Comentei aqui en passant, mas a mulher parece realmente estar empenhada em ser a interina mais ativa da história da Procuradoria Geral da República! Após a Dra. Deborah Duprat – procuradora-geral interina, é sempre bom lembrar – ter enviado ao STF uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental pedindo o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, esta incansável e exemplar funcionária pública preparou um parecer favorável ao aborto de anencéfalos e o enviou também ao Supremo Tribunal Federal:
A argumentação é que a proibição vai contra o direito à liberdade, à privacidade e à autonomia reprodutiva da mulher, além de ferir o princípio da dignidade humana e também o direito à saúde.
[…]
De acordo com a procuradora-geral, se a anencefalia ficar comprovada após diagnóstico de um “médico habilitado”, a antecipação terapêutica do parto é um “direito fundamental de gestante”.
A situação é tão surreal que eu nem sei por onde começar, se pela estupidez da declaração da Procuradora-Geral [“direito fundamental da gestante”? Qual o conceito que esta gente tem de “direito fundamental”?], se pelo absurdo que é aproveitar um cargo interino para semear o caos e lançar-se em defesa desesperada de tudo o que é imoral, se pelo questionamento das motivações da sra. Duprat. Como não tenho tempo para comentar tudo, vou me restringir ao parecer enviado pela sra. procuradora-geral.
Comecemos do começo. A íntegra do parecer pode ser lida aqui. É um primor. Na concepção da autora, permitir o aborto de anencéfalos é fazer uma “interpretação conforme à Constituição dos artigos 124, 126, caput, 128, I e II, do Código Penal” (p. 4)! Quer dizer, a inviolabilidade do direito à vida deixou de ser direito constitucional; na verdade, é o assassinato que o é. A tática de utilizar, na defesa de uma coisa, precisamente aquilo que é usado para impugná-la, não é simplesmente um nonsense. É deboche e escárnio, e é estratégia para anestesiar a inteligência do interlocutor, por meio da apresentação de uma posição tão descaradamente extremada que termine por “forçar um meio-termo” – um síntese entre a tese e a antítese – que se aproxime muito mais do lado nonsense do que do lado do bom senso.
Dois parágrafos abaixo, a interina joga duas informações: a anencefalia seria “incompatível com o desenvolvimento da vida extra-uterina” e poderia “ser diagnosticada com 100% de certeza” (id. ibid.). Contra este mau-caratismo intelectual, basta lembrar da saudosa Marcela de Jesus, que faleceu com um ano e oito meses após ter sido diagnosticada como anencéfala. Diante deste fato, das duas uma: ou a anencefalia não é “incompatível com o desenvolvimento da vida extra-uterina”, ou não pode “ser diagnosticada com 100% de certeza”. Um único contra-exemplo basta para mostrar que as duas afirmações da dra. Duprat simplesmente não podem ser ambas verdadeiras.
Só que não há um único contra-exemplo, há diversos. Ainda quanto a esta conjunção de meias-verdades que tenciona induzir o leitor incauto ao engano, permito citar uma coisa que já escrevi aqui há quase um ano:
[H]á diversos casos de crianças anencéfalas mundo afora que viveram após o parto. Entre os diversos graus de anencefalia existentes, temos exemplos (todos diagnosticados como “anencéfalos” nos exames pré-natais; todos cujos pais receberam a sugestão de “interromper a gravidez”) dos mais variados: um dia, três dias, uma semana, doze dias, e até dois anos.
A dra. Duprat, contudo, cita Marcela de Jesus. Mas tem a cara de pau de dizer que, “[n]as audiências públicas realizadas nesta ação, foi devidamente esclarecido o fato de que a menina Marcela de Jesus, que teria supostamente sobrevivido por um ano e oito meses com anencefalia, não tinha na verdade esta patologia, ao contrário do que afirmaram os opositores da interrupção voluntária da gravidez, mas outra má-formação cerebral menos severa” (p. 5). Quanto a isso, só dois comentários. Primeiro, não ficou “devidamente esclarecido” absolutamente nada, a não ser a sanha dos abortistas de encontrarem a todo custo diagnósticos feitos à distância e post-mortem que desdissessem tudo o que sempre foi dito sobre a menina. Segundo, acho verdadeiramente impressionante como a dra. Duprat conseguiu se esquecer tão rapidamente dos diagnósticos “com 100% de certeza” que ela havia citado na página anterior. E ainda tem a coragem de chamar este imbroglio contraditório de “premissas fáticas” (sic)!
Antes de terminar, existe mais uma informação relevante que precisa ser citada: é sobre jurisprudências. São palavras da interina: “[n]o julgamento da ADIn nº 3.510, o voto vencedor do Ministro Relator Carlos Ayres de Britto endossou a tese de que a Constituição só protege a vida após o nascimento” (p. 11). A ADIn 3510 é a das pesquisas com células-tronco embrionárias. Também comentei aqui esta vergonhosa decisão do STF. Sugeri então que as manchetes dos jornais poderiam ter sido “Aberto importante precedente para a legalização do aborto”. Ninguém nos levou a sério. Agora, vem a Procuradora-Geral dizer que, sim, o julgamento das células-tronco “endossou a tese de que a Constituição só protege a vida após o nascimento”. Não adianta ela, a la Lula, dizer no parágrafo seguinte que não adota esta perspectiva, porque o que interessa aqui é que ela existe. O óbvio foi posto a descoberto.
É difícil não levantar suspeitas sobre as motivações desta extraordinária atividade. Provavelmente, nunca antes na história deste país uma procuradora interina trabalhou tanto. Espero contudo que os feitos da Dra. Deborah Duprat sejam tão interinos quanto o seu cargo. Que passem. E que as tentativas desta senhora de desmoralizar a Procuradoria Geral da República não vigorem. O Brasil não precisa deste tipo de oportunismo barato.