Terminei há uns dias a leitura tardia de O mundo assombrado pelos demônios com uma certa simpatia pelo Sagan. Ele me pareceu alguém sinceramente convencido de suas idéias: alguém honestamente convicto de que a ciência somente — e somente a ciência — é capaz de melhorar o mundo e responder às angústias últimas do ser humano sobre quem somos e de onde viemos. De certa maneira, parece que ele realmente acha que os cientistas são uma espécie de casta sacerdotal (embora provavelmente ele rejeitasse a terminologia) capaz de obter resultados melhores na evolução do ser humano do que foram capazes os outros cleros que a precederam.
A minha simpatia é provavelmente devida à sensação — que perpassa toda a obra — de que ele quer acertar e, mais que isso!, que ele realmente justifica de maneira correta mesmo as posições equivocadas que adota. Os capítulos iniciais sobre os extraterrestres são talvez o exemplo mais eloquente disso: não importa, diz o Sagan, se ele particularmente acredita ou não em vida inteligente extraterrena, o que interessa é que não há indícios seguros de sua existência. E para além disso, as afirmações das alegadas vítimas de abdução não devem ser liminarmente excluídas, mas sim analisadas criteriosamente: é analisando-as que ele conclui por explicações alternativas.
Não importa tanto que explicações sejam essas, mas sim o raciocínio que ele usa — traçando um paralelo entre as abduções extraterrestres contemporâneas e os assaltos medievais de demônios noturnos: incubi e succubi. Com isso ele conclui que os dois fenômenos são parecidos demais para receberem explicações diferentes. E, como as antigas possessões são falsas, as modernas abduções o são também igualmente.
[É aliás curioso que ele avente a hipótese de que os relatos históricos de demônios sexuais tenham sido, na verdade, a forma que os medievais encontraram para descrever, dentro do seu ambiente cultural, a ação de extraterrestres fazendo experiências com seres humanos. Mas o que é ainda mais curioso é que ele não faça o raciocínio inverso — e sequer lhe passe pela cabeça enxergar influências demoníacas nos que hoje dizem ser importunados por seres de outro planeta.]
Mas o interessante aqui é o que se esconde por trás dos olhos luzidios dos marcianos. Sob a comparação entre demônios e extraterrestres está firmemente estabelecido o pressuposto de que a realidade é uma só e, portanto, deve ser explicável à luz de uma cosmovisão abrangente e coerente. Por um lado, nenhum aspecto da realidade deve ser posto de lado por um pensamento que se pretenda científico; por outro lado, não é razoável multiplicar explicações díspares para fenômenos análogos entre si. Só isso já coloca o Sagan em um patamar superior aos materialistas da ATEA e congêneres com os quais é por vezes tão monótono cruzar espadas. Ele não é um solipsista: é alguém com uma profunda admiração pelo ser.
Através das páginas do livro é possível perceber que Sagan crê firmemente que a realidade existe independente do que pensemos a respeito dela e independente da maneira como gostaríamos que ela fosse. Após ler o livro, fica a sensação de que faltou apenas um passo (um passo pequeno!) para que ele entendesse que a realidade existe e é como é mesmo a despeito de eventuais impropriedades dos instrumentos — como a ciência — mediante os quais nos vem o conhecimento do mundo. Afinal de contas, a ciência cartesiana é um recorte da realidade — mais ou menos como, por exemplo, mutatis mutandis, a visão, conquanto importantíssima, é também um recorte, e simplesmente não faz sentido dizer que a música de Beethoven não existe pelo fato (tecnicamente exato) de que os nossos olhos não a podem ver.
A realidade existe, a realidade é uma só, a realidade é como é independente da nossa vontade: ouso dizer que tudo isso é dado por pressuposto pelo astrofísico americano. Mas parece que ele pensa que a ciência é capaz de açambarcar toda a realidade; ou, pelo menos, que as parcelas da realidade que estejam fora das fronteiras da ciência não mereçam tanta atenção, não sejam capazes de adquirir uma validade intersubjetiva.
Contudo o mesmo Sagan reconhece os limites da ciência quando insiste (e o faz reiteradas vezes ao longo do livro) na necessidade do cultivo do aspecto ético também entre os cientistas, do pensamento crítico como instrumento para investigar também questões éticas. Ora, e o que é ética? Das duas, uma: ou é uma coisa que tem validade para além das preferências subjetivas dos diversos atores sociais, ou é algo que ninguém sabe e nem pode saber o que é. Se fosse este último caso, então a prédica por ética na ciência e em prol do bem da humanidade seria um puro clamor vazio. Por outro lado, se é possível aos seres humanos concordarem a respeito do que é certo e o que é errado, então é possível chegar a consensos que não derivem de experimentos laboratoriais.
Em suma, o livro, em seus aspectos substanciais, poderia perfeitamente ter sido escrito por um cristão convicto: o desejo pela verdade, o deslumbramento diante da ciência (por exemplo, é tocante o capítulo onde ele descreve como Maxwell descobriu que a luz é uma radiação eletromagnética; e Maxwell era abertamente protestante), a preocupação com distinguir o que é certo daquilo que faz as pessoas se sentirem bem. Tudo isso é bom e é justo, e mais: tudo isso é essencialmente cristão e somente no Cristianismo encontra a sua realização plena. Sagan morreu dois anos antes de S. João Paulo II publicar a sua magistral Fides et Ratio, e tenho pouca esperança de que o cientista se convertesse à Religião verdadeira após a leitura da encíclica pontifícia; mas creio que ele seria muito capaz de apreciar, por exemplo, esta passagem, que vai ao encontro de muito o que ele escreveu no seu livro sobre a ciência como vela no escuro:
«Todos os homens desejam saber», e o objecto próprio deste desejo é a verdade. A própria vida quotidiana demonstra o interesse que tem cada um em descobrir, para além do que ouve, a realidade das coisas. Em toda a criação visível, o homem é o único ser que é capaz não só de saber, mas também de saber que sabe, e por isso se interessa pela verdade real daquilo que vê. Ninguém pode sinceramente ficar indiferente quanto à verdade do seu saber. Se descobre que é falso, rejeita-o; se, pelo contrário, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito. É a lição que nos dá Santo Agostinho, quando escreve: «Encontrei muitos com desejos de enganar outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado». Considera-se, justamente, que uma pessoa alcançou a idade adulta, quando consegue discernir, por seus próprios meios, entre aquilo que é verdadeiro e o que é falso, formando um juízo pessoal sobre a realidade objectiva das coisas. Está aqui o motivo de muitas pesquisas, particularmente no campo das ciências, que levaram, nos últimos séculos, a resultados tão significativos, favorecendo realmente o progresso da humanidade inteira.
Fides et Ratio, 25
Todos os homens desejam saber. Quem o disse foi o Estagirita, séculos antes de S. João Paulo II o repetir em uma encíclica sobre Fé e razão. Mil e quinhentos anos depois, S. Tomás acrescentou que «a natureza, objecto próprio da filosofia, pode contribuir para a compreensão da revelação divina» (FR, 43). A despeito dos fracassos pessoais do Sagan, é possível conciliar a Fé e a Razão: sem isso a vela da ciência tremeluz e bruxuleia, e não é capaz de vencer a escuridão que porfia por engolfá-la.
Somente na harmonia entre a Fé e a Razão é possível conhecer a verdade toda, em todos os seus aspectos — inclusive os éticos — e somente assim é possível alcançar um verdadeiro progresso para os indivíduos e as nações. E isto precisa ser defendido com toda a diligência, e ensinado às nossas crianças e aos nossos crentes e aos nossos ateus. Estou convencido de que esta, sim, é a melhor maneira de fazer frente à escuridão provocada pelos demônios que assombram o mundo onde vivemos — escuridão contra a qual o Sagan obteve apenas uma vitória parcial e incompleta.