que opta pelo assassínio intrauterino do seu filho doente. O que não dá é para pleitear o direito universal e inalienável ao extermínio pré-natal das crianças deficientes.

Solicitada abertura de inquérito por ultraje a culto na Catedral da Sé

Já não deve ser novidade para ninguém o recente vandalismo perpetrado por um indivíduo na Catedral da Sé de São Paulo, desfilando pelo interior da igreja com vestes dignas de uma Parada Gay. Muito satisfeito e muito orgulhoso do seu gesto libertador e revolucionário, o celerado em questão – que atende pelo nome de Yuri Tripodi – vinha se vangloriando em seu Facebook da “performance”. A depender dos desdobramentos que o caso tomou, é de se esperar que ele em breve ponha de lado o sorriso zombeteiro ora estampado no rosto.

Na última segunda-feira (28/07), foi protocolado junto ao 1º Distrito Policial da Capital (SP) um pedido de abertura de inquérito policial para a averiguação dos possíveis crimes de ultraje a culto e ato obsceno praticados pelo sr. Tripodi (cf. aqui). A notícia alvissareira me foi enviada pelo caríssimo Rodrigo Pedroso, um dos requerentes, a quem duplamente agradeço: em primeiríssimo lugar pela própria atitude tomada junto aos órgãos competentes de polícia e, em seguida, pela sua divulgação.

Não é de hoje que acontecem esses gestos covardes contra a Igreja, motivados por uma falta de respeito ao próximo que transcende qualquer credo religioso ou mesmo ausência de credo: esse tipo de agressão gratuita, tenho certeza, é percebido não apenas pelos que têm Fé, mas por qualquer pessoa capaz de um mínimo de empatia, tanto como ofensivo aos católicos quanto como de mau gosto e desnecessário. Ninguém precisa ser religioso para entender que expôr as partes íntimas dentro de um templo católico é profundamente agressivo: aliás, o próprio fato do “artista” tomar isso como um libelo contra a opressão religiosa ou o que seja já demonstra, por si só, que ele tem completa consciência do significado do seu gesto. Não se trata, portanto, de nenhum pobre-coitado sobre cujo “jeito de ser” a Igreja está lançando censuras descabidas e injustos vitupérios: trata-se, isso sim, de alguém que deliberadamente se comporta de modo a ofender e escandalizar católicos que estavam pacificamente reunidos no seu lugar próprio de culto. Não é questão de melindre religioso, e sim de civilidade pura e simples.

Não é de hoje, eu dizia, que gestos covardes assim encontram quem os realize alegremente; mas o número desses “corajosos”, estou certo, seria bastante diminuído se eles sofressem na pele alguma mínima conseqüência pelas suas ações. Se ao lado dos tapinhas amigáveis nas costas e das manifestações rasgadas de admiração despejadas nas redes sociais caíssem-lhes alguns pedidos de esclarecimentos por parte das autoridades públicas, estou certo de que os desocupados arranjariam rapidamente outras coisas para fazer: quando menos para não ter que perder tempo às voltas com delegacias e fóruns de justiça. Porque atitudes assim têm o espírito de corpo de um punhado de baratas: basta acertar uma delas para as demais fugirem, desorientadas e perdidas, para todas as direções.

Se por um lado é de se lamentar profundamente a leniência das autoridades religiosas no tocante a estas questões, que nelas parecem não ver nenhum problema de suficiente monta, por outro merecem louvores as atitudes dos fiéis particulares que, em seu próprio nome, gastam um pouco de tempo e de energia para tornar um pouco mais difícil a zombaria das coisas sagradas. Oxalá o exemplo do sr. Rodrigo Pedroso e colegas possa levar outras pessoas a tomarem a mesma iniciativa. Não somos em menor número do que os vândalos e baderneiros. Não é justo que assistamos, inertes, a esses ataques ao sentimento religioso, que escarnecem da própria civilização.

Aborto, pena de morte e contradições

Está surpreendentemente bom este artigo sobre pena de morte publicado por Aleteia. Aborda um tema candente dos últimos tempos – a questão da pena de morte – com uma clareza de raciocínio e capacidade de exposição de idéias fascinante. Mais ainda, ele o faz sem se furtar ao sofisma talvez mais calhorda que existe no debate pró-vida contemporâneo: o que pinta como uma monstruosa contradição alguém se dizer ao mesmo tempo contra o aborto e a favor da pena de morte.

A resposta definitiva à questão é dada imediatamente após a manchete, antes mesmo de começar o texto em si: Defender o inocente não implica renunciar à punição do culpado. Claro, conciso, irretocável. Mas o argumento vai ser melhor desenvolvido ao longo das linhas do texto, as quais valem muito uma leitura.

A defesa da vida tem um objeto muito específico. O que se afirma é a inviolabilidade da vida humana inocente. Os dois adjetivos são essenciais para a correta compreensão do assunto.

O que é inviolável, em primeiro lugar, é a vida humana, e não simplesmente a “vida”. O ser humano se utiliza de seres vivos em seu benefício o tempo inteiro: colhendo o milho para engordar o pintinho, matando o frango para assar o galeto. Independente do que possam dizer os vegetarianos radicais, tudo isso é perfeitamente razoável e legítimo. Há certas diferenças essenciais entre o ser humano e os outros animais, e tais diferenças justificam que haja um tratamento diferenciado entre estes e aquele.

[Isto obviamente não autoriza que os demais seres vivos sejam usados de forma desumana e irresponsável; não é porque podemos matar uma galinha para fazer uma canja que nos é igualmente permitido esfolar um gato, e não é porque é legítimo capinar a frente da nossa casa que não existe nunca nenhum problema moral com o desmatamento. Os ecoterroristas estão para o uso legítimo da natureza como os vegans para a alimentação humana. Ninguém precisa defender o esfolamento de felinos para provar a imoralidade do vegetarianismo radical, como ninguém precisa extinguir a Mata Atlântica para entender que os catastrofistas ambientais estão errados. O parêntese talvez seja necessário.]

Em segundo lugar, é preciso ter em conta que indiscutivelmente inviolável é a vida humana inocente. Discutir a pena de morte para um criminoso não é a mesma coisa que trair o ideal da defesa da vida, da mesma forma que discutir a cadeia para quem comete crimes não é igual a contradizer o direito de ir e vir. E da mesma forma que há uma diferença muito grande entre o ser humano e os animais irracionais que justificam as diferenças de tratamento dispensadas a ambos, há também uma diferença – menor que a primeira, por certo, mas também diferença – entre um inocente e um criminoso, que justifica pelo menos defender um tratamento desigual para ambos sem que isso implique em nenhuma contradição.

Ao contrário do que acontece com os promotores do aborto, são pouquíssimos os católicos para os quais a pena de morte é propriamente uma bandeira. Trata-se muito mais de uma questão acadêmica, especulativa, de salvaguardar a coerência da Doutrina Moral da Igreja, de compreender melhor a Justiça que se esconde para além dos costumes sociais vigentes na sociedade contemporânea – e não de introduzir a figura da pena capital no ordenamento jurídico pátrio. Todos os defensores do aborto querem que o aborto seja legalizado; nem todos os (assim chamados) “defensores da pena de morte” querem que ela seja efetivamente implantada. Isso permite ao John Zmirak (autor do texto acima indicado) fazer a seguinte genial provocação:

Eu já propus o seguinte aos liberais pró-escolha, que chamavam de hipócrita quem era pró-vida e ao mesmo tempo favorável à pena de morte: “Caros liberais pró-escolha, vamos fazer um acordo: eu deixo de apoiar a pena de morte e vocês param de apoiar o aborto. Se vocês pararem de matar os inocentes, nós concordamos em parar de matar os culpados”. Ninguém aceitou a minha proposta (…).

E o mesmo trato vale para qualquer abortista hipócrita que venha despejar erística vazia por aqui.

Há uma última coisa que o Zmirak não faz, mas que eu gostaria de fazer. Não há contradição entre ser contra o aborto e a favor da pena de morte, como foi mostrado acima, mas a recíproca não é verdadeira: há, sim, contradição, uma aberrante e clamorosa contradição, uma contradição inescapável e vergonhosa, em ser ao mesmo tempo contra a pena de morte e favorável ao aborto. É insofismavelmente contraditório e hipócrita defender ao mesmo tempo que os criminosos não podem ser condenados à morte pelos tribunais, mas as crianças inocentes podem ser mortas por suas mães sem nenhum problema. E, disso, não dá para fugir.

Todo mundo que é a favor do aborto, portanto, não tem envergadura moral alguma para se dizer contra a pena de morte. E todo mundo que é contra a pena de morte deveria, por força de coerência, opôr-se também e visceralmente à legalização do aborto, esta particular forma de pena de morte que é direcionada aos mais inocentes e indefesos dos seres humanos: as crianças no ventre materno. Agir diferente disso é que é contradição e hipocrisia.

Outros textos muito bons do John Zmirak podem ser lidos em português no próprio Aleteia. O blog dele em inglês (que eu também só conheci agora) é este The Bad Catholic’s Bingo Hall.

PGR não sabe a diferença entre um quartel e um motel

Apenas um ligeiro comentário sobre o «fim de criminalização de prática sexual em área militar» (!) pleiteado pela Procuradoria Geral da República.

Na tentativa de promover a todo custo o “gay-way-of-life”, as instituições públicas advogam em favor das maiores barbaridades e se expõem cada vez mais ao escárnio e ao descrédito. Ora, o Art. 235 do Código Penal Militar, que os excelentíssimos Procuradores-Gerais parecem não ter mais o que fazer do que buscar revogar, diz textualmente o seguinte:

Art. 235. Praticar, ou permitir o militar que com êle se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar:

Pena – detenção, de seis meses a um ano.

O ato aqui tipificado como crime não é a «pederastia» simplesmente, é qualquer ato libidinoso. E é bastante óbvio para qualquer pessoa que mantenha algum resquício de senso moral que não há nada de errado com isso, muito pelo contrário: trata-se de uma regra mínima de decência e de civilidade. Se o militar quer praticar atos libidinosos, que o faça em sua própria casa, ora bolas, ou num motel, e não dentro de instalações públicas militares! Era só o que faltava mesmo: transformar dependências das Forças Armadas em motéis custeados pelo Poder Público!

É verdadeiramente espantoso que uma notícias dessas possa ser publicada no site do Supremo Tribunal Federal. É tagarelice vazia em cima de tagarelice vazia:

A PGR afirma que, a partir da Constituição Federal de 1988, não há fundamento “que sustente a permanência do crime de pederastia no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que é nitidamente discriminatório ao se dirigir e buscar punir identidades específicas, sem qualquer razão fática ou lógica para tal distinção”. O crime estaria inserido num contexto histórico de “criminalização da homossexualidade enquanto prática imoral, socialmente indesejável e atentatória contra os bons costumes”, visão que “não mais se sustenta internacionalmente”.

[…]

Além do aspecto discriminatório, a Procuradoria aponta que a norma tem o objetivo de limitar a liberdade sexual dos militares. (…) O que seria passível de punição, assim, seria o assédio sexual, de acordo com a PGR. “Não pode haver criminalização do exercício pleno da sexualidade consensual entre dois adultos, ainda mais quando os indivíduos não estejam exercendo qualquer função”.

Primeiro, o crime não é de «pederastia», e sim de «ato libidinoso».

Segundo, não há nada de “discriminatório” aqui, uma vez que qualquer espécie de ato libidinoso cometido por militares dentro de dependências militares – independente do sexo dos envolvidos – é punido com o mesmíssimo artigo do Código Penal Militar.

Terceiro, é óbvio que instalações militares não são lugares adequados para a prática de «atos libidinosos», quaisquer que sejam eles.

Quarto, o homossexualismo ser uma «prática imoral, socialmente indesejável e atentatória contra os bons costumes» não está sequer insinuado aqui, uma vez que o dispositivo regulamenta a decência e a moralidade de um espaço público independente das preferências sexuais dos envolvidos.

Quinto, que ninguém tem «liberdade sexual» para praticar atos libidinosos em dependências públicas, e proibir estes últimos não tem nada a ver com criminalizar as opções sexuais de ninguém.

Sexto, que o assédio sexual já é crime no Brasil (Art. 216-A do Código Penal), e é uma coisa completamente distinta da utilização de dependências militares para satisfazer o baixo-ventre, donde a exigência de tipos penais distintos para coibir práticas distintas.

Sétimo, que o «exercício pleno da sexualidade consensual entre dois adultos», para existir, não precisa ser realizado dentro de lugar sujeito a administração militar – aliás, não o pode ser, porque uma dependência militar não é motel e nem a casa privada de nenhum dos dois «adultos» para que eles se julguem no direito de praticarem atos libidinosos lá.

Oitavo, que não faz nenhuma diferença se os indivíduos estão ou não exercendo funções, o que interessa é que todo mundo – em serviço ou não – precisa obedecer a regras mínimas de moralidade e convivência em espaços públicos.

Nono, por fim, que se engana quem pensa que o chão é o limite. Nós já passamos do chão faz tempo. O limite é o inferno, e os nossos governantes parecem realmente empenhados em fazer com que cheguemos cada vez mais perto de lá. É vergonhoso.

Ainda Uganda e leis anti-gay: esclarecimentos

Eu pus um post scriptum no texto que escrevi ontem sobre a lei anti-homossexualismo da Uganda, mas a honestidade intelectual manda que se fale com um pouco mais de vagar sobre o assunto. Ao comentar o conteúdo do projeto de lei ugandense, baseei-me no que fora escrito pelo sr. Luis Nagao em maio de 2011. Lá, o articulista dizia, verbis, o seguinte:

[O] projeto estabelece diferentes níveis de punição. Começam com prisão por determinado tempo, passando pela pena perpétua (no caso de sexo com menores de 18 anos) e avançam até morte (em casos de relações com menores de 14 anos, transmissão de AIDS, incesto ou “ofensas em série”[)].

Considerei que “ofensas em série” eram estupros em série por conta do contexto e por uma questão de proporcionalidade para com os demais crimes mencionados no mesmo parágrafo (especificamente, “relações com menores de 14 anos”, “transmissão de AIDS” e “incesto”). Mas parece que a minha interpretação não era exata.

Alguém me mostrou a íntegra do projeto de lei de 2009 (atenção, este não é o projeto atual!), e lá existe uma parte preliminar que fala sobre a “interpretação” da lei e onde são feitas diversas definições de termos. Em particular, “serial offender” significa «uma pessoa que já tenha condenações anteriores pelo crime de homossexualidade ou crimes correlatos». Como o “crime de homossexualidade” é definido na mesma lei e abrange até mesmo coisas genéricas como «ele ou ela toca outra pessoa com a intenção de cometer ato homossexual» [Parte II, 2., (1), (c)], a interpretação mais imediata da lei diz que um homossexual que for condenado duas vezes por tocar libidinosamente o seu parceiro (em princípio, mesmo que seja em privado, mesmo que seja consensual e mesmo que o parceiro seja maior de idade) pode ser classificado como “serial offender” e receber punições mais severas – o que me parece uma clara barbaridade.

Como eu disse ontem, considero este tipo de punição injusta nos dias de hoje; citando-me, «a situação atual do mundo é de tal modo que não legitima que o homossexualismo em si seja objeto do Código Penal». Concedo inclusive que uma proposta dessas justifique a redação da petição de Avaaz que eu critiquei ontem, e certamente justifica que as pessoas protestem contra semelhante projeto de lei. Creio até ser bastante evidente que é muito difícil encontrar alguém que defenda com razoabilidade tal medida extremada.

Mesmo assim, há certas coisas que não encaixam. Além da evidente desproporção entre o homem gay que toca por duas vezes com lascívia o seu “namorado” e o aidético que estupra o próprio filho, há outra incoerência de ordem prática: o “crime de homossexualidade”, neste projeto de 2009, é punido com prisão perpétua! Ora, a gente aumenta a pena em crimes reincidentes com base no princípio de que a pena original foi pouca para emendar o criminoso. Alguém se lembrar de tipificar a reincidência de um crime que se pune com prisão perpétua (!) me parece de um legalismo tão exagerado que se me afigura completamente incompreensível. Chego honestamente a duvidar da exatidão do texto deste projeto de lei que encontro somente de segunda mão, transcrito em inglês num site chamado “Box Turtle Bulletin”

Infelizmente, eu não encontrei nenhuma fonte oficial do Governo Ugandense onde o inteiro teor da proposta pudesse ser conhecido. A gente só encontra coisas de segunda mão. A notícia recente que vi em G1 (reproduzindo Reuters) diz muito laconicamente que a pena de morte «foi retirada diante da forte reação internacional», mas que «a versão que tramita atualmente no Parlamento prevê duras penas de prisão» (perpétua inclusive) para homossexuais – sem entrar em mais detalhes e sem citar fontes primárias. O verbete na Wikipedia anglófona também não traz a letra do projeto, e só linka para dezenas de notícias e artigos. Difícil dizer exatamente o que está acontecendo na Uganda neste momento.

Só o que dá para saber é que está para ser votada uma lei que pune o homossexualismo, cujo (suposto) texto de 2009 era – na minha opinião e na de muita gente – injustamente duro. O resto é especulação, à qual o bom senso recomenda parcimônia. Protestar especificamente contra a pena de morte para o homossexualismo em si é legítimo; no entanto, induzir outrem a protestar apaixonadamente contra genéricas “leis anti-gay” (quando o termo é elástico o suficiente para englobar tudo o que contraria a agenda homossexual) é se aproveitar do sofrimento alheio para passar fraudulentamente gato por lebre.

Como legalizar o aborto sem mexer na legislação

Dom Benedito Beni, bispo de Lorena, teceu recentemente duras críticas à política (atualmente em curso) de implantação do aborto no Brasil via Poder Executivo. Os protestos do excelentíssimo senhor bispo fazem eco aos anseios dos brasileiros que, desprezados pelos que os governam, muitas vezes não têm sequer conhecimento do avanço da agenda abortista neste país. Alguns se mostram perplexos e outros são mantidos deliberadamente na ignorância: afinal, em tempos de eleições – momentos nos quais os brasileiros estão menos indiferentes à política brasileira – falar de aborto é crime e pode dar cadeia.

Dom Beni recorda que o projeto abortista no Brasil vem de longa data, desde o início dos anos 90, porém constantemente os abortistas se viram derrotados nas votações realizadas pelos legítimos representantes do povo brasileiro, e agora estão criando “atalhos” para lograr o êxito da sua agenda.

A denúncia é verdadeira. Ora, a legislação brasileira a respeito do nascituro (à exceção do infame artigo da Lei de Biossegurança que autoriza a destruição de seres humanos em estágio embrionário para pesquisas científicas) não mudou nos últimos anos; na verdade, os artigos sobre o aborto do Código Penal vigentes nos dias de hoje são os mesmos que foram originalmente sancionados por Getúlio Vargas em 1940. Como é possível, então, que a prática do aborto dito “legal” se tenha expandido tanto uma vez que a legislação sobre o tema permaneceu a mesma?

Infelizmente, existem muitas maneiras de se promover uma prática criminosa ao arrepio da legislação vigente. Basta, p.ex., dar uma de doido e afirmar na cara dura que a Constituição Federal, de fato, não apenas não proíbe como na verdade exige o direito à eliminação de crianças deficientes. Ou exercitar o cinismo em altíssimo grau e dizer que ajudar uma mulher a fazer um aborto é não uma cretina cooperação material com um crime, mas uma maneira perfeitamente legítima – exigível até! – de se melhorar a saúde pública no país. Enquanto isso, o dinheiro dos nossos impostos vai sendo usado para financiar o assassinato de crianças. Também enquanto isso, vai-se anestesiando a consciência dos brasileiros que, de tanto serem expostos à banalização da vida humana, acabam por achar que não vale a pena lutar por ela ou – pior ainda! – que ela é mesmo banal e de fato não merece ser protegida.

Este processo de legalização oblíqua do aborto não é de hoje. Lembro-me de que havia na entrada do site do Pró-Vida de Anápolis um sucinto calendário macabro com datas marcantes do aborto no Brasil; o número delas se multiplicou assustadoramente nos últimos anos e, por isso, o pequeno memorial do pe. Lodi está desatualizado. Mas as que merecem menção até 2005 ainda estão lá:

Quarta-feira, 12 de Setembro de 2012
Hoje faz 5056 dias que o ex-Ministro José Serra assinou a Norma Técnica do Aborto em 9 de novembro de 1998.
Hoje faz 2828 dias que o ex-Ministro Humberto Costa divulgou mais uma Norma Técnica do Aborto em 15 de dezembro de 2004.
Hoje faz 2729 dias dias que o presidente Lula sancionou a Lei de Biossegurança, que permite a destruição de embriões humanos, em 24 de março de 2005.
Hoje faz 2568 dias dias que o Ministro Saraiva Felipe editou a portaria 1508, que oficializou a prática do aborto no SUS, em 1º de setembro de 2005.

Todos esses eventos (com exceção da sanção da Lei de Biossegurança) não foram atos do Poder Legislativo que pudessem modificar a lei brasileira sobre o aborto. Mas foram atos com o objetivo de driblar a legislação vigente e, dando uma de joão-sem-braço, institucionalizar e financiar na prática aquilo que a teoria manda ser combatido.

Ora, quem negasse a enorme contribuição que estes atos de governo deram à causa abortista no Brasil seria ou muito cego ou muito cínico. Donde se demonstra, portanto, quão pertinente é a denúncia de D. Beni à qual fizemos referência no início deste texto. Unamos a nossa voz à dele e, todos juntos, defendamos com vigor a vida daqueles que não têm ainda voz. Urge desmascarar os tiranos sanguinários que têm governado o país nos últimos anos. É fundamental dizer-lhes um sonoro “não” sobre o projeto ideológico assassino que lhes é tão caro. Importa conhecer-lhes as estratégias, para que as possamos mais eficazmente contra-atacar. A própria maneira tortuosa e obscura que eles usam para atingir os seus objetivos revela o quanto eles são vergonhosos e vis. Não tenhamos medo dos que conspiram nas trevas! Este tipo de monstro costuma se desvanecer sozinho tão-logo nós os arrastamos à luz.